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RELATÓRIO FINAL REFERENTE À EXPERIÊNCIA DO INTERNATO

Camila Coelho Albergaria

Isadora Pires de Oliveira

Lucas Ferreira Gomes

Curso de Psicologia da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública

EBP828 - Internato Rotatório – Psicologia na Atenção Terciária à Saúde

Me. Maria Ivana Amado Chaves Guerra

10 de abril de 2024
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INTRODUÇÃO

O internato carrega consigo propósitos que exploram as potencialidades dos

estudantes e professores envolvidos. Para além de uma etapa obrigatória à graduação, o

contato com o campo, através de pequenos grupos e no formato rotatório, estimula a

implicação do graduando enquanto sujeito ativo, profissional e socialmente. Daltro e

Pondé (2017), sugerem que a partir dessa conscientização, o internato também possibilita

o envolvimento dos discentes com as diretrizes da Saúde Pública, assumindo, para além

de conceitual e prático, um compromisso social e político. Contemplando as dimensões

técnicas, teóricas e atitudinais,

Conforme sugere o Conselho Federal de Psicologia (2022), a dinâmica de

funcionamento da atenção terciária à saúde é multidimensional e demanda enlace

complexo de tecnologias, especialidades e alto investimento financeiro. Pode-se dizer que

o fazer psicológico deste nível é amplo, abarcando fatores diversos, como: a compreensão

do paciente enquanto sujeito bio-psico-socio-espiritual; redução dos impactos causados

pela iminência de um procedimento cirúrgico, como estresse, ansiedade, modificações na

rotina e nas relações familiares; delinear e fortalecer a rede de apoio do paciente; auxiliar

no manejo de inquietações que surgem frente ao processo de saúde-doença e à

hospitalização; assumindo, diante disto, compromisso com o caráter preventivo,

possibilitado pelas intervenções. (Assis & Figueiredo, 2019).

Diante disso, o internato na atenção terciária à saúde experienciado nesse bimestre

teve como objetivo oferecer atendimento psicológico pré e/ou pós-operatório para

pacientes que realizariam cirurgias oftalmológicas e seus respectivos acompanhantes, no

Hospital Humberto Castro Lima (HHCL), localizado no bairro do Canela, em Salvador

(Bahia). Nesse sentido, o papel da psicologia no contexto hospitalar em questão seria de

compreender os aspectos psíquicos, reações subjetivas, cognitivas e comportamentais


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frente ao adoecimento visual enfrentado pelos pacientes em conjuntos com seus sistemas

familiares, possibilitando escutar ativamente as demandas trazidas pela instituição e

público atendidos. Além disso, oferecer um cuidado humanizado em saúde, implicando

do corpo discente o desenvolvimento de habilidades, competências e atitudes teórico-

conceituais e práticas para a realização de intervenções assertivas. Tudo isso ocorreu sob

a supervisão da orientadora que acompanhou todo os processos, desde os estudos

basilares em sala de aula até orientações em casos de maior delicadeza e de difícil manejo.

A princípio, é importante inferir a existência de um percurso teórico que se traçou

em paralelo às intervenções realizadas no hospital em questão, costurando as propostas

com aquilo que já era de entendimento teórico robusto pelos estudantes, servindo para

construção de ferramentas que auxiliassem a atuação laboral. Esse trajeto se inicia

revistando instrumentos teóricos como exame de saúde mental, entrevista psicológica e

raciocínio clínico, todos entendidos como ferramentas que conduziriam nossa escuta nos

atendimentos, demonstrando a relevância de congregar a difícil tarefa de, num único

atendimento, compreender de maneira ampla o funcionamento global do atendido. Sendo

necessário de nós indagar adequadamente e estar atento às comunicações não verbais

expostas nos suportes psicológicos prestados, bem como o desenvolvimento de um

modelo interno próprio de condução que abarcasse um pensar clínico diagnóstico, social

e interventivo, contextualizado com as situações apresentadas em cada caso.

Outrossim, dentre o escopo de nossas intervenções, uma que se apresentou

fundamental em nossa prática foi a psicoprofilaxia cirúrgica, tanto em pacientes como em

seus acompanhantes. De acordo com Mitchell (1997), o método mais comum para

redução do stress pré-cirúrgico é a preparação psicológica. Desse modo, a prática

psicoprofilática tem enfoque preventivo com a finalidade de evitar que a circunstância da

cirurgia e da doença traga prejuízos para o psiquismo, diminuindo as chances de

complicações orgânicas e psicológicas.


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Para que essa intervenção fosse possível era necessário entender sobre os

principais acometimento oftalmológicos dos pacientes cirúrgicos, suas sintomatologias e

intervenções plausíveis em cada caso. Iniciando pela catarata, caracterizada como uma

opacificação do cristalino, lente natural do olho humano, se tinha como principal técnica

cirúrgica adotada a Facoemulsificação, que visava substituir essa lente danificada por

uma artificial, sendo caraterizada como uma operação simples e rápida. Já o glaucoma é

resultado de uma mudança da pressão intra-ocular que resultava em um acúmulo de um

humor aquoso, tendo a Trabeculectomia como procedimento cirúrgico a finalidade de

realizar um microcorte auto selante para drenagem desse líquido e consequente

estabilização do quadro em questão, não restaurando a visão perdida, mas impedindo sua

piora. No que tange as retinopatias, elas variam de acordo ao ocorrido com esse

componente do globo ocular, indo desde inflamação até descolamento, tendo técnicas

específicas para cada caso apresentado. Em todos esses quadros existe um

comprometimento da acuidade visual que traz a necessidade da cirurgia, já que

medicamentos tópicos e orais não surtem efeito.

Dando continuidade ao trajeto teórico feito pelos estudantes, foi investigado como

os sistemas familiares e seus respectivos membros são afetados pela hospitalização e

adoecimento, possibilitando compreender de maneira aprofundada as ferramentas

simbólicas e de enfrentamento utilizadas por cada um.

