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Da Discussão do Racionalismo
na Filosofía Contemporánea
podem ser definidos, ou pelo menos classificados, de urna vez por to
das. Pode-se esboçar uma visão de mundo fixa, por mais cética que
seja, porque se está seguro do que é essencial para todo o futuro. A
enfatização da nossa ignorância, tal como costumamos encontrá-la
desde Hume ñas obras positivistas, a garantia de que “a verdadeira
essência do espírito... nos é tão desconhecida como a dos corpos fora
de nós”1, é tanto metafísica dogmática quanto as eternas verdades do
cartesianismo. De sua análise da consciência o positivismo deduz urna
visão agnóstica do mundo; e o racionalismo de tendência cartesiana,
uma visão de mundo de conteúdo mais definido. Ambos acreditam
que devemos ocupar-nos do assunto metafísico, “para depois viver
tranqüilos para todo o sempre”2. Hume quer descansar satisfeito
quando “tivermos chegado aos limites extremos do pensamento hu
mano”3, e fixa estes limites mediante o auto-exame da consciência.
Mais tarde, Kant conjugou a teoria dos conceitos inatos com a mais
modesta convicção de Hume sobre a estreiteza de nosso saber, e assim
proclamou igualmente que o resultado da consciência que se conheceu
a si mesma é o conteúdo de uma teoria universal imutável. Nessas dis
cussões da filosofia mais moderna, a consciência fechada em si mesma
do indivíduo e a existência humana são consideradas uma e mesma
coisa. Segundo a corrente racionalista, todos os problemas parecem
resolvidos depois que o indivíduo adquiriu uma concepção clara e ní
tida de si mesmo; para a corrente empirista, importa antes introduzir
ordem na plenitude das experiências vividas: em ambos os casos, a
verdade deve emergir da introspecção do indivíduo racional. A atua
ção é aqui considerada, essencialmente, sob este ponto de vista: até
que ponto ela é a conseqüência certa desta verdade. Uma vez cumpri
das as tarefas intelectuais que cada indivíduo, com base no devido co
nhecimento, é capaz de executar na sua própria consciência, a execu
ção prática parece processar-se por si mesma; é apenas a conseqüên
cia da reflexão. Assim, o bem-estar, pelo menos a realização da voca
ção de um indivíduo, depende de um bom funcionamento do seu apa
relho intelectual.
Sob o rótulo de racionalismo, porém, desde cedo se entendia não
só o cartesianismo, mas toda a grande filosofia mais recente. O papel
que tanto os cartesianos quanto os empiristas concediam ao ato de
pensar podia significar a expressão da atitude de camadas burguesas
esclarecidas que desejavam manter todas as questões vitais sob seu
próprio controle. Nos grupos sociais e períodos de época mais recen-
1. Hume, Traktat über die menschliche Natur, ls parte, editado por Lipps,
Leipzig e Hamburgo, 1912, p. 5.
2. Hume, Eine Untersuchung über den menschlichen Verstand, editado por
Knoul Kichter, Leipzig, 1920, p. 11.
3. 1lume, Traktat, ibid., p. 6.
98 TEORIA CRÍTICA
... se aquilo que se chama de direito antigo e constituição é bom ou ruim não pode
depender da idade; também a abolição do sacrifício humano, da escravidão, do
despotismo feudal e de inúmeras infâmias sempre foi a abolição de algo que ha
via sido um direito antigo. Muitas vezes se repetiu que não se pode perder direi
tos, que cem anos de injustiça não podem estabelecer um direito —dever-se-ia
acrescentar aqui: mesmo que esta injustiça centenária se tenha chamado' direito
nestes cem anos; - além disso, repetiu-se que o direito centenário e realmente po
sitivo perece com razão quando cai a base que foi a condição de sua existência5.
Toda atitude que mantém uma relação verdadeira com o poder é conhecida
também por interpretar o homem não como fim, mas como um meio, como o
portador tanto do poder quanto da liberdade. O homem ostenta sua forma máxi
ma, ostenta domínio em qualquer lugar onde ele está a serviço8.
11. Cf., por exemplo, Max Scheler, Vom Ewigen in Menschen, Leipzig,
1921, pp. 106 a ss.
