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UE 7 - O criticismo Kantiano

Apresentação

O pensamento moderno é marcado pelo discurso racional e pela busca pelos fundamentos do
conhecimento. Assim, se até durante a Idade Média, tinha-se uma reflexão voltada e respaldada no
argumento teocêntrico — e mesmo o exercício filosófico tinha como finalidade a conciliação entre
fé e razão —, desde o seu início, a Modernidade é inaugurada graças a uma ruptura entre essas duas
instituições: a do saber e a religiosa/teológica. Nesse contexto, a filosofia volta-se para a razão
humana como único fundamento capaz de conduzir à verdade sobre as coisas. Esse período é
compreendido entre os séculos XVII e XVIII e ficou conhecido como “a era da razão” ou Iluminismo.

Immanuel Kant foi um dos filósofos responsáveis por fundamentar as concepções iluministas e
ficou reconhecido como o filósofo mais importante do movimento. Suas teorias principais versam
sobre a ética, a estética, a teologia e a epistemologia. Em relação a esse último eixo, o
epistemológico, convém destacar que a sua concepção acerca da razão transcendental, que, por sua
vez, funda o idealismo transcendental e o criticismo, é uma das teses que mais transformou a forma
como se pensavam as possibilidades e os limites do conhecimento humano.

Nesta Unidade de Aprendizagem, você vai entender quais são as principais reflexões kantianas.
Compreenderá a importância e a transformação que essa teoria causou na tradição filosófica
moderna. Por fim, verá como a razão está absolutamente relacionada à teoria moral kantiana.

Bons estudos.

Ao final desta Unidade de Aprendizagem, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

• Reconhecer o pensamento kantiano.


• Analisar as questões filosóficas com base na reflexão kantiana.
• Perceber os elementos morais e relativos ao conhecimento por meio do senso crítico.
Desafio

O criticismo kantiano foi capaz de resolver a oposição entre teoria racionalista e teoria empirista —
o que, de modo geral, consiste na oposição entre a razão e a experiência como fonte de
conhecimento da realidade. De um lado, tem-se Descartes, que entende que as sensações podem
enganar e, por isso, a razão é o fundamento do conhecimento, isto é, que pode conduzir à verdade
do fenômeno. De outro lado, estão os empiristas, que defendem que o conhecimento só pode ser
formulado a partir da experiência — afinal, como pode um bebê, por exemplo, ter um conhecimento
acerca da temperatura de algo ou mesmo do que é temperatura?

A partir dessas teorias, a argumentação central da teoria de conhecimento kantiana fica posta no
juízo que ele denomina como "sintético a priori". Segundo esse juízo, o conhecimento é construído
de tal modo que não se fixa no espaço e no tempo, isto é, se consegue desenvolver raciocínios que
apresentam uma verdade sem a necessidade de recorrer à dimensão espacial ou temporal. Um
exemplo desse tipo de raciocínio é o matemático.

Considerando esse contexto, imagine que você é professor de filosofia e solicita de seus alunos um
exemplo matemático ou geométrico que demonstre como o raciocínio matemático corresponde ao
juízo sintético kantiano a priori.

Esse exemplo deve ser justificado. Além do exemplo ("os triângulos têm três lados iguais"), o aluno
deve explicar por que, para fornecer esse exemplo, não é necessário que se conheça um triângulo a
priori.
Infográfico

É relativamente comum as pessoas associarem o conhecimento à experiência. Assim, ouvimos


formulações como “eu sei que isso é assim porque eu já passei por isso” ou, ainda, “só sabe quem já
passou pela experiência”. Ainda que estejam mais relacionadas à tradição popular, essas sentenças
indicam que há uma produção de conhecimento a partir da experiência.

Até mesmo a ciência, que, de fato, trabalha com comprovações empíricas de suas hipóteses, induz a
pensar que todo o conhecimento, para sê-lo, deve ser testado. Entretanto, o que dizer a respeito do
conhecimento que não pode ser comprovado?

Acompanhe, neste Infográfico, a explicação da teoria kantiana para essa problemática.


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Conteúdo do Livro

A leitura kantiana do filósofo inglês David Hume foi precedida pela leitura que Kant fez de Leibniz.
Tal fato é importante porque é graças ao contato com a obra de Hume que Kant desenvolve a sua
síntese entre empirismo e racionalismo, dando origem ao criticismo. Nesse sentido, Kant afirmava
que Hume o “despertou do sono dogmático”. Isto é, foi em contato com a filosofia humeniana que
ele foi levado a questionar a realidade como fonte de conhecimento verdadeiro e a considerar a
metafísica em suas possibilidades. Foi assim que a razão passou a ser estruturada e elaborada em
suas possibilidades epistemológicas.

