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«A melhor introdução à arquitectura que eu já li.

>>
Robert Campbell, The Boston Globe
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o
1.
Se o nosso interesse por edifícios e objectos é, de facto, dt•l• 1
minado tanto pelo que eles nos dizem como pela forma como th
sempenham as suas funções materiais, vale a pena debruçarmo ""
sobre o curioso processo pelo qual as combinações de pedra, •'\ '
betão, madeira e vidro parecem exprimir-se e que podem, ChJII•
radicamente, causar-nos a impressão de que estão a falar-n oh d1
coisas significativas e comoventes.

2.
É claro que corremos um risco se passarm os grandes período
a analisar os significados que emanam dos objectos práticos.)•;.,
tarmos preocupados em decifrar a mensagem codificada num i11
terruptor de luz ou numa torneira é ficarmos mais vulneráveis :111
escárnio do senso comum daqueles que procuram pouco nesses a1
tefactos, a não ser o meio de iluminar o quarto ou de lavar os dente~
Para nos vacinarmos contra esse escárnio e ganharmos confian
ça, a fim de cultivarmos uma atitude mais meditativa em relação ao~
objectos, seria bom visitar um museu de arte moderna. Nas galeria~
pintadas de branco que albergam colecções de escultura abstracta do
século xx, temos à disposição uma perspectiva rara da exactidão com
que as massas tridimensionais podem assumir e transmitir signifi-
cado - uma perspectiva que pode, por sua vez, permitir-nos encarar
de outra maneira os nossos acessórios e as nossas casas.

3.
Foi na primeira metade do século xx que os escultores come-
çaram a provocar, em igual medida, o espanto e o opróbrio por
O que podem dizer os objectos abstractos:
86 A Arquitectura da Felicidade Henry Moore, Two Forms,1934
1 111 pc~·as às quais parecia difícil dar um nome, obras a que

v
I
1 1111 nesse pelas ambições miméticas que tinham dominado

11 111 11 a ocidental desde a Antiguidade Clássica e que, apesar

,,,dhança com os objectos domésticos, também não tinham


1 'i'"'' capacidades práticas.
l'''' lltdo, apesar destas limitações, os artistas abstractos afir-
\ "''que as suas esculturas eram capazes de dar voz aos temas
ti ttnportantes. Muitos críticos concordavam. H erbert Read
, II'VCU o trabalho de Henry Moore como um tratado acerca

lt lu 111dade e da crueldade humana;-;rum mundo de onde Deus

-
I• 1\ lhcrto Giacometti exprimiam a solidão e o desejo do homem
llntado do seu Eu autêntico numa sociedade industrial.
I 'ode ser fácil rir da grandiloquência das afirmações dirigidas
1 nhjectos que, à primeira vista, parecem tampões de ouvidos ou
III.U JUinas de cortar relva viradas ao contrário. Porém, em vez de
1111sarmos os críticos de lerem demasiado em tão pouco, deverí-
tllllOS permitir que as esculturas abstractas nos demonstrassem o

lt•que de pensamentos e de emoções que cada tipo de objecto não


hgurativo pode transmitir. A dádiva dos escultores mais talento-
Kns foi ensinar-nos que grandes ideias- como, por exemplo, sobre
tl inteligência, a bondade, a juventude ou a serenidade- podem
Hcr comunicadas em pedaços de madeira e de cordel, ou em ge-
ringonças de gesso e de metal, do mesmo modo que tal pode ser
feito por palavras ou em imitações do ser humano ou de animais.
As grandes esculturas abstractas conseguiram falar connosco, na
sua linguagem peculiar e dissociada, sobre temas importantes da
nossa vida.
Em cima: Alberto Giacometti,A Hora dos Traços, 1930;jasper M orrison,Mesa
ATM,2003
No meio: Anthony Caro, Whispering, 1969; Mies van der Rohe, coluna,
Pavilhão de Barcelona, 1929
Em baixo: D onald Judd, Untitled, 1989; Dicncr c Dicner, Migros, Lucerna, 2000
Estas esculturas, por sua vez, dão-nos a oportunidade de III •

