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Análise da Cena I do Ato I de Frei Luís de Sousa

Monólogo lírico-dramático de D. Madalena


● Assunto: monólogo de D. Madalena, em que esta estabelece um paralelo/uma comparação entre
a sua vida (desditosa) e a relação amorosa infeliz e trágica de Inês de Castro e D. Pedro.

● Estrutura do monólogo

. 1.ª parte (do início da fala até “… pode-se morrer.”): D. Madalena abandona a leitura d’Os
Lusíadas e mostra-se enleada na ideia de felicidade que bebeu no texto.

. 2.ª parte (de “Mas eu…” até ao final do monólogo): D. Madalena reflete sobre a sua situação e
revela o seu estado de espírito, marcado pela angústia, pelo medo e “contínuos terrores”. O que
marca a divisão entre os dois momentos da cena é a conjunção coordenativa adversativa «mas»,
que possui o valor de oposição, contraste.

● Estado de espírito de D. Madalena:

. melancólica (“um livro aberto no regaço, e as mãos cruzadas sobre ele”; “repetindo
maquinalmente e devagar”), solitária (“só”), infeliz;

. sonhadora: anseia experimentar a felicidade, nem que seja por pouco tempo;

. sofredora e infeliz ao constatar a ausência de felicidade na sua vida, devido ao medo e aos
constantes terrores que a atormentam;

. insegura, preocupada e angustiada, sente-se destinada à morte;

. frágil, sensível e sentimental, bem ao gosto romântico;

. emocionalmente instável

. o seu nome evoca a figura bíblica da “pecadora” (prostituta) que depois foi Santa Maria Madalena.
As duas figuras – a imaginada e a real – ficam ligadas, sobrepostas, e o caminho ascensional da
personagem bíblica, do pecado à redenção, através da penitência, traça a linha a percorrer por D.
Madalena: pecado → remorso → penitência → ascese → redenção.

Além destes traços psicológicos, trata-se de uma mulher culta e letrada (está a ler, neste
caso Os Lusíadas), pertencente à aristocracia.

● Causa do estado de espírito

Os sentimentos e emoções evidenciados por D. Madalena ficam a dever-se (mesmo que só o


confirmemos num momento posterior da peça) ao receio de que o seu primeiro marido ainda esteja
vivo e regresso, cobrindo-se e à família de vergonha. A leitura do episódio de Inês de Castro
insinua-lhe o drama de um segundo casamento, realizado sob a ameaça velada de que D. João não
tivesse morrido.

● Relação entre D. Madalena e Inês de Castro

. Madalena e Inês são duas personagens para quem a felicidade não foi total, visto esta ter, em
ambos os casos, sofrido a intervenção do destino. A alegria e a felicidade de Inês de Castro foram
breves, pois terminaram com a sua morte. A interrupção da leitura feita por D. Madalena,
precisamente nos dois versos que sugerem a efemeridade desse sentimento, remete para uma
relação de semelhança entre os dois casos:

- D. Madalena estabelece o confronto entre a situação de Inês, feliz “naquele ingano de alma ledo e
cego / que a Fortuna não deixa durar muito”, felicidade essa que, em seu entender, não se mede
pela duração, mas pela intensidade: “Viveu-se, pode-se morrer”, e a sua situação em busca da
felicidade própria, pelos contínuos terrores, ou seja, pelos remorsos da consciência moral,
recalcada e abafada, mas sempre viva, atuante e martirizante;
- as imagens das duas figuras femininas de pecadores por amor-paixão, embora diferentes,
sobrepõem-se e ajustam-se admiravelmente;

- Inês de Castro é a heroína trágica no amor, na beleza, na desventura e na morte;

- D. Madalena é igualmente trágica no amor, na beleza, na desventura, no desfecho infeliz e


trágico que a destrói: ambas são perseguidas pelo destino, inexorável e cruel, que as irmanou na
paixão impossível; ambas são infelizes no meio da ventura, sendo que há uma diferença assinalável:
Inês ainda teve um “ingano de alma”, isto é, um momento fugaz de felicidade, ao passo que
Madalena, mais consciente talvez, nem esse breve “ingano” pôde ter.

. Porém, a reflexão posterior de D. Madalena permite deduzir um certo contraste: esta deseja a
felicidade, ainda que seja de curta duração, após o que morreria feliz; constata que a sua vida tem
sido assolada pela desgraça, o que é visível no recurso à conjunção coordenativa adversativa “mas”
e à interjeição “Oh”.

