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Revista da Faculdade de diReito


da univeRsidade de lisboa
Periodicidade semestral
vol. lXi (2020) 1

LISBON LAW REVIEW

COMISSÃO CIENTÍFICA

christian baldus (Professor da universidade de Heidelberg)


dinah shelton (Professora da universidade de Georgetown)
ingo Wolfgang sarlet (Professor da Pontifícia universidade católica do Rio Grande do sul)
Jean-louis Halpérin (Professor da escola normal superior de Paris)
José luís García-Pita y lastres (Professor da universidade da corunha)
Judith Martins-costa (ex-Professora da universidade Federal do Rio Grande do sul)
Ken Pennington (Professor da universidade católica da américa)
Marc bungenberg (Professor da universidade do sarre)
Marco antónio Marques da silva (Professor da Pontifícia universidade católica de são Paulo)
Miodrag Jovanovic (Professor da universidade de belgrado)
Pedro ortego Gil (Professor da universidade de santiago de compostela)
Pierluigi chiassoni (Professor da universidade de Génova)

DIRETOR
M. Januário da costa Gomes

COMISSÃO DE REDAÇÃO
Pedro infante Mota
catarina Monteiro Pires
Rui tavares lanceiro
Francisco Rodrigues Rocha

SECRETÁRIO DE REDAÇÃO
Guilherme Grillo

PROPRIEDADE E SECRETARIADO
Faculdade de direito da universidade de lisboa
alameda da universidade – 1649-014 lisboa – Portugal

EDIÇÃO, EXECUÇÃO GRÁFICA E DISTRIBUIÇÃO


LISBON LAW EDITIONS
alameda da universidade – cidade universitária – 1649-014 lisboa – Portugal

issn 0870-3116 depósito legal n.º 75611/95

data: Julho, 2020


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ÍNDICE 2020

M. Januário da Costa Gomes


9-19 editorial

ESTUDOS DE ABERTURA

António Menezes Cordeiro


23-43 covid-19 e boa-fé
Covid-19 and good faith

Jorge Miranda
45-62 constituição e pandemia – breve nota
Constitution and pandemic – a brief note

ESTUDOS DOUTRINAIS

Ana Perestrelo de Oliveira


65-79 cláusulas de força maior e limites da autonomia privada
Force majeure clauses and freedom of contract

Aquilino Paulo Antunes


81-96 Medicamentos para saRs-cov-2 e covid-19: time matters
Medicines for SARS-CoV-2 and COVID-19: time matters

Catarina Monteiro Pires | Diogo Costa Seixas


97-116 crédito empresarial em tempos virulentos – primeiras reflexões
Corporate credit agreements in virulent times – first observations

Catarina Salgado
117-148 o impacto da pandemia na aviação civil – um novo 11/9?
The impact of the pandemic on civil aviation – a new 9/11?

Diogo Costa Gonçalves


149-185 crise e renegociação dos contratos no direito português e brasileiro – algumas reflexões
Considerations about the crisis and the renegotiation of contracts in Portuguese and Brazilian Law

Eduardo Vera-Cruz
187-205 o direito após a pandemia de covid-19: os binómios fundamentais
Law after the COVID-19 pandemic: the fundamental binomials

Francisco Mendes Correia


207-220 obrigações pecuniárias e perturbações no cumprimento: algumas notas a propósito da
pandemia da covid-19
Monetary obligations and nonperformance: some notes concerning the COVID-19 pandemic

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Francisco Rodrigues Rocha


221-236 a redução do risco no seguro automóvel durante a pandemia de covid-19. breves notas
Risk reduction on automobile insurance during Covid-19 pandemic. Brief notes

Hugo Ramos Alves


237-260 sobre a repercussão do covid-19 no direito aéreo
The impact of COVID-19 on Aviation Law

Isabel Alexandre
261-289 audiências à distância em processo civil e princípio da publicidade das audiências
Remote hearings in civil proceedings and principle of publicity of hearings

Isabel Graes
291-320 breves notas sobre as soluções de política sanitária em Portugal nos séculos Xvi-XiX
Brief notes about the Portuguese sanitary policy in the 16th-19th centuries

João Lemos Esteves


321-336 “covid-tracing app” e o direito: reflexão sobre as lições do supremo tribunal de israel
“Covid-Tracing App” and Law: reflexion on Israel Supreme Court’s ruling lessons

João Marques Martins


337-351 breves notas sobre o desconfinamento dos tribunais cíveis
Brief Notes on the Deconfinement of Civil Courts

Jorge Duarte Pinheiro


353-363 direito da Família-20 e covid-19
Family Law-20 and Covid-19

José Ferreira Gomes


365-390 contratos de M&a em tempos de pandemia: impossibilidade, alteração das circunstâncias
e cláusulas Mac, hardship e força maior
M&A Contracts in a time of pandemic: impossibility, change of circumstances, MAC, hardship and
force majeure clauses

Judith Martins-Costa
391-427 impossibilidade de prestar e excessiva onerosidade superveniente na relação entre shopping
center e seus lojistas
Impossibility to perform and excessive burden in shopping center lease agreements

Madalena Perestrelo de Oliveira


429-454 operações de crédito, financiamentos internacionais e moratória bancária em tempos
de covid-19
Financing operations, international financing and banking moratorium in times of Covid-19

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Margarida Silva Pereira


455-494 o impacto da Pandemia por covid-19: direito da Família, direitos das crianças
e direitos de Género. e a fragilidade do estatuto patrimonial dos cônjuges nas respostas
The impact of Pandemic by COVID-19: Family Rights, Children’s rights and Gender Rights. The fragility
of the spirit’s assets status in responses

Maria Cristina Pimenta Coelho


495-508 Fazer testamento em tempos de covid-19
Making a will in time of COVID-19

Maria João Estorninho


509-520 covid-19: (novos) desafios e (velhos) riscos na contratação pública
COVID-19: (new) challenges and (old) risks in public procurement

Nazaré da Costa Cabral


521-532 o impacto económico da crise do covid 19 e as medidas de recuperação a nível
nacional e europeu
The economic impact of the COVID-19 crisis and the recovery measures at national and European levels

Nuno Trigo dos Reis


533-569 Responsabilidade civil por contágio pelo novo coronavírus? algumas notas sobre a
responsabilidade aquiliana em tempos de pandemia
Civil liability for negligent COVID-19 transmission? Reflections on tort law during the pandemic emergency

Paulo Alves Pardal


571-587 nótulas sobre o impacto económico da covid-19
Notes about the economic impact of COVID-19

Pedro Infante Mota


589-617 o “contágio” da globalização (económica) pela covid-19
The “contagion” of globalization (economic) by COVID-19

Pedro Romano Martinez


619-643 dúvidas na interpretação de alguns preceitos da legislação de emergência (covid 19)
Doubts on the interpretation of some precepts of the emergency legislation (Covid 19)

Raquel Brízida Castro


645-679 direito constitucional em tempos de pandemia: Pode a constituição sobreviver a crises
sanitárias?
Constitutional Law in times of pandemic: Can the Constitution survive health crises?

Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde


681-715 o direito dos contratos privados face à presente crise pandémica. alguns problemas,
em especial, a impossibilidade económica temporária
Private Contract law in relation to the current pandemic crisis. Some problems, in particular, temporary
economic impossibility

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Rui Pinto
717-727 a suspensão dos atos de penhora no quadro das medidas extraordinárias aprovadas pela
lei nº 1-a/2020, de 19 de março, alterada pela lei nº 4-a/2020, de 6 de abril e pela
lei nº 20/2020, de 29 de maio. notas breves
The suspension of attachment acts in the context of the extraordinary measures approved by Law No.
1-A/2020, of March 19, amended by Law No. 4-A/2020, of April 6 and Law No. 20/2020, of May
29. Brief notes

Rui Tavares Lanceiro


729-746 breves notas sobre a resposta normativa portuguesa à crise da covid-19
A brief note on the Portuguese legal response to the Covid-19 crisis

Rute Saraiva
747-792 uma leitura de economia comportamental da crise covidiana
A Behavioural Economics approach to the covidian crisis

Tiago Serrão
793-804 uma epidemia anunciada: a epidemia da litigância em matéria de execução contratual pública
An announced epidemic: the epidemic of public contract enforcement litigation

Vasco Pereira da Silva


805-811 5 breves notas sobre o direito do ambiente em estado de emergência
5 Short Comments on Environmental Law in State of Emergency

Vitalino Canas
813-827 o império da exceção: a inevitabilidade do autoritarismo em democracia?
The empire of exception: the inevitability of authoritarianism in democracy?

Vítor Palmela Fidalgo


829-851 o sistema de Patentes e o acesso a Produtos Médico-Farmacêuticos no contexto da
atual Pandemia: o Ponto de situação atual e os Principais desafios
The Patent System and the Access to Medical devices and Pharmaceutical Products in the Context of the
Current Pandemic: The Present Situation and the Main Challenges

VIDA CIENTÍFICA DA FACULDADE

Christian Baldus
855-866 arguição da tese de doutoramento do Mestre Jorge silva santos sobre “teoria geral do
direito civil, cripto-justificações e performatividade da decisão jurídica. Historiografia
jurídica e ciência do direito como invenção agonística de discursos. Para uma arqueologia
do autor Guilherme Moreira”

Miguel Prata Roque


867-879 diretivas antecipadas de vontade sobre cuidados de saúde e liberdade de autodisposição
(arguição da tese de doutoramento em ciências Jurídico-Políticas apresentada pela
Mestre Rosana broglio Garbin à universidade de lisboa)

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O impacto da Pandemia por COVID-19: Direito


da Família, Direitos das Crianças e Direitos de Género.
E a fragilidade do estatuto patrimonial dos cônjuges
nas respostas*
The impact of Pandemic by COVID-19: Family Rights,
Children’s rights and Gender Rights. The fragility of the spirit’s
assets status in responses

Margarida Silva Pereira**

Resumo: propomo- nos refletir sobre as Abstract: this paper offers a reflection on the
consequências da Pandemia atual sobre os consequences of the current Pandemic on the
direitos das crianças e os direitos de Género Rights of children and Gender Rights within
no âmbito do direito da Família e apresentar the scope of Family law and to present some
algumas fragilidades do regime de administração weaknesses in the regime of administration
de bens do casal e de responsabilidade por of the couple’s assets and responsibility for debts
dívidas dos cônjuges também no contexto atual. of the spouses also in the current context.
Palavras-chave: responsabilidades parentais; Keywords: parental responsabilities,
convenção sobre os direitos da criança; convention convention on the Rights of
convenção de istambul; estatuto patrimonial the child; istambul convention; patrimonial
dos cônjuges. status of spouses.

Sumário: 1. consequências recorrentes das pandemias sobre os direitos das crianças, sobre
os direitos de Género e os seus reflexos no direito da Família. 1.1. Pandemia em perspetiva
jurídica. 1.2. as implicações da natureza institucional do direito da Família. 1.3. continuação.
as especificidades do direito da Família como direito institucional nos problemas e nas
respostas. 2. temas que se selecionam a partir do estudo já realizado sobre o impacto da
pandemia. 2.1. os problemas em geral. 2.2. a pandemia e os seus reflexos sobre os direitos
dos jovens. 2.2.1. alimentos devidos a filhos maiores: um problema jurídico cuja necessidade

*
estudo concluído em 15 de Junho de 2020. teve como base o estudo sociológico O Impacto Social
da Pandemia. Estudo ICS/ISCTE Covid-19 abril 2020. disponível em iscte-iul.pt/assets/files/
2020/04/10/1586516062657_o_impacto_social_da_Pandemia___Relat_rio_geral_final.pdf
**
Professora associada da Faculdade de direito da universidade de lisboa

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Margarida silva Pereira

de solução se exacerba; a importância, indireta, da convenção sobre os direitos da criança.


2.3. exercício das responsabilidades parentais em crise adensada. 3. igualdade de Género
e influxo da pandemia sobre o cuidado da família. 3.1. direitos de Género e violência doméstica:
um problema também a montante do direito da Família em que a pandemia intensifica a
vertente familiar. 3.2. igualdade de Género em crise exacerbada e direito da Família. a convenção
de istambul. 3.3. igualdade de Género e responsabilidades parentais não exercidas pelas mulheres
profissionais de saúde: um tema a investigar. 4. confinamento, conciliação entre vida privada
e familiar e estatuto patrimonial dos cônjuges: a resposta jurídica que se impõe. 4.1. considerações
preliminares. 4.2. Responsabilidade dos cônjuges pelas dívidas para ocorrer aos encargos
normais da vida familiar e em proveito comum do casal: a perceção dos conceitos legais
abertos que originam iniquidade por isso. 4.3. administração dos bens do casal e responsabilidade
por dívidas. diferentes perceções sobre as prioridades familiares durante a pandemia e
efeitos na contração de dívidas: algo muito plausível. 4.4. o proveito comum do casal e os
encargos normais da vida familiar em aferição pandémica. 4.5. Reflexos mais remotos, mas não
negligenciáveis: a aferição da compensação ao cônjuge determinada pelo art.º 1676.º, n.º 2, do
código civil em caso de divórcio e o atual regime do divórcio. a partilha dos bens em montante
quantitativamente inferior ao regime vigente durante o casamento e a caducidade das doações
ao cônjuge. 4.6. o muito amplo acervo de bens que respondem pelas dívidas da responsabilidade
de um dos cônjuges e os seus efeitos no adensamento das dificuldades equacionadas.

