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Robert Campbell, The Boston Globe
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1.
Se o nosso interesse por edifícios e objectos é, de facto, dt•l• 1
minado tanto pelo que eles nos dizem como pela forma como th
sempenham as suas funções materiais, vale a pena debruçarmo ""
sobre o curioso processo pelo qual as combinações de pedra, •'\ '
betão, madeira e vidro parecem exprimir-se e que podem, ChJII•
radicamente, causar-nos a impressão de que estão a falar-n oh d1
coisas significativas e comoventes.
2.
É claro que corremos um risco se passarm os grandes período
a analisar os significados que emanam dos objectos práticos.)•;.,
tarmos preocupados em decifrar a mensagem codificada num i11
terruptor de luz ou numa torneira é ficarmos mais vulneráveis :111
escárnio do senso comum daqueles que procuram pouco nesses a1
tefactos, a não ser o meio de iluminar o quarto ou de lavar os dente~
Para nos vacinarmos contra esse escárnio e ganharmos confian
ça, a fim de cultivarmos uma atitude mais meditativa em relação ao~
objectos, seria bom visitar um museu de arte moderna. Nas galeria~
pintadas de branco que albergam colecções de escultura abstracta do
século xx, temos à disposição uma perspectiva rara da exactidão com
que as massas tridimensionais podem assumir e transmitir signifi-
cado - uma perspectiva que pode, por sua vez, permitir-nos encarar
de outra maneira os nossos acessórios e as nossas casas.
3.
Foi na primeira metade do século xx que os escultores come-
çaram a provocar, em igual medida, o espanto e o opróbrio por
O que podem dizer os objectos abstractos:
86 A Arquitectura da Felicidade Henry Moore, Two Forms,1934
1 111 pc~·as às quais parecia difícil dar um nome, obras a que
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1 1111 nesse pelas ambições miméticas que tinham dominado
-
I• 1\ lhcrto Giacometti exprimiam a solidão e o desejo do homem
llntado do seu Eu autêntico numa sociedade industrial.
I 'ode ser fácil rir da grandiloquência das afirmações dirigidas
1 nhjectos que, à primeira vista, parecem tampões de ouvidos ou
III.U JUinas de cortar relva viradas ao contrário. Porém, em vez de
1111sarmos os críticos de lerem demasiado em tão pouco, deverí-
tllllOS permitir que as esculturas abstractas nos demonstrassem o
4.
Uma manhã luminosa na Tate Gallery, St Ives, Cornualha. So
bre uma base assenta uma escultura de Barbara H epworth, expos·
ta pela primeira vez em 1936. Embora não seja claro o que aquela'>
três pedras podem significar ou representar - um mistério reflec-
tido no seu título reticente, Dois Segmentos e Uma Esfera -, ela~
conseguem, contudo, prender e recompensar o nosso olhar. O seu
interesse centra-se na oposição entre a bola e a cunha semicircular
sobre a qual a primeira assenta. A bola parece instável e enérgica.
Percebemos o quão avidamente ela deseja rolar pela aresta principal
da cunha c rebolar pela sala. Em contraste com esta impulsivida-
de, a cunha que a acompanha transmite maturidade e estabilidade.
Parece satisfeita por embalar suavemente, de um lado para o outro,
acalmando a impetuosidade do seu fardo. Ao observarmos a peça,
testemunhamos uma relação terna e divertida que se toma majestosa
pela utilização do material primordial- o mármore branco polido.
Barbara H epworth, Dois Segmmto e Uma Esfera, 1936
90 A Arquitectura da Felicidade
Num ensaio sobre Hepworth, o crítico psicanalítico .Ad11 não nos faltam sugestões de
(Jullndo começamos a observar, . Há in-
Stokes tentou analisar a força desta obra aparentemente simph 1. :\ o mobUiário e nas casas que nos rodetam. p.