Kant é visto como crítico a Hume, sendo que este buscava incessantemente justificar a indução. O
filósofo o contraria, afirmando que há outras formas válidas de construir o conhecimento, em que,
segundo o pensador alemão, a mente ordenaria a experiência de modo conjunto, de maneira a
situar o princípio causal verdadeiro nessa experiência — o que determinaria que a experiência
fizesse a relação causal entre A e B seria a mente, por meio de juízos sintéticos a priori, existentes
independentemente da própria experiência, mas a partir dela.

No capítulo O criticismo kantiano, base teórica desta Unidade de Aprendizagem, você vai entender
como Kant estrutura e compreende a razão humana como fundamento de conhecimento. Verá
como sua teoria sintetiza os argumentos empírico e racionalista. E, por fim, compreenderá a relação
entre moral, ética e razão.

Boa leitura.
FILOSOFIA

Marco Antônio de Oliveira


O criticismo kantiano
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Reconhecer a filosofia de Kant.


 Identificar os limites e possibilidades a partir da reflexão filosófica
de Kant.
 Analisar as questões filosóficas com base na reflexão kantiana.

Introdução
A filosofia de Immanuel Kant (1724–1804) compreende duas fases prin-
cipais: a pré-crítica ou dogmática (até 1770), composta por trabalhos
nas áreas da matemática, da sismologia, da astronomia e da filosofia; e
a crítica, que se inicia por volta dos 46 anos de Kant, depois que ele lê a
obra de David Hume (1711–1776), sua maior fonte de inspiração para a
Crítica da Razão Pura.
Na primeira fase do seu pensamento, sob a influência de Gottfried
Leibniz (1646–1716) e Christian Wolff (1679–1754), Kant baseia as suas
reflexões na filosofia dogmática, com preceitos certos e indiscutíveis.
Já na segunda fase da sua obra, impulsionado por Hume, Kant se de-
clara despertado do sono dogmático, colocando a razão sob suspeita
e questionando o que se pode realmente conhecer. A partir da crítica
das ideias metafísicas da razão, Kant admite que o conhecimento vem
de fora, ou seja, da experiência (a posteriori), antecedida pelo que ele
chama de a priori.

A filosofia de Kant
A primeira fase do pensamento de Kant é conhecida como “pré-crítica” ou “dog-
mática”. Ela durou até 1770. Nessa fase, influenciado pelo racionalismo de Gottfried
Leibniz e Christian Wolff, Kant desenvolveu uma filosofia dogmática. Nesse
período, a sua obra não incluía um questionamento racional a respeito da realidade.
2 O criticismo kantiano

A segunda fase do pensamento kantiano, conhecida como “criticismo”,


desenvolvida a partir de 1770, registra uma espécie de “choque filosófico”.
A partir da leitura de David Hume, Kant afirma ter despertado do sono
dogmático. Estabelece-se então o tribunal da razão e Kant passa a refletir
sobre o que é necessário conhecer, no que se pode chamar de crítica me-
tafísica às ideias.
A superação entre racionalistas e empiristas se dá a partir do conhecimento
recebido, ou seja, por meio da experiência, denominada a posteriori, somada
com o que já é inerente ao homem, isto é, a priori ou anterior a qualquer
experiência. O juízo pode ser representado de três formas. Veja a seguir.

 Juízo analítico (matemática): é importante para o desenvolvimento


do raciocínio, porém incapaz de produzir novos conhecimentos.
 Juízo sintético ou a posteriori: é obtido a partir das experiências e
percepções, mas não inspira plena confiança.
 Juízo sintético ou a priori: é obtido com base na união da dedução e da
experiência, com denotada relevância científica, aproximando Kant dos
empiristas. A ideia é que o que procede de fora constitui a matéria do
conhecimento. Ao mesmo tempo, com base no pensamento racionalista,
Kant afirma que a forma do conhecimento é inerente ao homem, não
admitindo a razão como “uma folha em branco”.

Tanto a matéria quanto a forma atuam ao mesmo tempo, de maneira que


de nada vale o conhecimento sensível, a matéria a posteriori, se ela não for
considerada a partir do que há no homem a priori, entendido como condição
para a organização das formas inteligíveis.
As formas a priori da sensibilidade, ou seja, espaço e tempo, são caracte-
rizadas como apriorísticas, sem depender da experiência sensível. Assim, o
espaço possibilita ao homem perceber os objetos em sua relação específica. Os
objetos podem ser retirados de um respectivo espaço; porém, ao espaço não é
possível se retirar. Já o tempo é a percepção interna do homem, relacionado ao
passado e ao futuro. Somente pelo espaço e pelo tempo é que se pode afirmar
a possibilidade do conhecimento.
Outra forma a priori é o entendimento. Ele é representado por 12 categorias
que organizam o conceito e o conhecimento a partir de quatro representações,
como você pode ver a seguir.