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mento, mas também alguns até chamaram a atenção para certas funções
sociais do irracionalismo. Assim, Rickert qualifica o Genius des Krieges
de Scheler, que “serve para justificar a guerra como ponto alto da efi
ciência do Estado”12, como absolutamente conseqüente no sentido da
filosofia da vida. “Quem não só enxerga que vida natural, vital é cres
cimento, mas também quem, simultaneamente, vê nessa ‘lei’ biológica
uma norma para toda vida cultural, este deve de fato pensar como
Scheler”13, Apesar de toda a sutileza lógica dos argumentos que aduz
contra a filosofia da vida, o racionalismo não consegue atingi-la decisi
vamente. Tem tanta razão em estar contra ele quanto ele tem em estar
contra ela. A depreciação do pensamento conceituai em favor do sim
ples entregar-se ao acontecimento é, decerto, um ponto de vista contrá
rio ao conhecimento e, por isso, reacionário e, além disso, contraditório
ao próprio trabalho filosófico da filosofia da vida. “Onde não viceja a
vontade de dominar o conceito, chega-se, na melhor das hipóteses, à
passividade sagrada, e então estamos muito perto da preguiça de Schle-
gel como único fragmento de semelhança divina”14. Esta reviravolta
contra o elemento romântico e místico da filosofia da vida se justifica.
Por outro lado, porém, a representação do pensamento através da filo
sofia da consciência tornou-se abertamente insustentável. Segundo ela,
caberia ao trabalho conceituai fazer surgir do mundo, que seria em si
mesmo uma simples confusão de dados, algo formado, estruturado. O
pensamento, acerca do qual muitas vezes, nos sistemas radonalistas,
não se sabe claramente se faz parte de um determinado sujeito isolado
ou de uma anônima “consciência em si”, deve realizar como forma
atuante, mas totalmente vazia, “o mundo” a partir da matéria sensorial
do conhecimento. Rickert também se distingue do velho radonalismo,
essencialmente apenas por aceitar um momento irradonal, “se se qui
ser, empírico”15.
12. Heinrich Rickert, Die Philosophie des Lebens, Tübingen, 1922, p. 30.
13. Ibid., p. 102.
14. Ibid., p. 54.
15. Cf. Heinrich Rickert, System der Philosophie, Parte I, Tübingen, 1921,
p. 368.
U>. I Icinrich Rickert, Die Philosophie des Lebens, ibid., p. 148.
104 TEORIA CRÍTICA
23. Martin Heidegger, Sein und Zeit, Halle an der Saale, 1927, p. 136.
24. Edgar Dacqué,Natur undErlõsung, München , Berlim, 1933, p. 53.
25. Emst Jünger, ibid., p. 161.
26. Helvétius, “De l’Homme” , Oeuvres complètes, tomo V, London,
1780, p. 29.
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Muitos dizem que o conhecimento nada mais pode fazer senão decompor os
objetos concretos dados em seus elementos abstratos e então observá-los isolada
27. Henri Bergson, F.inführung in die Metaphysik, Jena, 1920, pp. 15 c««.
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mente. Entretanto, logo se toma evidente que isto significa inverter as coisas e que
0 conhecimento, que quer aceitar as coisas como elas são, cai nesta hora em contra
dição consigo mesmo. Assim, por exemplo, o químico traz um pedaço de carne à
sua retorta, tortura-a das mais diversas maneiras e diz, então, ter achado que ela se
compõe de nitrogênio, carbono, hidrogênio etc. Então, estas matérias abstratas não
são mais carne. Acontece da mesma maneira quando o psicólogo empírico de
compõe uma ação nos seus diversos aspectos, que ele oferece à observação, e os
mantém depois em sua divisão. O objeto tratado analiticamente é, por assim dizer,
observado como uma cebola da qual se tira uma pele após outra28.
zam. Isso não quer dizer que não seja agregado firmemente a cada pa
lavra conceituai um sentido determinado. Ao pensamento não é permi
tido indicar, arbitrariamente, ora isto ora aquilo. Tão logo se pensa num
conceito de forma totalmente isolada, ele adquire seu sentido fixo; se
entra, porém, numa estrutura de pensamento complicada, ganha neste
todo uma função específica. Assim, por exemplo, pode-se definir de
forma inequívoca o instinto de conservação, desde que seja considerado
apenas por si mesmo; num conjunto de um determinado homem, como
instinto de conservação de uma pessoa concreta, viva, ele é afetado em
seu conteúdo por outros traços psíquicos. Assim como da afirmação de
que uma reação química pode ser composta de determinados elementos
e novamente decompor-se neles não decorre que estes elementos con
servaram, na reação, as mesmas propriedades que tinham antes e depois
•de sua participação neste todo, assim também não segue, de modo ne
nhum, da estrita definibilidade de conceitos abstratos, que eles perma
necem inalterados durante sua colaboração na imagem ideativa de um
todo concreto. Os conceitos, quando se realizam, são sempre elementos
de linhas teóricas de pensamento e não mais símbolos isolados.