1.Consequências recorrentes das pandemias sobre os Direitos das


Crianças, sobre os Direitos de Género e os seus reflexos no Direito
da Família

1.1. Pandemia em perspetiva jurídica

I – as pandemias atentam, por regra, de forma muito intensa e sem dúvida


cruel, contra os direitos das crianças e os direitos de Género, refletindo-se o
problema na forma como o direito da Família os considera e está munido de
capacidade de resposta para eles. afirmá-lo é reiterar uma constatação reincidente
e o momento pandémico que vivemos, originado pela covid-19, não representa,
desde ponto de vista, uma originalidade jurídica.
Quando se usa a palavra pandemia utiliza-se um termo médico, de saúde
pública1. Mas, na perspetiva do direito, a pandemia determina perturbação fortuita

1
assim, GRaciela Medina, Derecho de Familia, Género y Coronavirus, webninar de 7 de abril
de 2020 para thomson Reuters. cf. também El impacto de la pandemia en el Derecho de Familia:

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o impacto da Pandemia por covid-19: direito da Família, direitos das crianças e direitos de Género

das relações jurídicas, com efeitos imprevisíveis. É, portanto, daqui – ou seja, sob
o prisma do conceito de alteração de circunstâncias – que importa partir, ao
averiguar as consequências jusfamiliares da covid-19.

II – a pandemia deu origem a muitas modificações do circunstancialismo


familiar. determinou dificuldades financeiras para o cumprimento de obrigações
de alimentos a familiares; determinou impossibilidade de exercício, ainda que
pontual, de responsabilidades parentais; e teve, e continuará a ter, incidências nas
relações pessoais e patrimoniais dos cônjuges e dos unidos de facto, as quais
importam o reexame de aspetos do seu estatuto legal.
a alteração das circunstâncias tem, nos ramos jurídicos de vertente institucional,
uma configuração própria.
não importa aqui, como se tentará demonstrar neste muito breve esboço de
estudo, atender à pura e simples modificação das ocorrências para concluir que elas
ditam uma nova forma de enfrentar as obrigações assumidas pelas partes contratuais.
importa, sim, gizar uma resposta que impõe atender às motivações que alteram os
comportamentos de quem atua no âmbito da intimidade familiar motivado por
perceções face às quais há que respeitar direitos pessoalíssimos e também as motivações
com que se comporta cada membro da família no exercício do seu indeclinável
entendimento do bem pessoal e do bem dos demais familiares.

III – o instituto da alteração das circunstâncias, vertido no artigo 437.º do


código civil, impõe a resolução ou modificação contratual e intervêm apenas aí,
onde seja inverificável uma situação de impossibilidade objetiva ou subjetiva prevista
no artigo 790.º e seguintes do código civil.
assim se retira do artigo 437.º, n.º 1, in fine, do código civil, quando prevê
que a alteração anormal das circunstâncias “(...) não esteja coberta pelos riscos
próprios do contrato”.
Recorda-se que larenz aludia, a propósito de alteração das circunstâncias, a
ocorrência de turbação das equivalências, ou, por outras palavras, a eventos muito
imprevistos.
nesse primeiro caso, e só nele, se extingue a obrigação.
no segundo caso (impossibilidade), caso a prestação se torne impossível
definitivamente por causa não imputável ao devedor, a obrigação extingue-se; e

las claves, disponível em thomsonreuters.com.ar/es/soluciones-legales/blog-legal/el-impacto-de-la-


pandemia-en-el-derecho-de-familia-las-claves.html

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Margarida silva Pereira

determina a não responsabilidade pela mora no compromisso, nos casos em que


a impossibilidade é temporária (artigo 792.º, n.º 2, do código civil).
a dogmática dos contratos exige, pois, uma cuidada aferição dos pressupostos
dos dois institutos.
o próprio instituto da alteração de circunstâncias e os seus efeitos foram
questionados enquanto mecanismo a acionar em matéria contratual, por isso que
excessivamente onerosos das partes numa situação complexa do ponto de vista
geral e financeiro em particular, havendo quem lhe sustente alternativa.
assim, escreveu Rui ataíde2:

“(...) esta situação de impossibilidade económica tem vindo a ser tratada há muitos
anos no âmbito do Direito das Obrigações, chamando a atenção para o facto de o risco
da onerosidade excessiva superveniente correr sempre por conta do devedor, a não ser que
verificasse o circunstancialismo previsto na alteração de circunstâncias. Eu gostava de
referir apenas o seguinte: essa solução, que é uma solução razoável enquanto solução geral
porque, de facto, não há forma de evitar que o risco geral da vida se possa reflectir na
esfera jurídica de cada um de nós, embora seja uma solução razoável enquanto solução
geral, não quer dizer que não possa ser melhorada para conjunturas especiais em que os
devedores se encontram numa situação de impossibilidade económica de cumprimento. E
para estas conjunturas parecia-me adequado pensar-se na viabilidade de um mecanismo,
conforme referi, de suspensão temporária dos vínculos contratuais”.

IV – e que dizer das implicações jurídicas da alteração das circunstâncias que


se verificou nas matérias do direito da Família?
as relações jurídicas familiares não se constituem a partir da arquitetura jurídica
contratual. no caso das relações entre os pais e os filhos, não é de estipulações
contratuais, mas sim, de direitos deveres que compete falar e apreciar.

V – Relativamente à relação conjugal ou a outra relação afetiva geradora de


compromissos familiares, nem a contratualidade nominal, conceitual (caso do
artigo 1577.º do código civil) nem o estatuto pessoal nem o estatuto patrimonial
dos cônjuges se subsumem ao regime da contratualidade obrigacional.
Por isso, a discussão sobre alteração de circunstâncias do artigo 437.º do
código civil não teria nunca, em direito da Família, aplicação direta.

2
cf. O Direito dos Contratos Privados Face à Crise Pandémica, cidP, 2.º videocast novo coronavírus
e gestão da crise contratual, p. 81.
disponível em cidp.pt/archive/docs/f956034234341.pdf

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o impacto da Pandemia por covid-19: direito da Família, direitos das crianças e direitos de Género

situamo-nos no domínio dos negócios de personalidade ou negócios pessoalíssimos


que têm, pela sua própria natureza, um regime jurídico caracterizado, quer pela
irrenunciabilidade dos direitos de personalidade, quer por exigências de cumprimento
específicas.
importa, hoje, reconfigurar a obrigação de cumprimento em função de critérios
próprios e mesmo, alterar normas que perderam há muito o sentido. normas que,
não de adaptando já, antes da pandemia, à realidade vigente, viram os efeitos dessa
desadaptação aumentar de forma muito nefasta e paroxística.

VI – a covid-19 como pandemia que é, desencadeia alterações devidas


a questões de saúde privada e aos efeitos de medidas políticas ditadas pela saúde
pública.
são alterações sem dúvida revolucionárias dos quotidianos e das perceções.
Mas, diferentemente das revoluções políticas, não alargou a covid-19 horizontes
de propostas de soluções ditadas pela ideologia nem promoveu entusiasmo e ativismo.
ao invés, relegou as pessoas para a esfera privada e para o horizonte da
incapacidade de propostas.
observou ana nunes de almeida, comparando a pandemia com a Revolução
do 25 de abril de 1974:

“A rutura [com o regime] em 1974 foi “uma festa de alegria, de liberdade” na rua, com
as ruas cheias, as pessoas a abraçarem-se, a sentirem-se próximas fisicamente umas das outras”.

e acrescentou:

“Era uma coisa absolutamente extraordinária, era um sentimento de libertação,


enquanto este é um sentimento de prisão”3.

VII – e a covid-19 é uma pandemia que surge no primeiro quartel do


século XXi, enquadrada, em países como Portugal, pelo estado social de direito
e pela obrigação de cumprir instrumentos de direito internacional com forte
incidência na esfera privada.
importa ter isto muito presente, num tempo em que o direito de Género e
os direitos das crianças se articulam de forma mais incidentemente complexa
com o direito da Família.

3
disponível em cmjornal.pt/sociedade/detalhe/sociologa-diz-que-pandemia-de-coronavirus-e-a-
rutura-mais-extraordinaria-desde-o-25-de-abril

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Margarida silva Pereira

Para justificar a afirmação basta recordar a vigência da convenção sobre


os direitos da criança4 e da convenção de istambul5. o caminho jurídico de
densificação de ambas nas ordens jurídicas dos estados signatários vem sendo
desigual, mas, em todo o caso, muito virtuoso e intenso.
Portugal está, pois, totalmente comprometido com este ambiente jurídico
circundante e vigente na sua ordem interna.
Quando olha o direito da Família pré-compreende de modo enfático os
direitos das crianças e também os direitos de Género.
e os estudos até agora vindos a lume sobre a pandemia focam com grande
incidência ambas as temáticas.

1.2. As implicações da natureza institucional do Direito da Família

I – estão afastados os institucionalismos de antanho. escreviam recentemente


sobre a natureza institucional, em sentido atual e despido dos entendimentos
institucionalistas que marcaram conceções doutrinárias do direito da Família, como
foi o caso paradigmático da de cicu, Francisco Pereira coelho e Guilherme de
oliveira:

“Dizemos nós que o direito da família é um direito institucional porque o legislador


se limita, em alguma medida, quando regula as relações de família, a reconhecer esse
“direito” que vive e constantemente se realiza na instituição familiar” 6.

e reconhece-se, com encarna Roca i trías7, o plus do direito da Família de


hoje, em Portugal como no mundo ocidental.
com efeito, o direito da Família:

“(...) não se baseia numa contraposição entre sector público v. sector privado, mas
na cooperação entre ambos, uma vez que as finalidades essenciais se obterão por meio da

4
adotada pela assembleia Geral das nações unidas em 20 de novembro de 1989 e ratificada por
Portugal em 21 de setembro de 1990.
5
convenção do conselho da europa para a Prevenção e o combate à violência contra as Mulheres
e a violência doméstica, adotada em istambul, a 11 de maio de 2011; aprovada pelo Governo
português a 16 de novembro de 2012, ratificada pela assembleia da República a 21 de janeiro de
2013e entrada em vigor em Portugal a 1 de agosto de 2014.
6
cf. Curso de Direito da Família, volume i, Introdução. Direito Matrimonial, 5.ª ed., coimbra,
imprensa da universidade de coimbra, 2016, p. 171.
7
Familia y Cambio Social (De la ‘casa’ a la persona), Madrid, cuadernos civitas, 1999, p. 33.

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o impacto da Pandemia por covid-19: direito da Família, direitos das crianças e direitos de Género

atribuição a cada um deles de funções específicas (...). E a base de tudo isto é hoje muito
clara: a proteção dos direitos fundamentais do indivíduo. O Direito da Família é rígido,
porque também o é um sistema que tem como teto a princípios que devem aplicar-se em
cada situação e cuja exclusão requer ser demonstrada sobre a base da diferença. Por isso,
aqui argumenta-se partindo da premissa fundamental de que a personalidade consiste na
titularidade dos direitos fundamentais dos cidadãos”.

II – não se pretende inculcar a ideia de que os direitos das crianças se integram


de forma total, sem autonomia no direito da Família. não integram. as pessoas
sobrepõem-se a um, muito complexo, também por isso, direito da Família. se é
a família a entidade referente das vicissitudes que dizem respeito ao exercício das
responsabilidades conjugais, não tem por isso como se lhe antepor ou sobrepor,
aspeto que resulta claro do que foi afirmado.
Recorda-se a eloquente síntese de díez-Picazo sobre o pensamento de encarna
Roca i trías acerca da autonomia pessoal no direito da Família na obra supra
citada, pensamento que postula a articulação virtuosa dos direitos familiares com
os direitos constitucionais:

“Nesta perspetiva, que é rigorosamente jurídica, a pessoa, cada pessoa, sai reafirmada,
recrescida e aquilo que há nas instituições perpassado pela filosofia hegeliana ou objetivado,
fica diminuído”8.

1.3. Continuação. As especificidades do Direito da Família como Direito institucional


nos problemas e nas respostas

I – antes de iniciar considerações sobre o tema que nos propusemos abordar,


cumpre uma advertência. escreve-se sobre uma área social do direito, reportada,
como afirmado já, a direitos pessoalíssimos.
É, por essa razão, impossível abordá-la juridicamente omitindo quanto é ela
permeável a influências que, a uma observação crítica menos prevenida, se afiguram
metajurídicas. não são metajurídicas: constituem a juridicidade própria do direito
da Família.
lembra-se a este propósito o acerto das palavras de Rita lobo Xavier:

“Penso que não é possível deixar de considerar a dimensão institucional da Família,


uma vez que o Direito da Família não pode ser encarado como pura lei privada que

8
“Prólogo” a encaRna Roca, Familia y Cambio Social. (De la ‘casa’a la persona)..., p. 25.

