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Fenomenologia,

existencialismo
e humanismo
Mayara Joice Dionizio

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

> Reconhecer o momento histórico em que se origina a fenomenologia.


> Relacionar o desenvolvimento da fenomenologia ao do existencialismo.
> Apontar o humanismo como terceira força da psicologia.

Introdução
Já no início do século XX, a inquietação com o excessivo cientificismo e racio-
nalismo provenientes da modernidade se anunciava. No século prévio, vários
pensadores já haviam dado início a um movimento de questionamento sobre
as verdades inquestionáveis da modernidade, com destaque para Friedrich
Nietzsche e Søren Kierkegaard. Tratava-se da chamada crise de fundamento,
que tornava evidente a necessidade de um conhecimento que considerasse o
sentido da existência, os valores humanos e o conhecimento perspectivo. Nesse
contexto, Husserl foi o primeiro filósofo a apontar a necessidade de se olhar para
os fenômenos enquanto tais e vivenciar essa experiência despida de verdades
anteriores. Desse modo, foi fundada a fenomenologia, que posteriormente viria
a possibilitar o surgimento de filosofias outras que levariam em consideração
a experiência humana como fundamento para se pensar a existência.
14 Fenomenologia, existencialismo e humanismo

Neste capítulo, você vai compreender como surgiu, e no que consiste, o


pensamento fenomenológico, a partir principalmente das filosofias de Husserl
e Heidegger. Verá como o existencialismo surgiu a partir da abertura deixada
pela fenomenologia, ao se pensar a existência como condição essencial para
abordar a realidade e o conhecimento. Por fim, entenderá a relação entre
fenomenologia e existencialismo enquanto viés humanista aplicado à psicologia
psicoterápica.

Origens históricas da fenomenologia


Durante o século XX, aconteceram vários eventos que transformaram pro-
fundamente a experiência humana e seu modo de vida. Vale lembrar que ao
longo dos séculos anteriores, em especial nos séculos XVIII e XIX, as trans-
formações desencadeadas a partir da Revolução Industrial — que reformulou
não apenas os modos de produção, mas também as relações e o olhar sobre
si do humano — estabeleceram novos paradigmas científicos e filosóficos.
Tais mudanças refletiram no indivíduo contemporâneo e no modo como o
pensamento contemporâneo se desenvolveu. No século XX, as experiências
desencadeadas pelas grandes guerras, pelos anseios revolucionários soviéti-
cos e pelo surgimento de novos Estados abriram espaço para questionamentos
em relação às estruturas sociais, morais e políticas, bem como para uma
profunda desconfiança diante dos saberes científicos absolutos que foram
anunciados ao longo da modernidade. Frente à ausência de sentido causada
por esses sistemas que faliram de certo modo e à crença no poder científico,
surge a fenomenologia.
Nesse contexto, podemos dizer que a fenomenologia se apresenta como
uma resposta alternativa às concepções materialistas e idealistas que domi-
naram o pensamento filosófico durante o século XIX, tais como o idealismo do
neokantismo — um resgaste da filosofia de Immanuel Kant — e o positivismo
de Auguste Comte. Por um lado, os neokantianos defendiam uma historicidade
da consciência e a realidade única do pensamento como fundamento para
ciência; por outro, o positivismo defendia que a realidade só poderia ser
compreendida por meio do saber científico, independente da compreensão
humana. Ambas fundamentações depositavam na ciência a compreensão
de toda e qualquer realidade, excluindo dela a metafísica. Acontece que
frente aos acontecimentos catastróficos, já no início do século XX impôs-se
a necessidade de questionar o modo como entendemos o mundo e como nos
relacionamos com os outros.
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Tal mudança no modo de pensar a realidade levou ao que foi chamado


de crise de fundamento da ciência moderna, baseada em três observações:

„ não há como provar que somente o pensamento seja a realidade da


consciência, como queria o idealismo;
„ o pensamento científico não é algo dado, imutável e independente da
compreensão humana;
„ a metafísica passa a ser repensada como abertura para o conhecimento
e sentido existencial da realidade.