. Esta analogia entre a vida de Inês e de Madalena constitui um presságio trágico, se tivermos em
conta que os amores daquela e de D. Pedro terminaram tragicamente com a morte dela.

● Traços românticos de D. Madalena:

. a sobreposição dos sentimentos à razão;

. o completo domínio da personagem pelas suas emoções;

. o sentimento de culpa e de medo que a impedem de viver plenamente a sua felicidade;

. o conflito interior que a sua fala deixa transparecer;

. a angústia, o medo e os terrores que marcam o seu quotidiano;

. a grande paixão por Manuel de Sousa;

. a sensibilidade a cultura que demonstra;

. o uso de uma linguagem adequada ao real, ao estado de espírito das personagens: o discurso de D.
Madalena está repleto de hesitações, repetições, frases curtas, suspensas, elípticas, exclamações e
reticências, o que reflete com precisão os estados de melancolia e introspeção da personagem, os
quais são igualmente elementos românticos;

. a leitura como refúgio.

● Recursos expressivos

. Pontuação (reticências, exclamações, interrogações): revela o estado emocional de D. Madalena,


refletindo as suas hesitações e angústias.

. A enumeração, a gradação crescente, realçada pela anteposição dos adjetivos “contínuos” e


“imensa”, as interrupções, as pausas e as repetições (“… o estado em que eu vivo… este medo,
estes contínuos terrores, que ainda me não deixaram gozar um só momento de toda a imensa
felicidade…”) contribuem para o adensar do estado de espírito da personagem, marcado pela
melancolia, angústia, medo, etc.

. A construção anafórica [“que o não saiba ele ao menos, que não suspeite (…)”; “que amor, que
felicidade… que desgraça (…)”], a repetição do determinante demonstrativo “este”/”estes” (“este
medo, estes contínuos terrores”) traduzem igualmente o estado de espírito da personagem.

. A antítese “que felicidade… que desgraça…” marca o contraste entre o estado de felicidade que
seria de esperar que vivesse e os contínuos terrores que a assolam.

. Na cena, predominam os nomes abstratos, que traduzem os sentimentos que marcam a


personagem.
. A cena contém um caráter circular, dada a semelhança que existe entre o seu início, onde
encontramos Madalena em meditação, o que remete para uma total prostração da personagem, e o
seu final, em que volta a descair em profunda meditação. Estes dois momentos foram
interrompidos pela reflexão, pela lamentação sobre a sua própria existência.

● Elementos trágicos da cena

. Hybris: está presente indiretamente, já que o sofrimento (pathos) de D. Madalena advém da


ousadia de ter casado segunda vez sem ter encontrado o corpo do primeiro marido.

. Pathos: é o causador do seu estado de melancolia e de medo, o qual faz adivinhar a presença de
um destino firme e inflexível, ao qual a personagem não se poderá furtar, constituindo assim
indícios de uma situação que se irá verificar no futuro.

. Presságio: a leitura do episódio de Inês de Castro.

. Agon de D. Madalena (de consciência): o monólogo-meditação mostra a profundidade da luta que


lhe vai na consciência, carregada de culpa, e aponta para a dupla personalidade de Madalena:

- personalidade aparente, feliz, ligada a Manuel de Sousa pelo amor-paixão;

- personalidade real ou oculta, infeliz ou “desgraçada”, ligada a D. João de Portugal, pela memória
do passado, pelo remorso do presente.

Esta consciência atormentada de D. Madalena, em que o remorso a não deixa repousar um só


momento, remete para o seu conflito com o primeiro esposo.

Análise da Cena II do Ato I de Frei Luís de Sousa


● Funcionalidade da cena: apresenta informações obre

. os antecedentes da ação

. as personagens, seus problemas e estado de espírito

. a situação em que se encontram

. a época em que decorre a ação

● Assunto: apresentação das personagens principais, a qual resulta de um propósito de D.


Madalena: pedir a Telmo que não incuta no espírito de Maria as suas crenças e agouros sobre uma
desgraça iminente a cair sobre a sua família.

● Antecedentes da peça

Datas, Acontecimentos

▪ Antes de 1578, ▪ Casamento de D. Madalena com D. João de Portugal.