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Margarida silva Pereira

envolve apenas os direitos individuais dos sujeitos da relação, nem olvidar os aspetos
culturais e nacionais e as questões de política nacional de cada país”9.

e cita-se de novo encarna Roca i trías:

“As alterações verificadas no direito da família têm a sua base indiscutível nas
mudanças sociais que tiveram lugar no mesmo período e se nalgum âmbito esta questão
é evidente é precisamente no estudo do direito da família, Por isso, considerei que a
metodologia a utilizar deveria corresponder ao que se denomina de funcionalismo, segundo
o qual a família deve cumprir três funções importantes: a de protecção, a de adaptação
às novas circunstâncias que possam ocorrer e a de ajuda”10.

Proteção, adaptação a novas circunstâncias, ajuda, são palavras da autora:


exatamente as palavras determinantes do léxico jurídico que orienta os problemas
que emergiram da pandemia e continuam a proliferar no direito da Família.
os instrumentos jurídicos não têm como se alhear do diálogo articulado com
o mundo social. e o mundo social muda, o que impõe que estes instrumentos
sejam flexíveis e “humildes”. não nos resolve cabalmente os problemas a dogmática
civilista vetusta, posto que é sem dúvida essencial lançar mão dela.

2. Temas que se selecionam a partir do estudo já realizado sobre o


impacto da pandemia
2.1. Os problemas em geral

I – no momento presente, diremos que a dimensão nacional, ou seja, ao nível


do direito da Família português, marca a diferença específica de uma realidade
pandémica que, por definição, é mundial.
vejamos porquê.
no primeiro estudo académico realizado sobre o impacto da pandemia em
Portugal11 evidenciaram-se com grande nitidez as perturbações do isolamento, da
sobrecarga resultante da conciliação entre a vida profissional e a vida familiar nas
famílias e nos seus membros.

9
Ensinar Direito da Família, Porto, Publicações universidade católica, 2008, p. 88.
10
cf. Familia y Cambio Social..., pp. 31-32.
11
cf. O Impacto Social da Pandemia. Estudo ICS/ISCTE Covid-19 abril 2020. disponível em iscte-
iul.pt/assets/files/2020/04/10/1586516062657_o_impacto_social_da_Pandemia___Relat_
rio_geral_final.pdf

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o impacto da Pandemia por covid-19: direito da Família, direitos das crianças e direitos de Género

o estudo circunscreve-se à fase do confinamento e a um arco temporal restrito:

“O inquérito foi realizado entre 25 e 29 de março de 2020, junto de uma amostra


de cerca de 11.500 inquiridos, não representativa da população residente em Portugal.
Por essa razão, este relatório não procura fazer inferências descritivas para qualquer
população, mas sim concentrar-se em dois aspetos principais: 1) as relações entre determinados
atributos dos inquiridos e as suas opiniões e comportamentos; e 2) o seu discurso direto,
em relação a algumas perguntas de resposta aberta incluídas no inquérito”12.

2.2. A pandemia e os seus reflexos sobre os direitos dos jovens

I – o primeiro foco deste ensaio olha os jovens – entre eles, os nossos alunos
universitários – que se viram a braços com o teleestudo, com o qual jamais haviam
sido confrontados em Faculdades como a Faculdade de direito de lisboa.
Foram ou podem ser afetados na sua situação jurídica familiar?
o estudo sobre o impacto da pandemia olha-os na privação de direitos, também
de acesso à progressão no ensino, em razão de circunstâncias a que a vida familiar
não é alheia.
a análise elaborada sobre a situação profissional dos que mais dificuldades
apresentam revela que quem não trabalha ou está reformado expressa menor
dificuldade em lidar com a atual situação. e que as maiores dificuldades são sentidas
por quem estava desempregado antes do início da pandemia, por quem estuda ou
por quem sofre de doença ou invalidez13.
os estudantes estão, pois, entre os que acusam a verificação de maiores dificuldades.

II – o estudo mostra que, de forma geral, os seus problemas estiveram muito


presentes nas preocupações das suas famílias.
isso é visível nas respostas dos pais:

“Primeiro a saúde de todos nós. O ingresso da minha filha no ensino superior. A continuidade
do curso do meu filho na Faculdade de Direito” (M, 60, casada, ensino superior)14.

do lado dos filhos, as franjas mais jovens de inquiridos, esse receio é igualmente
expresso. Qualificação escolar, realização de estágios profissionais estão em suspenso.

12
cf. p. 2.
13
cf. p. 32.
14
cf. p. 49.

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“Esta situação poderá impor alta instabilidade laboral aos meus pais, ao meu trabalho
e ao desenvolvimento da minha atividade educacional (estudante de doutoramento, H,
30 anos, união de facto, ensino superior)”.

“Como é que vou fazer exames na Universidade?” (M, 21, união de facto, secundário).

“Não conseguir acabar o curso da faculdade” (M, 21, união de facto, ensino superior).

“A suspensão do estágio da ordem dos advogados. Estou na segunda fase e ia já fazer


o exame em Junho” (F, 26, união de facto, ensino superior)15.

Mas importa dizer que está muito – arriscaria afirmar, está tudo – por aferir
ainda, juridicamente, em relação aos jovens, no novo plano familiar que os confronta.

2.2.1. Alimentos devidos a filhos maiores: um problema jurídico cuja necessidade


de solução se exacerba; a importância, indireta, da Convenção sobre os Direitos
da Criança

I – os jovens vivem quase sempre com os pais, de quem são credores de


alimentos, num momento em que a tão complexa diatribe jurídica sobre os alimentos
devidos a maiores ganha um fôlego específico.
a lei n.º 122/2015, de 1 de setembro, aditou ao artigo 1905.º do código
civil um n.º 2, com a seguinte redação:

“2 – Para efeitos do disposto no artigo 1880.º entende-se que se mantém, para depois
da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu
benefício durante a menoridade, salvo se o respetivo processo de educação ou formação
profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido
ou ainda se, em qualquer caso, o brigado à prestação de alimentos fizer prova da
irrazoabilidade da sua exigência”.

no entanto, a aferição do conceito de alimentos devidos aos filhos maiores


carece de densificação. de apuramento, que só a discussão doutrinária, aliás profícua
antes já do início da pandemia, contribuirá para concretizar.
consideramos que só o entendimento de que os alimentos não devem cingir-se
nem sequer concentrar-se em questões de índole material, mas sempre, atender a
que as pessoas deverão aceder, na medida das possibilidades de quem delas cuida,

15
cf. p. 50.

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o impacto da Pandemia por covid-19: direito da Família, direitos das crianças e direitos de Género

a um padrão cultural que lhes confira oportunidades sociais e profissionais consistentes


é compatível com todo o normativo da ordem jurídica portuguesa.
de outra forma não se respeitará, consideramos igualmente, o art.º 27.º da
convenção sobre os direitos da criança, nos termos do qual:

“1. Os Estados Partes reconhecem à criança o direito a um nível de vida suficiente,


de forma a permitir o seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social.
2.Cabe primacialmente aos pais e às pessoas que têm a criança a seu cargo a responsabilidade
de assegurar, dentro das suas possibilidades e disponibilidades económicas, as condições de
vida necessárias ao desenvolvimento da criança”.

e não se respeita o preceito, sustenta-se, porque o direito da criança a nível


de vida compatível com o padrão familiar gera um direito correspetivo de que a
formação iniciada portas adentro das possibilidades da família enquanto é criança
não se trunque de forma abrupta no momento em que é atingida a maioridade,
algo que releva de um critério técnico, jamais suscetível de adequada aplicação no
decurso do processo educativo.
os filhos maiores carecem, pois, de alimentos.

II – trata-se sobretudo dos denominados alimentos educacionais, alimentos não


materiais, inscritos nos artigos 1878.º, 1879.º e 2003.º, n.º 2, todos do código civil.
a sua atribuição afere-se por critérios pautados pela normalidade e pela razoabilidade,
tendo em conta as condições subjetivas e objetivas dos casos concretos.
Recorda-se que, nos termos do artigo 1905.º, n.º 2, do código civil já citado supra,
entende-se que a pensão de alimentos estabelecida durante a menoridade do filho se
mantém depois da maioridade e até que perfaça 25 anos de idade, ressalvados os casos em
que o seu processo de educação ou de formação profissional estiver concluído antes daquela
data, tenha sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado
à prestação de alimentos fizer prova da falta de razoabilidade da mesma prestação.
conclui-se que as primeiras condições se referem ao beneficiário dos alimentos: a
sua capacidade intelectual, o seu desempenho escolar e a sua capacidade para trabalhar.
Já as segundas condições atendem aos efetivos recursos económicos de que
filho disponha: rendimentos de bens próprios, rendimentos do trabalho remunerado,
articulados com os recursos dos pais16.

16
cf. J. P. ReMÉdio MaRQues, Algumas Notas Sobre Alimentos (Devidos a Menores) «Versus» o
Dever de Assistência dos Pais para com os Filhos (Em Especial Filhos Menores), coimbra, coimbra
editora, 2000, pp. 300 e ss.

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o cumprimento da obrigação de alimentos de natureza pecuniária vertido no


artigo 2005.º, n.º 1, do código civil supõe, por parte do obrigado aos alimentos,
uma prestação de dare.
assim resulta do artigo 1905.º, n.º 1, do código civil, que vimos o n.º 2
tornar extensivo aos filhos maiores:

“1 – Nos casos de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade


ou anulação de casamento, os alimentos devidos ao filho e a forma de os prestar são
regulados por acordo dos pais, sujeito a homologação; a homologação é recusada se o acordo
não corresponder ao interesse do menor”.

o incumprimento desta prestação suscita aferir se o cumprimento coercivo


da obrigação de alimentos ao filho maior poderá ser obtido sem recurso a ação
executiva, ou seja, através do procedimento previsto no artigo 48.º do Regime
Geral do Processo tutelar cível (lei n.º 141/2015, de 08 de setembro). não é
esta a sede para desenvolver a questão17.

III – o titular do direito aos alimentos educacionais é, sem dúvida, sempre, o filho,
tal como sucede antes da maioridade. Mas, na prática, evidencia-se desde há muito a
necessidade de conferir legitimidade ao progenitor com o filho maior coabita para
prosseguir a ação destinada à fixação de pensão que tenha sido iniciada ainda durante a
menoridade. e também a legitimidade para, atingida a maioridade do filho, intentar a
ação ou recorrer a outros procedimentos necessários à efetivação do direito a alimentos.
Pois, tratando-se de uma situação judicial que confronta o outro progenitor,
nem sempre os filhos manifestam disponibilidade pessoal, reúnem condições
psicológicas para assumir este embate, sem dúvida muito complexo.

IV – vimos que lei n.º 122/2015 já referenciada, pretendeu esclarecer que a


cessação automática da pensão de alimentos aos 18 anos não se verifica, consagrando
que, nos casos em que já tinha sido fixado regime de alimentos na menoridade,
os respetivos termos mantêm-se até que o filho complete os 25 anos de idade
(artigo 1905º, nº 2, primeira parte, do código civil).

17
cf. Gonçalo oliveiRa MaGalHães, A tutela (jurisdicional) do direito a alimentos dos
filhos maiores que ainda não concluíram a sua formação profissional, Julgar online. disponível em
julgar.pt/wp-content/uploads/2018/03/20180329-aRtiGo-JulGaR-direito-a-alimentos-dos-filhos-
maiores-que-ainda-n%c3%a3o-conclu%c3%adram-forma%c3%a7%c3%a3o-profissional-
Gon%c3%a7alo-oliveira-Magalh%c3%a3es.pdf

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o impacto da Pandemia por covid-19: direito da Família, direitos das crianças e direitos de Género

a lei n.º 122/2015 é uma lei interpretativa, integrando-se na lei interpretada


e aplicando-se retroativamente.
o artigo 989.º, n.º 3, do código de Processo civil, na redação dada na lei
n.º 122/2015, reconhece legitimidade judicial ao progenitor convivente para intentar
a ação de alimentos:

“3 – O progenitor que assume a título principal o encargo de pagar as despesas dos


filhos maiores que não podem sustentar-se a si mesmos pode exigir ao outro progenitor o
pagamento de uma contribuição para o sustento e educação dos filhos, nos termos dos
números anteriores”.

trata-se de uma legitimidade indireta18, a qual se mantém sempre que importe


prosseguir ações intentadas ainda durante a menoridade, mas que, nos termos do
artigo 989.º, n.º 2, do código de Processo civil, devam chegar a final.
atende-se a este outro número do preceito:

“2 – Tendo havido decisão sobre alimentos a menores ou estando a correr o respetivo


processo, a maioridade ou a emancipação não impedem que o mesmo se conclua e que os
incidentes de alteração ou de cessação dos alimentos corram por apenso”.

a questão é aqui aflorada, porque a ação para fazer valer o direito a prestação de
alimentos a filhos maiores se revela sempre muito complexa, reiteramos, e deveras
melindrosa no plano familiar. convoca tantas vezes, e em contraponto, a necessidade
financeira e as sequelas emocionais, também do progenitor que convive com o filho
maior e que tem de voltar a relacionar-se para este este efeito com o outro progenitor,
no interesse do filho; e a relutância, já referida, do filho maior em envolver-se
num litígio com o progenitor obrigado aos alimentos que não cumpre.