Adentrando a conjuntura do Hospital Humberto Castro Lima (HHCL), a

prevalência de pacientes idosos se fez nítida, posto que esse público tem maior tendência

aos referidos adoecimentos oftalmológicos lá tratados. Tendo isso em vista, foram

realizados discussões, atividades e estudos acerca da importância do atendimento ao

idoso, dadas as circunstâncias do processo de envelhecimento e os atravessamentos

biopsicossociais diante dessa realidade. A nível individual, a terapia com idosos tem como

objetivo a promoção à saúde do idoso, buscando adentrar e entender o contexto em que


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está inserido, sua história de vida e emoções, além de visar as particularidades de cada

sujeito. De acordo com Ribeiro (2015), faz-se necessária a compreensão ampliada sobre

o processo de envelhecimento e as especificidades relativas ao adoecimento nessa fase da

vida para propiciar um atendimento de qualidade. A terceira idade é marcada por diversas

mudanças, sendo elas fisiológicas, psíquicas, sociais e/ou espirituais, porém a repercussão

dessas se diferencia para cada indivíduo, sendo importante considerar sua subjetividade

como parte do processo terapêutico. A fase senil, naturalmente, é acometida também por

perdas e lutos em aspectos distintos, não somente relacionados à morte diretamente. O

luto pelas perdas de pessoas próximas, da funcionalidade do corpo, de laços afetivos e da

independência em atividades laborais ou funcionais são comuns dentre as queixas de

pacientes idosos nos serviços de psicologia. Levando em conta o ambiente hospitalar, o

atendimento psicológico visa o acolhimento e a escuta, investigando a rede de suporte do

idoso, seu histórico de adoecimento e realizando o manejo de demandas subsequentes

com intervenções diretas e breves elaboradas no caso a caso, tomando em consideração

as limitações na estrutura do atendimento psicológico no hospital.

Tendo em vista esse cenário, além dos atendimentos individuais, a psicoterapia de

grupo também se faz presente dentro do contexto hospitalar. A princípio, o objetivo dela

é reunir pessoas com experiências semelhantes ou inseridas em um mesmo cenário,

visando a expressão de suas emoções, sentimentos e dúvidas em um ambiente de

acolhimento e apoio, onde há um mediador para conduzir o grupo e as participações.

Nessa modalidade de psicoterapia, podem ser utilizados métodos e técnicas diversas que

devem ser adaptados de acordo com o perfil e demanda do grupo. Na psicoterapia grupal

no hospital, em especial no HHCL, a psicoeducação também é utilizada como estratégia,

expondo aos pacientes sobre os respectivos adoecimentos, explicando os procedimentos

a que serão/foram submetidos e os cuidados que devem ser tomados após o processo. O

fator de identificação facilita a interação dos pacientes e as trocas, tornando a dinâmica


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mais abrangente e aumentando a adesão dos indivíduos no processo. Ao iniciar a

psicoterapia de grupo, o paciente confronta-se não só com situações da sua vida, mas

também com as dos outros membros. De acordo com Yalom (1970), a universalidade dos

desafios humanos e a experiência compartilhada dentro do grupo fornecem validação,

apoio e um senso de pertencimento que podem promover uma transformação pessoal

profunda. Nessa conjuntura, a interação dos membros do grupo possibilita a expansão da

própria compreensão de si e de novas perspectivas, surtindo efeito terapêutico a partir das

intervenções propostas pelo condutor, que irá analisar o funcionamento e dinâmica do

grupo em busca de alinhar os pontos em comum e entender as demandas que surgem no

processo.

DESCRIÇÃO DOS CASOS CLÍNICOS

ESTUDANTE: Camila Albergaria

A paciente M, 76 anos, foi atendida no dia 09/04/2024, no Hospital Humberto Castro

Lima. Aguardava, no ambulatório pré-cirúrgico, cirurgias múltiplas de FACO e

Trabeculectomia, porém relatou apenas a presença da Catarata. Foi realizada a

psicoprofilaxia cirúrgica, utilizando como método a psicoeducação e explicando-a de

forma didática sobre seu quadro e o procedimento realizado na operação. M relatou estar

tranquila e aparentemente instruída com relação à cirurgia. A paciente apresentou grande

demanda de fala e encontrava-se acelerada. Narrou, inicialmente, um episódio recente de

luto pelo falecimento da irmã mais nova, ocorrido uma semana antes, de quem expôs ser

muito próxima. Perante o relato, afirmou esquivar-se do que a faria ter lembranças do

ocorrido. Para além, M apontou outras situações que envolviam a morte de pessoas

próximas, sendo elas um filho, de quem afirmou ter tido dificuldade para conseguir

engravidar e tê-lo; sua mãe, de quem disse ser muito próxima e “grudada”; e seu marido,
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vítima de assassinato; estes ocorreram, aparentemente, no mesmo ano, “um atrás do

outro”. Diante desses lutos, a paciente alegou uma mudança de humor e postura, onde

tornou-se “grossa”, “amarga” e “ignorante” com as pessoas, como aparente mecanismo

de defesa frente à angústia causada pelos falecimentos de pessoas importantes em sua

vida. Diante disso, foi utilizada a técnica da cadeira vazia, referente à sua irmã e à sua

mãe. A paciente se mostrou supostamente resistente ao falar sobre alguns dos

acontecimentos, ‘atropelando’ as intervenções e desviando da linearidade dos casos. M

declarou a religiosidade como forma de canalizar a dor e como foi acolhida através da fé,

citando uma mudança na sua forma de agir frente ao outro, tornando-se mais “calma” e

“tranquila”. Ademais, a paciente afirmou ser ansiosa e, por determinado período, fazer

uso de medicação para dormir. Relatou proximidade com a família, principalmente sua

filha L, sua neta e sua sobrinha e morar com seu cônjuge, aparentando ter uma rede de

apoio sólida. Ao final, para manejar a ansiedade e celeridade da paciente, foi feito

exercício de respiração e ressaltada a indicação de acompanhamento psicológico, o qual

foi bem recebido pela paciente, que incentivou que fosse conversado com L, sua filha e

acompanhante para a cirurgia, o que foi feito em seguida. L trouxe complementos

relacionados à história de vida e situação da paciente e foi dialogado sobre o

encaminhamento para acompanhamento psicológico de M, que demonstrou interesse em

dar continuidade à sugestão. Oferecido atendimento psicológico pela estudante Camila

Coelho Albergaria, da BAHIANA, sob supervisão da professora Maria Ivana Guerra.

ESTUDANTE: Isadora Pires

A Paciente C., 64 anos, foi atendida no dia 01/04/24 no Hospital Humberto Castro Lima.

