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Revista da Faculdade de diReito


da univeRsidade de lisboa
Periodicidade semestral
vol. lXi (2020) 1

LISBON LAW REVIEW

COMISSÃO CIENTÍFICA

christian baldus (Professor da universidade de Heidelberg)


dinah shelton (Professora da universidade de Georgetown)
ingo Wolfgang sarlet (Professor da Pontifícia universidade católica do Rio Grande do sul)
Jean-louis Halpérin (Professor da escola normal superior de Paris)
José luís García-Pita y lastres (Professor da universidade da corunha)
Judith Martins-costa (ex-Professora da universidade Federal do Rio Grande do sul)
Ken Pennington (Professor da universidade católica da américa)
Marc bungenberg (Professor da universidade do sarre)
Marco antónio Marques da silva (Professor da Pontifícia universidade católica de são Paulo)
Miodrag Jovanovic (Professor da universidade de belgrado)
Pedro ortego Gil (Professor da universidade de santiago de compostela)
Pierluigi chiassoni (Professor da universidade de Génova)

DIRETOR
M. Januário da costa Gomes

COMISSÃO DE REDAÇÃO
Pedro infante Mota
catarina Monteiro Pires
Rui tavares lanceiro
Francisco Rodrigues Rocha

SECRETÁRIO DE REDAÇÃO
Guilherme Grillo

PROPRIEDADE E SECRETARIADO
Faculdade de direito da universidade de lisboa
alameda da universidade – 1649-014 lisboa – Portugal

EDIÇÃO, EXECUÇÃO GRÁFICA E DISTRIBUIÇÃO


LISBON LAW EDITIONS
alameda da universidade – cidade universitária – 1649-014 lisboa – Portugal

issn 0870-3116 depósito legal n.º 75611/95

data: Julho, 2020


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ÍNDICE 2020

M. Januário da Costa Gomes


9-19 editorial

ESTUDOS DE ABERTURA

António Menezes Cordeiro


23-43 covid-19 e boa-fé
Covid-19 and good faith

Jorge Miranda
45-62 constituição e pandemia – breve nota
Constitution and pandemic – a brief note

ESTUDOS DOUTRINAIS

Ana Perestrelo de Oliveira


65-79 cláusulas de força maior e limites da autonomia privada
Force majeure clauses and freedom of contract

Aquilino Paulo Antunes


81-96 Medicamentos para saRs-cov-2 e covid-19: time matters
Medicines for SARS-CoV-2 and COVID-19: time matters

Catarina Monteiro Pires | Diogo Costa Seixas


97-116 crédito empresarial em tempos virulentos – primeiras reflexões
Corporate credit agreements in virulent times – first observations

Catarina Salgado
117-148 o impacto da pandemia na aviação civil – um novo 11/9?
The impact of the pandemic on civil aviation – a new 9/11?

Diogo Costa Gonçalves


149-185 crise e renegociação dos contratos no direito português e brasileiro – algumas reflexões
Considerations about the crisis and the renegotiation of contracts in Portuguese and Brazilian Law

Eduardo Vera-Cruz
187-205 o direito após a pandemia de covid-19: os binómios fundamentais
Law after the COVID-19 pandemic: the fundamental binomials

Francisco Mendes Correia


207-220 obrigações pecuniárias e perturbações no cumprimento: algumas notas a propósito da
pandemia da covid-19
Monetary obligations and nonperformance: some notes concerning the COVID-19 pandemic

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Francisco Rodrigues Rocha


221-236 a redução do risco no seguro automóvel durante a pandemia de covid-19. breves notas
Risk reduction on automobile insurance during Covid-19 pandemic. Brief notes

Hugo Ramos Alves


237-260 sobre a repercussão do covid-19 no direito aéreo
The impact of COVID-19 on Aviation Law

Isabel Alexandre
261-289 audiências à distância em processo civil e princípio da publicidade das audiências
Remote hearings in civil proceedings and principle of publicity of hearings

Isabel Graes
291-320 breves notas sobre as soluções de política sanitária em Portugal nos séculos Xvi-XiX
Brief notes about the Portuguese sanitary policy in the 16th-19th centuries

João Lemos Esteves


321-336 “covid-tracing app” e o direito: reflexão sobre as lições do supremo tribunal de israel
“Covid-Tracing App” and Law: reflexion on Israel Supreme Court’s ruling lessons

João Marques Martins


337-351 breves notas sobre o desconfinamento dos tribunais cíveis
Brief Notes on the Deconfinement of Civil Courts