▪ 4 de agosto de 1578, ▪ Batalha de Alcácer Quibir.▪ Desaparecimento de D. Sebastião e de D. João


de Portugal.▪ Suposta viuvez de D. Madalena.

▪ 1578-1585, ▪ Diligências de D. Madalena para encontrar D. João, mas sem sucesso.

▪ 1585, ▪ Casamento de D. Madalena e Manuel de Sousa Coutinho.

▪ 1586, ▪ Nascimento de Maria.

▪ 1589, ▪ Ano em que decorre a ação da peça.

● Caracterização das personagens


▪ D. Madalena:

. nobre: a designação dona só se dava na época às senhoras da aristocracia;

. receosa e hesitante no que quer dizer a Telmo;

. critica o ascendente do aio sobre si e, sobretudo, Maria, pedindo-lhe que não insista nesse
ascendente;

. casou muito jovem com D. João de Portugal;

. enviuvou com 17 anos;

. procurou exaustivamente D. João, desaparecido na batalha de Alcácer Quibir, durante 7 anos;

. terá 38 anos: a batalha de Alcácer Quibir ocorreu há 21 anos, tinha ela 17; o seu segundo
casamento teve lugar 7 anos depois, teria ela 24; casou pela segunda vez há 14; Maria tem 13;

. vive constantemente atormentada e aterrorizada pelo passado e pelos agouros de Telmo, que lhe
mantém esse passado bem vivo, ou seja, a dúvida de que D. João não morreu e pode voltar a
qualquer momento, o que destruiria o seu casamento e tornaria Maria uma filha ilegítima, por isso
não consegue ser feliz, já que não se consegue libertar desse medo;

. não amou D. João, mas respeitou-o sempre;

. é profundamente apaixonada por Manuel de Sousa;

. sente-se vítima do destino;

. a contradição entre a felicidade aparente e a desgraça íntima que revela uma consciência moral
atormentada pela imagem sempre obsessivamente presente de D. João de Portugal e pelo remorso
proveniente da consciência de pecado – de facto, a personagem sente-se culpada por ter casado
com Manuel de Sousa, sem ter a certeza acerca da morte do primeiro marido;

. revela, na última fala da cena, a tendência para o devaneio, o que já acontecera na primeira
cena e está de acordo com a tendência romântica e a extrema sensibilidade da sua alma.

▪ Telmo Pais:

. não possui nobreza de sangue, mas está intimamente ligado à aristocracia pelo modesto título de
escudeiro;

. manifesta ideias reformistas ao condenar o uso do latim na Bíblia (posição dos Protestantes);

. o seu verdadeiro senhor continuar a ser D. João, primeiro marido de D. Madalena, dado como
morto na batalha de Alcácer Quibir (“… não sei latim como o meu senhor… quero dizer, como o sr.
Manuel de Sousa Coutinho…”);

. possui grande ascendente sobre Maria e D. Madalena;

. é o confidente de D. Madalena, a quem reprova o segundo casamento;

. nas palavras de D. Madalena, é “… o aio fiel de meu senhor D. João de Portugal…”, digno “… da
confiança, do respeito, do amor e do carinho…” de todos e “o escudeiro valido, o familiar quase
parente, o amigo velho e provado de teus amos…”;

. era o aio de D. João, a quem queria como “filho”; é-o também de Maria, a quem “… ao princípio
não podia ver”, mas ela acabou por o cativar: “quero-lhe mais que seu pai” – a sua não aceitação
inicial era originada por ela ser fruto do casamento de Madalena e Manuel de Sousa, que Telmo via
como uma traição a D. João, cuja morte não aceita; porém, com o passar dos anos, a formosura e
bondade de Maria cativaram-no de tal modo que agora afirma ter-lhe mais amor do que os próprios
pais;
. foi “carinho e proteção” e amparo de D. Madalena quando esta enviuvou;

. atormenta-a com os seus constantes agouros, presságios e acusações – é a lembrança viva e


permanente do «remorso» oculto e recalcado na consciência de D. Madalena;

. ama profundamente Maria, como se constatará no ato III, pretendendo ter-lhe mais amor do que
os próprios pais;

. não aprova o segundo casamento de D. Madalena e atormenta-a com insinuações, agouros,


profecias (como, por exemplo, a da carta de D. João de Portugal, escrita na madrugada da batalha
de Alcácer Quibir, onde afirmava: “vivo ou morto, Madalena, hei de ver-vos pelo menos ainda uma
vez neste mundo” – se não voltou, é porque está vivo; além do mais, D. João nunca deixaria de
cumprir a sua palavra;