Encontrava-se no contexto pré-cirúrgico oftalmológico de catarata, sentindo-se bastante

ansiosa quando solicitou o serviço de psicologia. Encontrava-se lúcida, responsiva e


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apreensiva. Sinalizou ter dificuldade para lidar com o ambiente hospitalar, embora tenha

realizado três outros procedimentos em outras partes do corpo para retirada de tumores

benignos. Informou que pensamentos catastróficos estavam presentes quando lembrava

que iria realizar a operação, por conta de um trauma familiar recente, ocorrido no cenário

hospitalar: a perda de sua avó. Relatou que desde o acontecido tem sentido frequente

medo de morrer, como um possível castigo do divino pelo mal que possa ter feito a

pessoas que fizeram-na sofrer, como seu ex-marido. Em adição, trouxe à tona que a maior

figura de afeto de sua vida havia sido esta avó, mostrando-se profundamente mobilizada

nos momentos em que falava sobre ela. Notificou que a ansiedade sentida lhe trazia

desconforto geral, taquicardia, tensão muscular e crise de choro, e que passou a sentir em

situações diversas do seu cotidiano, tendo sido necessário ingerir uma medicação para se

acalmar durante a madrugada anterior à cirurgia. Mostrou-se desesperançosa acerca de

uma solução para seus pensamentos, solicitou que algo fosse feito para aliviar a ansiedade

que sentia e demonstrou rede de apoio estruturada. Comunicou também que seus filhos

saíram de casa, que tem sido delicado lidar com isto e com o diabetes e a pressão alta.

Para as questões de saúde física e mental foi realizada psicoeducação e encaminhamento

profissional. Para o manejo da ansiedade, foram realizadas técnicas de respiração,

visualização e estímulo à vivência do momento presente. Para elaborar o luto da avó, foi

realizada técnica de psicodrama. Tais serviços, em adição da escuta ativa, acolhimento e

psicoprofilaxia cirúrgica, foram ofertados pela estudante de Psicologia da BAHIANA

Isadora Pires de Oliveira sob supervisão da professora Maria Ivana Guerra.

ESTUDANTE: Lucas Ferreira

A acompanhante F, 22 anos, foi atendida no dia 11/03/2024 no Hospital Humberto Castro

Lima. Era irmã da paciente que realizaria a cirurgia naquele dia, uma outra jovem de 28
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anos, com quadro de saúde bastante comprometido devido a condição diabética e

problemática renal crônica apresentada. Encontrava-se lúcida, porém um pouco

preocupada sobre a operação cirúrgica da irmã, uma vez que já havia tentado duas vezes

e não conseguido êxito devido à pressão alta e glicose desregulada da paciente nas

tentativas, impossibilitando a realização do procedimento por riscos de complicações.

Ambas residiam no município de Macururé, próximo de Paulo Afonso, 9h de distância

da capital baiana de carro, trazendo reações de revolta diante das circunstâncias

apresentadas e do receio de não fazer a cirurgia mais vez, gerando mais stress e fadiga

para F. A dinâmica de cuidados era sobrecarregada em F, apesar de terem outros 4 irmãos

e mãe, que segundo ela deveriam revezar nos cuidados necessários para a manutenção e

promoção de saúde da irmã adoecida. Foi realizada a psicoprofilaxia cirúrgica, mediante

psicoeducação do quadro clínico de catarata congênita apresentada pela irmã de F, bem

como o método interventivo utilizado, FACO, diminuindo o medo e percepção negativa

sobre a operação. Durante o atendimento, foi possível notar tristeza, angústia, raiva e

sentimento de culpa em F, aparecendo como produto de abdicar de sua vida em prol de

acompanhar sua irmã nos procedimentos de saúde que essa realizava três vezes na semana

de hemodiálise na cidade de Paulo Afonso, 3h do município que essas moram. Logo, isso

trazia como consequência a impossibilidade de estudar e trabalhar e construir vínculos

institucionais alinhados com suas expectativas para o próprio futuro profissional, tendo

como efeito as sensações e emoções expressas anteriormente. Houve a possibilidade de

demonstrar a relevância da psicologia no contexto em questão, acolhendo o sofrimento

manifesto pela acompanhante, além da tentativa de traçar algumas atividades e atitudes

que estivessem ao alcance de F naquele momento, favorecendo um cuidado maior consigo

mesma. Ao fim do suporte psicológico prestado ela mostra-se agradecida pelo

atendimento realizado, bem como pelas reflexões trazidas. Um ponto que chama atenção

nesse caso é a presença de pensamentos e emoções contrastantes e até paradoxais, pois


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ao mesmo tempo que se deseja continuar cuidando da irmã, se rumina e reclama da

continuidade nisso, muito também ocasionada pela presença quase que exclusiva dessa

para com os cuidados da irmã. Finalizado atendimento psicológico ofertado por Lucas

Ferreira, estudante de psicologia da BAHIANA, sob supervisão da orientadora Maria

Ivana Guerra.

ARTICULAÇÕES TEÓRICO-PRÁTICAS

Concomitantemente às práticas no Hospital Humberto Castro Lima, foram

realizadas trocas de conhecimento entre o grupo e a professora, através de exposições do

conteúdo de artigos disparadores, relacionados a temáticas que surgiram posteriormente

em campo. Foi imprescindível acumular conhecimentos teóricos para identificar as

demandas e conduzir os atendimentos, sendo notória a recorrência de temáticas

específicas e muitas vezes indissociáveis, que faziam parte da dimensão subjetiva,

inclusive, dos três pacientes relatados no presente documento. A relação que cada um

deles estabeleceu com o hospital e com o procedimento partia da relação que tinham com

o adoecimento e suas implicações. Não foram incomuns relatos que trouxeram as

condições de saúde enquanto disparadoras de alterações comportamentais e relacionais,

sobretudo diante da família.