Jorge Duarte Pinheiro


353-363 direito da Família-20 e covid-19
Family Law-20 and Covid-19

José Ferreira Gomes


365-390 contratos de M&a em tempos de pandemia: impossibilidade, alteração das circunstâncias
e cláusulas Mac, hardship e força maior
M&A Contracts in a time of pandemic: impossibility, change of circumstances, MAC, hardship and
force majeure clauses

Judith Martins-Costa
391-427 impossibilidade de prestar e excessiva onerosidade superveniente na relação entre shopping
center e seus lojistas
Impossibility to perform and excessive burden in shopping center lease agreements

Madalena Perestrelo de Oliveira


429-454 operações de crédito, financiamentos internacionais e moratória bancária em tempos
de covid-19
Financing operations, international financing and banking moratorium in times of Covid-19

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Margarida Silva Pereira


455-494 o impacto da Pandemia por covid-19: direito da Família, direitos das crianças
e direitos de Género. e a fragilidade do estatuto patrimonial dos cônjuges nas respostas
The impact of Pandemic by COVID-19: Family Rights, Children’s rights and Gender Rights. The fragility
of the spirit’s assets status in responses

Maria Cristina Pimenta Coelho


495-508 Fazer testamento em tempos de covid-19
Making a will in time of COVID-19

Maria João Estorninho


509-520 covid-19: (novos) desafios e (velhos) riscos na contratação pública
COVID-19: (new) challenges and (old) risks in public procurement

Nazaré da Costa Cabral


521-532 o impacto económico da crise do covid 19 e as medidas de recuperação a nível
nacional e europeu
The economic impact of the COVID-19 crisis and the recovery measures at national and European levels

Nuno Trigo dos Reis


533-569 Responsabilidade civil por contágio pelo novo coronavírus? algumas notas sobre a
responsabilidade aquiliana em tempos de pandemia
Civil liability for negligent COVID-19 transmission? Reflections on tort law during the pandemic emergency

Paulo Alves Pardal


571-587 nótulas sobre o impacto económico da covid-19
Notes about the economic impact of COVID-19

Pedro Infante Mota


589-617 o “contágio” da globalização (económica) pela covid-19
The “contagion” of globalization (economic) by COVID-19

Pedro Romano Martinez


619-643 dúvidas na interpretação de alguns preceitos da legislação de emergência (covid 19)
Doubts on the interpretation of some precepts of the emergency legislation (Covid 19)

Raquel Brízida Castro


645-679 direito constitucional em tempos de pandemia: Pode a constituição sobreviver a crises
sanitárias?
Constitutional Law in times of pandemic: Can the Constitution survive health crises?

Rui Paulo Coutinho de Mascarenhas Ataíde


681-715 o direito dos contratos privados face à presente crise pandémica. alguns problemas,
em especial, a impossibilidade económica temporária
Private Contract law in relation to the current pandemic crisis. Some problems, in particular, temporary
economic impossibility

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Rui Pinto
717-727 a suspensão dos atos de penhora no quadro das medidas extraordinárias aprovadas pela
lei nº 1-a/2020, de 19 de março, alterada pela lei nº 4-a/2020, de 6 de abril e pela
lei nº 20/2020, de 29 de maio. notas breves
The suspension of attachment acts in the context of the extraordinary measures approved by Law No.
1-A/2020, of March 19, amended by Law No. 4-A/2020, of April 6 and Law No. 20/2020, of May
29. Brief notes

Rui Tavares Lanceiro


729-746 breves notas sobre a resposta normativa portuguesa à crise da covid-19
A brief note on the Portuguese legal response to the Covid-19 crisis

Rute Saraiva
747-792 uma leitura de economia comportamental da crise covidiana
A Behavioural Economics approach to the covidian crisis

Tiago Serrão
793-804 uma epidemia anunciada: a epidemia da litigância em matéria de execução contratual pública
An announced epidemic: the epidemic of public contract enforcement litigation

Vasco Pereira da Silva


805-811 5 breves notas sobre o direito do ambiente em estado de emergência
5 Short Comments on Environmental Law in State of Emergency

Vitalino Canas
813-827 o império da exceção: a inevitabilidade do autoritarismo em democracia?
The empire of exception: the inevitability of authoritarianism in democracy?