_p:oncentrarmos com uma intensidade invulgar nas capacidade~ ,h


<r/ l · ~omunicação de todos os objectos, incluindo os nossos edifk11 1
t!·o e o seu mobiliário. Inspirados pela visita a um museu, podcnH•
' censurar-nos pela nossa anterior convicção prosaica de que Ull lt

tigela de salada é apenas uma tigela de salada, em vez de ser efwt


vamente um objecto sobre o qual pairam, débeis mas significati VIl>,
associações de plenitude, de feminino e de infinito. Podemos olha1
para uma entidade prática como uma secretária, uma coluna ou \IIII
prédio de apartamentos e também nesse caso detectarmos articu
lações abstractas de alguns dos temas importantes da nossa vida.

4.
Uma manhã luminosa na Tate Gallery, St Ives, Cornualha. So
bre uma base assenta uma escultura de Barbara H epworth, expos·
ta pela primeira vez em 1936. Embora não seja claro o que aquela'>
três pedras podem significar ou representar - um mistério reflec-
tido no seu título reticente, Dois Segmentos e Uma Esfera -, ela~
conseguem, contudo, prender e recompensar o nosso olhar. O seu
interesse centra-se na oposição entre a bola e a cunha semicircular
sobre a qual a primeira assenta. A bola parece instável e enérgica.
Percebemos o quão avidamente ela deseja rolar pela aresta principal
da cunha c rebolar pela sala. Em contraste com esta impulsivida-
de, a cunha que a acompanha transmite maturidade e estabilidade.
Parece satisfeita por embalar suavemente, de um lado para o outro,
acalmando a impetuosidade do seu fardo. Ao observarmos a peça,
testemunhamos uma relação terna e divertida que se toma majestosa
pela utilização do material primordial- o mármore branco polido.
Barbara H epworth, Dois Segmmto e Uma Esfera, 1936
90 A Arquitectura da Felicidade
Num ensaio sobre Hepworth, o crítico psicanalítico .Ad11 não nos faltam sugestões de
(Jullndo começamos a observar, . Há in-
Stokes tentou analisar a força desta obra aparentemente simph 1. :\ o mobUiário e nas casas que nos rodetam. p.
Chegou a uma conclusão convincente. Se a escultura nos I Pt ~·''~ yvas n , e ersona ens robustas e chetas
11 nos nossos jarros de agua p . sgnas nossas secretárias
G
pode ser porque, inconscientemente, a olhamos como um rctt ,tl
de família. A mobilidade e a opulência roliça da esfera sugcn·11 t
- nos subtilmente um bebé bochechudo e vivo, enquanto as for111 '
I nus nossas chaleiras, veados graetoso

''" mts mesas de sala de jantar. 1h d d Armazéns


amplas e oscilantes do segmento têm reminiscências de uma 111 1 cansa~o cép:~~:r~~::~f::dt~e:s:l, :~quanto
I Im olho e pa-
calma, paciente e de ancas largas. Percebemos vagamente nt'klt thdm, em Berhm, da d Castelo Béranger,
dl' insecto viradas ao contrário gua.r am oC t de Conven-
conjunto um tema central das nossas vidas. Sentimos nele 11111 . patra no en ro
l'n·· Um escaravelho agresstvo
parábola em pedra sobre o amor maternal. 11 us. , . anto há uma criatura de aspec-
O argumento de Stokes conduz-nos a duas ideias. A primrt • de Putrajava, na Malasta, enqu C m Gateshead.
, 1 S ge Arts entre, e
• tllnis simpático e amave no a
ra é que não precisamos de muito para interpretarmos um objct
to como uma figura humana ou animal. Uma peça de pedra podt
não ter pernas, olhos, orelhas ou quase nenhuma das caracter(~
ticas associadas a um ser vivo. Pode ter apenas uma sugestão dt•
uma coxa materna ou de uma bochecha de bebé e começamos 11
lê-la como uma personagem. Graças a esta tendência projectiv:t,
podemos acabar por nos sentirmos tão comovidos por uma escul-
tura de Hepworth como por uma representação mais figurativa
da ternura maternal, porque para o nosso olhar interior não é ne-
cessário existirem diferenças entre a capacidade expressiva de um
quadro figurativo e um conjunto de pedras.
Em segundo lugar, as nossas razões para gostarmos de esculturas
abstractas e, por extensão, de mesas e colunas não estão assim tão
distantes das que encontramos para exaltar as cenas representati-
vas. Dizemos que obras dos dois géneros são belas quando conse-
guem evocar o que nos parecem ser os atributos mais atraentes e
significativos dos seres humanos e dos animais.
Ediflcios que Falam 93