Contudo, antes de examinarmos as implicações dessa mudança, é necessá-


rio reconstituir como a realidade e o conhecimento sobre ela eram pensados
pela tradição moderna. Na modernidade, inaugurada por Descartes com o
cogito — penso, logo existo —, a razão passa a ser o fundamento para todo
conhecimento. Assim, se ao pensar eu comprovo a minha existência, a sua
realidade, pois do contrário não estaria pensando, o conhecimento sobre
qualquer coisa externa a mim deve ser mediado pela minha razão. Com Kant,
o conhecimento, a verdade sobre ele, passa a ser compreendido como uma
relação entre sujeito e objeto, tal como consta em “Da divisão da lógica geral
em analítica e dialética”:

[a] velha e conhecida questão, com que se pretendia colocar os lógicos contra a
parede e forçá-los ou a deixar-se girar em círculos miseravelmente, ou a admitir
a sua incerteza e, portanto, a total vaidade de seu saber, é a seguinte: o que é a
verdade? A definição nominal da verdade, a saber, que ela é a concordância do
conhecimento com o seu objeto, está aqui dada e pressuposta; é preciso saber,
porém, qual é o critério universal e seguro da verdade de cada conhecimento
(KANT, 2015, p. 100).

Entretanto, mesmo antes da crise de fundamento que teve início ao fim


do século XX, a verdade “absoluta” determinada pelo conhecimento científico
já vinha sofrendo vários golpes. Friedrich Nietzsche (1844–1900) foi um dos
pensadores que tiveram um papel importante no questionamento acerca
da totalidade do conhecimento científico e racional. Para Nietzsche (2007),
a ciência deve cumprir esse papel limitador frente aos anseios humanos, ou
cairíamos em entusiasmo e perspectivismo desmedidos. Nesse sentido, o
filósofo toma de exemplo o processo criativo artístico: sem o esfriamento
racional que a ciência causa, a paixão se expande e se torna soberana,
sem permitir que nada exista a não ser ela. Porém, isso não significa que
Nietzsche acredita que o conhecimento científico deva assumir uma totalidade
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de sentido sobre a vida, mas sim que a vida exige um outro sentido, um que
ultrapasse o ideal de verdade “socrático-platônico”. Desse modo, Nietzsche
destaca a crise do ser humano moderno em sua ânsia por estabelecer uma
verdade absoluta sobre tudo.
Apesar de Nietzsche ter contribuído para as grandes questões pós-mo-
dernas, tais como apresentadas até aqui, foi com Edmund Husserl (1859–1938)
que a fenomenologia se estabeleceu. Ao fim do século XIX, o jovem Husserl,
entusiasmado com seus estudos em matemática, astronomia e filosofia,
começou a assistir os cursos do filósofo Franz Brentano e a pensar a noção
de intencionalidade por meio dos fenômenos psíquicos e físicos. Em 1900,
Husserl publicou Investigações lógicas, obra em que aparece sua crítica ao
naturalismo positivista, uma vez que tal movimento buscava aplicar métodos
científicos das ciências naturais em relação ao comportamento e às ques-
tões humanas. Para Husserl (2012), o ponto de partida da reflexão deve ser
as coisas mesmas, de modo que devamos ser capazes de separar aquilo do
pensamento daquilo que está sendo observado e pensado.

É dessa reflexão que surge o termo fenomenologia — do grego


phainomenon, que significa aquilo que aparece, que se faz ver.
Para tanto, Husserl chama esse olhar despido de verdades absolutas, ou pré-
-estabelecidas, de redução fenomenológica. Tal redução consiste em não tratar
a realidade dada como independente da consciência humana. Desse modo,
Husserl acredita que o primeiro movimento da filosofia em relação à realidade
deve ser o de suspensão.