Vítor Palmela Fidalgo


829-851 o sistema de Patentes e o acesso a Produtos Médico-Farmacêuticos no contexto da
atual Pandemia: o Ponto de situação atual e os Principais desafios
The Patent System and the Access to Medical devices and Pharmaceutical Products in the Context of the
Current Pandemic: The Present Situation and the Main Challenges

VIDA CIENTÍFICA DA FACULDADE

Christian Baldus
855-866 arguição da tese de doutoramento do Mestre Jorge silva santos sobre “teoria geral do
direito civil, cripto-justificações e performatividade da decisão jurídica. Historiografia
jurídica e ciência do direito como invenção agonística de discursos. Para uma arqueologia
do autor Guilherme Moreira”

Miguel Prata Roque


867-879 diretivas antecipadas de vontade sobre cuidados de saúde e liberdade de autodisposição
(arguição da tese de doutoramento em ciências Jurídico-Políticas apresentada pela
Mestre Rosana broglio Garbin à universidade de lisboa)

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Crise e renegociação dos contratos no Direito


português e brasileiro – Algumas reflexões
Considerations about the crisis and the renegotiation of
contracts in Portuguese and Brazilian Law

Diogo Costa Gonçalves*

Resumo: neste estudo refletimos sobre o Abstract: this paper offers a reflection on
fundamento e o conteúdo do dever de negociar the duty to negotiate (ex contractu vs. ex
(ex contractu vs. ex bona fide) perante uma su- bona fide) based on the crisis covid-19.
perveniência disruptiva do equilíbrio contratual Keywords: crisis – hardship clauses – duty
como a situação pandémica covid-19. to negotiate – material adverse changes –
Palvras-chave: crise – hardship clauses – dever default.
de negociar – base do negócio – incumprimento.

Sumário: 1. Renegociação dos contratos 1.1. as hardship clauses: questões controversas


1.2. o conteúdo da obrigação de renegociar 1.3. Requisitos do cumprimento 1.4. o ina-
dimplemento da obrigação de negociar 1.5. a forma da modificação contratual 1.6. dever
de negociar e os regimes legais de reposição do equilíbrio contratual 1.7. a intervenção
heterónoma na reposição do equilíbrio contratual 1.8. a modificação equitativa e o com-
portamento das partes 2. Renegociação ex bona fide? 2.1. o problema 2.2. o real alcance
do princípio do equilíbrio contratual 2.3. a conservação do equilíbrio originário 2.4.
dever de renegociação ex contractu vs. ex bona fide 2.5. Facti species do dever de negociar.

1. Renegociação do contratos

1.1. As hardship clauses: questões contorversas

i – as partes são os primeiros protagonistas da reposição do equilíbrio contratual


em cenários de crise. Fazem-no, desde logo, prevendo no próprio contrato claúsulas
de revisão.
*
Professor da Faculdade de direito da universidade de lisboa – dcostagoncalves@gmail.com

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diogo costa Gonçalves

as cláusulas de revisão podem ser próprias ou impróprias.


são impróprias as cláusulas de revisão em que o novo conteúdo contratual se
encontra previamente definido, já ao tempo da celebração. Por exemplo: as cláu-
sulas de revisão de preço indexadas a algum parâmetro variável (também ditas
cláusulas de indexação1).
a aplicação destas cláusulas determina a modificação do conteúdo das pres-
tações sem que no entanto seja necessária a formação de uma nova vontade nego-
cial2. estas cláusulas podem conter elementos típicos do termo ou da condição,
na medida em que sujeitem a verificação do efeito modificativo a um facto futuro.
Podem corresponder, também, a posições jurídicas potestativas, deixando à livre
vontade de uma das partes acionar a modificação contratual ou dispensá-la, ou
criando aindaoutros mecanismos de modificação semi-automáticos3.

ii – as cláusulas de revisão proprio sensu (também ditas cláusulas de adaptação


não automáticas4) são aquelas que prevêem uma renegociação do contrato – ou
de algumas das suas cláusulas –, conduzindo à reabertura de uma instância nego-
cial, convocando as partes para a mesa das negociações a fim de reestabelecerem
o equilíbrio contratual ferido.
as cláusulas hardship são um exemplo paradigmático de uma cláusula de re-
visão proprio sensu. tomemos por referência a ICC hardship clause (mar.-2020):

“1. A party to a contract is bound to perform its contractual duties even if events
have rendered performance more onerous than could reasonably have been anticipated at
the time of the conclusion of the contract.
2. Notwithstanding paragraph 1 of this Clause, where a party to a contract proves that:
a) the continued performance of its contractual duties has become excessively onerous
due to an event beyond its reasonable control which it could not reasonably have been
expected to have taken into account at the time of the conclusion of the contract; and that
b) it could not reasonably have avoided or overcome the event or its consequences,
the parties are bound, within a reasonable time of the invocation of this Clause, to negotiate

1
lauRa coRandini FRantZ, excessiva onerosidade superveniente: uma análise dos julgados do stJ,
in Modelos de Direito Privado (coord. Judith Martins-costa), são Paulo, 2014, 236.
2
Por esta razão, também se designam cláusuas de adaptação automática. veja-se JuditH MaRtins-
-costa, a cláusula hardship e a obrigação de renegociar nos contratos de longa duração, Revista de
Arbitragem e Mediação 7 (2010) 25, pp. 14-15.
3
sobre as cláusulas de adaptação semi-automáticas, com referências, JuditH MaRtins-costa, a
cláusula hardship, pp.14-15.
4
JuditH MaRtins-costa, a cláusula hardship, pp. 14-15.