92 A Arquitectura da Felicidade
~ 1esmo em coisas tão diminutas como um tipo de letra, pode-
' detectar personalidades definidas sobre cujas vidas e sonhos
11 1t11'Íamos, sem grande dificuldade, escrever um conto. Ascos-
direitas e o porte erecto de um «f» em Helvética sugerem um
I''''.tgonista pontual, hábil e optimista, enquanto o seu primo em
l~•ll philus, coma cabeça pendurada e contornos suaves, nos apre-
III a um aspecto mais sonolento, submisso e pensativo. A sua his-
hll m é capaz de não acabar bem.

f Helvetica f Poliphilus

Também numa loja de material de cozinha podemos encontrar


II II\ sortido de tipos igualmente expressivos. O s copos de pé alto

pMccem genericamente femininos, embora esta categoria abran-


lt carinhosas matronas, ninfetas e intelectuais tensas, enquanto os
1upos sem pé, mais masculinos, têm no seu grupo lenhadores e
olliSteros funcionários públicos.

A tradição de equiparar mobiliário e edifícios a seres vivos pode


detectar-se em autores tão antigos como Vitrúvio, que comparou
os três principais estilos clássicos com um arquétipo humano ou
divino da mitologia grega. A coluna dórica com o seu capitel sim-
Ouri~os-cacheiros, escaravelhos, olhos e pemas:
DCe ctmaGpara baixo, da esquerda para a direita: Foster and Partners Sage Arts Edifícios que Falam 95
entre, ateshead, 2005 '
H~jjas Kasturi, Centro de Convenções, Putrajaya, 2003
Alfred Messe!, A rmazéns Wertheim Berlim 1 904
Hcctor Guimar, Castel Béranger, Pa;is, 189 6'
1ol, L " '' 11 JH'Ii d atarracado tinha o seu equivalente em Hércul,··, 1ustiva de queixos, órbitas, testas, bocas e narizes com adjectivos
l11 '"' 111.111 1:d c musculoso; a coluna jónica, com as suas voluta~ 1 lllt'rpretativos a acompanhar cada ilustração.
11J ,,, ~,l' decorada, correspondia à deusa Hera, fleumática e de mcin
idade; e a coluna coríntia, com a decoração mais complicada d :1~
três e um perfil mais alto e esguio, encontrou o seu modelo na bcl.1
divindade adolescente Mrodite.
Em homenagem a Vitrúvio, podíamos passar as viagens de
carro a equiparar os pilares dos viadutos aos seus correspondente~ Triste e sarcástico Asntto, mas vulgar Suave e indulgente
bípedes. Uma viagem podia revelar uma mulher sedentária e ale
gre a segurar um viaduto, assim como um contabilista meticuloso
e de ar autoritário a servir de suporte a outro.
Se conseguimos formar juízos acerca da personalidade de ob
jectos a partir de características aparentemente minúsculas (uma
alteração de apenas alguns graus no ângulo do rebordo pode des
viar um copo de vinho da modéstia para a arrogância), isso deve- Benevolente e terno Brutal e cínico Estúpido c muito sexual