 Da quantidade: unidade — pluralidade — totalidade.


 Da qualidade: realidade — negação — limitação.
O criticismo kantiano 3

 Da relação: inerência e subsistência — causalidade e dependência


— comunidade.
 Da modalidade: possibilidade versus impossibilidade — existência
versus não ser — necessidade versus contingência.

Isso é definido com base na antinomia, que a filosofia considera como


a afirmação contrária aos sistemas determinados pelo senso comum,
opondo teses e antíteses. O pensamento filosófico de Immanuel Kant,
considerado um dos maiores nomes da filosofia moderna, está baseado na
reflexão sobre as possibilidades racionais em relação à experiência, com o
conceito fundamental relacionado à produção do conhecimento. Partindo
desse princípio, teoricamente, a experiência conserva a sua importância
a partir do que se pode admitir acerca da mente como fator condicionante
de qualquer experiência.
Por meio de Kant, ocorreu uma transformação radical na filosofia, num
contexto de indefinição por parte dos pensadores. Tal indefinição estava
relacionada a grandes questões como a metafísica e a teoria do conhecimento,
representada pelos racionalistas e pelos empiristas. Foi nesse período, então,
considerando o avanço da matemática e da física e a sua grande importância na
construção da nova sociedade e do novo mundo que surgia, que Kant indagou
sobre a estagnação da filosofia. Ele propôs, como solução do problema, a
aplicação do mesmo método usado por Copérnico na astronomia para mostrar
a centralidade do Sol no universo, com a Terra girando ao seu redor.
Com base na observação do método de Copérnico, Kant fez algo no mesmo
sentido na filosofia, afirmando que o erro de toda a tradição filosófica estava
em colocar sempre o objeto no centro da questão do conhecimento humano.
Partindo desse princípio, o ser humano não tem capacidade cognitiva suficiente
para saber o que as coisas são na sua essência, por isso não pode conhecer a
coisa em si. Logo, a revolução copernicana aplicada à filosofia consistiu em
retirar o objeto do centro da reflexão e colocar lá o homem, numa proposta
de retorno à estrutura transcendental, como uma fundamentação a priori
determinada, como determinação do conhecimento das coisas (KANT, 1997).
Kant é precursor da segunda grande teoria moral da Modernidade, delimi-
tando o conhecimento filosófico a partir de três ênfases principais:

 o que significa conhecer;


 qual é o conceito de beleza;
 em que consiste o comportamento humano, não em termos efetivos,
mas na perspectiva da sua ação.
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Para investigar o conhecimento, Kant escreveu a obra intitulada Crítica da


Razão Pura, com o objetivo de estudar os limites da razão. Kant propõe uma
abordagem acerca da compreensão do pensamento, ligando-se ao pensamento
grego e ao pensamento cristão. Ao conceito de belo, basta uma opinião favorável
associada ao que agrada de forma universal, a partir do juízo de gosto, com
base na opinião sensível e subjetiva das pessoas sobre a beleza, sem depender
de normas estabelecidas.
A filosofia moral de Kant não se interessa diretamente pela vida como um
todo, o que é muito presente na filosofia aristotélica. O seu pensamento se
baseia na desconfiança da natureza de cada indivíduo, manifestada por meio
dos desejos, dos apetites, dos interesses e das inclinações próprias. Nesse
sentido, Kant propõe a soberania do homem como possibilidade de deliberar
em relação às suas inclinações naturais. Assim, a moral de Kant pode ser
considerada, nesse aspecto, como o triunfo das razões sobre os apetites.

Para compreender melhor a proposta do pensamento filosófico de Kant, você deve


considerar a situação desse filósofo em relação a Aristóteles. Se o paradigma aristotélico
é o do universo ordenado e finito, o paradigma kantiano é o do universo na sua forma
infinita e caótica. Logo, evidentemente, não há alinhamento entre os dois pensadores.