. atormenta-a também com ciúmes póstumos, por conta de D. João: é isto que explica as
prevenções de Telmo em relação a Manuel de Sousa e a sua aversão inicial por Maria;

. começa a ser visível a sua divisão entre o amor a D. João e o amor a Maria (fragmentação que será
confirmada na cena V do ato III): sendo tão amigo dela e pretendendo ter-lhe tanto amor, sustenta
uma crença que, a concretizar-se, significaria a morte da jovem;

. é sebastianista:

- crê que os eu antigo amo não morreu;

- acredita no regresso de D. Sebastião e, consequentemente, de D. João;

. funções ou papéis que desempenha:

- coro:. alimenta o sebastianismo; . anuncia desgraças próximas; . profere contínuos agouros; .


comenta a ação dramática, predizendo o seu desfecho trágico, através dos seus presságios e
agouros;

- alimenta a presença de um passado, um tempo que D. Madalena quereria enterrar mas não
consegue, ou não a deixam;

- confidente de D. Madalena;

- leva à revelação dos pensamentos das outras personagens;

. os seus apartes revelam as dúvidas que possui relativamente à morte de D. João, bem como a sua
intenção de salvar Maria de uma desgraça que considera iminente.

▪ Maria:

. nobre:- a designação de “dona”; - o apelido “Noronha” indicia alta estirpe (“é sangue de Vilhenas
e de Sousas”);

. o seu nome evoca o da Virgem Maria: é pura e angélica (Madalena e Telmo apelidam-ma de anjo)
– configura a imagem da mulher-anjo dos românticos, contrastando com D. Madalena;

. tem 13 anos;

. é alta;

. é precoce, tanto física (“Tem treze anos feitos… está uma senhora…”) como psicologicamente: “…
em tantas outras coisas tão altas, tão fora de sua idade, e muitas de seu sexo também…”; “Maria
tem uma compreensão…”;

. é curiosa (“… aquela criança está sempre a querer saber, a perguntar”) e perspicaz (“tão
perspicaz”);
. é bondosa (“um anjo como aquele… e então que coração!”);

. dotada de espírito vivo (“uma viveza, um espírito!”);

. é sonhadora;

. possui uma imaginação muito fértil;

. segundo D. Madalena, é dotada de “Formosura e engenho, dotes admiráveis daquele anjo”.

▪ Manuel de Sousa Coutinho:

. nobre: “… o retrato daquele gentil cavaleiro de Malta que ali está” (o ingresso na Ordem de Malta
era limitado aos membros da aristocracia, aos quais se exigia certificado de nobreza);

. o seu nome é bíblico: é um dos nomes do Messias (Emanuel) e significa “Deus connosco”,
significado que se adequado à personagem, dado(a):

- a boa fé com que se casou com D. Madalena, viúva;

- a tranquilidade e a paz de espírito que daí lhe adivinha, revelada

. na resposta aos melindres de Madalena por ter de regressar ao lar onde vivera com D. João (I, 8);

. na vivência cristã da graça de Deus pela contrição do coração (II, 3);

. pelo contentamento de viver e conviver com os frades de S. Domingos como de portas a dentro,
quase no início da mesma cena;

. no desapego dos bens materiais, “coisas tão vis e tão precárias”;

. no desamor pela própria vida (“vida miserável que um sopro pode apagar” – I, 11);

. nas palavras de Telmo:

- “fidalgo de tanto primor e de tão boa linhagem, como os que se têm por melhores neste reino em
toda a Espanha”;

- “é um guapo cavalheiro, honrado fidalgo, bom português”.

▪ D. João de Portugal:

. nobre: nobreza de sangue que vinha do pai (“aquele nobre conde de Vimioso”), a designação dom,
atribuído apenas a alguns membros da aristocracia; o nome de família do Conde de Vimioso;

. nas palavras de Telmo: “… espelho de cavalaria e gentileza, aquela flor dos bons…”;

. o nome de batismo:

- é bíblico: evoca o nome de um dos apóstolos;

- é também, desde a época em que decorrem os acontecimentos, o nome de um tipo literário (cf.
um D. Juan).