A teoria de Hegel, segundo a qual o pensamento verdadeiro
contém a contradição, já tem seu fundamento neste conhecimento sim
ples. Os conceitos adquiridos pela razão através da abstração mudam
seu sentido tão logo entram em relação entre si para a representação de
um todo concreto, e mesmo assim continuam idênticos a si mesmos, en
quanto conservam sua definição fixa. Os princípios da lógica tradicio
nal, da “lógica do entendimento”, sobretudo do princípio de identidade,
bem como outras regras do pensamento distintivo, não são simplesmen
te erradicados na lógica dialética. Os elementos conceituais abstratos e
suas relações fixas, que estão sendo examinados nas pesquisas científi
cas individuais, constituem o material à disposição da reconstrução teó
rica de processos vivos. Por isso, é falso quando a filosofia da vida e,
com ela, outras tendências irracionalistas dizem que a observação do ser
real não tem nada a ver com análise, e que a introspecção irracional de
ve tomar seu lugar. Na verdade, o produto da análise, os conceitos e re
gras abstratos não são de modo algum idênticos ao conhecimento dos
eventos na realidade. As ciências individuais fornecem apenas os ele
mentos para a construção teórica da evolução histórica, e estes não
continuam na representação aquilo que foram nas ciências individuais,
mas recebem novas funções de significado, das quais não se falou antes.
Por isso, todo pensamento real deve ser compreendido corro uma críti
ca contínua às determinações abstratas; contém um momento crítico e,
como diz Hegel, cético. O lado dialético do lógico é, ao mesmo tempo,
o “negativo racional”29. Se, porém, as formações conceituais da física,
as definições de processos de vida na biologia, a descrição geral de um
36. Cf., sobre algumas destas condições, Martin Heidegger, Was ist Meta-
physik?, Bonn, 1929, pp. 15-19: “ O tédio profundo, flutuando para c á e para lá
nos abismos do existir como uma névoa silenciosa, aproxima todas as coisas, os
homens e a si próprio dentro de uma indiferença singular. Este tédio revela o ser
no todo... Uma outra possibilidade de tal revelação contém a alegria pela presen
ça do existir... de uma pessoa querida... O estar da disposição revela... segundo
seu modo o ser no todo... Na clara noite do nada da angústia produz-se entfio a
manifestação original daquele ser como tal: que é o que esteí sendo - e não nada”.
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de que a teoria correta está sendo adotada por camadas sociais que,
em determinados momentos históricos, são pre(\radas especialmente
para isso pela sua posição no processo de produção. Grandes massas
reprimem, por longo tempo, o conhecimento da futilidade do esforço
individual na presente ordem social, mesmo que esta lhes seja revelada
teórica e praticamente com toda a clareza. Pelas condições de educa
ção que predominam na maioria dos grupos sociais sempre são repro
duzidos novos mecanismos psíquicos, em virtude dos quais este co
nhecimento é considerado insuportável e adequadamente assimilado.
O conhecimento doloroso do ponto-de vista dos próprios interesses do
indivíduo somente é suportado onde os valores individualistas, tanto
no sentido da b o i vida pessoal como da ascensão individual, não mais
são considerados c s mais altos. O homem típico, para quem realmente
ganha força o claro saber da situação atual da sociedade, muda o sen
tido que este saber possuía na reflexão cética do desiludido indivíduo
burguês. Neste tipo, o conhecimento constitui uma força propulsora.
A todos aqueles que estão condenados a uma existência desesperada,
devido à manutenção de formas antiquadas de vida social, da remete a
uma meta alcançável somente através da solidariedade: a mudança
desta sociedade para uma forma adequada às necessidades da comuni
dade. Na solidariedade não se nega simplesmente o interesse próprio;
pois ele produz, como consciência da inutilidade do esforço individual
no mundo presente, um impulso permanente para a atividade. Mas
perde a forma que lhe era característica na época burguesa, ou seja,
seu contraste com o interesse da comunidade.
Na concepção irradonalista da. “decomposição”, a acusação de
que o pensamento destrói seu objeto alia-se à censura à sua tendência
individualista. Esta concepção não só visa a atitude de um homem que,
incapaz de entregar-se aos grandes valores da vida, desfia abstrata
mente, por debilidade e ressentimento, as experiêndas entusiasmantes
para outros, como também deseja que a depreciação de tudo quanto é
grande pela análise seja íeita em favor do indivíduo indiferente à cole
tividade e preocupado apenas com a autoconservação. A crítica racio
nalista é atacada não só porque expõe teorias religiosas, metafísicas ou
de outras ideologias do pensamento e o conseqüente risco de sua justa
decomposição, mas também porque mede normas e valores segundo os
fins individualistas. De fato, o racionalismo cartesiano já era indivi
dualista quando dedarava como critério de sua falsidade a contradição
de julgamentos contra a razão presente em cada indivíduo de acordo
com seus dotes. O indivíduo tomado absoluto transformou-se ampla
mente na medida para normas e teorias, e com o Eu monádico seus
fins respectivos foram hipostasiados. Ao contrário da tese da igualda
de dos homens, que a burguesia, após a tomada do poder, reinterpre-
(ou, mudando-a de um postulado para uma afirmação, o homem é um
sor historicamente determinado. As diferenças socialmente condido-
imduN são bastante grandes. E assim como, no irracionalismo atual,
122 TEORIA CRÍTICA
44. Cf. a excelente crítica déla por Max Hartmann, em Die methodologis
chen Grundlagen der Biologie, Leipzig, 1933.