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crise e renegociação dos contratos no direito português e brasileiro – algumas reflexões

alternative contractual terms which reasonably allow to overcome the consequences of the
event.”

verificados os pressupostos da onerosidade excessiva, as partes are bound to


negotiate alternative contractual terms: o reequilíbrio contratual deve ser obtido,
portanto, mediante um processo negocial conduzido pelas partes.
antes de uma intervenção heterónoma do juiz ou do árbitro, cabe às partes,
no exercício da sua autonomia privada, prover ao reequilíbrio contratual.

iii – a obrigação de renegociação do contrato coloca, desde logo, o problema


de saber qual o seu exato conteúdo: o que é que, em concreto, é exigido às partes
no cumprimento da obrigação de renegociar.
É doutrina comum que a obrigação de renegociação não exige que as partes
cheguem a um acordo5: as partes estão obrigadas a negociar, não a contratar.
Por outro lado, queda também evidente que renegociar de qualquer modo
não permite exonerar-se da obrigação. a obrigação de renegociação há-de ter um
conteúdo material tangível, sob pena de corresponder a uma mera formalidade
na antecâmara do litígio.

iv – a obrigação de renegociação coloca também problemas quanto à sua


articulação com os dispositivos legais destinados a obter o reequilíbrio contratual,
em particular com o regime da onerosidade excessiva (arts. 478.º e ss. do código
civil brasileiro, doravante “ccbr”)6 e da alteração das circunstâncias (art. 437.º
do código civil Português, doravante “ccPt”)7.
a hardship clause afasta os regimes em causa? É uma concretização contratual
dos regimes legais, no âmbito em que são disponíveis? ou os regimes legais em
causa aplicam-se a jusante da hardship clause, quando frustrada a sua eficácia?

v – Por fim, que dizer dos contratos que não preveem qualquer obrigação de
renegociação: poder-se-á sustentar um dever cogente de renegociar o contrato ante

5
com referencias, Fabio QueiRoZ PeReiRa / daniel de Pádua andRade, a obrigação de rene-
gociar e as consequências de seu inadimplemento, RDCC 5 (2018) 15, pp. 209-237, p. 217.
6
sobre a articulação entre o regime dos arts. 478.º e ss. ccbr veja-se tHiaGo RodovalHo, o
dever de renegociar no ordenamento jurídico brasileiro, RJLB 1 (2015) 6, pp.1634-1636.
7
a obrigação de renegociar é por vezes discutida em face de circunstâncias que ponham em evi-
dência a insuficiência ou insatisfatoridade da regulação inicial do contrato, como dá nota antÓnio
MeneZes coRdeiRo, Tratado de Direito Civil, ii (Parte Geral – Negócio Jurídico), 4.ª ed., coimbra,
2014, p. 778.

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diogo costa Gonçalves

a ocorrência de factos que determinam um severo desequilíbrio das prestações8?


sempre e em todos os casos?
sendo positiva a resposta, como fundamentar tal dever e como é que ele se
articula com a própria noção de cumprimento e, uma vez mais, com os dispositivos
legais já convocados?

1.2. O conteúdo da obrigação de renegociar

i – as partes podem, a qualquer momento, acordar na modificação do contrato,


dispondo sobre o seu conteúdo como bem entenderem, dentro dos limites legais:
o exercício da autonomia privada presente na génese do contrato é o mesmo que
se encontra na sua modificação.
Quando as partes encetam negociações tendo em vista a modificação de um
contrato, inauguram uma nova instância negocial. isto significa, em concreto, que
(i) o acordo modificativo que vier a ser alcançado está sujeito ao regime da formação
dos contratos; e que (ii) as partes devem respeitar, na pendência da negociação, os
deveres emergentes da boa fé pré-contratual.