● Relação Telmo vs. D. Madalena

Pelo que é dado ler nesta cena, a relação entre estas duas personagens supera em muito a
tradicional ligação entre um criado e o seu senhor. De facto, o escudeiro apresenta-se mais como
um elemento da família de D. Madalena do que enquanto mero aio, graças aos longos anos passados
ao serviço da família (primeiro de D. João e depois de Manuel de Sousa). Quando ela enviuvou aos
17 anos, foi o seu amparo e quase um pai, daí a liberdade de que goza quando lida com D.
Madalena. Esta respeita-o e reconhece-lhe alguma autoridade sobre si, seguindo também os seus
conselhos como se fosse sua filha. De igual forma, ele respeita-a e aconselha-a, não obstante ter
sido contrário ao segundo casamento.

Assim sendo, é natural que a relação (que se foi estreitando ao longo dos anos) entre ambos
seja de grande respeito, amizade, confiança e abertura, como se comprova ao longo de todo o
diálogo, que é motivado pelo pedido que D. Madalena quer fazer ao seu velho aio: acabar com as
conversas sobre o passado com Maria, ligadas à ideia de que de D. Sebastião está vivo e, por
extensão, D. João, facto que, a ser verdade, acarretaria consequências trágicas para Maria,
reduzida então à condição de filha ilegítima.

E é a questão do passado e da forma como este é alimentado em Maria pelo escudeiro que
perturba a relação. Note-se como Madalena sofre e chora quando Telmo afirma que a jovem
deveria ter nascido “em melhor estado”, pois está claramente a sugerir que ela era merecedora de
ter nascido no seio de uma família constituída por pais casados legitimamente, sem qualquer
sombra a pairar sobre ela, o que não sucede na perspetiva do aio, dado acreditar que D. João ainda
está vivo. A ser assim, a família seria destruída e Maria uma filha ilegítima, com todas as
consequências ao nível da mentalidade e das convenções sociais da época.

Por isso mesmo, no final da conversa, Telmo reconhece que D. Madalena tem razão: se
continuar a estimular o interesse de Maria pelo passado, com as suas crenças e agouros, poderá
levá-la a descobrir o passado da sua mãe. A ideia de que D. João de Portugal poderá estar vivo
despertaria nela a possibilidade da ilegitimidade e o receio de tal situação poderia agravar
seriamente o seu estado de saúde já tão debilitado.

● Relação Telmo vs. Manuel de Sousa

Telmo manifesta grande respeito e admiração por Manuel de Sousa, cujas qualidades elenca
e elogia, mas não lhe dedica a mesma consideração e estima que nutria por D. João de Portugal,
visto que considera que não é digno de ocupar o lugar do seu antigo amo.

● Tempo

▪ da ação: 28 de julho de 1599, fim da tarde de uma sexta-feira;

▪ narração cronológica dos acontecimentos ocorridos antes do início da peça:

- casamento de D. Madalena com D. João de Portugal antes de 1578;

- desaparecimento deste em África, na batalha de Alcácer Quibir, a 4 de agosto de 1578 – sexta-


feira – D. Madalena tinha 17 anos;

- D. Madalena procurou D. João durante 7 anos (de 1578 a 1585), não se poupando a esforços;

- casou com Manuel de Sousa há 14 anos – 1586;

▪ histórico:

- a existência de peste em Lisboa e

- a discórdia entre portugueses e castelhanos, de acordo com as palavras de D. Madalena (última


fala da cena), o que nos remete para o domínio filipino;

- as várias referências à batalha de Alcácer Quibir;

- a alusão de Telmo à Reforma protestante, quando menciona a tradução da Bíblia para as línguas
dos países onde se implantou.
● Características da tragédia clássica da cena

▪ A presença do Destino, por quem D. Madalena se sente perseguida/vítima.

▪ Hybris de D. Madalena: nunca amou D. João.

▪ Pathos: os terrores de D. Madalena.

▪ Os agouros e presságios de Telmo.

▪ A presença do coro nos agouros, comentários e prenúncios de desgraças próximas de Telmo.