DA DISCUSSÃO DO RACIONALISMO.., 129
Justamente quando ele tinha de lidar com sofredores das classes inferiores,
com escravos do trabalho ou presos (ou com mulheres: que em geral são ambas as
coisas ao mesmo tempo, escravas do trabalho e prisioneiras), era necessário pou
co mais do que um pequeno artifício de mudança de nome e da conversão, para
fazê-los ver, futuramente, em coisas odiadas, um beneficio, uma felicidade rela
tiva: a insatisfação do escravo com sua sorte em todo caso não foi inventada pelos
sacerdotes. Um meio muito apreciado na luta contra a depressão é a prescrição de
uma pequena alegria, que é facilmente alcançável e pode ser convertida em regra:
usa-se esta medicação muitas vezes em ligação com a recém-mencionada49.
47. Nietzsche, “ Zur Genealogie der Moral” , ibid., Aph. 15, p. 399.
48. Ibid., Aph. 18, p. 417.
49. Ibid.
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com isso, tomam atualmente ainda mais fácil para si mesmos o seu
pessimismo social. O materialismo não conhece uma segunda realida
de, nem uma que esteja na base da nossa, nem tampouco uma que a
cubra por cima. Felicidade e paz, que não são dadas aos homens na
terra, eles as perderam não só aparentemente, mas realmente e para
toda a eternidade; pois a morte não é a paz, mas leva verdadeiramente
ao nada. O amor aos homens, como o entende o materialismo, não é
dado a seres que são abrigados, após sua morte, na eternidade, mas
a indivíduos seriamente efêmeros.
Também a saída da filosofia moderna de colocar a chegada da
morte, perante o desvanecimento da esperança no além, “como reali
zação necessária de um sentido da vida”50, esta tentativa especial de
uma reconciliação intelectual com a realidade absurda não se sustenta
diante do conhecimento materialista. Ela carece de todo tipo de oti
mismo ideológico e, por isso, torna-se mais difícil reconciliar-se com
o curso da história mundial. Todas as energias, mesmo as mais deses
peradas, ela as dirige para o aquém e sem dúvida expõe, assim, a única
fé que ela admite, a esperança nas possibilidades terrenas do homem,
o desengano. Em contrapartida, o otimismo metafísico e religioso não
é reduzido a lobrigar mesmo a menor chance para os homens neste
mundo e aferrar-se firmemente a ela.
Por isso, em épocas como a atual, quando o futuro da humanida
de parece correr o maior risco e o iminente retomo à barbárie parece
ameaçar diretamente a parte do mundo mais promissora a desfraldar
todas as capacidades culturais, evidencia-se de forma especialmente
crassa a renúncia incondicional do modo de pensar materialista a toda
possibilidade ideal de harmonização. Todas as diferentes respostas que
o radonalismo e o irracionalismo como ramos da metafísica idealista
fornecem nos instantes mais turvos da existência: as idéias eternas e a
vida inesgotável, o Eu autônomo e o sentido verdadeiro da existência,
o núcleo indestrutível da personalidade e o mandamento divino ao seu
povo, evidendam-se como formas conceituais abstratas, nas quais é
eternizado o reflexo de uma realidade efêmera. Radonalismo e irra
cionalismo adquiriram, ambos, a função de reconciliar-se com o exis
tente: o racionalismo deu ao período liberal a convicção de que o fu
turo está antecipado na razão do indivíduo. A história universal era,
por assim dizer, o desabrochar do ser racional que cada um possuía
em seu âmago; o indivíduo podia sentir-se imperecível na sua substân
cia. A fé racionalista no progresso não exprime tão-somente o res
peito pelas ilimitadas possibilidades de ostentação humana de poder e
o desejo moral de um futuro melhor para a humanidade, mas é ao
mesmo tempo a projeção narcisista do próprio Eu condicionado no
tempo, para toda a eternidade. No capitalismo tardio, que define a