A filosofia de Kant não encara a ação humana a partir da sua própria


potencialidade, como no pensamento grego. Para Kant, a ação humana está
relacionada à sua própria possibilidade de realização por meio da razão e da
conscientização do homem a respeito dos seus deveres, independentemente
do que sugere o seu desejo. Nessa perspectiva, a ética kantiana é a definição
da vida a partir dos princípios racionais, sem a negação dos desejos naturais.
O alinhamento de determinada coisa se dá a partir da sua forma; justifica-se a
sua importância a partir da sua finalidade específica. Nisso consiste o desafio
do homem, ou seja, definir-se conforme os seus atributos mais destacados,
compreendendo o seu valor por meio da análise humana, deliberando sobre
a própria conduta.
Por meio do prazer, o homem diminui a sua faculdade pensativa, uma vez que
o prazer, como base de conduta das pessoas, exemplificado pela realização da
felicidade, não encontra ênfase na filosofia kantiana. Portanto, não pode contri-
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buir para o seu principal alvo, ou seja, o crescimento da capacidade cognitiva. A


análise do pensamento kantiano aponta para apenas um atributo do homem que é
bom em si mesmo, a boa vontade, bem supremo e prerrogativa exclusiva da ação
humana. Logo, somente pela boa vontade os demais atributos do homem podem ser
considerados bons, o que consiste no mais importante conceito moral da história.
Kant, influenciado por Rousseau — Discurso sobre a Origem e os Fun-
damentos da Desigualdade entre os Homens (1754) —, admite que o modo
de viver por instinto não se aplica ao homem, ainda que, necessariamente,
isso não signifique a negação do instinto humano. Assim, por meio da boa
vontade, compreendida como atributo humano mais importante, o homem
transcende os instintos naturais na dinâmica da sobrevivência.
A boa vontade difere do desejo, uma vez que ela deve ser compreendida sob
o ponto de vista da deliberação funcional a serviço da vida, como prática do
saber orientando as condutas. Da mesma forma, a má vontade (que não pode
ser confundida com a preguiça no sentido popular) é a vontade voltada para
o mal e, consequentemente, prejudicial à vida. Partindo dos pressupostos da
boa vontade, a liberdade para o homem é se dedicar racionalmente a fazer o
que quer a partir da deliberação da razão, contrariando a satisfação do desejo
e inibindo a má vontade, considerada como escravizante do indivíduo, o que
justifica a diferença entre agir por dever e agir de acordo com o dever. Logo,
respeitar o dever não é a primeira motivação do homem, mas ele assim o faz
devido à consciência que tem das consequências imorais da satisfação do desejo.
Para o homem, o motivo mais elevado moralmente é o cumprimento do
dever, levando-se em consideração a boa vontade, compreendida como a sua
capacidade de raciocínio a serviço da vida. O núcleo da moral se concentra na
boa razão, independentemente das suas consequências, analisando-se a ação a
partir da motivação da conduta. É isso que distingue o pensamento de Kant,
baseado na intenção, do pensamento de Aristóteles, baseado na consequência.
A aplicação do dever se dá a partir da função pensante do homem, associa a
moral à boa conduta em relação a uma situação concreta, o que se denomina
“imperativo”, quer seja no sentido positivo, quer seja no sentido negativo.
A filosofia kantiana considera a existência de dois imperativos: o imperativo
hipotético e o imperativo categórico. O imperativo hipotético está condicio-
nado às pretensões e aos interesses próprios da pessoa, ou seja, ao que ela
quer. O imperativo categórico, por sua vez, está relacionado às pretensões da
vida orientadas para o comportamento do homem, numa perspectiva de vida
baseada na ação da vontade. A ideia é que os princípios racionais possam ser
aplicados à realidade de vida das outras pessoas, procedendo sempre de modo
que o “eu” possa querer também que a sua máxima se torne uma lei universal.
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Isso não significa a padronização do comportamento, mas a condução da


vontade a partir do princípio da sua funcionalidade, considerando-se também
as necessidades do outro no campo das relações interpessoais.