▪ Agon: - de D. Madalena: . interior, de consciência; . contínuo; . crescente;

. com Telmo: apesar de, durante os 7 anos de «viuvez», lhe ter obedecido como a um pai, D.
Madalena não segue o conselho de esperar o regresso de D. João, anunciado na carta profética,
escrita na madrugada da batalha de Alcácer Quibir;

. com D. João, presente nas conversas com Telmo, testemunha da «desobediência» de D. Madalena,
conversas essas cheias de reticências, de subentendidos, de duplos sentidos, de alusões, de
agouros, de «futuros», de pressentimentos de desgraças iminentes;

- de Telmo:

. de consciência: começa a ser evidente o conflito de consciência entre o desejo do regresso de D.


João de Portugal e o amor a Maria;

. com D. Madalena:

- desaprova o seu casamento com Manuel de Sousa, baseado nos dizeres da carta profética de D.
João, escrita na madrugada da batalha;

- e na superstição (maravilhoso popular) de que, se ele voltasse e aparecesse a D. Madalena, não se


iria embora sem lhe aparecer também (o que não se tinha verificado);

- daí os “ciúmes”, as alusões, os agouros, os “futuros”;

- o conflito de Telmo com D. Madalena fica sempre sem solução;

. com Maria:

- a princípio, não a podia ver, por causa do seu nascimento em berço ilegítimo (“Digna de nascer
em melhor estado”);

- o conflito com Maria termina, porque ela acabou por o cativar e ele lhe quer como um pai;

. com Manuel de Sousa:

- apesar das qualidades que lhe reconhece, é, em sua opinião, inferior a D. João de Portugal;

- por conta deste tem “ciúmes”

- e uma certa aversão, por o considerar um intruso.

▪ O caráter ominoso, carregado de mistério e de fatalismo, conferido ao tempo pela repetição de


determinados números (3, 7, 14, 21, 13) e pela sexta-feira:

. D. Madalena procurou D. João durante 7 anos;

. D. Madalena e D. Manuel de Sousa estão casados há 14 anos (2X7);

. a batalha (e o consequente desaparecimento de D. Sebastião e D. João) ocorreu há 21 anos (3X7);


- 3: . perfeição; . 3 fases da existência;

- 7: . tragédia; . conclusão de um ciclo:

- 21: . completa a tríade do 7, indicando o fechar de um ciclo e o iniciar de outro ainda


desconhecido, mais concretamente de três (7: o ciclo da busca de novas sobre D. João; 14: o tempo
de vida em comum de Madalena e Manuel; 21: o encerrar de todos os ciclos e o início de um novo).

Análise da Cena III do Ato I de Frei Luís de Sousa


Diálogo Madalena – Maria

● Tema: o possível regresso de D. Sebastião.

● Perspetiva e reação das personagens sobre e ao tema

Maria, como personagem sebastianista, acredita piamente que D. Sebastião está vivo e vai regressar
num “dia de névoa muito cerrada” e fundamenta a sua posição em argumentos como a fé e a
crença do povo que, segundo ela, terá toda a razão de ser.

Curiosa e intuitiva, questiona por que razão o pai, sendo tão patriota, não gosta de ouvir falar no
regresso do rei, que iria retirar do trono português o rei espanhol, e chega a alvitrar a possibilidade
de ser pró-castelhanos, não obstante toda a sua postura patriótica, por ele revelada através de
palavras e ações.

Note-se como, nesta cena, as palavras e atitudes de Maria revelam todo o seu extraordinário poder
de observação e de análise de comportamentos.

Telmo Pais crê profundamente no regresso de D. Sebastião, mantendo viva igualmente viva a
esperança no retorno do seu amo, D. João de Portugal.

Por seu turno, D. Madalena procura demover a filha e afastá-la dessas ideias, fazendo uso,
inicialmente, de argumentos racionais: (a) os relatos dos tios Frei Jorge e Lopo de Sousa, homens
cultos, sobre o que aconteceu na batalha e (b) a desvalorização das crenças populares, que
apresenta como quimeras (ilusões).

Quando verifica que a sua argumentação não resulta, aflige-se a chora. As reações dos pais devem-
se ao facto de a sobrevivência e o regresso de D. Sebastião e D. João de Portugal, cuja morte nunca
fora confirmada, implicariam a nulidade do seu casamento e a ilegitimidade de Maria. Deste modo,
as constantes referências ao assunto adensam os seus receios e terrores.

Segundo Maria, o seu pai, Manuel de Sousa, perante esta possibilidade, muda de semblante, fica
pensativo e carrancudo, o que mostra que não estará totalmente certo da morte de D. Sebastião, e
leva a filha a, por momentos, duvidar do seu patriotismo.