Sendo essa a entidade basal, Oliveira e Sommerman (2008) caracterizam-na como

o principal sistema na construção da identidade do sujeito, ou seja, é dentro do núcleo

familiar que o desenvolvimento pessoal ocorre. Diante disto, é esperado que existam

momentos de conflitos e reconfigurações nesta estrutura, sendo que o adoecimento pode

ser um evocador para tal, ou mesmo intensificar uma “crise” que já esteja posta. Frente a

esse cenário, o nível de impacto nas condições psicológicas do núcleo familiar depende

de fatores como: perfil de enfrentamento de cada membro, forma de manejar conflitos


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psíquicos durante períodos de crises, e do vínculo existente entre os subsistemas

familiares. Assim, o papel do psicólogo é intervir de modo diferenciado e abrangente nas

demandas que surgem, fortalecendo os laços familiares, mobilizando recursos adaptativos

favoráveis às intervenções realizadas e servindo de suporte emocional e defesa da

subjetividade da família hospitalizada. Esta, por sua vez, frequentemente passa por

experiências angustiantes e ameaçadoras da continuidade da vida de um dos seus

componentes (Romano, 1997). Sobre isso, a despersonalização é um dos fatores que

atacam a integridade subjetiva do paciente que se encontra hospitalizado e acaba

ressoando para o resto da família, assim sendo um ponto de intervenção a ser observado

pelo psicólogo que esteja atuando nesse contexto profissional.

No decorrer dos atendimentos citados no tópico anterior, a temática manifestou-se em M.

ao narrar em sua história de vida relações de muita proximidade com membros da sua

família, onde foram criados fortes laços de cuidado mútuo. Relatou ter uma neta de quem

criou e uma sobrinha, filha da sua irmã, que a estabeleceu como figura de apego. A

paciente relatou que, por ter sido a última dos irmãos a se casar e sair de casa, construiu

um vínculo afetivo muito forte com sua mãe, de quem afirmou sentir falta mesmo após

20 anos de sua morte. M., em grande parte do tempo de atendimento, ressaltou também

um elo significativo com uma de suas irmãs, falecida uma semana antes. Ela afirmou que

ambas dividiam roupas, saíam juntas e estavam constantemente em contato. A paciente

expôs a mobilização que a acometeu no momento de internamento da irmã, antes do

falecimento, em que mencionou seu sofrimento diante do cenário, alterando sua dinâmica

familiar e rotina, o que reforçou o vínculo posto entre as duas.

Já C., relatando ter cuidado de seus filhos com poucos recursos, trouxe que seu

maior sonho era vê-los formados, e que a saída dos dois de sua casa, após conseguirem o

diploma, fez com que se vissem com menor frequência, o que lhe deixava triste. Ao falar

sobre eles, demonstrou que possuíam forte relação afetiva, mas deixou claro em diversos
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momentos que a referência de afeto que possuiu na vida foi a sua avó. A mobilização que

perpassou a paciente em todos os momentos em que falou sobre esta figura revelou que

ela havia partido, e em circunstâncias – ainda que distantes em causa – similares à que

ela estava naquele momento: hospitalizada.

Já F., apresentou uma certa revolta para como o contexto familiar não pensava em

outros cuidadores para ajudar nas questões de saúde apresentadas por sua irmã, o que

trazia como consequência a necessidade dela se dedicar exclusivamente a essa tarefa. Para

tanto, sua vida pessoal e profissional fora profundamente modificada, visto que não era

possível ingressar na carreira universitária nem construir vínculos empregatícios já que

essa acompanhava sua irmã três vezes por semana para realização de procedimento de

hemodiálise. Diante disso, a dinâmica familiar e relação da família para com F era

marcada por deslegitimação de seus sentimentos de angústia, uma vez que isso era

entendido como o mínimo a se fazer em nome do amor fraterno. Nesse sentido, a condição

de saúde de sua irmã afetava também a sua irmã, acompanhante, que se via

impossibilitada de viver a própria vida, abdicando de inúmeras experiências em prol do

bem-estar de sua irmã, que só se via segura com F. Isso demonstra a relevância da família,

sobretudo quando bem estruturada, tem de influenciar o estado psíquico tanto do paciente

hospitalizado, quanto dos principais membros envolvidos nos cuidados.

Ao salientar que a família é o principal núcleo mantedor de afeto e cuidado

culturalmente, e essencial na construção de referenciais individuais, parte-se para a

compreensão da modificação estrutural que ocorre quando há um processo de perda

envolvido nessa dinâmica. O luto se apresenta como um sofrimento perante a perda de

algo ou alguém com o que se estabelecia uma relação subjetiva (Luna & Moré, 2017,

citado em Rigão et. al, 2024), sendo que, ao atravessá-lo, o indivíduo concebe novas

interações com a realidade e com a reconfiguração da sua identidade. Frente a isto, novos

elementos são incorporados diante da articulação da morte com a vida, composta por
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etapas de elaboração do luto, manejo de perdas secundárias, ressignificações familiares,

de crenças, e simbolização do que atravessa as dimensões físicas, psíquicas, emocionais

e comportamentais (Rigão et. al, 2024).

Todas as perdas trazem sofrimento ao sujeito, sejam elas esperadas ou não, sejam

de pessoas queridas ou de processos, habilidades ou ocupações (Souza, 2023). A

complexidade do luto tornou-se uma demanda durante alguns atendimentos no HHCL,

sendo identificado em M., C. e F. Na primeira paciente citada, foram apresentadas

diversas situações envolvendo a temática do luto. Ela alegou, primeiramente, estar

passando pelo luto recente de sua irmã mais próxima, que faleceu uma semana antes da

sua cirurgia. M. relatou sintomas no corpo na semana de internamento da irmã, como

apertos no peito e indigestão, comuns no luto antecipatório. No decorrer do atendimento,

a paciente revelou a perda de um filho jovem, de quem até fez tratamento para engravidar,

de um marido que fora assassinado e da sua mãe, que mantinha com ela um forte laço

afetivo - todos, aparentemente, no mesmo ano. Frente ao luto não elaborado ou trabalhado

com intervenção profissional, M. relatou mudanças de humor, tornando-se “amarga,

ignorante e grossa” com os clientes da mercearia que mantinha com seu falecido filho, o

que a levou a abrir mão do empreendimento. Tendo em vista o exposto, se faz nítido como

o processo de enlutamento atravessa o funcionamento e significações de um sujeito,

repercutindo em diversos eixos de sua história de vida e afetando sua visão de mundo

com a angústia da falta, assim elucidando a importância do acompanhamento psicológico

no referido contexto.