Assim, essa atitude deixa o fenômeno aparecer à consciência pelo ato


intencional, ou seja, a consciência se deixa à vivência frente ao fenômeno:
“o psíquico não é a aparência empírica; é a ‘vivência’ averiguada na reflexão”
(HUSSERL, 1965, p. 33). Isso revela que para Husserl a revelação do fenômeno
está atrelada à atividade psíquica e que, por sua vez, possibilita que o mesmo
fenômeno seja apreendido de modos diferentes por vivências distintas.
É a partir desse argumento que Husserl altera o paradigma acerca do
conhecimento como fruto direto, matemático e absoluto da relação entre
sujeito e objeto. Tal relação não é descartada, mas passa a ser pensada de
um modo horizontal, segundo o qual a hierarquia do humano sobre o objeto é
abandonada, para em seu lugar privilegiar a própria relação como possibilidade
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de acesso de um a outrem. Nesse contexto, o que tem maior valor é a relação


entre sujeito e objeto, a qual não se fecha em um limite instransponível e
absoluto, apesar de ser a fonte de todo o conhecimento.
Após essa delimitação e aprofundamento teórico, a fenomenologia se
converteu em um movimento e começou a reunir tantos outros pensadores
quanto alunos em dois importantes grupos: o primeiro levou o nome de Círculo
de Munique (1904), que incluía entre os seus participantes, além de Husserl,
Max Scheler. Após o crescimento do grupo, o círculo passou a receber mais
e mais alunos, transformando-se no Círculo de Göttingen (1905). Em 1916,
a fenomenologia já era um estudo mais consolidado, e foi quando Husserl
assumiu aulas em Freiburg, tendo como seus discípulos os filósofos Martin
Heidegger e Hans-Georg Gadamer.

Nesse período histórico, a fenomenologia passou a se aproximar das


questões existenciais. Heidegger, por sua vez, apesar de concordar
com Husserl que o projeto da fenomenologia devia ser o retorno para as coisas
mesmas, distanciou-se um pouco de seu mestre.

Para Heidegger (2005), o que deve ser buscado enquanto fenômeno que
compete à fenomenologia é o ser, isto é, não se trata de retomar algum ente
em questão a fim de melhor compreendê-lo, mas antes ter um trabalho
hermenêutico, segundo o qual se analise a fundo a existência do ente que
compreende a si como ser. Se Husserl fundamenta sua fenomenologia a partir
da consciência em seu ato intencional, é necessário, segundo Heidegger
(2005), que o ser dessa consciência antes seja delimitado, pois do contrário a
consciência pode perder-se em seus próprios caminhos. Para tanto, também
se mostra necessário o retorno por meio de uma ontologia fundamental,
segundo a qual o questionamento sobre o sentido do ser — (dasein, ser que
está no mundo e pode se questionar sobre o sentido do ser) — seja o meio pelo
qual opere uma desconstrução da vida entificada e ordinária que aproxime
os entes de seus seres. Nesse sentido, a fenomenologia heideggeriana faz
uso da ferramenta hermenêutica com vistas a aprofundar essa análise sobre
o ser que vive em meio aos entes. A filosofia passa, então, a ter o papel de
conduzir o humano à questão mais fundamental: qual o sentido do ser? E,
ao colocar o sentido da vida como central, situa a compreensão sobre a vida
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como o essencial, acima de um conhecimento prévio científico e absoluto,


tal como se estabeleceu na modernidade.
Conclui-se que a fenomenologia surge num momento histórico conturbado,
entre o fim do século XIX e início do século XX, como resposta não apenas à
crise de fundamento que se instaurou nos meios acadêmicos e científicos da
época, mas também como resposta aos eventos políticos, sociais e culturais
que emergiam. Nesse contexto, num primeiro momento, com a fenomeno-
logia de Husserl, têm-se um movimento essencial de voltar o olhar para
a experiência do fenômeno, e com Heidegger a fenomenologia se liga às
questões existenciais. Em seguida, ainda na primeira metade do século XX,
esse movimento viria então a desaguar em correntes como o existencialismo.