V –Já anteriormente às alterações do regime de alimentos a filhos maiores pela


lei n.º 122/2015 fora sustentado pelo acórdão do tribunal da Relação de Guimarães
de 19 de junho de 2012, processo n.º 599-d/1998.G1:

“A sentença que fixou alimentos devidos a menores vale como título executivo após
a sua maioridade, considerando que aquela prestação alimentar se mantém nos casos

18
cf. Rita lobo XavieR, Falta de autonomia de vida e dependência económica dos jovens: uma
carga para as mães separadas ou divorciadas?, lex Familiae, ano 6.º, n.º 12, Jul./dez. 2009, pp.
15-21.

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previstos no artigo 1880.º do Código Civil, sem que tal assuma a natureza de uma nova
obrigação”19.

terá a pandemia efeitos sobre o problema? Potencia ainda mais o conflito,


com elevada probabilidade.
Quanto aos filhos maiores, as dificuldades em terminar o seu ciclo de estudos
e correspetiva carência de alimentos pode exacerbar-se.
do lado dos progenitores, motivos de ordem económica e profissional fun-
damentadores de dificuldade de cumprimento, gerados pelos efeitos da pandemia,
são por demais previsíveis.
será caso de intervir o legislador? terão os tribunais meios ágeis para solucionar
os dissensos? deverá e poderá o estado ponderar meios de suprir estas necessidades
que se verificam de parte a parte e erigi-las entre as suas prioridades?
não é apenas o direito a alimentos educacionais que não diminui atingida a idade
adulta; é igualmente a sua dimensão que não diminui. ao invés, as despesas com
educação e formação tornam-se muito exigentes nas fases escolares mais avançadas.
É certo que não se pode desatender a realidade: um momento de crise e
eventual perda de rendimentos para as famílias pode gerar verdadeiras impossibilidades
de adequação do padrão habitual ao momento que se enfrenta. Mas o escrutínio
da efetiva impossibilidade de investir na educação dos filhos maiores deve ser muito
exigente e rigoroso, como o deve igualmente ser, a problematização de investimentos
públicos neste domínio.

2.3. Exercício das responsabilidades parentais em crise adensada

I – os problemas mais focados pelos estudiosos do direito da Família que


realizaram webinars20 durante e após a fase de confinamento caminharam, todavia,
por outros domínios que não o da (eventual) perturbação relativa ao direito de
alimentos a filhos maiores.
disseram respeito ao exercício das responsabilidades parentais, sobretudo à
guarda partilhada das crianças filhas de casais separados e às dificuldades, reais
nuns casos, alegadas noutros, de possibilidade das visitas.
a liberdade de circulação afetou, durante o confinamento – como afeta com
certeza na altura em que se escreve – a possibilidade de os progenitores que vivem

19
disponível em www.dgsi.pt
20
cf. ecija.com/sala-de-prensa/webinar-derecho-de-familia-y-el-covid-19/

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o impacto da Pandemia por covid-19: direito da Família, direitos das crianças e direitos de Género

noutro distrito ou concelho de visitarem os seus filhos. como também gerou


grandes problemas nos casos de progenitores doentes, em quarentena, ou exercendo
profissões de risco para a saúde. as situações do afastamento voluntário e ditado
por razões atendíveis não geraram por si, como não geram em regra, problemas
específicos nem conflitos.
a pandemia não teve, diriamos, com a reserva que se impõe, especificidades
nesta matéria. exacerbou porventura os problemas que em regra se identificam.

II – e originou situações particularmente dramáticas da precarização do acesso


a cuidados de saúde.
lembra-se o artigo 24º da convenção sobre os direitos da criança:

“1. Os Estados Partes reconhecem à criança o direito a gozar do melhor estado de


saúde possível e a beneficiar de serviços médicos e de reabilitação. Os Estados Partes velam
pela garantia de que nenhuma criança seja privada do direito de acesso a tais serviços de
saúde.
2.Os Estados Partes prosseguem a realização integral deste direito e, nomeadamente,
tomam medidas adequadas para:
a) Fazer baixar a mortalidade entre as crianças de tenra idade e a mortalidade infantil”.

em momento de incerteza, o acesso aos serviços de saúde e concretamente à


vacinação nem sempre foram, por receio, devidamente acautelados, pese o cuidado
público de promover o acesso das crianças a tais cuidados, apelando-se aos pais e
outros cuidadores no sentido de que o fizessem.
o dever de prover aos cuidados de saúde das crianças integra de forma muito
instante as responsabilidades parentais. a condescendência dos poderes públicos
durante a primeira fase da pandemia fez-se acompanhar, como continua a acontecer,
de discurso pedagógico de apelo à responsabilidade dos progenitores.
Mas, como atuarão as instâncias judiciais, doravante, face a eventuais incum-
primentos?

III – os comportamentos de violação das responsabilidades parentais que se


traduziram em violência sobre crianças mostraram com grande evidência que tanto
importa cumprir a convenção sobre os direitos da criança no artigo 12.º:

“1. Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de


exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente
tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade. 2.

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Para este fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e ad-
ministrativos que lhe respeitem, seja diretamente, seja através de representante ou de organismo
adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional”.

com efeito, só a audição das crianças permite entender os riscos que correm junto
de progenitores agressivos ou das suas famílias, situação que o fechamento social em que
as pessoas se encontram potencia, em parte, por potenciar sentimentos de impunidade.

IV – cita-se a este propósito o tão importante, porque assertivo, excerto do


acórdão do supremo tribunal de Justiça de 14 de dezembro de 2016, processo
n.º 268/12.0tbMGl.c1:

“A criança tem direito a ser ouvida e a sua opinião deve ser tida em consideração
nos processos que lhe digam respeito e a afectem. Este é um direito que (...) deve ser tido
em conta na interpretação de todos os outros direitos.”.

acrescentando:

“(...) se antes da entrada em vigor da Lei nº. 141/2015 (que aprovou o atual RGPTC)
se exigia que o tribunal ouvisse as crianças com mais de 12 anos e, quanto àquelas que tivessem
idade inferior, ponderasse a sua maturidade e justificasse a decisão de não as ouvir – salvo se a
criança tivesse uma idade em que é notória essa falta de maturidade, naturalmente –, após a
sua entrada em vigor essa ponderação não pode deixar de se revelar na decisão – continuando
a ser dispensada quando for notório que a baixa idade da criança não a permite ou aconselha”.

e ainda:

“(...) a audição da criança num processo que lhe diz respeito não pode ser encarada apenas
como um meio de prova, com o qual se pretende fazer prova de um facto relevante no processo.
É muito mais vasta a finalidade da audição. Trata-se antes de mais de um direito da criança
a que o seu ponto de vista seja considerado no processo de formação da decisão que a afecta.
(...). E daí que não seja “(...) “adequado aplicar o regime das nulidades processuais à falta de
audição. Entende-se antes que essa falta afecta a validade das decisões finais dos correspondentes
processos ( por corresponder a um princípio geral com relevância substantiva...).”

V – e em entendimento semelhante se louva a decisão do tribunal da Relação


de coimbra de 8 de maio de 2019, processo n.º 148/19. 8t8cnt-a.c 1:

“I – O fim legal supremo que deve presidir à regulação do exercício das responsabilidades
parentais é o superior interesse da criança.

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II – Tratando-se de um conceito genérico, o interesse superior da criança deve ser


apurado/encontrado em cada caso concreto, embora tendo sempre presente a ideia do
direito da criança ao seu desenvolvimento são e normal, no plano físico, intelectual, moral,
espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade, ou seja, a ideia de que, dentro
do possível, tudo deverá ser feito de modo a contribuir para desenvolvimento integral da
criança em termos harmoniosos e felizes.
III – E é precisamente com vista a alcançar esse interesse superior da criança que,
além de outros, se consagrou o direito da criança a ser ouvida e a exprimir a sua opinião
em processos que lhe digam respeito e a afetem, tendo em conta a sua idade e a sua
capacidade de compreensão/discernimento dos assuntos em discussão.
(...)
IV – Tal não significa que na decisão a tomar se exija que ela respeite integralmente
essa opinião, mas tão só, pelo menos, que ela seja considerada na ponderação dos interesses
em causa, e tendo sempre em vista o interesse superior da criança.
V – A não audição de uma criança em processo que lhe diga diretamente respeito,
por visar a tomada de medida suscetível de a poder afetar no futuro, não pode ser encarada
apenas como um meio de prova, mas antes como a violação de um direito daquela, e como
tal podendo vir a conduzir à nulidade da decisão que vier a ser proferida”.

como evoluirá a situação face a menor acesso das crianças aos infantários,
escolas, atl, bem como às vicissitudes de famílias a cuja falta de estruturação
acrescem dificuldades súbitas de ordem social, de ordem laboral?
Qual a resposta dos decisores do direito?
aplicação de mecanismos (indesejados) de tolerância?
implementação das decisões de inibição do exercício das responsabilidades
parentais e aumento do recurso à institucionalização?

3. Igualdade de Género e influxo da pandemia sobre o cuidado da família

3.1. Direitos de Género e violência doméstica: um problema também a montante


do Direito da Família em que a pandemia intensifica a vertente familiar

I – Às situações de pandemia são muito vulneráveis as relações jurídicas familiares


em crise ou as relações pós-familiares geradoras de conflitos sérios, já do foro penal.
as primeiras situam-se, como já ficou referido a propósito do exercício das respon-
sabilidades parentais, claramente no âmago do tratamento alvo do direito da Família.
o jornalista e pedagogo Giorgi liparishvili, reconhecido apoiante da campanha
Mencare, sustenta que os homens estão a tomar consciência, também eles, de
quanto é difícil providenciar cuidados às crianças num tempo em que, reconhece-se:

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“(...) agora que todos os pais são professores e toda a casa se transforma numa escola” 21.

as segundas carecem de respostas penais. são situações de não Direito da


Família, como sucede com a prática de violência doméstica. É assim porque,
embora a violência doméstica surja as mais das vezes em contexto familiar, a sede
própria do seu enquadramento jurídico é o direito Penal.
não significa isto, obviamente, que o direito da Família lhe seja indiferente,
designadamente no que respeita à obtenção do divórcio por parte do cônjuge que é
vítima desta violência, bem como do extremo cuidado com a sua verificação no momento
de determinar a quem incumbe o exercício das responsabilidades parentais.
a dimensão penal do tema, a natureza pública do crime, visam justamente,
cumprindo a convenção de istambul, assumir juridicamente a violência doméstica
como uma questão jurídica do foro público.
Mas o reconhecimento, que a convenção de istambul assume, de que a
violência de género tem subjacentes relações distorcidas de poder, também na
esfera privada, impõe aos estados signatários um olhar jurídico de género muito
instante sobre o direito de Género na família.

3.2. Igualdade de Género em crise exacerbada e Direito da Família. A Convenção


de Istambul

I – as pandemias e os seus efeitos nefastos familiares afetam as crianças ao nível


da violência doméstica, como ficou amplamente demonstrado no caso porventura
mais dramático trazido a lume durante o confinamento, quando uma criança foi vítima
de homicídio durante a fase em que se deslocou a casa de um dos progenitores e
alegadamente em virtude disso: por não ser desejada na casa, parental, que a recebeu.
e afetam igualmente a igualdade de Género.

II – acerca da igualdade de Género há temas ventilados durante as pandemias


e os estudos que sobre elas incidem; e outros tantos temas que se deixavam obnubilar
no passado, não sendo, todavia, nada irrelevantes.
os temas que poderemos denominar de recorrentes ou clássicos das pandemias
são a sobrecarga familiar, a conciliação entre vida privada e vida familiar, o enfrentamento
de mais responsabilidades com as crianças e com os idosos.