-se ao facto de adquirirmos primeiro essa capacidade em relação O que significam os rostos:
Johann Kaspar Lavater, Essays on Physiognomy, 1738
aos seres humanos, cujas características conseguimos atribuir a
partir dos aspectos microscópicos do tecido da pele ou do mús- A abundância de informação que temos tendência para dedu-
culo. Um olho move-se desde a insinuação de uma desculpa até lir das formas humanas ajuda a explicar a intensidade dos senti-
à sugestão de hipocrisia através de um movimento que é, no sen- lllcntos gerados pelos estilos arquitectónicos concorrentes. Qyan-
tido mecânico, improvavelmente pequeno. É muito pouco o que ' lo apenas um milímetro separa uma posição letárgica da boca de
separa o movimento de sobrancelha que fazemos com preocupa- uma posição de benevolência, é compreensível que pareça existir
ção daquele que demonstra concentração, ou o de uma boca que muita coisa nas formas diferentes de duas janelas ou das linhas do
insinua enfado da que sugere desgosto. A codificação dessas varia- rclhado. É natural que sejamos tão perspicazes quanto aos signi-
ções infinitesimais foi o trabalho de toda a vida do pseudocientis- ficados dos objectos que nos rodeiam como em relação aos rostos
ta}ohann Kaspar Lavater, cuja obra em quatro volumes Essays on das pessoas com quem convivemos.
Physiognomy (1783) analisou quase todas as conotações possíveis Ter a sensação de que um edifkio não é atraente pode simples-
das características faciais e apresentou os contornos de uma série mente querer dizer que não nos agrada o temperamento da criatura

96 A Arquitecrura da Felicidade
ou do ser humano que vagamente reconhecemos na sua estrulu ( >hservemos os suportes das costas das duas cadeiras. Ambos
ra- tal como designar como belo outro edifício é sentir a presrn t••t·m transmitir um estado de espírito. O s suportes curvos in-
O ça de um ser de que gostaríamos caso ele assumisse uma forrthl '"''"n facilidade e diversão, os rectos seriedade e lógica, sem que,
~ ~nimada. O que procuramos numa obra arquitectónica não c~t ,, lllludo, nenhum dos conjuntos se aproxime da forma humana .
.(/fJ'()- afinal, muito longe do que procuramos num amigo. O s objec111 l ~uportes representam antes, de uma forma abstracta, dois tem-
~ ~ que descrevemos como belos são versões das pessoas que amamo I lollllentos diferentes. U m pedaço de madeira direito comporta-
~
lu
' 110 seu próprio meio como uma pessoa estável e sem imagina-

Com quem gostaríamos de fazer am izade? R•, actua na sua vida, enquanto os meandros de um pedaço curvo
111 respondem, por mais obliquamente que seja, à elegância des-
uni raída de um espírito sereno e distinto.

6.

M esmo quando os objectos não têm qualquer semelhança com as


pessoas, é fácil imaginar que tipo de carácter humano poderiam ter.
A nossa capacidade de detectar paralelismo com os seres hu- A facilidade com que ligamos o mundo psicológico ao mundo
manos nas formas, texturas e cores é tão apurada que podemos 1·xterior, visual e sensorial semeia a nossa linguagem de metáforas.

interpretar uma personagem a partir da forma mais simples. Uma I'odemos referir-nos a alguém como sendo retorcido ou escuro,
linha é suficientemente eloquente. O exemplo de uma linha recta ~uave ou duro. Podemos criar um coração de pedra ou cair num es-
assinala alguém estável e monótono, uma linha ondulada parece t ;tclo de espírito cinzento. Podemos comparar u ma pessoa com um
afectada e calma e uma linha quebrada zangada e confusa. material como o cimento, ou com uma cor como o grená, e termos
,1 certeza de que assim transmitimos algo da sua personalidade.