Existencialismo
Em 1927, a obra mais importante de Martin Heidegger foi publicada: Ser e
tempo. Nela, Heidegger concentra toda a sua fenomenologia existencial tendo
como principais temáticas o sentido do ser, a diferença ontológica (que é a
diferença entre ser e ente — o ser é um ente que pode refletir sobre a sua
existência, diferente dos demais entes) e a temporalidade (HEIDEGGER, 2012).
Em pouco tempo, a obra de Heidegger foi traduzida para o francês. Nesse
período, Alexandre Kojève, filósofo russo, deu início aos seus cursos na École
des Hautes Études, na França, onde apresentou uma leitura distinta daquelas
que vinham sendo feitas em relação à obra heideggeriana. Kojève aproxi-
mou a filosofia heideggeriana da filosofia de Friedrich Hegel em relação às
temáticas da morte, da temporalidade e da história. Nesse sentido, Kojève
entendia que era possível estabelecer uma ligação entre o ser para a morte
de Heidegger — somos todos seres finitos, a morte dá sentido à vida, ao passo
que estabelecemos projetos, coisas que queremos realizar, porque sabemos
que não somos seres infinitos, e nosso tempo, nossa temporalidade, é finito,
todos morreremos — tal como se a morte enquanto último acontecimento em
nossas vidas tivesse a mesma função de síntese na dialética hegeliana. “Para
Hegel, a essência não independe da existência. Por isso o homem não existe
fora da história. A fenomenologia de Hegel é, portanto, existencial, como a
de Heidegger. E deve servir de base a uma ontologia” (KOJÈVE, 2002, p. 37).
Em Hegel, a morte aparece enquanto negação da vida, contrária à vida,
e por isso como motivadora da ação, dando assim à negatividade o impulso
para o desenlace da história. Por sua vez, a história, para Hegel (2002), é
construída por seres humanos livres e universais que conseguem, por uma
astúcia da razão, repensar seu tempo e transformar o meio em que vivem.
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Nesse sentido, Kojève, por meio da reflexão heideggeriana sobre a morte,


afirma que o sentido desse ser é o tempo — se para Heidegger é a morte
que nos faz agir e para Hegel a morte também motiva a ação humana para
superar o seu tempo, pode-se dizer que o ser é a sua temporalidade, pois
é o tempo que a vida dura, e é o temor de não termos mais tempo que nos
leva a agir. É o ser que tem consciência para observar a passagem temporal,
inclusive isso o faz consciente de sua morte, do caminhar para o nada, que
traz assim o futuro e a morte para o agora; o nada se faz presente. Assim,
Kojève estabelece uma conexão entre a negatividade hegeliana com a finitude
heideggeriana, salvaguardadas as seguintes distinções: para Hegel, a história
caminha para um esclarecimento, em direção ao Espírito Absoluto (pessoas
livres e universais), enquanto para Heidegger, a história é um aspecto da
temporalidade.
Tais cursos de Kojève tiveram como alunos pensadores como Jacques Lacan
e Jean- Paul Sartre. Foi nesse contexto que Sartre teve acesso à fenomenologia
heideggeriana, que, por sua vez, influenciou muito uma de suas principais
obras: O ser e o nada (1943). Por outro lado, a possível chave de leitura aliando
Hegel e Heidegger teria o seu papel na teoria sartreana no que diz respeito
ao seu engajamento político. Em 1945, Sartre, ao negar o rótulo dado à sua
produção teórica de “existencialista”, diz se tratar de uma filosofia própria,
de uma filosofia da existência, e alega ao mesmo tempo não saber do que
se trata o existencialismo.
Nesse sentido, Sartre quer fazer entender que a sua filosofia, tal como
a de outros pensadores de sua época, partia de uma análise da existência
no que diz respeito aos modos de ser do humano, bem como do sentido do
mundo. Contudo, embora em O ser e o nada o filósofo trabalhe mais o tema
da liberdade como condição primordial para a ação humana, é na obra O
existencialismo é um humanismo (1946) que o existencialismo enquanto
reflexão se apresenta de modo mais substancial.
Após a Segunda Guerra Mundial, os pensadores passaram a se ocupar
profundamente das questões relacionada à ética, à existência, à arte e à
política. Certamente, esses eixos de pensamento sempre tiveram lugar nas
reflexões filosóficas, mas após os horrores da guerra refletir sobre os valores
humanos, a função do Estado e o sentido da existência se mostrou urgente.
Foi no seio dessa reflexão e debate que Sartre desenvolveu suas reflexões
humanistas, e nesse sentido o filósofo viria a abordar um humanismo com
base na liberdade humana do que se entende por existência e essência.
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Søren Kierkegaard (1813–1855) foi um dos pensadores que inaugura-