Limites e possibilidades da reflexão


filosófica de Kant
A reflexão acerca da limitação e das possibilidades cognitivas do homem foi
uma das maiores preocupações de Kant e se deu a partir de um questionamento
central: a possibilidade do conhecimento. Além disso, ele pensou sobre a
ação humana no que diz respeito às questões de ordem moral, desenvolvendo
importantes abordagens filosóficas sobre a estética e as formas de reflexão a
partir da biologia, no que diz respeito ao conhecimento e à moral, com foco
nas funções e nos produtos da razão.
Para Kant, a razão filtra a realidade de maneira que o acesso a ela se limita
aos fenômenos. A partir dessa perspectiva, decorre a diferença muito impor-
tante entre fenômeno, que é o que se apresenta ao homem como possibilidade
de conhecimento, e númeno, que se relaciona à metafísica, à divindade, e
significa o que não se apresenta ao homem. A busca da razão teórica, compro-
metida com o conhecimento, se baseia nos objetos representados pela razão
pura, sendo os objetos do conhecimento representados por realidades fixas,
compreendidas por meio da razão pura.
Apesar de o conhecimento ser uma pretensão humana realizável, ele não
pode ser concebido senão na sua forma limitada. Afinal, uma vez admitido o
conhecimento, ele não se constitui tão somente pela razão ou pela experiência,
mas também pela sensibilidade projetada na experiência, da qual extrai o
entendimento, que, por sua vez, entrega à razão.
Num primeiro momento do estágio da razão, a sensibilidade, a partir dos
fenômenos, está ligada à experiência, para dela apreender informações temporais
e espaciais. Já em relação ao número, que vai além da experiência, a sensibilidade
tem capacidade de alcance, o que significa que o que não é concebido pelos
dados da experiência sensorial não tem relevância para o que se pode chamar
de espaço temporal, uma vez que o entendimento não recebe o conteúdo que
fundamenta o processo cognitivo. Portanto, o discurso racional se baseia no
resultado final dessa atividade complexa do processo cognitivo relacionada ao
objeto, a partir de uma construção individual dentro dos limites a priori.
A experiência consiste na ação orientada pela sensibilidade e pelo en-
tendimento, o que resulta no objeto da razão, como proposta ordenada dos
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acontecimentos, e no desenvolvimento do processo cognitivo. Nas suas con-


siderações acerca das possibilidades e limitações humanas, Kant demonstra
superar o dualismo metafísico de céu e terra, divindade e mundo. Tal superação
se dá por meio das suas elaborações acerca da ciência empírica; ele admite
corajosamente a sua incapacidade de domínio do que está além da experiência.
Nisso, Kant reconhece que o transcendente não se sujeita à sua experiência,
pelo que passa a concebê-la como hipoteticamente uma ciência inútil, uma
vez que foge à compreensão e ao controle humanos (PUC-RIO, 2010).
Partindo desse princípio, a questão do conhecimento é reformulada pelo
pensamento kantiano na Modernidade, a partir de noções radicais no sentido
histórico. A base do limite do conhecimento humano está naquilo que é possível
conhecer, naquilo que pode ser dado na experiência sensível. Além disso,
Kant observa que as estruturas espaço-temporais possibilitam a apreensão
dos objetos sensíveis. Portanto, o mundo abriga coisas materiais e imateriais,
sendo que do resto não se sabe, o que justifica a compreensão humana até o
limite da experiência.
Assim, o conhecimento humano está associado ao sensível, sujeitando-se
à experiência como forma de comprovação do que realmente existe. Então, a
ideia tem primazia sobre a impressão, uma vez que ela filtra as informações
dadas pelos sentidos para a produção do conhecimento, constituindo-se a
razão pura como fonte principal do conhecimento.

No link a seguir, assista a um vídeo sobre o pensamento kantiano.

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Questões filosóficas presentes nas reflexões


kantianas

Educação para a vida em sociedade


Kant reflete sobre a construção de uma sociedade justa a partir do exercício
da liberdade humana, fundamentada na autonomia, admitindo também que
o homem é a única criatura que precisa ser educada. É com base na sua
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filosofia da história que Kant reflete sobre a educação, compreendendo a


história como base das ações humanas, apoiada na liberdade. Para ele, o
sentido da ação humana reside na natureza.
As disposições naturais do homem tendem ao desenvolvimento das suas
ações para determinado fim; logicamente, a partir da racionalidade. Logo, o
homem dotado de capacidade cognitiva vai além da sua sobrevivência natu-
ral, manifestando-se no mundo a partir da razão e muito mais do que como
indivíduo. Nesse sentido, a contribuição para o bem-estar da própria espécie
é a principal finalidade da humanidade; ou seja, está em jogo o bem.
A educação tem como uma das suas principais atribuições conduzir o
homem à prática da vida em sociedade, numa perspectiva de direcionamento
e aperfeiçoamento do seu modo de pensar. A partir de então, segundo Kant,
tem-se a base de compreensão do homem no que se refere à sua transição de
uma condição instintiva para a dinamicidade a ser demonstrada no contexto
do seu compromisso com a vida em sociedade. Ou seja, inserido na cultura, o
homem desenvolve as suas habilidades, orientadas pelos seus talentos, numa
perspectiva moral da própria vida social (KLEIN, 2013).
Para Kant, todo indivíduo vive melhor em sociedade, a partir das relações
interindividuais. Isso justifica a existência da disciplina que favorece a forma-
ção de um sujeito com discernimento moral para viver em sociedade, isto é,
dedicado à edificação de uma sociedade civil perfeita, ainda que não no seu
estado definitivo. Tal edificação depende, então, da elaboração de um plano
de ação que vise ao estabelecimento de uma constituição política garantidora
do desenvolvimento pleno da sociedade.
A instituição política do Estado condiciona o homem à elevação no que
diz respeito ao seu esclarecimento acerca do propósito da vida em sociedade.
Nesse contexto, as ideias tornam-se concretas a partir da alteração da orien-
tação pedagógica do adestramento para a educação com base na prática do
pensamento, orientado para a concepção do homem como sujeito moral, o
que se associa ao princípio de liberdade.
Assim, o homem deve aprender, desde a tenra idade, que refrear os seus
instintos não é uma atitude relacionada à proibição divina e às suas devidas
consequências. De acordo com Kant, a tendência às práticas da natureza ins-
tintiva é desprezível por si mesma, já que prejudica a capacidade humana de
pensar. Portanto, pela razão, o homem é impulsionado em direção às virtudes
que lhe são concedidas por meio da capacidade cognitiva, elevando-se da sua
simples condição animal.
Levando em consideração os pressupostos da educação, Kant (1997) afirma
que o esclarecimento é a condição fundamental para o aperfeiçoamento
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moral do mundo. Ele compreende o esclarecimento não no sentido material,