Já em C., o luto foi revelado entre lágrimas, suspiros e lembranças, e evidenciado

pelo relato da perda de sua avó, figura referência de afeto em sua vida, e a quem

acompanhou durante a internação de uma semana antes do óbito. C. não demonstrou

possuir luto antecipatório, tendo sido surpreendida pelo falecimento. O processo de

elaboração da perda tem apresentado à paciente intenso sofrimento, sobretudo no que


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tange a reflexões acerca da própria vida, sendo frequentes sentimentos de ansiedade,

medo da morte (de si e de terceiros), e de se expor a qualquer situação nova em que entre

em contato com uma representação imagética de perigo. Embora haja aceitação à morte

da avó, C. parecia buscar resgatar a presença do lugar afetivo e de conforto quando trazia

em seu discurso o quanto sua avó era especial e a ajudava a atravessar dificuldades. O

momento pré-cirúrgico configurava-se desafiador para ela, ainda que fosse uma cirurgia

simples e com bom prognóstico. O estado de intensa ansiedade associado a este episódio

relacionava-se com os medos citados anteriormente e com o receio do divino usar da sala

de cirurgia como cenário para encaminhar o fim de sua vida. O que proporcionou conforto

à paciente foi um diálogo simbólico com sua avó, a quem confessou inseguranças,

vontade de tê-la de volta e de equilibrar sua vida. Pediu proteção à figura de afeto, e seu

suspiro final antes de sair do leito para o procedimento demonstrou alívio, bem como o

sorriso leve à face. O resgate do lugar afetivo trouxe segurança à paciente, que assimilou

poder adentrá-lo, ainda que sua avó não esteja fisicamente presente, pois é um lugar

simbólico, projetivo e subjetivo.

No que tange ao caso de F., encontrava-se um receio sobre o estado de saúde de

sua irmã trazer consigo modificações drásticas em sua funcionalidade, devido a

cronicidade da questão renal e do diabetes, trazendo fortes mudanças na vida da

acompanhante. Esse receio configurava-se como um medo da morte da irmã, que por mais

trabalhoso que parecesse, ainda se apresentava dentro de uma lógica afetivo-relacional de

muito cuidado, amor e companheirismo entre ambas. O luto aqui aparece para F. situado

na perda simbólica e concreta dos seus anseios, projetos de vida e desejos serem

escamoteados para darem espaço aos cuidados com a irmã adoecida, demandando de F.

abdicar quase por inteiro de si própria em nome de tudo isso. Diante dos relatos trazidos

por F. o sentimento de angústia em nome dessa perda simbólica das próprias experiências

estarem sempre condicionadas a um outro demonstrou como o luto pode aparecer em


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diversos contextos que não apenas o de morte concreta de uma figura afetiva próxima,

mas também em casos de perdas simbólicas que trazem reverberações para forma como

o sujeito envolvido sofre mudanças drásticas por um evento ou fenômeno nos níveis

cognitivo, comportamental e psicológico.

Frente às inseguranças que os acometimentos trazem à tona, é necessário intervir

com medidas de promoção à saúde mental, visando prevenir consequências mais graves

frente a situações estressoras. Foi com este intuito que a psicoprofilaxia cirúrgica compôs

o conjunto de ferramentas que os estudantes dispuseram para auxiliar os pacientes em

seus processos pré-cirúrgicos. A psicoprofilaxia cirúrgica visa uma humanização do

procedimento cirúrgico e redução de seus impactos em diversas ordens, sobretudo em

fatores psíquicos. Nos momentos anteriores às cirurgias, os pacientes tendem a elevar o

nível de medo e ansiedade, onde as intervenções psicológicas entram como forma de

beneficiar a recuperação do paciente e reduzir o estresse pré-cirúrgico. O processo de

informação pré-operatória tem enfoque preventivo, tendo como objetivo informar os

pacientes sobre sua condição de adoecimento e o protocolo realizado durante a cirurgia

de forma didática e acessível. É de grande relevância ressaltar que as informações dadas

devem condizer com o modelo de funcionamento do atendido, bem como o uso de uma

linguagem adequada ao grau de compreensão do sujeito, de modo a facilitar o

entendimento do paciente frente à essas questões, além de permiti-los elaborar suas

dúvidas e expressar seus sentimentos frente ao que lhes foi comunicado. Ferraro (2005)

acrescenta que existe a importância da contenção das emoções e da escuta por parte do

profissional para que haja uma adequada adaptação à realidade. No Hospital Humberto

Castro Lima, a realização da psicoprofilaxia cirúrgica envolveu as seguintes etapas: breve

explicação do quadro patológico; comunicação do processo de trabalho realizado,

dividido em pré-operatório (brevemente), operatório e pós-operatório, explicitando o

tempo de recuperação e suas repercussões; e a descrição da vida futura a partir da


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intervenção oftalmológica realizada. Essa prática pode ser entendida como uma ação de

promoção de saúde por propiciar o surgimento de recursos de enfrentamento e das

potencialidades existentes no sujeito, sendo importante para tal que se acolha os

sentimentos e emoções ansiogênicas e de medo no pré-operatório, informando o paciente

sobre o quadro clínico, suas sintomatologias e de como o procedimento cirúrgico é feito,

uma vez que isso permite que o indivíduo avalie cognitivamente o evento com base em

dados factuais, diminuindo a reações desagradáveis e de percepção negativas sobre os

procedimentos realizados, consequentemente favorecendo aderência e uma recuperação

alinhada com os cuidados especificados após uma cirurgia oftalmológica.

Desse modo, no HHCL, o protocolo de psicoprofilaxia cirúrgica foi de grande

valia em todos os atendimentos realizados, assim explicitado nos casos de M., C. e F.

Na respectiva primeira citada, M., a paciente afirmou ser acometida pela catarata,

aparentemente como consequência do processo de envelhecimento, onde relatou que sua

visão parecia ter uma espécie de “nuvem” na frente e, quando perguntada sobre seu

entendimento em relação a esse adoecimento, ela afirmou não saber. A psicoprofilaxia

adentrou o atendimento no viés de informação preventiva, com base no que foi informado

pela paciente que, embora acelerada, declarou estar tranquila para a cirurgia. Após a

realização da técnica, a paciente demonstrou entendimento da explicação e alinhou seus

sintomas ao que foi elucidado, bem como aparentou compreender o procedimento

realizado e suas repercussões. Dessa forma, fica claro que essa prática é fundamental para

a promoção do bem-estar do paciente, tranquilizando-o e inteirando-o frente à

compreensão da sua própria condição.

