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existencialismo
e humanismo
Mayara Joice Dionizio
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
Introdução
Já no início do século XX, a inquietação com o excessivo cientificismo e racio-
nalismo provenientes da modernidade se anunciava. No século prévio, vários
pensadores já haviam dado início a um movimento de questionamento sobre
as verdades inquestionáveis da modernidade, com destaque para Friedrich
Nietzsche e Søren Kierkegaard. Tratava-se da chamada crise de fundamento,
que tornava evidente a necessidade de um conhecimento que considerasse o
sentido da existência, os valores humanos e o conhecimento perspectivo. Nesse
contexto, Husserl foi o primeiro filósofo a apontar a necessidade de se olhar para
os fenômenos enquanto tais e vivenciar essa experiência despida de verdades
anteriores. Desse modo, foi fundada a fenomenologia, que posteriormente viria
a possibilitar o surgimento de filosofias outras que levariam em consideração
a experiência humana como fundamento para se pensar a existência.
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[a] velha e conhecida questão, com que se pretendia colocar os lógicos contra a
parede e forçá-los ou a deixar-se girar em círculos miseravelmente, ou a admitir
a sua incerteza e, portanto, a total vaidade de seu saber, é a seguinte: o que é a
verdade? A definição nominal da verdade, a saber, que ela é a concordância do
conhecimento com o seu objeto, está aqui dada e pressuposta; é preciso saber,
porém, qual é o critério universal e seguro da verdade de cada conhecimento
(KANT, 2015, p. 100).
de sentido sobre a vida, mas sim que a vida exige um outro sentido, um que
ultrapasse o ideal de verdade “socrático-platônico”. Desse modo, Nietzsche
destaca a crise do ser humano moderno em sua ânsia por estabelecer uma
verdade absoluta sobre tudo.
Apesar de Nietzsche ter contribuído para as grandes questões pós-mo-
dernas, tais como apresentadas até aqui, foi com Edmund Husserl (1859–1938)
que a fenomenologia se estabeleceu. Ao fim do século XIX, o jovem Husserl,
entusiasmado com seus estudos em matemática, astronomia e filosofia,
começou a assistir os cursos do filósofo Franz Brentano e a pensar a noção
de intencionalidade por meio dos fenômenos psíquicos e físicos. Em 1900,
Husserl publicou Investigações lógicas, obra em que aparece sua crítica ao
naturalismo positivista, uma vez que tal movimento buscava aplicar métodos
científicos das ciências naturais em relação ao comportamento e às ques-
tões humanas. Para Husserl (2012), o ponto de partida da reflexão deve ser
as coisas mesmas, de modo que devamos ser capazes de separar aquilo do
pensamento daquilo que está sendo observado e pensado.
Para Heidegger (2005), o que deve ser buscado enquanto fenômeno que
compete à fenomenologia é o ser, isto é, não se trata de retomar algum ente
em questão a fim de melhor compreendê-lo, mas antes ter um trabalho
hermenêutico, segundo o qual se analise a fundo a existência do ente que
compreende a si como ser. Se Husserl fundamenta sua fenomenologia a partir
da consciência em seu ato intencional, é necessário, segundo Heidegger
(2005), que o ser dessa consciência antes seja delimitado, pois do contrário a
consciência pode perder-se em seus próprios caminhos. Para tanto, também
se mostra necessário o retorno por meio de uma ontologia fundamental,
segundo a qual o questionamento sobre o sentido do ser — (dasein, ser que
está no mundo e pode se questionar sobre o sentido do ser) — seja o meio pelo
qual opere uma desconstrução da vida entificada e ordinária que aproxime
os entes de seus seres. Nesse sentido, a fenomenologia heideggeriana faz
uso da ferramenta hermenêutica com vistas a aprofundar essa análise sobre
o ser que vive em meio aos entes. A filosofia passa, então, a ter o papel de
conduzir o humano à questão mais fundamental: qual o sentido do ser? E,
ao colocar o sentido da vida como central, situa a compreensão sobre a vida
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Existencialismo
Em 1927, a obra mais importante de Martin Heidegger foi publicada: Ser e
tempo. Nela, Heidegger concentra toda a sua fenomenologia existencial tendo
como principais temáticas o sentido do ser, a diferença ontológica (que é a
diferença entre ser e ente — o ser é um ente que pode refletir sobre a sua
existência, diferente dos demais entes) e a temporalidade (HEIDEGGER, 2012).
Em pouco tempo, a obra de Heidegger foi traduzida para o francês. Nesse
período, Alexandre Kojève, filósofo russo, deu início aos seus cursos na École
des Hautes Études, na França, onde apresentou uma leitura distinta daquelas
que vinham sendo feitas em relação à obra heideggeriana. Kojève aproxi-
mou a filosofia heideggeriana da filosofia de Friedrich Hegel em relação às
temáticas da morte, da temporalidade e da história. Nesse sentido, Kojève
entendia que era possível estabelecer uma ligação entre o ser para a morte
de Heidegger — somos todos seres finitos, a morte dá sentido à vida, ao passo
que estabelecemos projetos, coisas que queremos realizar, porque sabemos
que não somos seres infinitos, e nosso tempo, nossa temporalidade, é finito,
todos morreremos — tal como se a morte enquanto último acontecimento em
nossas vidas tivesse a mesma função de síntese na dialética hegeliana. “Para
Hegel, a essência não independe da existência. Por isso o homem não existe
fora da história. A fenomenologia de Hegel é, portanto, existencial, como a
de Heidegger. E deve servir de base a uma ontologia” (KOJÈVE, 2002, p. 37).