21
cf. organização das nações unidas, Igualdad de género en tiempos del COVID-19. disponível
em un.org/es/coronavirus/articles/igualdad-genero-covid-19

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o impacto da Pandemia por covid-19: direito da Família, direitos das crianças e direitos de Género

III – entre os atuais temas mais abordados está a violência doméstica exercida
sobre o cônjuge ou o unido de facto: o perigo acrescido de colocar sob o mesmo
teto vítima e agressor, num ambiente fechado e mais permeável tanto à violência
psicológica como à violência física. bem se compreende que assim aconteça no
primeiro quartel do século XXi e estando em vigor a convenção de istambul e os
reflexos normativos que já teve no ordenamento jurídico português.
citam-se, pela indeclinável importância que revestem, excertos da convenção
de istambul:

“Preâmbulo:
Os Estados membros
(...) Reconhecendo que a natureza estrutural da violência contra as mulheres é baseada
no género, e que a violência contra as mulheres é um dos mecanismos sociais cruciais
através dos quais as mulheres são mantidas numa posição de subordinação em relação aos
homens;
(...)
Reconhecendo que as mulheres e as raparigas estão expostas a um maior risco de
violência baseada no género que os homens; Reconhecendo que a violência doméstica afecta
desproporcionalmente as mulheres e que os homens podem também ser vítimas de violência
doméstica; Reconhecendo que as crianças são vítimas da violência doméstica, inclusivamente
como testemunhas de violência no seio da família; Aspirando a criar uma Europa livre
de violência contra as mulheres e de violência doméstica (...)”.
(...)
Acordaram o seguinte:
Capítulo I – Objetivos, definições, igualdade e não-discriminação, obrigações gerais
“Artigo 3º – Definições Para os efeitos da presente Convenção: a “violência contra
as mulheres” é entendida como uma violação dos direitos humanos e como uma forma de
discriminação contra as mulheres e significa todos os actos de violência baseada no género que
resultem, ou sejam passíveis de resultar, em danos ou sofrimento de natureza física, sexual,
psicológica ou económica para as mulheres, incluindo a ameaça do cometimento de tais
actos, a coerção ou a privação arbitrária da liberdade, quer na vida pública quer na vida
privada; b “violência doméstica” designa todos os actos de violência física, sexual, psicológica
ou económica que ocorrem no seio da família ou do lar ou entre os actuais ou ex-cônjuges
ou parceiros, quer o infrator partilhe ou tenha partilhado, ou não, o mesmo domicílio que
a vítima; c “género” designa os papéis, os comportamentos, as atividades e as atribuições
socialmente construídos que uma sociedade considera apropriados para as mulheres e os
homens; d “violência contra as mulheres baseada no género” designa toda a violência dirigida
contra uma mulher por ela ser mulher ou que afete desproporcionalmente as mulheres; e
“vítima” designa toda a pessoa física que esteja submetida aos comportamentos especificados
nos pontos a) e b); f “mulheres” inclui as raparigas com menos de 18 anos de idade”.

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Margarida silva Pereira

IV – o plano simbólico que o direito da Família também cumpre, enquanto


fomentador e reforçador dos compromissos entre os membros dos agregados
familiares, é muito relevante.
não significa este reconhecimento da dimensão simbólica do direito da
Família aderir à tese expendida por bourdieu:

“...a família é, certamente, uma ficção, um artefacto social, uma ilusão no sentido
mais vulgar do termo”. Significa, sim, ter em conta que a intervenção jurídica do Direito
da Família sobre as relações pessoais, reconhecendo formas familiares, implementando os
direitos atribuídos a outras e sublinhando a ilicitude de comportamentos que, na esfera
privada, atentam contra a dignidade e a liberdade das pessoas, tem uma evidente repercussão
no imaginário coletivo sobre o bem e o mal, o certo e o errado na vida familiar” 22.

Mas significa reconhecer que os direitos das pessoas na família devem ser
muito sublinhados, porque tal reforça a obrigação de compromisso que se impõe.
a tutela da sua dimensão afetiva não deverá nunca ser descurada.
não é de considerar que juscientificamente a violência doméstica está no seu
seio. não está: as patologias que determinam situam-se na esfera criminal.
Mas os seus reflexos fazem-se sentir no direito da Família: quer no acesso ao
divórcio por evidente rutura da vida conjugal, quer pela imediata inibição do
exercício das responsabilidades parentais que origina.

V – estudos recentes sobre outra pandemia vieram demonstrar que, no final,


os ganhos sociais e correspetivamente políticos (a saber, no que respeita ao acesso
ao direito à capacidade eleitoral) se verificaram relativamente às mulheres.
Mas trata-se de ganhos remotos, verificados na fase pós-pandémica, em que
nos não situamos. e trata-se igualmente de ganhos que não se vislumbra terem
lugar paralelo na actual pandemia.
com efeito, apesar de se ter verificado um avanço dos direitos das mulheres
no acesso ao mercado laboral após a pandemia do século XX, conhecida por gripe
espanhola, a verdade é que se tratou de um resultado a jusante. a pandemia então
ocorrida, também ela, confinou as mulheres a uma sobrecarga doméstica com os
cuidados com as crianças, a escassez do rendimento.
lemos na obra de catarine arnold23:

22
cf. PieRRe bouRdieu, Espíritu de familia, Antropología Social y Política. Hegemonía y poder:
el mundo en movimento, coord. de M.R. neufeld, M. Grinberg, s. tiscornia, e s. Wallace, buenos
aires, eudeba, 1998, p. 64
23
Publicada por Michael o’Mara books limited em londres, nos finais de 2018.

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o impacto da Pandemia por covid-19: direito da Família, direitos das crianças e direitos de Género

“Em muitos países não havia homens jovens para prosseguirem os negócios familiares,
para dirigir a agricultura, para exercer profissões e ofícios, casar e criar os filhos, substituindo-se
àqueles que haviam morrido. E a falta de trabalhadores causada pela gripe permitiu às
mulheres acederem ao mercado de trabalho”.

3.3. Igualdade de Género e responsabilidades parentais não exercidas pelas mulheres


profissionais de saúde: um tema a investigar

I – também é de salientar que as questões do exercício das responsabilidades


parentais convocam o jusfamiliarismo em termos cada vez mais complexos na
dimensão do género.
À medida que a diferenciação profissional das mulheres se verifica – aspeto
que a atual pandemia muito evidenciou – cresce a taxa de profissionais de saúde
do sexo feminino mais diferenciadas.
este é, sem dúvida, um elemento diferenciador da incidência da pandemia
sobre o género e com reflexos familiares.
em situações de calamidade sanitária do passado, as mulheres foram chamadas
ao serviço de saúde sobretudo como auxiliares e como enfermeiras.
agora foram-no igualmente como enfermeiras, mas portas adentro de um
sistema de saúde que qualificou muito mais os profissionais de enfermagem. e
foram-no como médicas.
e por aqui se acentua a antinomia com reflexos psicológicos não menos evidentes.
Pois, se as mulheres continuam a ser cuidadoras em percentagem dominante,
este cuidado não as desonera pela circunstância de terem profissões mais diferenciadas.
isto foi sobretudo patente com a sua chamada ao protagonismo nos serviços de
saúde.

II – está ainda obnubilada, nos dados disponíveis acerca dos efeitos da atual
pandemia, a desigualdade que a situação pode ter gerado entre mulheres mais
diferenciadas não só cientificamente, mas também económica e socialmente, e as
outras. as pandemias são, é sabido, profundamente discriminatórias também em
razão do estatuto social que se detém.
Há, mercê da democratização da sociedade e em particular do ensino, cada
vez mais mulheres na ciência24 que emergem de famílias menos diferenciadas.

24
no entanto, as mulheres representam ainda, de acordo com os dados disponíveis, apenas 30%
dos cientistas a nível mundial. cf. Women in Science, disponível em uis.unesco.org/sites/default/
files/documents/fs55-women-in-science-2019-en.pdf

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como conciliaram, em Portugal, a sua dedicação intensa à investigação


nesta fase com o cuidado familiar? Que impacto teve a conciliação sobre as suas
famílias?
bem se antevê que, embora aplaudidas e nomeadas publicamente, por igual,
as mulheres profissionais de saúde mais diferenciadas, enfermeiras e médicas, nem
sempre tiveram uma retaguarda igual.
isto levanta outros problemas mais subtis. É vidente que a montante da
retaguarda que uma mulher tem evidencia-se por regra a sua condição social, e
com ela, o apoio que resulta desse estatuto. a importância da família em que cada
mulher, médica ou enfermeira, se insere, e sua e capacidade de resposta na ajuda
ao cuidado das crianças é muito importante no modo como é psicologicamente
e financeiramente onerada pelo trabalho que lhe acresceu.
como apreciarão os tribunais de família as possibilidades desiguais das mulheres
profissionais de saúde ou que neste momento trabalham, em evidente sobrecarga,
na investigação médica, caso sejam apodadas de menos cumpridoras das suas
responsabilidades parentais?

III – e quanto às mulheres que têm vida familiar, casadas, em união de facto,
ou que têm famílias monoparentais com filhos a seu cargo?
de uma forma mais geral, que dizer dos casos em que todas as mulheres, mesmo
as mais diferenciadas, em teletrabalho, dispõem de menos tempo para cuidar dos
filhos, numa tentativa altamente complexa de conciliação familiar e profissional?
o estudo supra citado revela:

“Para um grupo mais restrito de inquiridos, sobretudo os que vivem em famílias


com filhos menores (casal com filhos, famílias monoparentais) e/ou em famílias complexas,
com várias gerações em coresidência, é sobretudo a conciliação entre a vida profissional
e a vida familiar que é mais difícil de gerir. São mais as mulheres do que os homens
a referir este problema. O stress ligado às rotinas alteradas tem a ver com o facto de
ter de trabalhar e cuidar ao mesmo tempo, seja de crianças menores, seja de idosos e
filhos menores ao mesmo tempo. São inquiridas em teletrabalho que têm de apoiar os
trabalhos escolares de crianças ou de cuidar ao mesmo tempo de um idoso acamado e
filhos menores, e que sentem a sua capacidade e disciplina habitual de trabalho alterada
e posta em causa. Para alguns jovens também é muito difícil conciliar o estudo e a
vida familiar, devido, por exemplo, à exiguidade do espaço da casa de família e à falta
de privacidade”.

encontram-se depoimentos muito eloquentes:

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o impacto da Pandemia por covid-19: direito da Família, direitos das crianças e direitos de Género

“O mais difícil é ter de trabalhar e ter de dar apoio aos miúdos nas tarefas que os
professores enviam e também dar-lhes aulas em casa com os materiais que podemos” (M,
40, casada, a viver com marido e 3 filhos, em teletrabalho).

“(o mais difícil é) a manutenção da capacidade de trabalho e o bem-estar psicológico


começa a ficar em causa. (...) Vivo sozinha com o meu filho menor. Tenho de assegurar
todas as compras e todas as tarefas domésticas. Não é fácil conjugar isso com o teletrabalho
(dispondo de recursos insuficientes para o efeito), com a necessidade de acompanhar
diariamente o meu filho e os meus pais que vivem longe e têm ambos mais de 70 anos”
(M, 45, solteira, a viver com filho menor)”.

“No caso de uma casa pequena com estudantes universitários e no secundário, e


adultos a trabalhar e com conferências, torna-se muito difícil o trabalho. Para além da
constante falta de privacidade” (M, 18, solteira, a viver com pais e irmãs)”.

“(o mais difícil é) A família em casa. Uma jovem a estudar, uma idosa com patologias
várias, muito ansiosa com tudo o que se passa, o marido com doença crónica e que continua a
trabalhar e faz as compras, eu também com várias patologias, professora em exercício. No conjunto
tudo muito difícil de articular (...) Faço tarefas domésticas, trato da mãe dependente, dou aulas
usando plataformas digitais, corrijo as tarefas propostas aos alunos, dou feedback aos directores
de turma, elaboro docs vários, faço as refeições (M, 61, casada, a viver com marido, mãe e filha)”25.

IV – o fecho das escolas, tanto do ensino básico, como secundário e até


superior, foi um mau aliado do teletrabalho. trabalhar em casa e cuidar dos filhos,
eles próprios com ensino a distância, determinou ainda maior sobrecarga na sempre
difícil conciliação entre a vida profissional e familiar. vários estudiosos referem
que é muito possível que a probabilidade de gerar fenómenos de ansiedade e de
depressão tenha aumentado, sendo estas situações, de acordo com estudos existentes,
sobretudo afectam a população feminina.
e todo um estudo que está por fazer e a que o “confinamento” das conclusões
retiradas por Richard Gardner ao psicologismo acerca da atitude das mães para
com os filhos em situação de crise conjugal é totalmente indiferente, omisso.
como bem se adverte em sumário do acórdão do tribunal da Relação de
Guimarães de 19 de outubro de 2017, processo n.º 1020/12.8tbvRl-e.G1:

“1. A alienação parental, não tendo sido cientificamente reconhecida como uma síndrome,
consubstancia uma prática social, de afastamento emocional do filho face a um dos progenitores,

25
cf. pp. 43-44.