Em C., a catarata surgiu no discurso como uma consequência infeliz da

idade, sendo este o denominador comum entre seus relatos sobre os pensamentos, sobre

a saída dos filhos de casa, e sobre outros acometimentos que surgiram com a entrada na
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terceira idade (a exemplo do diabetes e da hipertensão). Como a cirurgia foi o contexto

macro disparador da ansiedade, a psicoprofilaxia cirúrgica foi eleita como ferramenta de

cuidado na expectativa de trazer à paciente sensação de presença, de conhecimento no

que se refere ao que aconteceria com o seu corpo dentro de instantes. Durante o processo,

ela recordou de vizinhos e amigos que já haviam realizado o procedimento e revelou que

ver o resultado rápido e tranquilo deles a motivava a estar ali, bem como proporcionava

calmaria. Isso comprova a eficácia do exemplo, ou seja, da informação, do recurso que

torna possível a confiança no não saber, pois o saber torna-se acessível na medida em que

é necessário. Sendo este, por sua vez, o princípio da psicoprofilaxia cirúrgica.

Já em F., a catarata de sua irmã se configurou como uma consequência do diabetes e das

demais complicações em saúde apresentadas. Nesse caso, a psicoprofilaxia realizada com

a acompanhante teve o objetivo de oferecer informações sobre os sintomas que seu

familiar estava vivenciando naquele momento, sendo explicitado o quadro clínico da

catarata de modo fácil e acessível a realidade semântica de F. Logo após isso, foi exposto

o método de intervenção cirúrgica dessa afecção orgânica, como esse se realiza e os

cuidados necessários para um bom pós-operatório de sua irmã. Isso favorece que a rede

de cuidado se sinta inteirada dos processos de saúde feitos com seu familiar, diminuindo

sensações de medo e ansiedade natural, além de corroborar para que os cuidados

necessários da irmã serem seguidos de maneira mais assertiva com ajuda de F. trazendo

melhora da qualidade de vida da irmã e sua consequente autonomia. Isso demarca a

relevância de psicoeducar tanto os pacientes quanto a família sobre os processos de saúde

feitos, favorecendo a aderência do hospitalizado nas intervenções, e diminuindo riscos de

reações comportamentais adversas, promovendo um ambiente mais calmo, seguro e

aberto sobre o quadro de saúde do familiar internado.


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RESSONÂNCIAS DO SELF

CAMILA:

A experiência do primeiro rodízio do internato, na atenção terciária à saúde,

ressoou em mim de múltiplas formas. Desde que soube da existência do internato em

psicologia, experienciei curiosidade, medo, ansiedade, animação e, acima de tudo,

dúvidas. Após a apresentação e explicações sobre o contexto em que estaria inserida nos

3 meses do rodízio, idealizei o ambiente, os atendimentos, as supervisões e até mesmo os

pacientes e profissionais do Hospital Humberto Castro Lima. Questionei minhas

capacidades, “será que estou preparada para atender - de verdade - dentro de um hospital?

E se eu errar?”, deixei que a insegurança fizesse morada. No decorrer do percurso, fui

gradativamente me surpreendendo com o cenário do internato. Tive contato com pessoas

que não tinha proximidade e me permiti estar vulnerável e sensível frente a eles, que me

acolheram e amenizaram minha angústia. Estar inserida nessa realidade do contato com

o campo, com os pacientes e colegas, me atravessou de modo singular. Tornou-se

prazeroso ir ao hospital toda segunda-feira, a motivação surgiu com mais facilidade e, a

cada volta para casa após um dia de atendimentos, supervisões e prontuários, eu me sentia

mais realizada de estar trilhando esse caminho e dando esse passo tão importante para

meu crescimento pessoal e profissional. Nas primeiras idas ao HHCL, senti insegurança

e nervosismo frente ao novo, às variadas possibilidades e às comparações com os colegas

que, para mim, eram inevitáveis. O apoio dos colegas, da professora Ivana e da psicóloga

do hospital, Beatriz Inarê, foram essenciais para meu desenvolvimento nesse viés. No

decorrer da minha trajetória, pude, aos poucos, me desprender das amarras que havia

criado em torno da minha competência, assim, me jogando para a experiência


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gradualmente, explorando meus aprendizados e estudos dentro e fora de sala de aula. Essa

entrega de peito aberto ao campo e à prática extrapolaram minhas expectativas, que já

eram altas, me permitindo viver o rodízio de forma mais leve. As aulas expositivas me

deram muito suporte e mais segurança no que diz respeito ao meu fazer dentro do hospital,

onde pude vivenciar e aplicar os novos conhecimentos adquiridos nas discussões.

Adentrei o processo de suportar o não saber em quesitos diversos, mas sempre buscando

entender as incertezas e tirar dúvidas. Foi muito significativo contemplar o poder das

palavras e da fala no processo terapêutico, olhar por novas perspectivas e poder oferecer

um espaço de escuta e acolhimento para que os pacientes pudessem se expressar em um

ambiente seguro e cuidadoso. Além desse cuidado com o outro, também busquei cuidar

de mim, entender minhas angústias diante de aflições que surgiram durante o processo e

acolhê-las, me permitindo sentir o que deveria ser sentido.

Pude observar a importância do serviço de psicologia nesse contexto, ao realizar

os atendimentos, escutar as supervisões e observar a dinâmica dentro do HHCL, tendo

em vista a magnitude das demandas que surgiram durante nossa estadia e situações

ocorridas no próprio hospital, principalmente na problemática dos casos envolvendo a

enfermagem, em particular o que a paciente foi esquecida, deixada de lado e maltratada

por uma das enfermeiras, gerando um problema que poderia ter sido evitado se manejado

de forma cuidadosa.

Definitivamente, não encerro o rodízio da mesma forma que iniciei. Essa

experiência foi enriquecedora em inúmeros eixos da minha vida, de forma a ressignificar

vivências, ideias, sensações e perspectivas. Adentrei o HHCL como uma estudante

insegura de si e da própria capacidade, com medos, incertezas e elevado nível de

autoexigência. Agora, finalizo esse ciclo com outro olhar sobre mim e sobre a vida, mais

confiante e leve.
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O internato me mobilizou em variados momentos, seja em sala ou em campo.