O psicólogo alemão Rudolf Arnheim pediu um dia aos seus


alunos que descrevessem um bom e um mau casamento utilizan-

98 A Arquitectura da Felicidade Edillcios que Falam 99


do apenas desenhos. Embora pudéssemos deparar-nos com Utttt
grande dificuldade, ao elaborarmos em sentido inverso, partindo
dos rabiscos seguintes para o resumo do magnífico Arnheim, nuo
conseguiríamos deixar de aproximar-nos porque eles consegu(." ttl
captar de uma forma marcante algo das qualidades de dois tiptt
diferentes de relação. Num dos exemplos, as curvas suaves espelh:ntt
o decurso pacífico e fluido de uma união amorosa, enquanto os pi
cos que giram violentamente funcionam como uma estenografiu
visual de comentários sarcásticos e portas atiradas com violência

Temperamentos contrastantes:
D uas histórias sobre a vida conjugal, Rudolf Arnheim, Visual Thinking, 1969 E squerda: Palácio Ducal, Urbino, 1479; direita: Catedral de Bayeux, 1077

Se simples garatujas num pedaços de papel conseguem falar Se, para levar um pouco mais longe o exercício de Arnheim,
com precisão e fluência dos nossos estados psíquicos, quando se nos incumbissem de produzir imagens metafóricas da Alemanha
trata de edifícios completos o potencial expressivo é aumentado t•m dois períodos da sua história, como estado fascista e repúbli-
de forma exponencial. Os arcos ogivais da Catedral de Bayeux ca democrática, e se nos fosse permitido trabalhar com pedra, aço
transmitem paixão e intensidade, enquanto os seus equivalentes c vidro em vez de apenas com um lápis, é provável que não con-
arredondados do pátio do Palácio Ducal, em Urbino, encarnam seguíssemos melhor do que os desenhos iconográficos de Albert
serenidade e pose. Tal como uma pessoa suporta as dificuldades Speer e Egon Eiermann, que criaram os pavilhões nacionais para
da vida, assim os arcos do palácio resistem à pressão de todos os as Exposições Universais antes e depois da Segunda Guerra Mun-
lados, evitando as crises espirituais e as efusões emocionais para as dial. A proposta de Speer, para a Feira de Paris, em 1937, utiliza as
quais as catedrais parecem inelutavelmente arrastadas. supremas metáforas visuais do poder: altura, massa e sombra. Sem
sequer termos posto os olhos na insígnia do Governo que a patro-

Edificios que falam I OI


100 A Arquitectura da Felicidade
111, sentiríamos quase de certeza que algo maléfico, agressivo e
1f1ador emanava do colosso neoclássico de 46 metros. Vinte e
u.u1os mais tarde, e depois de outra guerra mundial, no seu Pa-
111.10 Alemão para Exposição Universal de Bruxelas, em 1958,
1111 Eiermann iria recorrer a três metáforas muito diferentes:
tiii.Ontalidade, para sugerir calma, leveza para insinuar suavida-
lc t' transparência para evocar democracia.
( )s materiais e as cores, nessa altura, foram tão eloquentes
I"'' a fachada pode falar de como um país devia ser governado
que princípios deviam nortear a sua política externa. As ideias
111 ti Íl ic as e éticas podem ser escritas nos caixilhos das janelas ou

11.1~ maçanetas das portas. Uma caixa de vidro abstracta sobre


11111 plinto de pedra pode representar uma ode à tranquilidade e

1 rivilização.

7.
Há ainda uma terceira forma de os objectos e os edifícios comu-
llicarem o seu significado, uma forma à qual poderíamos começar
,, habituar-nos se fôssemos convidados para jantar na residência
tio embaixador da Alemanha em Washington, DC. Situada numa
colina arborizada na zona noroeste da capital, a casa é um edifício
imponente de aspecto formal e clássico, com as paredes exteriores
revestidas de pedra calcária e o interior dominado por um chão de
mármore, portas de carvalho e mobiliário de couro e metal. Enca-
minhados para a varanda, para tomarmos uma taça de espumante
do Reno antes da refeição e para comermos uma salsicha de co-
cktail, veríamos- tendo em conta o conhecimento histórico- algo
tão inesperado e chocante que só conseguiríamos soltar um solu-
Em cima: Albert Speer, Pavilhão Alemão, Exposição Universal de Paris, 1937
Em baixo: Egon Eicrmann, Pavilhão de República Federal da Alemanha,
Exposição Universal, Bruxelas, 1958
111.1111 se, para nós, recordações emocionais dos momentos e dos
tuluc·ntcs em que nos cruzámos com eles.
1 >•. nossos olhos e o nosso cérebro ficam tão atentos que o mais
1i111tto pormenor pode desencadear recordações. O «B» de barri-