ii – existe, todavia, uma diferença significativa entre a livre modificação do


contrato e a obrigação de o renegociar.
na livre modificação, o exercício da autonomia privada não é vinculado:
as partes encetam negociações sobre o que quiserem. ao contrário, na obrigação
de renegociação, as partes estão obrigadas a negociar um concreto contéudo
contratual.
a natureza da conduta das partes num e noutro caso é distinta. a obrigação
de negociar tem uma eficácia negocial própria: constitui uma obrigação proprio
sensu. como sublinha Judith Martins-costa, existe no dever de negociar «um
verdadeiro e próprio dever de cumprimento do contrato naquilo que foi previsto, genérica
e/ou pontualmente, como objeto de negociação»9.
daqui decorre que o padrão normativo de conduta exigível às partes em
fase de negociação é distinto quando em causa está o cumprimento de uma
obrigação de negociar ou, simplesmente, uma livre negociação (de exercício não
vinculado).

8
como defende antÓnio MeneZes coRdeiRo, Tratado, ii, p. 778, com recurso à boa-fé como
fonte desse dever.
9
JuditH MaRtins-costa, a cláusula hardship, p. 16.

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crise e renegociação dos contratos no direito português e brasileiro – algumas reflexões

iii – esta nota é importante porquanto nos previne para o erro que seria a
identificação absoluta da conduta exigível às partes em cumprimento da obrigação
de negociar com os ditames impostos pela culpa in contahendo10.
naturalmente que quem se encontra a negociar uma modificação contratual
deve fazê-lo segundo a boa-fé. Mas na obrigação de negociar está presente uma
eficácia qualitativamente distinta daquela que impõe a boa-fé pré-contratual: a
conduta exigível às partes é normativamente distinta.
sublinha-o carneiro da Frada, referindo-se expressamente às cláusulas que
impõem um dever de negociação:

“(...) não pensamos que a eficácia das convenções descritas se possa de algum modo
descrever como mero reforço do dever de negociar de boa fé, pois essa eficácia é negocial
e, portanto, qualitativamente disnta daquela que produz a regra da boa fé nas negociações
(...). no acordo de negociação, a vontade decide soberana e diretamente a existencia ou
configuração de condutas exigíveis; já os ditames da boa fé representam, como sabemos,
um corolário de juízos objectivos da ordem jurídica que se impõem heteronomamente
aos sujeitos e em cuja formulação a sua vontade não intervém de forma directa.”11

estamos, portanto, mais perto da boa-fé na execução dos contratos do que na sua
conclusão (arts. 762.º ccPt e 422.º ccbr)12, o que permite retirar consequências di-
versas para a modelação do comportamento das partes e em sede de inadimplemento.

iv – a delimitação do conteúdo objetivo de renegociação depende do equi-


líbrio contratual genético ou originário (sinalagma genético).
aquando da celebração do contrato, cristalizou-se um concreto equilíbrio
contratual que as partes entenderam suficiente para a formação da sua vontade.
tal equilíbrio não está expresso na cláusula a) ou b): resulta de uma teia complexa
de vinculações – muitas delas tituladas por negócios jurídicos autónomo (como
sucede nas uniões de contratos, por exemplo) – que, ponderadas em conjunto,
permitem ao intérprete identificar a ratio económica do contrato: a utilidade ju-
rídico-económica daquela contratação.

10
com referências, veja-se dioGo costa Gonçalves, anotação ao artigo 227.º, in Novo corona-
virus e crise contratual, lisboa, 2020, pp. 7-16.
11
Manuel caRneiRo da FRada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, coimbra, 2004, pp.
539 (nota 566)
12
neste sentido, JuditH MaRtins-costa, a cláusula hardship, passim. veja-se ainda dioGo costa
Gonçalves, anotação ao artigo 762.º, in Novo coronavirus e crise contratual, Lisboa, 2020, pp.
69-78.

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diogo costa Gonçalves

a identificação do equilíbrio contratual é resultado de uma cuidada herme-


nêutica do contrato, na qual o comportamento das partes deve presumir-se racional
e economicamente razoável13. as vinculações assumidas, foram-no por alguma
razão que está, por regra, relacionada com outras vinculações do mesmo universo
contratual (que mutuamente se justificam). ao sinalagma preside, portanto, uma
racionalidade jurídico-económica que permite identificar, em traços largos, o equi-
líbrio e a relação existente entre cada uma das prestações.
na verdade, um contrato é um micro-sistema normativo que rege a composi-
ção de um conjunto de interesses juridicamente relevantes. o equilíbrio contratual
corresponde, no fundo, à teleologia desse micro-sistema.