Chegou a uma conclusão convincente. Se a escultura nos I Pt ~·''~ yvas n , e ersona ens robustas e chetas
11 nos nossos jarros de agua p . sgnas nossas secretárias
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pode ser porque, inconscientemente, a olhamos como um rctt ,tl
de família. A mobilidade e a opulência roliça da esfera sugcn·11 t
- nos subtilmente um bebé bochechudo e vivo, enquanto as for111 '
I nus nossas chaleiras, veados graetoso
92 A Arquitectura da Felicidade
~ 1esmo em coisas tão diminutas como um tipo de letra, pode-
' detectar personalidades definidas sobre cujas vidas e sonhos
11 1t11'Íamos, sem grande dificuldade, escrever um conto. Ascos-
direitas e o porte erecto de um «f» em Helvética sugerem um
I''''.tgonista pontual, hábil e optimista, enquanto o seu primo em
l~•ll philus, coma cabeça pendurada e contornos suaves, nos apre-
III a um aspecto mais sonolento, submisso e pensativo. A sua his-
hll m é capaz de não acabar bem.
f Helvetica f Poliphilus
-se ao facto de adquirirmos primeiro essa capacidade em relação O que significam os rostos:
Johann Kaspar Lavater, Essays on Physiognomy, 1738
aos seres humanos, cujas características conseguimos atribuir a
partir dos aspectos microscópicos do tecido da pele ou do mús- A abundância de informação que temos tendência para dedu-
culo. Um olho move-se desde a insinuação de uma desculpa até lir das formas humanas ajuda a explicar a intensidade dos senti-
à sugestão de hipocrisia através de um movimento que é, no sen- lllcntos gerados pelos estilos arquitectónicos concorrentes. Qyan-
tido mecânico, improvavelmente pequeno. É muito pouco o que ' lo apenas um milímetro separa uma posição letárgica da boca de
separa o movimento de sobrancelha que fazemos com preocupa- uma posição de benevolência, é compreensível que pareça existir
ção daquele que demonstra concentração, ou o de uma boca que muita coisa nas formas diferentes de duas janelas ou das linhas do
insinua enfado da que sugere desgosto. A codificação dessas varia- rclhado. É natural que sejamos tão perspicazes quanto aos signi-
ções infinitesimais foi o trabalho de toda a vida do pseudocientis- ficados dos objectos que nos rodeiam como em relação aos rostos
ta}ohann Kaspar Lavater, cuja obra em quatro volumes Essays on das pessoas com quem convivemos.
Physiognomy (1783) analisou quase todas as conotações possíveis Ter a sensação de que um edifkio não é atraente pode simples-
das características faciais e apresentou os contornos de uma série mente querer dizer que não nos agrada o temperamento da criatura
96 A Arquitecrura da Felicidade
ou do ser humano que vagamente reconhecemos na sua estrulu ( >hservemos os suportes das costas das duas cadeiras. Ambos
ra- tal como designar como belo outro edifício é sentir a presrn t••t·m transmitir um estado de espírito. O s suportes curvos in-
O ça de um ser de que gostaríamos caso ele assumisse uma forrthl '"''"n facilidade e diversão, os rectos seriedade e lógica, sem que,
~ ~nimada. O que procuramos numa obra arquitectónica não c~t ,, lllludo, nenhum dos conjuntos se aproxime da forma humana .
.(/fJ'()- afinal, muito longe do que procuramos num amigo. O s objec111 l ~uportes representam antes, de uma forma abstracta, dois tem-
~ ~ que descrevemos como belos são versões das pessoas que amamo I lollllentos diferentes. U m pedaço de madeira direito comporta-
~
lu
' 110 seu próprio meio como uma pessoa estável e sem imagina-
Com quem gostaríamos de fazer am izade? R•, actua na sua vida, enquanto os meandros de um pedaço curvo
111 respondem, por mais obliquamente que seja, à elegância des-
uni raída de um espírito sereno e distinto.
6.
interpretar uma personagem a partir da forma mais simples. Uma I'odemos referir-nos a alguém como sendo retorcido ou escuro,
linha é suficientemente eloquente. O exemplo de uma linha recta ~uave ou duro. Podemos criar um coração de pedra ou cair num es-
assinala alguém estável e monótono, uma linha ondulada parece t ;tclo de espírito cinzento. Podemos comparar u ma pessoa com um
afectada e calma e uma linha quebrada zangada e confusa. material como o cimento, ou com uma cor como o grená, e termos
,1 certeza de que assim transmitimos algo da sua personalidade.