Escutar os casos complexos dos colegas e dos pacientes que acolhi ecoaram em mim de

maneira indescritível. As aulas sobre temas sensíveis, como luto, onde pude acolher e ser

acolhida, o meu processo de perder o medo de apresentar em sala, o olhar dos pacientes

dentro dos ambulatórios, cada um com suas particularidades, a subjetividade envolvida

em cada troca, tudo isso foi lindo de ver de dentro e de fora. Saio dessa realidade cheia

de questionamentos, desejos e bagagem de aprendizado que levarei para a vida.

Entretanto, o contexto hospitalar também me causou certa angústia,

principalmente na primeira visita, no que diz respeito à diferenciação entre os ambientes

que recebem pacientes do convênio e os que recebem pacientes do SUS. Observei a

diferença de estrutura, iluminação, quartos, piso e até mesmo odores e temperatura. Ver

tão de perto a realidade da desigualdade social me causou incômodo, dado que não havia

nada que eu, particularmente, pudesse fazer para mudar essa realidade, além de buscar

dar o meu melhor no acolhimento de pacientes do SUS, sempre visando o cuidado e a

empatia.

O apoio da professora Ivana e da psicóloga Beatriz Inarê também foi inestimável

no meu percurso de aprendizado. Com elas, aprendi a dar espaço para meus sentimentos

e respeitar meus limites, porém sem me fixar ou paralisar diante do medo de falhar. Fui

surpreendida positivamente pela conduta de ambas, que tiveram papel essencial no meu

percurso durante esse bi/trimestre. Pude expor minhas vulnerabilidades, chorar quando

foi preciso, ter conversas construtivas e viver momentos de descontração para deixar toda

a trajetória mais leve diante da exaustão de passar nove horas seguidas dentro do hospital.

Fui atravessada, em especial, pelas pacientes que atendi. Ter contato com pessoas

tão diferentes, dentro de suas subjetividades, foi engrandecedor em todos os pontos de

vista possíveis que a palavra permite nesse cenário.


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No geral, o internato me causou sentimentos ambíguos, porém superou todas as

minhas expectativas. A sensação de pertencimento, que progressivamente foi se aflorando

em mim dentro do grupo e do ambiente hospitalar, repercutiu por aqui. Levarei comigo

todos os aprendizados, conhecimentos, risadas, vivências e experiências que adquiri nesse

período, e que me geraram transformações internas e abrilhantaram meus olhos com

relação ao fazer da psicologia, tão bonito de se ver tanto de dentro quanto de fora. Saber

que esse é só o começo não mais me causa medo, mas anseio pelo novo e desejo de mais.

ISADORA:

Viver esse primeiro rodízio foi uma experiência marcante e decisiva não somente

para a minha graduação, mas para a vida. O internato era algo que me despertava

curiosidade, ansiedade e motivação para vivenciar desde antes de entrar na faculdade, e é

satisfatório constatar que minhas expectativas foram superadas. Talvez o ponto principal

que tenha ressoado aqui dentro seja a percepção da mudança interna que foi emergindo a

cada interação com o campo, com os colegas, pacientes, profissionais e com as

ferramentas, ao mesmo tempo em que me vi parte da mudança que ocorria externamente.

As possibilidades de interação com pessoas que eu tinha certo distanciamento, a

necessidade de aprofundar conhecimentos em temas que eu evitava (a exemplo de

doenças crônicas e luto), e o manejo da falta de controle das circunstâncias no ambiente

hospitalar fizeram desta experiência um processo de evolução pessoal e de preparo

profissional.

Também sinto reverberar a potência do afeto. Tanto direcionado ao fazer quanto

às pessoas, e a mim mesma, diante das – também válidas - dúvidas, incertezas e

insatisfações. Nesse ínterim, o internato me deslocou de diversos lugares confortáveis e

conhecidos, sendo que, para a minha surpresa, isto não se consagrou num fardo, mas sim
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num alívio. Poder reconhecer e mostrar-me vulnerável me apresentou outras

possibilidades de estar nessa dinâmica, olhando para o que me atravessou e cuidando das

repercussões geradas. Assimilei que é possível haver leveza frente a momentos que

exigem competências e novas responsabilidades, e que os improvisos fazem parte, existe

repertório para compor os momentos em que eles são necessários. Percebi minhas

próprias inquietações quando não conseguia seguir a linearidade das perguntas preparadas

anteriormente nas entrevistas iniciais, mas com o tempo passei a lidar com o fato de que

nem sempre é possível começar “pelo começo”.

Outros incômodos que me atravessaram referem-se à convivência com algumas

enfermeiras pouco empáticas. A falta de consciência social, grosserias, negligências para

com pacientes e a equipe, e desumanização, foram frequentemente observados, sobretudo

por parte de uma delas. Percebi algo similar na primeira vez em que acompanhei um

processo terapêutico pré-cirúrgico em grupo, dessa vez por parte de uma estagiária de

Psicologia, que demonstrou implicar-se pouco com as ferramentas acessíveis na

promoção de acolhimento às pacientes. Presenciar estas situações talvez tenha sido mais

desafiador do que conduzir os atendimentos aos pacientes ao longo das cinco semanas no

Humberto Castro Lima.

O próprio ambiente hospitalar me foi desagradável. Não somente pela carga

energética e emocional que circula, mas também pela divisão dos espaços de circulação

entre pacientes SUS x pacientes de convênio particular. A diferença gritante entre as

estruturas me gerou revolta desde o primeiro momento. A ausência de ambientes pré e

pós-operatórios adequados para os pacientes do SUS, no terceiro andar, com ambientes

sem ventilador ou ar-condicionado, janelas sem proteção contra a luminosidade, cadeiras

de plástico como assento majoritário, são o cenário oposto do quarto andar. Além dessas

diferenças “à olho nu”, algo que me deixou igualmente mobilizada foi ser notificada do
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fato de que um dos médicos que tinham mais intercorrências em suas cirurgias (pelo uso

de técnicas ultrapassadas) realiza predominantemente procedimentos pelo SUS.

As repercussões da percepção da desigualdade operando por outras vias me

convidava a fazer algo para não aceitar a realidade posta. No entanto, me vi com o

sentimento de impotência, percebendo que estava para além do meu alcance “resolver”

todo o sistema complexo que estrutura não somente o funcionamento do hospital, mas

também dos demais setores sociais. Os meus sentimentos que buscavam movimentar,

ainda que minimamente, a mudança, não estavam adormecidos. E eles encontraram

energia quando Beatriz Inarê, psicóloga do Hospital, disse “o HCL não vai dar a estrutura

que esses pacientes merecem, então eles terão de mim o que merecem. Que é o meu

melhor. O hospital pode não dar o melhor que poderia, mas eu vou dar o melhor

atendimento que conseguir, sempre”. Isso ecoou em mim do primeiro ao último dia.