● Visão de Maria sobre D. Sebastião

Para Maria, D. Sebastião é um herói por quem nutre grande admiração e em quem deposita todas as
esperanças para resgatar Portugal das garras do domínio castelhano: “o nosso bravo rei”, “o nosso
santo rei D. Sebastião”, etc.

Análise da Cena IV do Ato I de Frei Luís de Sousa


● Caracterização das personagens (a partir das cenas III e IV)

a. Maria:

. sebastianista fervorosa e nacionalista, crê que D. Sebastião está vivo e vai regressar;

. é uma espécie de porta-voz da sabedoria popular: “Voz do povo, voz de Deus”;


. lê muito (novelas de cavalaria e romances populares);

. manifesta interesse por temas impróprios para a sua idade: romances populares sobre D.
Sebastião e a batalha de Alcácer Quibir;

. sofre ao observar o sofrimento da mãe, que não compreende;

. é bondosa, carinhosa e terna com a mãe;

. muito precoce, possui uma imaginação e curiosidade pouco próprias da sua idade: “Maria, que tu
hás de estar sempre a imaginar nessas coisas que são tão pouco para a tua idade”;

. pensa muito (“passo noites inteiras em claro a lidar nisto”; “a pensar em tudo”): Maria passa as
noites em claro, a rever as suas atitudes e as dos pais, para tentar descobrir as razões da sua
preocupação, por considerar que há algo que não lhe é revelado;

. tem sonhos estranhos, em cuja interpretação revela poderes de profecia: lê nos olhos e nas
estrelas;

. é muito intuitiva;

. é alegre, mas sente-se subitamente invadida por grande tristeza (“uma tristeza muito grande que
eu tenho”): essa tristeza está relacionada com a constante preocupação dos pais com ela; o seu
poder intuitivo e de observação permitem-lhe perceber a preocupação dos pais com a sua saúde e
crenças; quando pergunta à mãe por que razão o pai não tinha permanecido na Ordem de Malta e
deixara o hábito, parece expressar o desejo de que o pai nunca o tivesse feito, o que
corresponderia à sua inexistência; ela compreende que há algo que lhe escondem;

. é visionária e muito sensível: “não quero sonhar, que me faz ver coisas lindas às vezes, mas tão
extraordinárias e confusas…”;

. possui um conhecimento íntimo de si própria que escapa aos familiares: “O que eu sou… só eu o
sei, minha mãe… E não sei, não: não sei nada, senão que o que devia ser não sou…”;

. é corajosa, de personalidade forte, destemida e idealista, dotado de caráter varonil, revelado no


desejo de ter um irmão e de resistência aos governadores: “um galhardo e valente mancebo capaz
de comandar os terços de meu pai”; “Tomara eu ver seja o que for que se pareça com uma
batalha!”;

. insurge-se contra as injustiças sociais: “Coitado do povo!”; “… onde a miséria fosse mais e o
perigo maior, para atender com remédios e amparo aos necessitados (cena V);

. Frei Jorge chama-lhe Teodora, nome que significa sábia (cena V);

. é idealista e patriota, manifestando toda a sua vontade de resistir aos governadores: “Fechamos-
lhes as portas. Metemos a nossa gente dentro e defendemo-nos.” (cena VI);

. fica entusiasmada com a notícia trazida pelo pai, dando largas à sua imaginação, ao seu idealismo
e ao seu patriotismo;

. sofre de tuberculose, a doença dos românticos – sintomas:

- a febre

- as mãos a queimar

- as rosetas nas facetas

- a audição a grandes distâncias (cena VI)

modelo da heroína romântica:

. ideais de liberdade
. exaltação de valores de feição popular

. crença na independência nacional

. atração pelo mistério

. intuição

. doença da época (tuberculose)

. linguagem:

NOTAS:

1.ª) A doença de Maria favorece ao longo da obra a sua extraordinária fantasia e a morte no final.

2.ª) Maria tem duas atitudes contrastantes: uma de crítica, outra de afeto para com sua mãe. A
alteração deve-se à observação do aspeto doloroso da sua mãe.

b. D. Madalena:

. sofre (chora) com as palavras de Maria;

. evidencia uma grande tensão psicológica, agravada pela menção inconsciente de Maria a aspetos
que a aterrorizam;

. manifesta grande preocupação perante a precocidade da filha.

c. Telmo Pais:

. tem uma presença silenciosa, mas identifica-se com os ideais de Maria;

. contribui para o clima de opressão;

. aparenta resignação e convencimento;

. manifesta preocupação com a debilidade de Maria.