ram o pensamento existencialista. Em termos estritos, o movimento
surgiu em meados dos anos 1950 na França, mas um século antes Kierkegaard
já desenvolvia uma filosofia voltada à existência, que mais tarde seria consi-
derada existencialista por filósofos como Albert Camus, Karl Jaspers, entre
outros expoentes do movimento francês. Contextualmente, quando Jean-Paul
Sartre refere-se ao existencialismo cristão, muitas vezes está se referindo à
Kierkegaard. De acordo com Kierkegaard, o universo é paradoxal, e como maior
prova temos a existência de Deus em um ser humano: Jesus. Nesse sentido, cada
ser humano pode e deve fazer escolhas de acordo com o que compreende, sem
regras pré-estabelecidas, já que, sendo o universo paradoxal, cada pessoa pode
escolher como quer agradar a Deus e cabe somente a ela escolher se a ação é
válida ou não. Portanto, cabe ao ser humano decidir sobre a sua vida e procurar
formas de autenticidade.

Em O existencialismo é um humanismo, Sartre (2014) argumenta que até


aquele momento havia dois grupos de pensadores que se intitulavam, ou
eram tidos social e intelectualmente, como existencialistas. Esses dois grupos
se distinguiam precisamente por suas crenças metafísicas relacionadas à
religião: os existencialistas cristãos e os existencialistas ateus, sendo este
último o grupo de que o próprio Sartre participava. Contudo, o que unia
ambos os grupos era o entendimento de que a existência não é determinada
pela essência, ou seja, o ser humano não pode ser determinado a priori, não
havendo assim nada anterior à existência que lhe configure um modo de ser
ou um destino. De tal pensamento decorre a máxima: “a existência precede
a essência” (SARTRE, 2014, p. 8).
Para ilustrar melhor sua doutrina filosófica, Sartre faz uso de um exemplo
hipotético por meio de uma comparação entre Deus e um editor de livros:
o editor sabe o que é um livro, como ele deve ser produzido e como chegar
ao resultado final; de acordo com o argumento cristão, Deus ao criar o ser
humano, o cria à sua imagem e semelhança, partindo de uma concepção
pré-estabelecida sobre o que é o humano e depositando em cada “exemplar
humano” a sua essência humana. Nesse caso, a essência precede a existência,
pois o ser humano já nasce determinado em muitos aspectos. Esse é o ponto
de partida de Sartre ao defender o existencialismo ateu: se Deus não existe,
o humano não é pré-determinado, pois não é um resultado da criação divina.
Com isso, Sartre chega à conclusão de que, não havendo natureza humana,
não há determinação e, consequentemente, o ser humano está condenado
a ser livre, sem nada que o constranja. Porém, ao abrir mão do paternalismo
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divino, Sartre não quer dizer que somos livres para agir de acordo com o
nosso desejo independente do mundo e da sociedade.
Nesse aspecto, Sartre distingue duas subjetividades: aquela que diz res-
peito às escolhas individuais e aquela que constitui a base subjetiva para
o existencialismo sartreano: “não existe um de nossos atos sequer que,
criando o homem que queremos ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem
do homem conforme julgamos que ele deva ser” (SARTRE, 2014, p. 20). Ou seja,
há uma responsabilidade individual na escolha de cada um de nós, pois ao
escolhermos, escolhemos pela humanidade inteira, escolhemos uma imagem
de humano que é válida para todos que compartilham o nosso tempo. Por
fim, o projeto sartreano de ser humano condenado à liberdade se configura
um projeto universal. A humanidade, para Sartre (2014), constrói-se a partir
das escolhas individuais de cada indivíduo.