• turhada ou o «G » de boca aberta de uma fonte tipográfica Art


11, , ,, ~ suficiente para inspirar visões de mulheres de cabelo curto
""'chapéus de coco e cartazes a publicitar férias em Palm Beach
c· 111 L,e Touquet.

Esquerda: Albert Speer, galeria, Zcppelinfcld, Nuremberga, 1939 A()CID [lf GIHIJIOL Ulf101DO 1DJTlJVXV 1
Direita: Oswald Matthias Ungers, residência do embaixador alemão,
Washington, DC, 1995
Tal como a infância pode emanar do cheiro de um detergente
ço, enquanto os nossos anfitriões, de uma impecável delicadeza t' 1111 de uma chávena de chá, toda uma cultura pode saltar dos ân-
num inglês irrepreensível, nos indicavam características do hori f\l dos de algumas linhas. Um telhado de telhas bastante inclinado
zonte. Porém, não seriam as silhuetas dos edifícios emblemático~ pode, de imediato, engendrar pensamentos do movimento inglês
da cidade o que nos causaria espanto, mas sim o próprio pórtico, :\ rts and Crafts, enquanto outro em duas águas quebradas pode
que nos segredava ao ouvido paradas à luz de fachos, cortejos mi- 11 azer- nos rapidamente recordações da história sueca e de férias
litares e saudações marciais. Tanto nas suas dimensões como nas 110 arquipélago a sul de Estocolmo.
formas, o alçado traseiro da residência do embaixador da Alema-
nha apresenta uma surpreendente sem elhança com a galeria do
Zeppelinfeld, em Nuremberga.
Na medida em que os edifícios nos falam, também o fazem atra-
vés de citações, ou seja, reportando-se e desencadeando recordações
dos contextos em que anteriormente eles, os seus equivalentes ou
os seus modelos foram vistos. Comunicam sugerindo associações.
Parecemos incapazes de olhar para edifícios ou peças de mobiliá- Esquerda: C F. A. Voyscy, Moorcrag, Cúmbria, 1899
Direita: Stallarholmen, próximo de Mariefred, Suécia, c. 1850
rio sem os associar a circunstâncias históricas ou pessoais da nos-
sa perspectiva. Por isso, os estilos arquitectónicos ou decorativos

104 A Arquitecrura d a Felicidade Edificios que Falam 105


\11 l'·llllu tt lttos pelo cinema Carlton na Essex Road, em Lot 1 ufiadamente a um ambiente rústico e despretensioso. Podem
dtt·•., podemos notar algo estranhamente egípcio nas janelas. E~ 1 , 1 tlnrar gradeamentos de metal grosso pintados de branco em re-
designação estilística ocorre-nos porque, algures no nosso passad" lul das varandas e estar certos de que as suas vivendas à beira-mar
- talvez numa noite em que, enquanto jantávamos, víamos na lt' h 111 evocar transatlânticos e a actividade náutica.
levisão um documentário sobre o Antigo Egipto-, o nosso oJh :11 l Jm aspecto mais perturbador das associações reside na sua
se deteve nos ângulos dos pórticos dos templos de Karnak, Lux01 111111reza arbitrária, na forma como podem levar-nos a emitir um
e Philae. O facto de conseguirmos recuperar esse pormenor mci 11 •u·dicto sobre objectos ou edifícios por razões que não se pren-
esquecido e aplicá-lo ao estreitamento da janela de uma cidade,. tlt•m com as suas virtudes ou vícios especificamente arquitectóni-
a consequência do processo sináptico pelo qual o nosso subcons lt iS. Podemos formular um juízo baseado no que eles simbolizam

ciente consegue dominar a informação e estabelecer conexões qu(' 1 111 vez de um juízo sustentado no que de facto são.