Em Hegel, a morte aparece enquanto negação da vida, contrária à vida,
e por isso como motivadora da ação, dando assim à negatividade o impulso
para o desenlace da história. Por sua vez, a história, para Hegel (2002), é
construída por seres humanos livres e universais que conseguem, por uma
astúcia da razão, repensar seu tempo e transformar o meio em que vivem.
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divino, Sartre não quer dizer que somos livres para agir de acordo com o
nosso desejo independente do mundo e da sociedade.
Nesse aspecto, Sartre distingue duas subjetividades: aquela que diz res-
peito às escolhas individuais e aquela que constitui a base subjetiva para
o existencialismo sartreano: “não existe um de nossos atos sequer que,
criando o homem que queremos ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem
do homem conforme julgamos que ele deva ser” (SARTRE, 2014, p. 20). Ou seja,
há uma responsabilidade individual na escolha de cada um de nós, pois ao
escolhermos, escolhemos pela humanidade inteira, escolhemos uma imagem
de humano que é válida para todos que compartilham o nosso tempo. Por
fim, o projeto sartreano de ser humano condenado à liberdade se configura
um projeto universal. A humanidade, para Sartre (2014), constrói-se a partir
das escolhas individuais de cada indivíduo.
Foi em meio a essas duas correntes que surgiu então a chamada terceira
força da psicologia, que consiste na psicologia humanista e existencial. Essa
nova forma de pensar a psicologia emergiu também como oposição aos modos
mecanicistas, próprios da modernidade, pelos quais se dava a abordagem
da teoria comportamental e em contraponto à visão determinista e pato-
lógica da psicanálise. A psicologia humanista e existencial passou a propor
novos modos de pensar não apenas o processo terapêutico com o paciente,
mas também a postura psicoterápica dos profissionais de psicologia. Nesse
sentido, tal abordagem se mostrou uma alternativa que permitia pensar o
ser humano em sua totalidade, ou melhor, na totalidade de sua experiência
frente ao fenômeno: sua angústia, sua solidão, sua responsabilidade, seu
vir-a-ser e seus potenciais.
Assim, as correntes filosóficas existencialistas e fenomenológicas de-
sempenharam um importante papel em relação a essa nova corrente da
psicologia, que a partir das décadas de 1940, 1950 e 1960 passaram a interessar
estudiosos não apenas franceses, mas também de outros países, como os
norte-americanos. Nesse contexto, a psicologia aproximada de tais correntes
de pensamento levou o nome de fenomenologia psicológica, que se concen-
trava em pensar o procedimento psicológico a partir das experiências sem que,
de antemão, houvesse um ponto de partida determinado. Ou seja, tratava-se
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Eu–Tu e Eu–Isso. Contudo, tais formas não consistem em dois tipos de seres,
de modo classificatório. Na verdade, trata-se de formas de existir que estão
presentes em todos nós e que são acionadas frente à realidade que sempre
cobra de nós uma ação.
Nesse aspecto, Buber identifica uma distinção entre esses dois tipos
básicos de ação existencial. Primeiramente, um Eu que se relaciona com um
Tu é um Eu que busca se integrar ao mundo, à realidade em que vive. Esse
Eu é lançado à alteridade, à exterioridade e deixa-se aberto a ela; contudo,
é impossível ao ser humano viver aberto sempre a essa atitude de encontro
ao estrangeiro, pois nem sempre nos sentimos confortáveis, de certa forma,
em nos “negar” frente ao todo ou ao outro que vem. Já o Eu que se relaciona
com Isso é aquele mais objetivo, que precisa da concretude da realidade do
hábito, do reconhecimento. É no Eu—Isso que refletimos sobre o que vivemos.
Para Buber (2001), toda a experiência vivida no encontro intenso do Eu–Tu
requer uma reflexão. Por isso, é no Eu–Isso que o sujeito consegue se organizar
em relação à produção de significados e sua relação com o mundo. É como
se o Eu–Tu possibilitasse a experiência e o Eu–Isso desse manutenção a tal
experiência. Nesse sentido, o que fundamentaria o processo psicoterápico
seria a alteridade que se assenta verticalmente na relação entre sujeitos.
Várias abordagens decorreram do modo Eu–Tu como uma relação integra-
tiva e formativa da pessoa. É pelo encontro entre um ser humano e outro que
se estabelece a alteridade extrema enquanto possibilidade de acolhimento
do outro. Nesse sentido, pode-se dizer que, ao nos voltarmos ao outro, nos
voltamos para o que nos distancia e nos aproxima em relação à experiência
da existência humana, trazendo a possibilidade de crescimento, de respon-
sabilização e de superação.
Por esse motivo, a psicoterapia humanista e existencial traz uma visão
holística ao processo psicoterápico, pois é necessário olhar e analisar a
totalidade da experiência, e não fragmentá-la de modo que um aspecto seja
superior a outro. Dessa forma, dignifica-se a experiência com o fenômeno, e
os emaranhados de relações e sentimentos que com ele surgiram. No mesmo
sentido, tal abordagem permite que o Eu se reconheça no Tu e também se
revele nesse outro, pois o ser humano é um ser com os outros e com o mundo.
Trata-se, portanto, de uma abordagem que acontece somente na experiência
da relação, do diálogo e da alteridade.
Nesse contexto, a filosofia de Buber influenciou o modo como várias
correntes e abordagens psicoterápicas pensam seus processos, incluindo a
abordagem centrada na pessoa (ACP) a gestaltterapia (com ênfase na respon-
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Referências
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EWALD, A. Fenomenologia e existencialismo: articulando nexos, costurando sentidos.
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HEIDEGGER, M. Sobre a essência da verdade. São Paulo: Nova Cultural, 2005. (Coleção
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HUSSERL, E. A filosofia como ciência de rigor. Coimbra: Atlântida, 1965.
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