v – ora, a obrigação de renegociar tem por conteúdo a reposição desse equi-


líbrio genético. não se trata de criar um outro equilíbrio, mas sim de recriar o
mesmo equilíbrio, nas novas circunstâncias que se apresentam.
a renegociação obedece, poranto, a três momentos metodológicos – insepa-
ráveis e simultâneos –, que aqui distinguimos por facilidade de exposição.
o primeiro momento corresponde à interpretação do contrato. toda a inter-
pretação procura determinar, a partir de um determinado significante – in casu as
declarações negociais que integram o negócio jurídico a interpretar –, o sentido
normativo vinculante. ao percorrer os cânones da hermenêutica contratual, o in-
térprete vai alcançando um resultado interpretativo cada vez mais apurado que
lhe permite identificar o equilíbrio genético do contrato.
o segundo momento corresponde à identificação da factualidade disruptiva da
economia contratual. uma vez sinalizado o equilíbrico genético do contrato (a te-
leologia do micro-sistema contratual) – que pode, na verdade, ser composto por
vários polos de tensão em equilíbrio – o intérprete está em condições de identificar
a factualidade cuja superveniência tem impacto direto no equilíbrio contratual.
ao fazê-lo, o olhar do intérprete sobre a realidade é já um olhar valorativo:
ele irá eleger, do mundo dos factos, aqueles que são contratualmente relevantes,
porque impactam diretamente no equilíbrio genético do contrato.
a identificação da factualiadade disruptiva e do seu impacto na economia do
contrato permite-lhe ainda identificar os elementos normativos que carecem de
revisão: as cláusulas ou conjunto de cláusulas cujo sentido útil se encontra ultra-
passado pela superveniência factual identificada.

13
sobre este pressuposto hermenêutico na interpretação dos contratos, veja-se Manuel caRneiRo
da FRada, sobre a interpretação do contrato, in Forjar o Direito, coimbra, 2015, p. 18.

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crise e renegociação dos contratos no direito português e brasileiro – algumas reflexões

Por fim, a renegociação envolve ainda a formulação de propostas cujo conteúdo


se destina à revisão dos elementos normativos identificados como carecendo de
reforma, em ordem à recuperação do equilíbrio contratual ferido pela factualidade
superveniente.

1.3. Requisitos do cumprimento

i – Havendo acordo quanto à modificação do contrato, não há lugar a qual-


quer sindicância relativa ao cumprimento do dever de negociar.
Reitere-se: nada impede que as partes – no âmbito de uma negociação de-
corrente de uma hardship clause ou em qualquer outro – acordem no estabeleci-
mento de um novo equilíbrio contratual, isto é: que procedam a uma modificação
do contrato que dê origem a outro equilíbrio distinto do anteriormente existente,
ao tempo da sua celebração. o acordo alcançado pode até ser novatório.
o problema apenas se coloca quando – desencadeado o processo de renegocia-
ção contratualmente previsto –, o acordo modificativo não foi alcançado e se discute
se partes – estando obrigadas a negociar – cumpriram ou não essa obrigação.

ii – o cumprimento da obrigação de negociar exige a emissão de declarações


negociais destinadas a obter a revisão contratual. nem todas as declarações nego-
ciais modificativas do contrato cumprem, porém, a obrigação de negociar.
tomemos dois exemplos muito simples, sabendo que lidamos com uma rea-
lidade bem mais complexa:

Exemplo a): P1 explora um conhecido restaurante numa capital europeia, em


local arrendado a P2. o contrato de arrendamento foi celebrado há 4 anos, por um
período de 10, sujeito a renovações. a renda (atualmente em € 10.000,00/mês) está
sujeita a correções anuais, segundo os seguintes critérios: (i) a renda anual terá por
limite mínimo certa percentagem do valor de mercado do imóvel; e (ii) por limite
máximo uma taxa de esforço de P1 aferida em razão da faturação do último exercício
e majorada em 0,5%. o valor da renda corresponde à diferença entre os dois limi-
tes.
Exemplo b): P3 é uma agência de viagens que organiza programas de férias para
famílias. no último semestre de 2019 e primeiros meses de 2020, vendeu o Programa
XP a 1.500 agregados familiares. o programa consiste numa viagem de uma semana
a cabo verde, com visitas turísticas, eventos culturais, desportivos e recreativos. o
programa custa € 750,00/pessoa.
sobreveio a pandemia responsável pelo contágio da covid-19. Quer o contrato
de arrendamento quer o contrato-modelo do Programa XP contêm uma claúsula

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diogo costa Gonçalves

hardship que prevê a renegociação do contrato em caso de uma superveniência como


a da pandemia.
Pergunta-se: em que consiste o cumprimento da obrigação de negociação?