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por acção intencional, injustificada e censurável do outro, nomeadamente porque determinada


por interesse egoístas e frívolos próprios, e não pelo «superior interesse» do filho.
(...)
III. O progenitor a quem tenha sido retirada a guarda de filho menor, confiado ao
outro progenitor, por se ter provado a alienação que fazia junto daquele da figura deste,
e que depois, não só recebe de volta em sua casa o filho fugido, como persiste na sua conduta
de alienação parental – contribuindo desse modo para o corte total de laços entre o menor
e o progenitor alienado –, incumpre culposamente o regime de exercício de responsabilidades
parentais antes fixado (art. 41º do R.G.P.T.C.)” 26.

V – conclui-se que todo o direito da Família mostra fragilidades na adaptação


e consequente aplicação das suas normas em tempo de anomia. até aí, não se
estranha. Mas lamenta-se sem dúvida a indiferença, senão mesmo a complacência
com que se sobrepõem outros temas a questões jurídicas tão importantes. como
analisar e responder com políticas económicas a questões sociais sem atender a
causas que as determinam? a fragilização da capacidade de trabalho em casa, durante
e depois do confinamento, é muito relevante e importa que as políticas públicas
atendam ao fenómeno. Há muito a convocar na ciência Jurídica nestas matérias.

4. Confinamento, conciliação entre vida privada e familiar e estatuto


patrimonial dos cônjuges: a resposta jurídica que se impõe

4.1. Considerações preliminares

I – Referenciámos os temas complexos do exercício das responsabilidades


parentais agudizado em pandemia e os direitos de género, fragilizados no seu
exercício. Mas não vemos que, do ponto de vista jurídico-familiar, sejam temas
que se esgotem em si mesmos. como sempre, o seu exame jurídico não deve
descurar todo o comprometimento esquecido as mais das vezes, muito subliminar,
mas nem por isso menos responsável, que o estatuto patrimonial dos pais juridicamente
reconhecido determina nesta matéria.
e, também em razão disso, olhando em pesquisa os temas soerguidos, chamou-nos
particularmente a atenção um tópico que em Portugal pouca importância teria.
em já citado webinar para thomson Reuters sobre a pandemia e o direito da
Família27, sublinhava a juíza Graciela Medina um efeito nefasto bastante curioso.

26
disponível em www.dgsi.pt.
27
cf. nota 1.

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o impacto da Pandemia por covid-19: direito da Família, direitos das crianças e direitos de Género

evidenciava que a pandemia e a quarentena haviam gerado uma situação


particular em sede jusfamiliar no que respeita às convenções antenupciais, por isso
que se tornara impossível mudar então o regime de bens. com efeito, a exigência
se presencialidade para efetuar alterações a uma convenção antenupcial assim o
determinava. era, assim, a liberdade de eleger o novo, desejadamente alterado,
regime de bens, que ficara coartado em razão do confinamento.

II – À primeira vista, este é um impacto totalmente à margem do direito da


Família português, posto que, entre nós, vigora o princípio da imutabilidade das
convenções antenupciais (artigo 1714.º do código civil). não ocorre mudar o
regime de bens, ocorrerá no limite desejar essa mudança, e não é provável que o
impacto da doença contagiosa e os cuidados requeridos tenham erigido esta questão
como prioridade dos cônjuges portugueses.
Porém, olhando mais fundo, um lugar paralelo desta limitação surge noutro
ponto. com efeito, as convenções antenupciais são apenas um dos ângulos de
observação e um dos vetores de incidência do estatuto patrimonial dos cônjuges.
e face ao estatuto patrimonial em toda a sua abrangência, a questão colocou-se, se
bem que por outros prismas. os efeitos patrimoniais do estatuto de casado não desaparecem
com o confinamento ou com a pandemia. Podem mesmo exacerbar-se e muito. importa
saber em que medida o direito da Família tem a capacidade requerida para os dotar de
resposta adequada. o problema se coloca aí onde a liberdade existe. e coloca-se porque
os efeitos patrimoniais do casamento não desaparecem nestas alturas.

III – Releva este olhar sobre lições e consequências a extrair da pandemia no


direito da Família de uma visão encarniçadamente economicista?
depois do 25 de abril de 74, a maior alteração na vida social e política portuguesa
que determinou modificações jurídicas familiares de fundo, tantas vezes (então)
cunhadas de marxistas, ocorre perguntar o que escreveria Marx sobre isto. não é o
seu materialismo dialético que aqui se evidencia, nem muito menos, o facilitismo
da sua visão racional e promissora para resolver os problemas humanos.
Mas é ainda, sem dúvida, a consciência económica que ressalta e importa ter
em conta na abordagem jurídica. Pois foi em nome dela e foi através dela que o
direito da Família construiu um regime patrimonial portas adentro do casamento
que com as alterações posteriores, sobretudo à Reforma de 77, se mostra cada vez
mais nefasto para os progenitores.
não se trata, assim, de aplicar a análise económica do direito ao direito da
Família: uma metodologia que consideramos deveras redutora da compreensão
do jusfamiliarismo.

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assinala Rita lobo Xavier a este propósito:

“...a análise económica do Direito não pode constituir ‘Ciência do Direito’, uma vez que
não tem em conta a justiça como princípio regulativo do Direito (...) mas apenas a eficiência»28.

Mas é muito importante atender ao papel que o estatuto patrimonial das


famílias desempenha em situações de crise financeira e de alteração das perspetivas
e necessidades quanto aos modelos de cuidado familiar.

4.2. Responsabilidade dos cônjuges pelas dívidas para ocorrer aos encargos normais
da vida familiar e em proveito comum do casal: a perceção dos conceitos legais
abertos que originam iniquidade por isso

I – concentramo-nos no estatuto patrimonial dos cônjuges.


Justifica esta opção, desde logo, a circunstância de, a despeito do grande
aumento que as uniões de facto registam em Portugal, serem dominantes as famílias
que optam pelo casamento.
Por outro lado, o estatuto patrimonial dos cônjuges é particularmente denso
nos seus efeitos, diversamente do que sucede com a escassez normativa referente
aos efeitos patrimoniais das uniões de facto29.
É, sem dúvida, nas situações de conjugalidade que se evidenciam as maiores
desconformidades entre o estatuto legal existente e a vida comum atual, fragilidades
que se antecipa, acicatadas pelo momento que se vive.
e ainda, porque a, algumas vezes, aventada sugestão de aproximar o estatuto
patrimonial do casamento à união de facto não deve arredar-se da lição que o
desfasamento dos efeitos patrimoniais do casamento verificado nos dias de hoje
permite retirar.
e, se numa primeira fase este estatuto patrimonial foi alterado em Portugal
em nome do princípio da igualdade dos cônjuges, decorrente da constituição
(artigos 13.º e 36.º) na administração dos bens e no princípio da sua autonomia.

II – Para além de todos os efeitos conflituais que sempre resultam de um


regime patrimonial conjugal ou familiar, é impensável que a desavença dos cônjuges

28
Ensinar Direito da Família..., p. 90.
29
cf. sobre a questão cf. GuilHeRMe de oliveiRa, Notas sobre a Lei n.º 23/2010, de 30 de
Agosto (alteração à Lei das Uniões de Facto), Revista Portuguesa de direito da Família, ano 7, n.º 14,
coimbra, coimbra editora, Julho/dezembro de 2010, p. 139.

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o impacto da Pandemia por covid-19: direito da Família, direitos das crianças e direitos de Género

durante o casamento e na pós-conjugalidade por este motivo não ditem consequências


de ordem pessoal, com reflexos entre eles e sobre os filhos.
não é o caso de os pecados dos pais onerarem os filhos, é o caso de os pecados
do direito dos pais recaírem sobre a fragilidade jurídica dos filhos. se a convenção
sobre os direitos da criança não é, definitivamente, apenas uma cartilha projetual,
há que olhar, também por causa dos direitos das crianças, as suas imposições a este
nível. afora e em consonância com todas as suas aliadas obvias: a garantia da justiça
nas normas patrimoniais da família está por rever, sem dúvida.
Poderia começar pelos temas que mais acutilantemente vêm sendo tratados.
apercebemo-nos de que muito pouco há a acrescentar. a pandemia não os originou,
apenas os recriou.
a reconfiguração não é menos densa, nem menos grave, tem um habitat
próprio.
não desaparecem desde logo os regimes de bens nem de responsabilidades
por dívidas, que o código civil estrutura virtuosa e extensamente. têm-se presentes,
sobretudo, os artigos 1678.º a 1697.º, conjugados, necessariamente, com os
preceitos referentes aos regimes de bens dos artigos 1717.º a 1736.º, todos do
código civil.

4.3. Administração dos bens do casal e responsabilidade por dívidas. Diferentes


perceções sobre as prioridades familiares durante a pandemia e efeitos na contração
de dívidas: algo muito plausível

I – ora, como se refletiram as aporias do regime de administração dos bens


do casal e da responsabilidade pelas dívidas contraídas pelos cônjuges na circunstância
social e económica da pandemia?
em confinamento, os homens parecem ter ficado menos em teletrabalho em
razão da sua colocação em funções de maior visibilidade no mercado de trabalho.
Foram sobretudo as mulheres que se oneraram com a conciliação.
e foram as mulheres, também, que se mostraram mais apreensivas quanto ao
futuro, que enfrentaram mais dificuldades em lidar com os problemas.
lê-se no estudo:

“São as mulheres entre 35 e 44 anos, e cujo rendimento é habitualmente parco para


a vivência normal, quem mais dificuldade sente em gerir as atuais restrições. No extremo
oposto, são homens, com mais de 65 anos e com rendimentos que lhes permitem viver de
forma confortável, que menos dificuldades revelam em relação às atuais restrições. De
notar ainda que, relativamente à idade, as pessoas mais jovens afirmam estar a ter mais

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dificuldades com as restrições do que todos os restantes escalões etários (à exceção das pessoas
com 35 a 44 anos)” 30.

com efeito, o estudo mostra-as mais motivadas com o cuidado do que com
as carreiras:

“‘A saúde da minha família’ é a prioridade, sobretudo para as mulheres. As preocupações


centradas na família mais próxima são intensas em todas as franjas inquiridas”31.

vivemos num país em que o salário é por regra bem comum (é-o no regime
legal supletivo vigente, de comunhão de adquiridos, nos termos do artigo 1724.º,
alínea a), do código civil) e responde pelas dívidas próprias e comuns, por esse
facto. com efeito, o salário do cônjuge contraiu dívida da sua responsabilidade
responde ao mesmo tempo que os seus bens próprios, nos termos do artigo 1696.º,
n.º 2, alínea b), do código civil.
independentemente de saber algo que tanto importa, concretamente, a quem
mais afetou a perda de rendimentos, a preocupação com o cuidado, o apego aos encargos
da vida familiar e as responsabilidades patrimoniais resultantes avultam naqueles pontos
em que o seu regime mais se mostra desadaptado, pouco equitativo.

II – vale, logo por isso, muito a pena retomar o ponto que se pretende abordar
sobre o regime jurídico da administração dos bens do casal.
o referente da casa como local de trabalho, ainda que subsidiário, parece ter
vindo para se prolongar. e mesmo que tenda para a simetria entre os sexos no
desempenho em teletrabalho, as perceções do que é mais importante consumir,
ou daquilo em que é mais importante investir, que já divergiam de forma acentuada,
divergirão, talvez, ainda mais.
a administração dos bens na conjugalidade não tem como ficar indiferente
a este circunstancialismo.
como respondem as normas do direito da Família ao problema?
nos termos do artigo 1691.º, n.º 1, alínea b), do código civil, responsabilizam
ambos os cônjuges as dívidas contraídas para ocorrer aos encargos normais da vida
familiar (contraídas antes ou depois da celebração do casamento).
Por outro lado, retira-se da alínea c) do mesmo n.º 1 do artigo 1691.º do
código civil que responsabilizam também ambos os cônjuges «as dívidas contraídas

30
cf. p. 34.
31
cf. p. 47.

482
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o impacto da Pandemia por covid-19: direito da Família, direitos das crianças e direitos de Género

na constância do matrimónio, pelo cônjuge administrador em proveito comum


do casal e nos limites dos seus poderes de administração».
e tem-se em conta que o proveito comum do casal não se presume, salvos os
casos expressos na lei (n.º 3 do artigo 1691.º do código civil).

III – É interessante – direi, muito importante – questionar se, porventura, ocorrer


aos encargos da vida familiar e procurar o proveito comum, nesta situação, se truncam
em razão da situação profissional, que não necessariamente, em razão do género.
É muito prematuro retirar conclusões.
no entanto, a lacuna de dados não é correspetiva de lacuna de antecipação
jurídica: designadamente, no que respeita à aferição da bondade das soluções legais.
se a ciência Jurídica por natureza visa a previsão, tudo favorece que este contacto
com o problema, já em si verificado, se deva agora acentuar na doutrina. e assim,
importa escorar dogmaticamente os conceitos, ponderando as suas consequências.