mas no sentido transcendental, da investigação. Isso significa que o homem
deve sair da menoridade, adquirindo a capacidade de decidir e, encorajado
pela razão, servir-se de si mesmo sem a direção de outrem e fazer uso de seu
próprio entendimento.
A capacidade da ação atrelada à liberdade, em direção ao esclarecimento,
carece de profunda reforma do modo de pensar, a partir da liberdade civil
aliada à própria liberdade de pensar do homem. Nesse sentido, o homem rompe
com os aspectos naturais que o identificam a uma máquina, tendo restituída
a sua dignidade, saindo da heteronomia em direção à autonomia.

A proposta da filosofia kantiana não é a de uma revolução no sentido de direcionar


o homem à sua autonomia de pensar. A ideia é conscientizar o homem a respeito do
compromisso e das responsabilidades de uma vida em sociedade.

Religião
O contexto atual possibilita uma reflexão coerente a partir de Kant no que diz
respeito à religião e à política. Considerada um problema antigo, a intolerância
religiosa é um assunto que a filosofia moral pode iluminar, indicando modos
de agir e propondo uma racionalidade que vá além dos aspectos históricos e
culturais.
A filosofia kantiana propõe condições de justificar e legitimar a liberdade
religiosa. Kant, em seu livro A Religião nos Limites da Simples Razão, conde-
nou e combateu a intolerância religiosa, refletindo sobre o caráter da crença
religiosa e o status teórico e moral da própria religião (SANTOS, 2017). A
tolerância é considerada como ação compassiva no que se refere ao erro dos
outros, enquanto o intolerante é aquele que não consegue suportar a imperfeição
dos outros sem ódio e, por isso, ele próprio não pode ser suportado sem ódio.
Partindo dessa reflexão, a tolerância é um dever universal em relação a todas
as pessoas, nas mais diversas religiões, numa dinâmica de suporte aos defeitos
uns dos outros, em favor da vida útil em sociedade.
Kant elencou (SANTOS, 2017) três princípios propondo o significado e a
legitimidade da liberdade da religião. Veja a seguir.
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 Religião e não coercitividade: Kant declara que o único modo de se


pensar a convivência pacífica entre diferentes grupos religiosos é a partir
da aceitação. Cabe à filosofia, no seu aspecto crítico-transcendental,
estabelecer, por meio da crítica da razão pura, o que se pode considerar
objeto de conhecimento a partir de critérios determinados e aquilo que
se caracteriza como objeto de crença — em relação ao ato de acreditar,
sendo, porém, condizente com o raciocínio.
 Religião e veracidade: a filosofia de Kant relacionada à teodiceia diz
que nem a probabilidade nem a refutação podem se dar na sua forma
absoluta, pois aquilo que alguém diz para si mesmo ou para outrem
pode ou não ser verdadeiro; mas, em relação ao que se diz, pode-se e
deve-se sustentar que seja verdadeiro, afinal, quem fala é imediatamente
consciente disso.
 Religião e publicidade: para Kant, os temas da religião devem ser
trazidos para o espaço público, respeitando-se os princípios da liberdade
do uso público da razão. Ou seja, a liberdade de se discutir assuntos de
religião deve implicar, de um lado, um espaço específico e, de outro,
determinado modo de realização.