iii – se bem atendermos, no exemplo a) encontramos cláusulas de revisão de


natureza distintas. a revisão anual da renda – indexada a factores objetivamente
mensuráveis – aproxima-se das cláusulas de revisão automáticas ou impróprias,
que obtêm – dentro de um cenário de razoável previsibilidade – a manutenção
constante do equilíbrio contratual, ao longo da execução do contrato (10 anos).
Para além estas cláusulas, o contrato contém ainda uma hardship clause, que
impõe às partes um dever de negociar ante a verificação de uma alteração anormal
das circunstâncias.
o exemplo b) é muito distinto, desde logo porque o contrato, não sendo de
execução instantânea, tão pouco corresponde a um contrato de execução conti-
nuada, com prestações peródicas e sucessivas (como arrendamento). o factor
tempo impacta no contrato com uma intensidade diversa, associada sobretudo à
dilação temporal entre o momento da contratação e o momento do cumprimento.
Por esta razão, não encontramos no contrato nenhum mecanismo automático
de revisão – destinado a manter o equilíbrio contratual durante uma execução
continuada –, mas apenas uma cláusula hardship.

iv – também a superveniência da pandemia afeta os contratos de modo dis-


tinto. a pandemia é evento severo mas (espera-se, ao tempo que se escreve) limitado
no tempo. o arrendamento resiste à superveniência: a sua renegociação projeta-se
num horizonte de continuidade da relação jurídica. Já a possibilidade do cumpri-
mento das obrigações assumidas no contexto da viagem de finalistas é mais incerta.
do mesmo modo, o que mais afeta P3 é a impossibilidade de viajar, deter-
minada pelas medidas de contenção. no caso de P1 e P2, a limitação das liberda-
des de circulação entre países tem menor impacto. Pode ter maior relevo a
contração do consumo interno, por exemplo.

v – iniciado o processo de renegociação previsto no contrato (e não alcançado


qualquer acordo), como aferir o cumprimento da obrigação de negociar?
em primeiro lugar, as declarações negociais emitidas pelas partes terão que ter por
efeito desejado (ainda que malogrado) a modificação do contrato14. nem todas terão

14
tHiaGo RodovalHo, o dever de renegociar, pp.1631-1632.

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crise e renegociação dos contratos no direito português e brasileiro – algumas reflexões

que ser tecnicamente propostas contratuais, mas nalgum momento terá que ter existido
a manifestação de uma vontade firme e concreta de modificação contratual, como ma-
nifestação desse «dever de empenho» a que corresponde o conteúdo mínimo da obrigação
de negociação15. até lá, o cumprimento do dever de negociar não é perfeito.
temos, portanto, que o primeiro critério para aferir o cumprimento da ob-
rigação de negociar é o da existência, nalgum momento das negociações, dos ele-
mentos estruturais da formação do contrato.
só assim não será naqueles casos em que o início das negociações permitiu
constatar a impossibilidade de qualquer acordo modificativo. não porque alguma
das partes se tenha recusado a negociar, mas porque ficou claro que as perspectivas
da reforma contratual eram absolutamente inconciliáveis.
nestes casos, o cumprimento da obrigação de negociar não exige a formulação de
uma proposta firme e concreta de modificação contratual. o cumprimento da obrigação
segundo os ditames da boa-fé pode até exigir o fim célere das negociações, identificado
que seja um dissenso inultrapassável. a inexistência dos elementos estruturais da for-
mação do contrato não implica, nestes casos, violação do dever de negociar.

vi – a mera existência de uma proposta modificativa do contrato não garante


por si o cumprimento da obrigação de negociar. É necessário que a proposta em
causa proceda a uma reposição objetiva do equilíbrio genético.

voltemos ao exemplo a). o mecanismo de actualização das rendas tem por pres-
suposto que o valor de faturação de P2 cresce todos os anos e que é sempre superior
à percentagem do valor de mercado do imóvel. Pressupõe ainda a participação de P1
no sucesso económico de P2.
a pandemia determinou, porém, que o valor atual da renda – contratualmente
devido durante o ano de 2020 – esteja muito acima da taxa de esforço de P2, cujo
estabelecimento foi compulsivamente encerrado. Prevê-se, aliás, que assim se mantenha
ao longo de todo o ano. Já o preço dos imóveis não se ressentiu de forma tão severa.
daqui resulta que o limite mínimo de renda contratualmente previsto é,
atualmente, bastante superior ao limite máximo fixado no contrato. o mesmo é
dizer: o mínimo que o locador exigiu para contratar é muito superior, atualmente,
ao máximo que o locatário aceitou como taxa de esforço economicamente razoável.
uma proposta de reequilíbrio contratual terá que passar pela recriação do
equilíbrio genético, nas circunstâncias atuais de mercado. se as partes acordam numa
suspensão temporária do pagamento das rendas, numa redução da percentagem do