o nosso Eu consciente poderia ser incapaz de articular. Podemos, por exemplo, decidir que detestamos o gótico do sé-
tu lo XIX apenas porque ele caracterizou um edifício em que fomos
11 t fdizes na universidade, ou desprezar o neoclassicismo (como

•·xcmplificámos com a residência do embaixador da Alemanha ou


• om o trabalho do arquitecto Karl Friedrich Schinkel) porque ele
leve a infelicidade de ser favorecido pelos nazis.
Para provar a impulsividade com que os estilos arquitectóni-
cos e artísticos são vítimas de terríveis associações, basta-nos no-
tar que, na maior parte dos casos, é suficiente um pouco mais de
tempo para que recuperem o seu encanto. A passagem de algumas
ou mais gerações permite-nos olhar objectos ou edifícios sem os
Esquerda: Templo de Ísis, Philae, c. 140 a.C.
preconceitos que envolvem quase todas as épocas. Com a passa-
D ireita: George Cole, Carlton Cinema, Essex Road, Londres, 1930 gem do tempo, podemos contemplar uma estatueta da Virgem
Maria do século xvn sem sermos perturbados pelas imagens de
Baseando-se na nossa capacidade de associação, os arquitectos jesuítas demasiado zelosos ou das fogueiras da Inquisição. Com o
podem ondular os seus arcos e janelas e sentirem-se confiantes em tempo, podemos aceitar e apreciar os pormenores do rococó pelo
como eles serão reconhecidos como referências ao islão. Podem que são, em vez de os encararmos como um mero símbolo da aris-
forrar os corredores com placas de madeira sem pintura e aludir tocracia decadente, ceifada pela vingança revolucionária. Com o

106 A Arqu itccn~ra da Felicidade Ediilcios que Falam 107


tempo, podemos até ser capazes de estar na varanda da residên 1 11 -mas e tipos de coluna). Incluiria parágrafos sobre o significa-
do embaixador da Alemanha e admirarmos as formas impone11 I,, linhas convexas ou côncavas e do vidro reflector ou simples.
tese arrojadas do seu pórtico sem sermos assombrados pela vis:lt• I ,,I dicionário seria semelhante aos catálogos gigantescos que dão
de tropas violentas e desfiles à luz dos fachos. ,uquitectos informações sobre montagem de luzes e ferragens,
Podemos definir como objectos genuinamente belos aqueb 1 1'111 vez de se concentrar, como esses, no desempenho mecânico

que são dotados de suficientes atributos naturais para suporta 11 ,,,1 >cdiência aos códigos de construção, faria uma exposição sobre
rem as nossas projecções positivas ou negativas. Eles possue11 t 1111plicações de cada elemento numa composição arquitectónica.
boas qualidades inerentes, em vez de apenas nos remeterem par11 Na sua abrangente preocupação com minúcias, o dicionário
elas. Por isso, são capazes de sobreviver às suas origens geográfi '" 111lheceria o facto de que, tal como a alteração de uma simples
case de comunicar as suas intenções muito depois de as audiên I' 1l,1vra pode mudar todo o sentido do poema, também a nossa
cias iniciais terem desaparecido. Podem afirmar os seus atribu 11 11 prcssão sobre uma casa se pode alterar quando um lintel recti-
tos muito para além do vaivém das nossas associações generosas 11111'0 de pedra calcária é substituído por outro curvo e fracciona-
ou condenatórias. aln de tijolo. Com a ajuda de um tal recurso poderíamos tornar-
llllS leitores e escritores mais atentos do ambiente que nos cerca.