Para Sartre (2014), a liberdade é uma condição humana e não podemos


simplesmente escolher não fazer uso dela. Assim, se o ser humano
está condenado a ser livre, é a partir dessa liberdade que ele vai se constituir.
Ora, se o ser humano está lançado no mundo, na existência, e é condenado a
ser livre, sua liberdade está ligada aos seus projetos, às suas escolhas, e são
elas que vão o formar seu sentido individual e a humanidade em um sentido
universal: tudo o que sou, que escolho, é o que eu escolho enquanto humano
também para a humanidade.

Historicamente, a Segunda Guerra foi um dos pontos de problematização


para Sartre acerca da existência humana. Se por um lado a fenomenologia já
vinha se ocupando em pensar a existência em seu sentido e, para isso, reto-
mava questões essenciais como a ontologia, o existencialismo se constituiu
como aprofundamento radical em relação à ética, à história e à política.
Nesse sentido, a reflexão fenomenológica ganhou sobretudo um caráter de
compromisso ético-subjetivo universal, e contribuiu para o desenvolvimento
do existencialismo. Por mais que as escolhas individuais não sejam universais
de fato — apenas em sentido ético e amplo de reflexão sobre as próprias
ações — em relação às escolhas da humanidade como um todo, foi também
com Sartre que passamos a pensar as nossas escolhas fora de um sistema
de predestinação e de recompensas divinas: o compromisso humano passa a
ser com a necessidade de constituição de um projeto de si e da humanidade.
22 Fenomenologia, existencialismo e humanismo

O humanismo como terceira força da


psicologia
As teorias filosóficas que abordamos até aqui mudaram o modo como outros
domínios de conhecimento se posicionavam frente às questões humanas. Foi
nesse contexto que a psicologia passou a ser pensada de forma humanista. Até
aquele momento, na primeira metade do século XX, a psicologia encontrava-
-se dividida em duas forças:

„ psicologia comportamental behaviorista, que tinha como seus princi-


pais adeptos Skinner, Watson e Pavlov, e consistia em trabalhos sobre
o condicionamento do comportamento e dos sentimentos;
„ psicanálise, caracterizada como um método de investigação sobre o
inconsciente, a significação e interpretação sobre o desejo, a transfe-
rência, entre outros comportamentos e manifestações do indivíduo,
que até aquele momento tinha como o seu principal representante
Freud, e mais tarde Winnicott e Lacan.

Foi em meio a essas duas correntes que surgiu então a chamada terceira
força da psicologia, que consiste na psicologia humanista e existencial. Essa
nova forma de pensar a psicologia emergiu também como oposição aos modos
mecanicistas, próprios da modernidade, pelos quais se dava a abordagem
da teoria comportamental e em contraponto à visão determinista e pato-
lógica da psicanálise. A psicologia humanista e existencial passou a propor
novos modos de pensar não apenas o processo terapêutico com o paciente,
mas também a postura psicoterápica dos profissionais de psicologia. Nesse
sentido, tal abordagem se mostrou uma alternativa que permitia pensar o
ser humano em sua totalidade, ou melhor, na totalidade de sua experiência
frente ao fenômeno: sua angústia, sua solidão, sua responsabilidade, seu
vir-a-ser e seus potenciais.
Assim, as correntes filosóficas existencialistas e fenomenológicas de-
sempenharam um importante papel em relação a essa nova corrente da
psicologia, que a partir das décadas de 1940, 1950 e 1960 passaram a interessar
estudiosos não apenas franceses, mas também de outros países, como os
norte-americanos. Nesse contexto, a psicologia aproximada de tais correntes
de pensamento levou o nome de fenomenologia psicológica, que se concen-
trava em pensar o procedimento psicológico a partir das experiências sem que,
de antemão, houvesse um ponto de partida determinado. Ou seja, tratava-se
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de um procedimento que privilegiava a experiência como possibilidade de