4.4. O proveito comum do casal e os encargos normais da vida familiar em aferição


pandémica

I – olhamos em primeiro lugar o conceito de proveito comum do casal. na


constância do casamento, as dívidas contraídas por um dos cônjuges, administrador,
tendo em vista este proveito comunitário conjugal e familiar são sempre comunicáveis,
independentemente do regime de bens.
lê-se no acórdão do tribunal da Relação de lisboa de 23 de maio de 2013,
processo n.º 952/11.5tvlsb.l1-2:

“Compreende uma questão de facto, quando se procura averiguar qual o destino


dado ao dinheiro obtido na contração da dívida, dependendo, portanto, da alegação e
prova dos factos demonstrativos do destino da dívida (dinheiro mutuado ou do veículo
adquirido com esse dinheiro).
Integra uma questão de direito, quando se procura averiguar, em face do destino
apurado, se a dívida foi, ou não, contraída em benefício do casal, o que passa também
pela análise do regime de bens desse casal – v. artigos 1721º a 1736º do CC” 32.

Mais do que isso.


se, por um lado, a norma tem total justificação, uma vez que contrair uma dívida
com esta finalidade é contribuir para a plena comunhão de vida, para eventual interesse

32
www.dgsi.pt

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dos filhos – o que estabelece um nexo de sintonia entre o regime destas dívidas e o
regime das dívidas para ocorrer aos encargos da vida familiar – o certo é que a
densificação do conceito de proveito comum, que não se presume, se revela complexo.

II – o critério de aferição da comunidade do proveito pauta-se por razões subjetivas


e razões que, nessa perspetiva, são imputáveis ao cônjuge responsável pela contração
da dívida. ainda que não tenha presidido à contração da dívida o cuidado de acautelar
o património familiar, desde que o comportamento tenha sido ditado pelo subjetivíssimo
entendimento daquilo que representa, na ótica do cônjuge contraente da dívida, o
interesse do casal, tanto importa para que esta responsabilize ambos.
na prática, isto significa que a perspetiva económica e social do cônjuge
contraente determina a comunicabilidade da dívida. Que a sua ótica sobre o que
é bem e mal para a vida comum a determina.
escrevem Pereira coelho e Guilherme de oliveira:

“... decerto que não basta, para que uma dívida se considere aplicada em proveito
comum dos cônjuges, a intenção subjetiva do agente: exige-se uma intenção objetiva de
proveito comum, ou seja, é necessário que a dívida se possa considerar aplicada em proveito
comum aos olhos de uma pessoa média e, portanto, à luz das regras da experiência e das
probabilidades normais. Assim, por exemplo, uma dívida que um dos cônjuges contraia
para fazer em Coimbra uma plantação de bananeiras nunca poderá considerar-se aplicada
em proveito comum, ainda que ele a tenha contraído nesse intuito” 33.

III – Faria todo o sentido, convimos, caso os cônjuges tivessem entendimentos


iguais sobre as estratégias pessoais e financeiras correspetivas.
Faria sentido, se o seu padrão mundividente fosse o mesmo.
Mas não o é muitas vezes; e trata-se de um fator que a pandemia, senão agudiza,
evidencia.
as perceções em razão do género e também da situação profissional que a
pandemia ditou a cada um dos cônjuges altera as suas representações sobre as
prioridades financeiras, ou, pelo menos, imprime-lhes uma nova especificidade.
citamos de novo um depoimento que consta do estudo:

“A saúde da minha família” é a prioridade, sobretudo para as mulheres. As preocupações


centradas na família mais próxima são intensas em todas as franjas inquiridas. O sentimento
intergeracional de proteção e amparo é realmente muito forte” 34.

33
Curso de Direito da Família..., p. 484.
34
cf. p. 49.

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e faria ainda, e sobretudo, sentido, caso a paridade de rendimentos se verificasse


como regra e houvesse sintonia dos cônjuges quanto ao proveito comum.
Pires de lima e antunes varela consideram35:

“Há assim proveito comum do casal, sempre que a dívida é contraída, tendo em vista
um interesse de ambos os cônjuges ou da sociedade familiar em geral (...).
Do que fundamentalmente se trata, portanto, é de saber se o cônjuge administrador, ao
contrair a dívida, agiu em vista de um fim comum (ainda que precipitada ou desastrosamente)
ou procurou, pelo contrário, realizar um interesse exclusivamente seu, satisfazendo uma
necessidade apenas sua.
No primeiro caso, a dívida responsabiliza ambos, seja qual for o regime de bens
vigente; no segundo é da exclusiva responsabilidade do cônjuge que a contraia (art.1692.º,
al. a)”.

IV – independentemente de outros efeitos da responsabilidade comum pela


dívida contraída para alegado encargo normal da vida familiar, há que considerar
que a responsabilidade comum, quando contestada por um dos cônjuges, é fonte
de controvérsia e mesmo, de discórdia familiar que impende sobre aspetos muito
longe de serem apenas financeiros na vida comum.
ex: suponha-se que a decide alterar o mobiliário de um apartamento comum,
por ele herdado, mas comunicado ao casal, ascendendo o valor da dívida que
contraiu para o efeito a um montante que determina a sua consideração como ato
de administração ordinária, de acordo com o padrão financeiro do casal. ou que
é, mesmo neste entendimento, considerado ato de administração extraordinária.
tal ocorreu, supõe-se também, em meados de janeiro de 2020, numa fase em que
não se aventava a disseminação da covid-19 na europa de forma relevante, e
muito menos em Portugal. as alterações foram realizadas para agilizar o arrendamento
do apartamento.
em março de 2020, com o confinamento, ficaram suspensas as visitas a casas,
tendo-se mais tarde iniciado o sistema de visitas à distância. Mas o arrendamento
está longe de se concretizar, situação que muito difere do que era previsível em
janeiro. nessa altura, quando muito, arrendar-se-ia por um valor mais módico do
que o valor pretendido.
a dívida foi contraída, alega agora o cônjuge que a contraiu, para pagar, com
o valor do arrendamento, aulas de um filho do casal que tem necessidades especiais

35
cf. Código Civil Anotado, vol. iv, 2.ª edição Revista e actualizada, coimbra, Wolters Kluwer e
coimbra editora, 2010, p. 331.

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de ensino, facto que, na perspetiva do progenitor que contraiu a dívida, são fun-
damentais. numa palavra: a dívida foi contraída para ocorrer a encargos normais
da vida familiar.
Mas não resulta inequivocamente da lei que uma dívida desta natureza se
subsuma ao horizonte normativo dos encargos normais da vida familiar. o conceito
sugere, à primeira vista, despesas diretas do agregado familiar; a dívida contraída
tem uma distância algo apreciável relativamente a estas despesas.
e, riposta o outro cônjuge, descontente, que se tratou de uma dívida sem a
finalidade invocada.
o dissenso dos cônjuges gera atrito, é fonte de efeitos deseducativos sobre as
crianças.

4.5. Reflexos mais remotos, mas não negligenciáveis: a aferição da compensação


ao cônjuge determinada pelo art.º 1676.º, n.º 2, do Código Civil em caso de divórcio
e o atual regime do divórcio. A partilha dos bens em montante quantitativamente
inferior ao regime vigente durante o casamento e a caducidade das doações ao
cônjuge

I –a qualificação das dívidas e a definição dos bens que por elas respondem
terão reflexos, uma vez dissolvida a sociedade conjugal, ao nível da compensação
vertida no artigo 1676.º, n.º 2, do código civil.
basta pensar numa dívida contraída pelo cônjuge que angaria os bens de maior
relevo para a subsistência da família, tendo em conta o seu horizonte de rendimentos,
que pode ser também um horizonte de ganhos e perdas a pensar no médio ou longo
prazo. e importa pensar, a este propósito, naqueles casos em que a vida comum se dissolve
abruptamente por divórcio, algo não antevisível por ambos os membros do casal.
como haverá, em situação de divórcio e sua potencial conflitualidade, acordo
sobre o que tenha sido ocorrer aos encargos normais da vida familiar, ou sobre o
proveito comum do casal, previsto no art.º 1691.º, n.º 1, alínea c), do código
civil, olhando a este entendimento tradicional?
e sendo assim, como aferir com rigor o critério da compensação ao cônjuge
que sobretudo se devotou à vida familiar em detrimento da sua progressão profissional,
no contexto de uma ordem jurídica que não esclarece rigorosamente a delimitação
das dívidas que se contraíram, durante o casamento, no interesse da família e, con-
sequentemente, coloca sobre os tribunais a dificuldade de determinar o cômputo
dos ganhos e perdas de cada cônjuge?
É sabido que o divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges pode, nos
termos do artigo 1781.º, alínea d), do código civil, obter-se, em ação intentada

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por um cônjuge contra o outro, sempre que, entre outras razões, se comprove que
se verificam “factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a
rutura definitiva do casamento”: é um divórcio ágil, cujas consequências patrimoniais,
sempre evidentes, se adensam.

II – com a obtenção do divórcio, em nome do princípio, que o legislador


assumiu, de que o casamento não constitui fonte de enriquecimento dos cônjuges,
caducam as doações (artigo 1791.º do código civil).
É certo que a doutrina veio restringir o conceito de doação que tem por efeito
a caducidade dissolvido o casamento, sustentando a sua inaplicabilidade a liberalidades
de menor expressão financeira.
Pires de lima e antunes varela opinaram:

“(...) não devem considerar-se abrangidos na sanção prescrita (...) os donativos usuais
que o cônjuge inocente ou terceiro hajam feito ao cônjuge culpado”. Os termos da lei,
pouco claros a este respeito, geram uma enorme incerteza sobre aquilo que será objeto de
caducidade uma vez dissolvido o casamento por divórcio” 36.

Pode fazer-se uma interpretação da doutrina dos autores adaptada à nova


redação da lei, a qual determina a perda de benefícios independentemente da culpa,
posto que a culpa deixou de constituir fundamento do divórcio. e milita nesse
sentido o argumento de que, se os próprios donativos feitos ao cônjuge (antes)
declarado culpado se mantinham, a mesma razão sustenta, senão robustece, que
assim sucede num caso de dissolução do casamento por divórcio independentemente
da culpa.
o certo, porém, é que o legislador de 2008 (lei n.º 61/2008, de 31 de
outubro) imprimiu na lei o princípio (de aplicação e fundamentação complexa,
mas que não cabe discutir aqui) de que a lei deve vedar ao casamento ser fonte
de enriquecimento de um dos cônjuges: qualquer deles. a interpretação restrita
das doações que caducam por efeito do divórcio pode, é certo, adequar-se ao
padrão financeiro dos cônjuges, em nexo com o que sucede, no direito das
sucessões, com as despesas não sujeitas a colação (artigo 2110.º, n.º 2, do código
civil). será sempre uma prova complexa e geradora de novas dificuldades no re-
lacionamento entre os ex-cônjuges, ponto que a nova lei do divórcio muito pre-
tendeu evitar.

36
cf. Código Civil Anotado..., p. 564.

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III – tal como determina o divórcio uma partilha dos bens em regime, por
regra, menos vantajoso do que aquele que vigorou na constância do casamento.
assim, nos termos do artigo 1790.º do código civil, “em caso de divórcio nenhum
dos cônjuges pode receber mais na partilha do que receberia se o casamento tivesse
sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos”.
este regime contribui para desequilibrar a perceção do horizonte de perdas e
danos no enquadramento da vida familiar, sem uma abertura expedita, com será
o ainda assim muito estreito, e a percorrer, caminho do enriquecimento sem causa
do artigo 473.º do código civil em matérias de direito da Família.

IV – a responsabilização de ambos os cônjuges tem de assentar na verificação


de qualquer uma das circunstâncias elencadas no n.º 1 e no n.º 2 do artigo 1691.º
do código civil.
têm, conseguintemente, os factos que as suportam, subsumíveis aos conceitos
de encargos normais da vida familiar e proveito comum do casal de se considerar
como constitutivos do direito do credor que, por consequência, os tem de alegar
e provar, de acordo com as regras gerais do ónus da prova – artigo 342.º, n.º 1,
do código civil.
lê-se no acórdão do tribunal da Relação de coimbra de 15 de dezembro de
2016, processo n.º 427/13.8tbPMs.c1:

“Daqui decorre, pois, que é à aqui autora que, relativamente à ré, pretensamente
devedora, incumbe alegar e provar a existência do proveito comum do casal ou de qualquer
outro dos requisitos de comunicabilidade da dívida previstos no referido art.º 1691.º –
neste sentido, podem ver-se, os Acórdãos do STJ, de 07/12/2005 e de 22/10/2009, acima
já citados e, mais recentemente, no seu Acórdão de 10 de Dezembro de 2015, Processo
n.º 2943/13.2.TBLRA.C1.S1, disponível no respectivo sítio do itij e, onde se refere que
“cabe ao credor o ónus da prova dos factos de que possa resultar a qualificação do proveito
comum 37.

a vagueza dos conceitos de encargos normais da vida familiar e de proveito


comum não se compadece com o facto de as perspetivas de um dos cônjuges podem
sobrepor-se aos do outro para efeitos financeiros, sem retorno.