Temperamentos contrastantes:
D uas histórias sobre a vida conjugal, Rudolf Arnheim, Visual Thinking, 1969 E squerda: Palácio Ducal, Urbino, 1479; direita: Catedral de Bayeux, 1077
Se simples garatujas num pedaços de papel conseguem falar Se, para levar um pouco mais longe o exercício de Arnheim,
com precisão e fluência dos nossos estados psíquicos, quando se nos incumbissem de produzir imagens metafóricas da Alemanha
trata de edifícios completos o potencial expressivo é aumentado t•m dois períodos da sua história, como estado fascista e repúbli-
de forma exponencial. Os arcos ogivais da Catedral de Bayeux ca democrática, e se nos fosse permitido trabalhar com pedra, aço
transmitem paixão e intensidade, enquanto os seus equivalentes c vidro em vez de apenas com um lápis, é provável que não con-
arredondados do pátio do Palácio Ducal, em Urbino, encarnam seguíssemos melhor do que os desenhos iconográficos de Albert
serenidade e pose. Tal como uma pessoa suporta as dificuldades Speer e Egon Eiermann, que criaram os pavilhões nacionais para
da vida, assim os arcos do palácio resistem à pressão de todos os as Exposições Universais antes e depois da Segunda Guerra Mun-
lados, evitando as crises espirituais e as efusões emocionais para as dial. A proposta de Speer, para a Feira de Paris, em 1937, utiliza as
quais as catedrais parecem inelutavelmente arrastadas. supremas metáforas visuais do poder: altura, massa e sombra. Sem
sequer termos posto os olhos na insígnia do Governo que a patro-
1 rivilização.
7.
Há ainda uma terceira forma de os objectos e os edifícios comu-
llicarem o seu significado, uma forma à qual poderíamos começar
,, habituar-nos se fôssemos convidados para jantar na residência
tio embaixador da Alemanha em Washington, DC. Situada numa
colina arborizada na zona noroeste da capital, a casa é um edifício
imponente de aspecto formal e clássico, com as paredes exteriores
revestidas de pedra calcária e o interior dominado por um chão de
mármore, portas de carvalho e mobiliário de couro e metal. Enca-
minhados para a varanda, para tomarmos uma taça de espumante
do Reno antes da refeição e para comermos uma salsicha de co-
cktail, veríamos- tendo em conta o conhecimento histórico- algo
tão inesperado e chocante que só conseguiríamos soltar um solu-
Em cima: Albert Speer, Pavilhão Alemão, Exposição Universal de Paris, 1937
Em baixo: Egon Eicrmann, Pavilhão de República Federal da Alemanha,
Exposição Universal, Bruxelas, 1958
111.1111 se, para nós, recordações emocionais dos momentos e dos
tuluc·ntcs em que nos cruzámos com eles.
1 >•. nossos olhos e o nosso cérebro ficam tão atentos que o mais
1i111tto pormenor pode desencadear recordações. O «B» de barri-
Esquerda: Albert Speer, galeria, Zcppelinfcld, Nuremberga, 1939 A()CID [lf GIHIJIOL Ulf101DO 1DJTlJVXV 1
Direita: Oswald Matthias Ungers, residência do embaixador alemão,
Washington, DC, 1995
Tal como a infância pode emanar do cheiro de um detergente
ço, enquanto os nossos anfitriões, de uma impecável delicadeza t' 1111 de uma chávena de chá, toda uma cultura pode saltar dos ân-
num inglês irrepreensível, nos indicavam características do hori f\l dos de algumas linhas. Um telhado de telhas bastante inclinado
zonte. Porém, não seriam as silhuetas dos edifícios emblemático~ pode, de imediato, engendrar pensamentos do movimento inglês
da cidade o que nos causaria espanto, mas sim o próprio pórtico, :\ rts and Crafts, enquanto outro em duas águas quebradas pode
que nos segredava ao ouvido paradas à luz de fachos, cortejos mi- 11 azer- nos rapidamente recordações da história sueca e de férias
litares e saudações marciais. Tanto nas suas dimensões como nas 110 arquipélago a sul de Estocolmo.
formas, o alçado traseiro da residência do embaixador da Alema-
nha apresenta uma surpreendente sem elhança com a galeria do
Zeppelinfeld, em Nuremberga.