abertura para se olhar o fenômeno de forma despida de preconceitos.
Vale considerar que tal eixo da psicologia não fora influenciado somente
pela fenomenologia hursserliana ou heideggeriana, ou apenas pelo existen-
cialismo sartreano, mas é inestimável a importância desses percussores no
que veio a se desenvolver como psicologia humanista e existencial. Ao falar
de Sartre, é necessário ter em mente que as influencias mais presentes em
sua obra, para além de Heidegger, são os pensadores atrelados à dialética,
ao materialismo e ao historicismo histórico.
Nesse sentido, o humano deve ser pensado a partir de sua história: todas
as suas relações, o seu contexto temporal, suas condições econômicas e
tudo aquilo de fundamental que molda a sua vida. A isso Sartre chamou de
antropologia estrutural e histórica, que nada mais é que reconhecer que o ser
humano deve ser pensado a partir da estrutura social, econômica e moral em
que está inserido, bem como a partir do existencialismo como possibilidade
de se abrir às escolhas e às suas responsabilidades. É nesse aspecto que
Sartre se aproxima mais do materialismo histórico em oposição ao idealismo
hegeliano, pois, tal como Marx, defende que antes de conhecer devemos nos
preocupar em agir, deixando o conhecimento para algo que decorre da ação,
dando supremacia à práxis. Assim, Sartre entende que, na medida em que
os fenômenos relativos à humanidade não podem ser reduzidos somente ao
conhecimento, devem então ser vivenciados.
Tal modo de entender a existência humana estabelece uma urgência pela
ação: é necessário agir para modificar a realidade, para construí-la. Porém,
Sartre entende que essa ação, submetida às suas escolhas, está relacionada
ao seu contexto de forma ampla. Por isso, para compreender o ser humano,
deve-se partir de sua realidade concreta, isto é, de sua história a partir de
um movimento dialético para com ela. Nesse âmbito, é tarefa da psicologia
elucidar os modos pelos quais os seres humanos se constituem, seja pelo
contexto histórico-cultural, pelas tradições ou relações familiares. Para tanto,
Sartre argumenta que a psicologia deve consistir em um método capaz de
investigar, desde a infância, o porquê de um sujeito se estabelecer em deter-
minados papéis sociais, seja afirmando as estruturas em que está inserido,
seja negando-as. Pensar a partir da relação estabelecida entre o indivíduo
e a sociedade é abrir as chaves para a compreensão da existência humana.
Outro pensador essencial para a reflexão e aproximação entre o pensa-
mento existencial e a psicologia foi Martin Buber (1878–1965). Sua obra de mais
impacto sobre o pensamento psicológico e psicanalítico foi Eu e Tu (1923).
Nela, Buber defende que existem duas formas básicas de existir no mundo:
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Eu–Tu e Eu–Isso. Contudo, tais formas não consistem em dois tipos de seres,
de modo classificatório. Na verdade, trata-se de formas de existir que estão
presentes em todos nós e que são acionadas frente à realidade que sempre
cobra de nós uma ação.
Nesse aspecto, Buber identifica uma distinção entre esses dois tipos
básicos de ação existencial. Primeiramente, um Eu que se relaciona com um
Tu é um Eu que busca se integrar ao mundo, à realidade em que vive. Esse
Eu é lançado à alteridade, à exterioridade e deixa-se aberto a ela; contudo,
é impossível ao ser humano viver aberto sempre a essa atitude de encontro
ao estrangeiro, pois nem sempre nos sentimos confortáveis, de certa forma,
em nos “negar” frente ao todo ou ao outro que vem. Já o Eu que se relaciona
com Isso é aquele mais objetivo, que precisa da concretude da realidade do
hábito, do reconhecimento. É no Eu—Isso que refletimos sobre o que vivemos.
Para Buber (2001), toda a experiência vivida no encontro intenso do Eu–Tu
requer uma reflexão. Por isso, é no Eu–Isso que o sujeito consegue se organizar
em relação à produção de significados e sua relação com o mundo. É como
se o Eu–Tu possibilitasse a experiência e o Eu–Isso desse manutenção a tal
experiência. Nesse sentido, o que fundamentaria o processo psicoterápico
seria a alteridade que se assenta verticalmente na relação entre sujeitos.
Várias abordagens decorreram do modo Eu–Tu como uma relação integra-
tiva e formativa da pessoa. É pelo encontro entre um ser humano e outro que
se estabelece a alteridade extrema enquanto possibilidade de acolhimento
do outro. Nesse sentido, pode-se dizer que, ao nos voltarmos ao outro, nos
voltamos para o que nos distancia e nos aproxima em relação à experiência
da existência humana, trazendo a possibilidade de crescimento, de respon-
sabilização e de superação.
Por esse motivo, a psicoterapia humanista e existencial traz uma visão
holística ao processo psicoterápico, pois é necessário olhar e analisar a
totalidade da experiência, e não fragmentá-la de modo que um aspecto seja
superior a outro. Dessa forma, dignifica-se a experiência com o fenômeno, e
os emaranhados de relações e sentimentos que com ele surgiram. No mesmo
sentido, tal abordagem permite que o Eu se reconheça no Tu e também se
revele nesse outro, pois o ser humano é um ser com os outros e com o mundo.
Trata-se, portanto, de uma abordagem que acontece somente na experiência
da relação, do diálogo e da alteridade.
Nesse contexto, a filosofia de Buber influenciou o modo como várias
correntes e abordagens psicoterápicas pensam seus processos, incluindo a
abordagem centrada na pessoa (ACP) a gestaltterapia (com ênfase na respon-
Fenomenologia, existencialismo e humanismo 25