37
www.dgsi.pt

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4.6. O muito amplo acervo de bens que respondem pelas dívidas da responsabilidade
de um dos cônjuges e os seus efeitos no adensamento das dificuldades equacionadas

I – a lei admite que as dívidas da responsabilidade de um dos cônjuges seja,


simultaneamente, oneradora do património desse cônjuge, dos seus bens levados
para o casal e respetivos rendimentos, próprios ou comuns, bem como do salário,
que será bem comum exceto em regime de separação de bens, legal ou imperativo,
ou em regime convencionado antenupcialmente nos termos do artigo 1698.º do
código civil, que tenha determinado a incomunicabilidade dos salários.

II – escrevem Pereira coelho e Guilherme de oliveira a propósito dos bens


referidos no artigo 1696.º, n.º 2, do código civil:

“Embora os bens referidos possam ser comuns por força do regime matrimonial em
vigor, e os bens comuns não respondam senão subsidiariamente por dívidas próprias, a lei
sacrificou neste caso o património comum do casal em favor das expectativas do credor
que confiara na solvabilidade do devedor tendo em conta os bens que ele levara para o
casamento, os que adquirira mais tarde por herança ou doação ou os proventos, porventura
muito elevados, que auferia do seu trabalho ou de 2 direitos de autor” 38.

braga da cruz justificava39:

“... pois é perfeitamente justo que os credores não fiquem prejudicados com o facto de,
pelo casamento, se comunicarem os bens levados pelos cônjuges para o casal, mantendo-se
incomunicáveis as dívidas”.

e lê-se no acórdão do tribunal da Relação de lisboa de 11 de novembro de


2014, processo n.º 775/12.4tcFun.l1-1:

“sendo transmitido para terceiro o direito de propriedade de um bem comum do


casal, e sendo a dívida da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges, poderá o
credor socorrer-se da ação de impugnação pauliana para, a verificarem-se os respetivos
requisitos, ter direito à restituição do bem alienado na medida do seu interesse, podendo
executá-lo no património do obrigado à restituição, sendo que a situação patrimonial do

38
cf. Curso de Direito da Família..., pp. 500-501.
39
cf. Capacidade patrimonial dos cônjuges. Anteprojecto de um título do futuro Código Civil
(articulado e exposição dos motivos), boletim do Ministério da Justiça, n.º 69.º, 1957, pp. 353-429,
p. 408.

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cônjuge não devedor face a uma eventual responsabilidade pela devolução do preço recebido
poderá a vir a ser salvaguardada nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 1697º do
Código Civil”40.

e observa-se no acórdão do tribunal da Relação de Guimarães de 19 de junho


de 2019, processo n.º 498/12.4ttvct-c.G1, sobre questões justificativas da
citação do cônjuge do executado para proteção da economia familiar:

“A norma do Cód. Civ. visa a proteção da “economia familiar”, salvaguardando


determinados ativos que se encontram na esfera patrimonial do casal, considerados, dada a
sua aptidão valorizativa e estabilizadora, como fundamentais, tal como a norma os entende
(imóveis). Para tais bens exige a lei uma confluência das vontades de cada um dos membros
do casal para a prática dos atos previstos na norma. Só assim não será se vigorar o regime
de separação de bens, e sempre com salvaguarda da casa de morada de família.
São estes interesses relativos ao património “familiar”, que o cônjuge defende, como
interesse próprio, que justificam o especial estatuto a que nos vimos referindo, dando-lhe
em consonância todos os direitos de defesa que cabem ao executado. Coloca-se assim a
economia familiar a coberto de eventuais negligências do executado e desinteresse deste na
proteção dos bens imóveis do casal.
E tendo em conta estes objetivos, é irrelevante saber se o imóvel é próprio ou comum.
Tanto assim é que a norma do artigo 786º, a), primeira parte, não lhe faz referência,
aludindo apenas a que deve tratar-se de imóvel que o executado não passo por si só alienar,
o que no regime de comunhão de bens e de comunhão de adquiridos, ocorre com qualquer
imóvel seja próprio ou comum”.

o principal fundamento do regime vertido nas alíneas do artigo 1696.º, n.º


2, do código civil, é a titularidade conjunta da administração dos bens referidos
no artigo n.º 1678.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do código civil.
e sucede que, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo 1678.º, cada um dos
cônjuges tem poderes de administração relativamente aos bens comuns do casal,
embora se trate de poderes de administração mais estritos (tem legitimidade para
prática de atos de administração ordinária).

III – a circunstância de, pelas dívidas da exclusiva responsabilidade de um


dos cônjuges responderem, nos termos do artigo 1696.º, n.º 1, os seus bens próprios,
a meação comum subsidiariamente, mas, ainda ao mesmo tempo que os bens

40
citando PedRo RoMano MaRtineZ e PedRo FuZeta da Ponte, Garantias de
Cumprimento, coimbra, almedina, 2006,5.ª ed., p. 35

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próprios, os bens levados pelo cônjuge responsável pela dívida para o casal ou
posteriormente adquiridos a título gratuito, bem como os respetivos rendimentos
(n.º 2, alínea a)), e ainda o salário (n.º 2, alínea b)), que será, na maioria dos casos,
um bem comum, é deveras onerosa.

IV – cristina araújo dias sustenta, obtemperando com a sua doutrina a


onerosidade da solução que resulta de uma leitura literalista do preceito, que esta
responsabilidade não tem a mesma gravidade ou natureza direta que se afigura à
primeira vista. e defende que, na verdade, do que aqui se trata é de algo que se
pode configurar como responsabilidade “de segundo grau”. se assim acontecesse,
responderiam primeiro os bens próprios e só depois, com maior dificuldade
processual e mais hipótese de resguardo do cônjuge não responsável pela contração
da dívida, os bens comuns referenciados:

“O n.º 2 do art. 1696.º dispõe que esses bens respondem ao mesmo tempo que os bens
próprios do cônjuge devedor. Significa, portanto, que o credor poderá no requerimento
executivo requerer a penhora dos bens próprios do devedor e desses bens comuns. Mas se os
bens próprios forem suficientes não faz sentido sujeitar os bens comuns à penhora. Por isso,
apesar de não se tratar da subsidariedade prevista no n.º 1 do art. 1696.º para a meação
do cônjuge devedor nos bens comuns, esta responsabilidade dos bens comuns previstos no
n.º 2 do mesmo artigo não deixa de ser subsidiária, entrando num segundo nível. O facto
de se referir que estes últimos não estão sujeitos à subsidariedade do n.º 1 do art. 1696.º
apenas significa que pode requerer-se imediatamente a sua penhora juntamente com os
bens próprios, mas não necessariamente que respondem como os próprios” 41.

o regime legal mostra-se também incongruente no modo como determina o


sacrifício de bens comuns do casal que respondem por dívidas da responsabilidade
de um dos cônjuges.
assim os frutos de bens comuns, bens comuns também, respondem ao mesmo
tempo que os bens próprios do cônjuge devedor. Mas o mesmo não acontece com
os frutos dos seus bens próprios, que são igualmente bens comuns, tanto no regime
de comunhão geral como no de comunhão de adquiridos. neste caso, posto que
integram a meação, respondem subsidiariamente, nos termos do artigo 1696.º,
n.º 1, do código civil.

41
Do Regime Da Responsabilidade (Pessoal e Patrimonial) Por Dívidas Dos Cônjuges (Problemas, Críticas
e Sugestões), 2007, p. 257.
disponível em repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/8132/1/tese_doutoramento_
cristina_dias.pdf

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Reagiam criticamente à solução vertida no artigo 1696.º n.º 2, alíneas a), b)


e c) do código civil, Pires de lima e antunes varela:

“É uma abertura excessiva, que pode representar um golpe grave na estabilidade económica
da sociedade conjugal. Mas há uma visível simetria, embora sem grandes razões de fundo que
a apoiem, entre as novas alíneas com que a Reforma de 77 preencheu o espaço do n.º 2 e
os casos em que o artigo 1678.º, n.º 2, confia a administração dos bens ao cônjuge por cuja
mão esses bens ingressam no património do casal (artigo 1678.º, n.º 2, als. a), b) e c))”42.

a dualidade de regime beneficia, sem dúvida, o cônjuge que retira proveito


financeiro dos frutos dos bens próprios do outro cônjuge.
Porém, a assimetria entre os frutos de bens que se comunicam cria verdadeira
incompreensibilidade, a que se alia insegurança, no momento da vinda à respon-
sabilidade por dívidas.
uns respondem subsidiariamente.
os outros respondem ao mesmo tempo que os bens próprios.
dando-se que a comunicabilidade dos frutos em regime de comunhão de
adquiridos dificilmente tem outra explicação que não seja a sua alegada coerência
com a comunhão de vida que no entendimento legislativo tem expressão patrimonial,
a justificação que emerge é a, sempre aludida, tutela de terceiros.
Mas compete atender a que o regime foi gizado com esse objetivo no tempo
em que a comunhão geral era o regime legal supletivo ainda dominante e poucos
novos casais não adotavam o regime de comunhão de adquiridos pelo qual o
código civil de 66 o substituiu. nesse contexto, entendia-se que terceiros
presumissem comuns os frutos dos bens do casal.
o que não se entende é que a razão subsista.

V – Quando se pensa em crise pandémica olha- se logo o plano da crise


económica drástica: o desemprego; as dificuldades imensas e humanamente penosas
do lay off. e tudo convida a obnubilar que estes são momentos em que se contraem

42
cf. Código Civil Anotado..., vol. iv, p. 350.
admite-se que os autores verberem contra o deferimento da administração à mulher titular dos
bens em questão: antes da Reforma de 77, era o chefe de família o administrador dos bens comuns.
o problema parece residir muito mais na falta de um novo e adequado ao tempo contemporâneo
sistema de definição dos bens que respondem pelas dívidas que são da exclusiva responsabilidade
de um dos cônjuges e também, de uma clarificação de conceitos fundamentais que determinam a
responsabilidade comum dos cônjuges por dívidas contraídas, como são os conceitos de proveito
comum do casal e encargos normais da vida familiar.

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dívidas. Momentos em que o desencontro da autonomia das vontades acicata


estratégias diferentes da gestão do património, mais ou menos exíguo, que os
cônjuges detêm. Momentos em que a crise gera oportunidades e falta delas, em
termos negociais. em que o entendimento sobre o que é financeiramente prioritário
acicata a estratégia de vida de cada um dos cônjuges, em vez de a conciliar.
isto sucede portas adentro de uma vida familiar pautada pelo diferente.
Projeto de vida comum não significa, nem na linguagem bela e vaga de “para
o bem e para o mal”, ignorar realidades cuja anomia está para além do conhecido
historicamente: a crueldade da doença típica, da vida, da morte, da contingência
da fortuna e dos dias mais pobres.
a diferença da vida familiar em pandemia passa pelo convívio anómalo; e a
rudeza dos ganhos e das perdas arreda-se da regularidade do quotidiano anterior.
a razão das opções pelos empenhamentos financeiros, a linguagem jurídica das
dívidas, também e sobretudo dos cônjuges, está aqui patente.
está igualmente patente que, se motivos há para modificar em alguns pontos
o regime da administração dos bens dos cônjuges e a articulação entre esse regime
e o regime de responsabilidade por dívidas, estes motivos se louvam em boa medida
nas perceções diferentes que cada membro do casal tem da estratégia financeira a
adotar na constância do casamento. e essa estratégia financeira altera-se não apenas,
de forma genérica e aleatória, vagamente previsível, portanto, ao longo da vida
conjugal, mas muito particularmente quando as circunstâncias da vida pessoal e
familiar se alteram tanto.
É tempo muito urgente para olhar, em vários dos aspetos referidos, como
seguramente noutros, o estatuto patrimonial dos cônjuges do código civil.
conclui-se, deixando muito por dizer. Mas exarando o modo como se olham
as consequências jurídicas no direito da Família.
Gostaríamos de acabar com uma referência mais otimista. lê-se e ouve-se
muitas vezes que a situação é temporária; que a pandemia acabará. não é antevisível
o contrário: acabou a peste negra, acabou a “gripe espanhola”, mitigaram-se os
efeitos da sida.
Mas ver acabar a pandemia é uma coisa.
outra bem diferente seria admitir que os seus danos não perdurem, muito
mais do que se desejaria. não se trata de antever o fim do sono da bela adormecida
com que, também no exercício dos deveres da vida familiar, acalentamos crianças.
trata-se de ter, admito, a noção de que num direito institucional e mais
eminentemente mutante do que qualquer outro, os efeitos das ocorrências pesam
muito. esta é uma ocorrência muito funda. os efeitos pessoais e patrimoniais a
nível familiar vão precisar de resposta.

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a consciência jurídica dos problemas determina um forte papel doutrinário


e talvez de sugestão legislativa. não valem só os instrumentos jurídicos do passado,
como não valeram nunca, em direito da Família. esta convicção de que é possível
mudar juridicamente para melhor imprime um sentido otimista ao tempo do
direito da Família que aí está para cumprir.

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