Na medida em que os edifícios nos falam, também o fazem atra-
vés de citações, ou seja, reportando-se e desencadeando recordações
dos contextos em que anteriormente eles, os seus equivalentes ou
os seus modelos foram vistos. Comunicam sugerindo associações.
Parecemos incapazes de olhar para edifícios ou peças de mobiliá- Esquerda: C F. A. Voyscy, Moorcrag, Cúmbria, 1899
Direita: Stallarholmen, próximo de Mariefred, Suécia, c. 1850
rio sem os associar a circunstâncias históricas ou pessoais da nos-
sa perspectiva. Por isso, os estilos arquitectónicos ou decorativos
ciente consegue dominar a informação e estabelecer conexões qu(' 1 111 vez de um juízo sustentado no que de facto são.
o nosso Eu consciente poderia ser incapaz de articular. Podemos, por exemplo, decidir que detestamos o gótico do sé-
tu lo XIX apenas porque ele caracterizou um edifício em que fomos
11 t fdizes na universidade, ou desprezar o neoclassicismo (como
que são dotados de suficientes atributos naturais para suporta 11 ,,,1 >cdiência aos códigos de construção, faria uma exposição sobre
rem as nossas projecções positivas ou negativas. Eles possue11 t 1111plicações de cada elemento numa composição arquitectónica.
boas qualidades inerentes, em vez de apenas nos remeterem par11 Na sua abrangente preocupação com minúcias, o dicionário
elas. Por isso, são capazes de sobreviver às suas origens geográfi '" 111lheceria o facto de que, tal como a alteração de uma simples
case de comunicar as suas intenções muito depois de as audiên I' 1l,1vra pode mudar todo o sentido do poema, também a nossa
cias iniciais terem desaparecido. Podem afirmar os seus atribu 11 11 prcssão sobre uma casa se pode alterar quando um lintel recti-
tos muito para além do vaivém das nossas associações generosas 11111'0 de pedra calcária é substituído por outro curvo e fracciona-
ou condenatórias. aln de tijolo. Com a ajuda de um tal recurso poderíamos tornar-
llllS leitores e escritores mais atentos do ambiente que nos cerca.
8.
Apesar do expressivo potencial dos objectos e dos edifícios, a 9.
discussão sobre aquilo de que falam continua a ser rara. Parece- Contudo, por mais útil que um manual desses pudesse ser, ten-
mos sentir-nos mais à vontade a analisar fontes históricas e trapos do anotado tudo aquilo que a arquitectura nos diz, nunca conse-
~c;e:,. estilísticos do que a investigarmos os significados antropomórfi- )I.Uiria, só por si, explicar o que há em certos edifícios que faz com
c- " ~ cos, metafóricos e evocativos. Continua a ser estranho iniciar uma que pareçam falar maravilhosamente.
0)
9'
c ._.) ,, conversa sobre o que um edifício está a dizer. Os edifícios que admiramos são em última análise aqueles que
~ Poderíamos achar essas actividades mais fáceis se as caracte- rxaltam, de várias maneiras, valores que achamos louváveis - que re-
(
,') rísticas arquitectónicas estivessem mais explicitamente ligadas às metem, quer pelos materiais, formas ou cores, para atributos tra-
~ ::...-
suas expressões - se, por exemplo, existisse um dicionário que re- dicionalmente positivos como a amizade, a bondade, a subtileza, a
!f7 força e a inteligência. O nosso sentido de beleza e a nossa perspec-
lacionasse sistematicamente os meios e as formas com as emoções
{ e as ideias. Esse dicionário proporcionaria análises muito úteis de tiva acerca da natureza de uma vida boa estão interligados. Procu-
~ materiais (alumínio, aço, barro e betão), bem como de estilos e di- ramos associações de paz nos nossos quartos, metáforas de gene-
mensões (de todos os ângulos de telhado concebíveis e de todas as rosidade e harmonia nas nossas cadeiras e um ar de honestidade e