sabilidade e experiências individuais) e a logoterapia (com ênfase no trabalho


sobre o sentido da vida em relação ao paciente).
Conclui-se que o humanismo possibilitou à psicologia humanista existen-
cial pensar o processo terapêutico de forma mais humanizada. Esse foi um
entre inúmeros ganhos que a psicologia e a filosofia tiveram ao deixarem-
-se adentrar no terreno de cada saber. Contudo, privilegiando a elaboração
humanística e existencial que a filosofia trouxe à psicoterapia, encontramos
uma prática que pode se tornar mais comprometida com a construção e a
condição humanas, bem como as relações históricas que a definem. Cabe
ressaltar que, mesmo privilegiando as interpretações sartreana e buberiana,
outros existencialistas e fenomenologistas se dedicaram a pensar e a enri-
quecer ambos os campos de conhecimento de modo interseccional. Após os
eventos do século XX, recuperar o humano em suas capacidades éticas, de
sentido, de humanidade, se mostrou, e se mostra, urgente.
Ao longo deste capítulo, você viu como a fenomenologia surgiu num mo-
mento de crise deixado pelo pensamento moderno, de caráter cientificista e
mecanicista. Também estudou a forma como a fenomenologia passa a pensar
o mundo e a realidade e qual o papel do sujeito e da verdade nesse contexto.
O existencialismo decorreu do pensamento fenomenológico e passou a pri-
vilegiar a existência humana e todas as suas experiências a partir de uma
postura ética, social, cultural e política. No âmbito das teorias psicológicas,
como proposta terapêutica, vimos ainda a terceira força da psicologia, e
você acompanhou como a fenomenologia e o existencialismo trouxeram uma
abordagem mais humanista para a psicologia.

Referências
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