8.
Apesar do expressivo potencial dos objectos e dos edifícios, a 9.
discussão sobre aquilo de que falam continua a ser rara. Parece- Contudo, por mais útil que um manual desses pudesse ser, ten-
mos sentir-nos mais à vontade a analisar fontes históricas e trapos do anotado tudo aquilo que a arquitectura nos diz, nunca conse-
~c;e:,. estilísticos do que a investigarmos os significados antropomórfi- )I.Uiria, só por si, explicar o que há em certos edifícios que faz com
c- " ~ cos, metafóricos e evocativos. Continua a ser estranho iniciar uma que pareçam falar maravilhosamente.
0)
9'
c ._.) ,, conversa sobre o que um edifício está a dizer. Os edifícios que admiramos são em última análise aqueles que
~ Poderíamos achar essas actividades mais fáceis se as caracte- rxaltam, de várias maneiras, valores que achamos louváveis - que re-
(

,') rísticas arquitectónicas estivessem mais explicitamente ligadas às metem, quer pelos materiais, formas ou cores, para atributos tra-
~ ::...-
suas expressões - se, por exemplo, existisse um dicionário que re- dicionalmente positivos como a amizade, a bondade, a subtileza, a
!f7 força e a inteligência. O nosso sentido de beleza e a nossa perspec-
lacionasse sistematicamente os meios e as formas com as emoções
{ e as ideias. Esse dicionário proporcionaria análises muito úteis de tiva acerca da natureza de uma vida boa estão interligados. Procu-
~ materiais (alumínio, aço, barro e betão), bem como de estilos e di- ramos associações de paz nos nossos quartos, metáforas de gene-
mensões (de todos os ângulos de telhado concebíveis e de todas as rosidade e harmonia nas nossas cadeiras e um ar de honestidade e

108 A Arquitccnora da Felicidade Edillcios que Falam 109


11 ""I'" t 1" ' , tllt'•l'·''· lotnc.:iras. Podemos sentir-nos emocionad• •
I'" ' ''""', tl ltllt.t que se une ao tecto com graça, por degraus ck I"
,11 ,1t••. t ~ los que sugerem sabedoria e por uma porta georgiana q111
1(·vcl:t jovialidade e delicadeza na sua janela em forma de lcqut·

Stendhal ofereceu-nos a expressão mais cristalina da íntima lt


gação entre o gosto visual e os nossos valores ao escrever: «A bck /,t
é a promessa de felicidade». O seu aforismo tem a virtude de d i~
tinguir o nosso amor pela beleza da preocupação académica COtll
a estética e de, pelo contrário, integrá-la nas qualidades de quem·
cessitamos para progredirmos enquanto seres humanos. Se a busra
da felicidade é a procura subjacente às nossas vidas, p arece natural
que seja simultaneamente o tema essencial a que a beleza se referl·.
Como Stendhal era sensível à complexidade das nossas nc
cessidades de felicidade, absteve-se, sensatamente, de especificat
qualquer tipo particular de beleza. Como indivíduos podemos,
afinal, achar a vaidade não menos atraente do que a graciosidade
ou a agressão tão intrigante quanto o respeito. Através do uso da
abrangente palavra «felicidade», Stendhallevou em conta o vasto
leque de objectivos que as pessoas perseguem. E ntendendo que
a humanidade sempre estaria em conflito tanto pelos seus gostos
visuais como pelas suas preferências éticas, sublinhou: «Há tantos
estilos de beleza quantas as perspectivas de felicidade».
Designar como bela uma obra arquitectónica ou de design é
reconhecê-la como a tradução de valores essenciais ao nosso flo-
rescimento, uma transubstanciação dos nossos ideais individuais
num meio material.

Uma promessa de jovialidade e co?"tesia:


110 A Arquirecrura da Felicidade Thomas Leverton, janela em leque, Bcdford Square, 1783
Cada estilo arquitectónico representa uma forma de entender afelicidade:
John Pardey, Casa Duckett, N ew Forest, 2004

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