Um dos alívios de toda essa experiência desafiadora foi ter profissionais da

Psicologia tão inspiradoras acompanhando. A professora Ivana carrega consigo afeto,

cuidado e acolhimento, e distribui doses dessa “mistura mágica” sem moderação por onde

passa. Sua condução fez tudo ficar mais leve, proporcionou boas trocas entre o grupo,

garantiu ótimas passagens de conteúdo, e fez cada um dos alunos confiar mais em si

mesmos no individual e no coletivo. Pessoalmente, tenho bastante gratidão por ter sido

acompanhada por ela nessa jornada. Ela me ensinou, para além do programático, que não

devo exceder meus limites, que não preciso ir até o último recurso frente ao cansaço, e

que existe espaço para a vulnerabilidade, que é preciso se acolher. De maneira parecida,

Beatriz utilizou de todas as estratégias possíveis para fazer com que nos sentíssemos parte

do serviço de psicologia. E receber dela esse voto de confiança no que estávamos

descobrindo como fazer, foi fundamental para reduzir o desconforto frente ao novo. O

afeto recíproco fez com que criássemos, na salinha ao lado da escada do terceiro andar,

um espaço para cuidar também de quem cuida.


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Os conteúdos programáticos foram, em sua grande maioria, novidade para mim.

Fiquei surpresa com os atravessamentos que a psicologia possui de procedimentos

predominantemente médicos, mas a que se adapta para atender os propósitos de

compreensão da subjetividade. O contato com o campo me permitiu não somente buscar

por associações quando me deparei com teorias, mas também me motivou a aumentar o

repertório de recursos possíveis de serem utilizados.

Nenhum artigo ao longo da graduação foi – nem seria - capaz de prever o que me

esperava a cada segunda-feira. E eu, como alguém que acredita e confia nas não-

coincidências das “coincidências”, me vi entregue ao processo de maneira fluida e

intuitiva, honrando cada conhecimento teórico, mas também cada parte do meu corpo

físico e espiritual. E essa talvez seja a maior lição que o primeiro rodízio do internato me

trouxe. A de que não há ansiedade que me prepare pro que a vida reserva, que o tempo é

para ser dedicado, não gasto com tentativas vãs de prever o imprevisível. Agradeço,

pessoal e especialmente, às forças que promoveram o meu encontro com dona C., que na

nossa primeira interação me fez a pergunta que mais ressoou e que me fez pensar e sentir

tanto sobre como vivi os últimos três anos: “minha filha, para quê tanta ansiedade?”.

LUCAS:

A experiência desse primeiro rodízio foi marcante em minha formação enquanto

futuro profissional da psicologia e como ser humano em constante desenvolvimento. As

sensações que tinha com o início das atividades do internato era de muito receio e medo

sobre a qualidade do profissional que estou me tornando ser suficiente ou não para as

demandas que venham aparecer em atendimentos. Contudo, o meu processo de

aprendizagem teórico-conceitual nesse bimestre foi muito intenso e acompanhado de


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trocas muito simbólicas e afetivas com os demais colegas e orientadores nessa jornada. O

ambiente acolhedor entre os discentes que foi um fator decisivo para meu

desenvolvimento e imagino que o dos demais também. Quando chego no início dessa

prática em atenção terciária, me via muito inseguro sobre o que vinha aprendendo e

nervoso também. Desde o primeiro momento, a orientadora nos promovia autonomia de

conduzir os nossos atendimentos, sendo necessário apenas relatá-los para supervisão, o

que fortaleceu em mim a confiança sobre os conteúdos que embasaram minha formação

até o presente momento. Com isso, não quero dizer que não há a necessidade de continuar

me empenhando e aprimorando meus conhecimentos na ciência psicológica, mas que com

o apreendido nesse internato, posso seguir sabendo que tenho de fato competências,

habilidades e recursos atitudinais para desenvolver uma práxis ética nos campos que eu

busque seguir profissionalmente. Então posso afirmar que saio do internato entendendo a

necessidade de estar estudando o tempo inteiro, de oferecer um cuidado humanizado em

saúde independente de distinções de qualquer natureza e estar ativo e dedicado sobre o

universo simbólico que cada indivíduo me permite acessar, sendo guiado pelo

compromisso político-social que acompanha minha formação o tempo inteiro.

Sobre o Hospital Humberto Castro Lima, algo que foi chocante de perceber e

admitir foi a discrepância da qualidade do tratamento e cuidado oferecido para paciente

do SUS x Particular/ Convênio. As modificações iam desde a climatização adequada do

ambiente, passando por escolhas de materiais de baixa qualidade para composição dos

quartos do serviço SUS, indo até o respeito e devido cuidado com a integridade subjetiva

dos pacientes ser diferente. A equipe de enfermagem era composta por figuras em muitos

momentos contrastantes sobre essas ideologias. Algumas figuras se posicionavam para

endossar a situação do SUS como prática filantrópica, enquanto outras entendiam que se

caracteriza como um direito de assistência em saúde salvaguardado pela constituição que

nos rege. No que tange ao serviço de psicologia, apenas elogio a serem tecidos desde o
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acolhimento prestado para com a nossa equipe, até o propósito dentro da instituição

hospitalar em questão, demonstrando profundo incômodo sobre essas delimitações

excludentes e desumanizadoras que se encontram no tratamento dado aos pacientes SUS.

Diante dos relatos supracitados, reitero que essa experiência foi de suma relevância

para consolidação dos alicerces que julgo importantes em minha formação, e da de todo

profissional de psicologia e que atue com saúde humana de maneira geral. Assumir um

compromisso de fazer um cuidado em saúde de fato equânime para todos foi uma reflexão

que de fato me mobilizou bastante nas minhas práticas nesse campo de atuação. Por fim,

gostaria de agradecer a equipe do serviço de psicologia do HHCL, a professora e por toda

equipe discente pela experiência transformadora de viver o meu primeiro rodízio dos

internatos ao lado de cada um que compôs essa história e pelas trocas afetivas, simbólicas

e teórico-conceituais realizadas nesse percurso.

REFERÊNCIAS

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