Política
A política deve ser pensada a partir da concepção do direito relacional constitu-
ído pela razão em relação às inclinações naturais do homem. Nessa perspectiva,
o homem reflete sobre o progresso da vida em sociedade, baseado na ação e
no dever, por meio das orientações racionais nele contidas.
O homem, por meio da sua liberdade, tem capacidade de legislar sobre a
própria lei a que se submete, como uma faculdade universal que possui, esta-
belecendo os seus direitos. Porém, partindo da ideia cosmopolita, o homem
necessita do Estado para o cumprimento das leis, mediante as quais também
são regidos os deveres que deve assumir, no sentido da garantia da própria
liberdade. Na concepção de Kant, “[...] as virtudes políticas servem apenas para
a construção de uma possível constituição republicana perfeita. Por isso, seu
fim [...] é imanente à política e não faz indicação à esfera moral [...]” (KLEIN,
2013, documento on-line).
Uma política pode ser considerada útil de acordo com os termos em
que se propõe junto à sociedade. Ela não deve ser dominada por preceitos
moralizantes dos seus agentes, contrários aos direitos, uma vez que o
governo deve ser pensado de forma autêntica por um político moral, não
como uma simples disposição de ânimo demonstrada pelo legislador ou
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executivo político. Segundo Klein (2013), Kant aponta, assim, que as leis
justas devem ser criadas e aplicadas corretamente, não de modo eventual,
mas de forma constante e sistemática. Para isso, uma boa disposição moral
é imprescindível.

KANT, I. Crítica da razão pura. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
KLEIN, J. T. Kant sobre o progresso na história. ethic@, Florianópolis, v. 12, n. 1, p. 67–100,
2013. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ethic/article/viewFile/1677-
-2954.2013v12n1p67/25273. Acesso em: 28 ago. 2019.
PUC-RIO. Kelsen e Kant: limites e possibilidades da razão. [2010]. Disponível em: https://
www.maxwell.vrac.puc-rio.br/15781/15781_3.PDF. Acesso em: 28 ago. 2019.
SANTOS, L. R. Kant, sua interpretação moral do Cristianismo e raízes bíblico-cristãs da
sua ética. Conjectura: Filosofia e Educação, Caxias do Sul, v. 22, n. 2, p. 226–278, 2017.
Disponível em: http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conjectura/article/view/5039/
pdf. Acesso em: 28 ago. 2018.

Leituras recomendadas
BONJOUR, L. Filosofia: textos fundamentais comentados. 2. ed. Dados eletrônicos.
Porto Alegre: Artmed, 2010.
KANT, I. A paz perpétua: um projecto filosófico. Covilhã: Universidade da Beira Interior,
2008.
VASCONCELOS, V. V. Conhecimento em Kant e inteligência artificial. Belo Horizonte:
UFMG, 2005.
Dica do Professor

A possibilidade de conhecimento está fundamentalmente ligada à razão, mas isso não exclui o
conhecimento relacionado à experiência. Isso porque a razão é estruturada em dois juízos que
consistem em um universal e outro particular. O mesmo se diz a respeito da possibilidade de esses
juízos serem sintéticos ou analíticos a priori e a posteriori.

Nesta Dica do Professor, você vai compreender como a razão é pensada por Kant.

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Exercícios

1) Apesar de a leitura que Kant fez de Hume ter reorientado a forma como o filósofo alemão
pensava a filosofia e a relação entre sujeito e objeto no sentido epistemológico, existe, em
relativa medida, uma crítica kantiana direcionada ao dogmatismo presente também na teoria
humeniana.

A respeito de tal constatação, assinale a alternativa correta.

A) O empirismo se apresenta como a única via plausível do conhecimento.

B) Os juízos partem exclusivamente da razão.

C) O conhecimento é um elemento comum tanto à racionalidade quanto à experiência, não


estando, portanto, restrito a um ou outro.

D) Os juízos partem exclusivamente da experiência, apenas de raciocínios complexos, únicos da


razão.

E) O conhecimento é fruto apenas de raciocínios complexos, únicos da razão.

2) Até Kant, as teorias empírica e racionalista se mantinham em posições contrárias em relação


às suas possibilidades de conhecimento. Kant se deu conta de que ambas tratam de etapas
essenciais à racionalidade na organização da compreensão sobre o objeto. Daí a importância
do pensamento de Kant.

A respeito dessa afirmação, assinale a alternativa correta.

A) O juízo sintético a priori permitiu perceber que a matemática é um campo próprio do


conhecimento intelectivo humano.

B) Kant busca refletir sobre o racionalismo como doutrina sem erros.

C) Kant busca apontar o empirismo como solução para os problemas do conhecimento.

D) Kant busca permitir que os raciocínios indutivos passem a ser os elementos centrais do
conhecimento.