● Características da tragédia

▪ Agón de D. Madalena:

- com Maria: para esta, há um enigma que nem a mãe, nem o pai, nem mesmo Telmo se
prontificam a decifrar; são segredos e mistérios intuitivamente pressentidos que não consegue
desvendar:

. a razão por que nem a mãe nem o pai, apesar do seu patriotismo (“… que ele não é por D. Filipe,
não é, não?”) acreditavam no regresso de D. Sebastião;

. a razão por que, quando em tal se falava, o pai mudava de semblante, e a mãe se afligia e até
chorava;

- com D. João de Portugal, nas reações de aflição, sublinhadas pelas lágrimas, sempre que Maria se
refere à crença popular da sobrevivência e possível regresso de D. Sebastião – cena III.

▪ Agón de Maria:

- com D. Madalena:

. a propósito da sobrevivência e do regresso de D. Sebastião (cena III) – D. Madalena não acredita,


nem lhe convém acreditar nem uma coisa nem outra. Maria acredita firmemente;
. desconfia que a mãe oculta alguma coisa muito importante; por isso, está sempre atenta, a
observar os sobressaltos, a ansiedade da mãe a seu respeito; por isso, lê nas palavras, nas ações e
nos gestos da mãe (e do pai), à procura de indícios, de respostas para a sua curiosidade (cena IV);

. não pode cumprir as esperanças nela depositadas (cena IV);

. por isso, desejaria ter um irmão (cena IV);

- com Manuel de Sousa:

. duvida do patriotismo do pai (cena III), por causa das atitudes que ele toma, ao ouvir falar de D.
Sebastião: “Ó minha mãe, pois ele não é por D. Filipe, não é, não?”;

. a hipótese não tem fundamento.

NOTA:

Este conflito de Maria com os pais, pois ambos não aceitam ouvir falar do regresso de D. Sebastião,
tem razões óbvias: se o monarca não morreu, também não terá morrido D. João de Portugal; o
segundo casamento de D. Madalena seria nulo.

- com D. João de Portugal (antes da mudança de palácio – cena IV):

. pressente intuitivamente que alguém, fazendo sofrer a mãe, também não a deixa ser feliz;

. por isso, procura uma resposta, com os meios ao seu dispor: “… leio… nas estrelas do céu
também, e sei cousas…”; “… não quero sonhar, que me faz ver coisas… lindas às vezes, mas tão
extraordinárias e confusas”.

NOTA:

É da essência do drama provocar situações e sentimentos incompatíveis no interior das


personagens:

. Maria não consegue explicar a perturbação dos pais;

. D. Madalena não pode revelar a causa das suas preocupações, o que se passa no foro da sua
consciência.

▪ D. Madalena parece caída nas garras de um destino inexorável: a última fala de Maria da cena IV
lança nela a dúvida se teria valido a pena ter casado uma segunda vez.

▪ A constatação de algo misterioso que paira sobre a ação e as personagens.

▪ Presságios:

. as flores murchas e os sonhos deixam antever a tragédia com que encerra a obra: a morte
progressiva de Maria (ela colheu papoilas para pôr debaixo do travesseiro, por estas estarem
associadas ao sono e ao sonho, acreditando que, assim, terá uma noite descansada; no entanto, as
flores, que representam, entre outras coisas, a beleza efémera, murcharam rapidamente,
indiciando a proximidade da morte;

. a contemplação do retrato do pai remete para a intuição do malogro do casamento dos pais.

● Características românticas

▪ O sebastianismo de Telmo e Maria.

▪ O nacionalismo e patriotismo de Maria, visível na resistência aos governadores castelhanos.

▪ Linguagem: exclamações, interrogações, reticências, frases curtas, adequação ao íntimo e ao


estado de espírito das personagens, etc.

▪ Caracterização de Maria:
. o modelo da mulher-anjo;

. os ideais de liberdade;

. exaltação de valores de feição popular;

. atração pelo mistério;

. intuição;

. tuberculose, a doença dos românticos.

▪ Crenças: agouros, superstições, sonhos, visões de Madalena, Telmo e Maria (cenas II e IV).

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