E) Kant busca desenvolver um método de explicação para os fenômenos observáveis, como o


raciocínio matemático.
3) De acordo com Kant, os juízos sintéticos são aqueles que reúnem tanto o conhecimento
empírico quanto o racional, que não depende da experiência. Os juízos sintéticos têm a
capacidade de portar um predicado mesmo sem sujeito. Por isso, eles são designados como
a priori e a posteriori.

A partir dessa explicação, avalie as alternativas a seguir e assinale aquela que apresenta um
juízo sintético. Lembre-se de que o juízo sintético corresponde àquele cujo predicado
acrescenta algo ao sujeito.

A) Um triângulo tem três lados.

B) O cachorro do João morreu.

C) Todo carioca é brasileiro.

D) Os cavalos galoparam pelo campo, sempre radiante no mesmo sentido.

E) Uma reta traçada do centro de um círculo a qualquer uma de suas extremidades sempre terá
o mesmo comprimento.

4) Kant se referia à sua reflexão filosófica anterior ao idealismo transcendental como


dogmática. Isso porque o filósofo defendia concepções acerca da verdade e do
conhecimento que eram inatingíveis pela crítica, ao menos de acordo com a sua filosofia e a
de seu grande “mentor” Leibniz. Contudo, isso muda ao ponto de Kant afirmar que “acordou
do sono dogmático”.

A respeito dessa afirmação, assinale a alternativa correta.

A) O conhecimento é, antes de tudo, alcançado pela experiência.

B) O conhecimento é, antes de tudo, alcançado pela razão.

C) O conhecimento deve, antes de tudo, privilegiar as doutrinas empiristas em particular.

D) A filosofia kantiana buscou romper com a ideia de que racionalismo e empirismo seriam
extremos.

E) Os métodos racionalistas não conseguiam defender o que tinham proposto.

5) Desde os gregos, o modo como se alcança a verdade ou, ainda, o caminho para o
conhecimento – que leva o nome de epistemologia – é uma das questões de maior
relevância. Afinal, não há como afirmar que se conhece sem avaliar o modo pelo qual se
conhece. É por essa razão que Kant também se dedica a essa problematização. Nesse
sentido, as razões a posteriori são baseadas ou derivadas da experiência.

Equivale a “razões a posteriori”:

A) conhecimento suprassensível.

B) conhecimento empírico.

C) juízo sintético.

D) juízos analíticos.

E) argumentos indutivos.
Na prática

As capacidades humanas de conhecimento ou as possibilidades de se conhecer são questões


fundamentais da filosofia. Desde a Modernidade, as reflexões sobre essas possibilidades assumiram
um cunho estritamente racional, ainda que refletido sobre o conhecimento empírico, isto é, por
meio das experiências.

É refletindo sobre essa oposição (razão e experiência) que Amanda decide estudar a filosofia
kantiana. Acompanhe, neste Na Prática, como se deu esse estudo.
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Saiba mais

Para ampliar o seu conhecimento a respeito desse assunto, veja abaixo as sugestões do professor:

De Kant a Popper: razão e racionalismo crítico nos estudos


organizacionais
A teoria do conhecimento desempenha um papel fundamental no que diz respeito à ciência. O
campo da filosofia da ciência tem cada vez mais se expandido em razão do desenvolvimento
científico das sociedades contemporâneas. Leia este artigo para aprofundar seus conhecimentos
sobre o tema.

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2020, o ano da peste: considerações sobre a vacinação a partir de


Kant
Uma das questões fundamentais para Kant é a de cunho ético e moral que está,
incontornavelmente, ligada ao sentido do dever e a sua universalidade. A partir de sua teoria ética e
moral, podem-se avaliar várias problemáticas contemporâneas que estão associadas à sua noção de
dever. Compreenda um pouco mais sobre o assunto a partir da leitura deste artigo.

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Kant e o imperativo categórico


Um dos conceitos centrais da filosofia kantiana é o imperativo categórico. É por meio desse
conceito que se pode entender a relação entre razão e dever. Compreenda um pouco mais sobre a
temática a partir deste vídeo.
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Kant para iniciantes – Temporada 1 / Episódio 1 (legendado em


português)
A série Kant para iniciantes, produzida pela TV alemã BR-Alpha, é um jeito divertido e romanesco de
aprofundar os seus conhecimentos sobre a obra do filósofo alemão. Acesse o link e assista à
primeira temporada.

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Kant como um filósofo da ciência da natureza (em francês)


A teoria do conhecimento desempenha um papel fundamental no que diz respeito à ciência. O
campo da filosofia da ciência tem cada vez mais se expandido em razão do desenvolvimento
científico das sociedades contemporâneas. Leia este artigo para se aprofundar no tema.

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