15
Manuel caRneiRo da FRada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, p. 539 (nota 566).

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diogo costa Gonçalves

limite mínimo por referência ao valor de mercado ou numa taxa de depreciação do


valor do imóvel, por exemplo, é indiferente. o que parece ser determinante é que a
proposta de modificação reflita uma participação do locador na alea do negócio do
locatário ajustada ao encerramento compulsório da sua atividade económica e um
rendimento mínimo de locado que reflita a contração do consumo.

a reposição do equilíbrio genético do contrato pode ser feita de múltiplos


modos. as partes são, seguramente, quem se encontra em melhores condições
para eleger o modo mais adequado de reposição.
Para aferir o cumprimento do dever de renegociação basta, contudo, que se
possa afirmar que o acordo alcançado é um equivalente funcional do equilíbrio an-
teriormente existente.

vii – a equivalência funcional pode implicar uma modificação significativa


do conteúdo das prestações. Pense-se no exemplo b). a realização da viagem de fé-
rias na data aprazada não é possível, dadas as medidas de contenção da pandemia,
mas é possível noutra data, sem sacrifício substancial do interesse do credor.
contudo, o Programa XP não consistia apenas numa viagem: englobava tam-
bém programas culturais, recreativos, desportivos, que não podem ser replicados
noutras datas e épocas do ano.
a renegociação pode importar, neste caso, a modificação dos programas re-
creativos, a substituição por outros equivalentes, a redução de preço dada a su-
pressão de serviços ou a sua manutenção com um upgrade de hotel.
em qualquer dos casos, é necessário que se estabeleça uma relação entre o equilíbrio
contratual originário e aquele que é recriado nas novas circunstâncias contratuais.
se a equivalência funcional não está presente na proposta, não é possível sus-
tentar o cumprimento da obrigação de renegociar o contrato.

1.4. O inadimplemento da obrigação de negociar

i – numa tentativa de sistematização, podemos identificar três constelações de


hipóteses de violação do dever de negociar16: (i) renúncia ab inito das negociações; (ii)
inexistência de propostas modificativas; e (iii) formulação de propostas desajustadas.

16
tHiaGo RodovalHo, o dever de renegociar, pp. 1631-1632, oferece um elenco diferente: serão
exemplificativamente casos de inadimplemento deste dever a recusa em participar na renegociação,
a resposta intempestiva, e a violação do dever de considerar seriamente a proposta da outra parte
ou o silêncio perante essa proposta.

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crise e renegociação dos contratos no direito português e brasileiro – algumas reflexões

a primeira e mais evidente forma de violação do dever de negociar consiste


na renúncia a iniciar o processo de negociações. trata-se de uma renúncia material,
que pode ser compatível com uma aparência formal de comportamento conforme
à revisão contratual estabelecida17.
os comportamentos dilatórios e evasivos, a sonegação de informação, a criação
de dificuldades às diligências negociais, prolongados silêncios, são exemplos de
comportamentos que – ocorrendo aparentemente num processo negocial conforme
à cláusula de revisão – configuram, materialmente, uma recusa de negociações.

ii – não tendo havido recusa das negociações, pode ainda assim nenhuma
das partes ter chegado a manifestar uma vontade firme e concreta de modificação
contratual.
os vários contactos negociais não chegaram a permitir a identificação de ne-
nhuma proposta de revisão, não porque as partes tenham esgotado as possibilida-
des negociais – sem que se vislumbrasse um consenso –, mas porque, a partir de
determinado momento, a falta de empenho de alguma delas não permite alcançar
um acordo.
uma das partes (ou eventualmente ambas) adoptaram um comportamento
de quem não quer deixar de negociar, mas também não quer verdadeiramente
obter um consenso.

iii – Próximo deste comportamento está aquele outro em que as partes apre-
sentam propostas concretas de modificação contratual, mas manifestamente ina-
ceitáveis para a outra parte.
o conteúdo de tais propostas é, por regra, alheio ao equilíbrio contratual ori-
ginário. não se destinam a recriar esse equilíbrio, antes sugerem à contraparte
outro conteúdo negocial, completamente desajustado do contrato em revisão.
trata-se, sem dúvida, de uma proposta de revisão contratual. Mas não permite
dizer que se cumpriu o dever de renegociação destinado a obter o reequilíbrio
contratual desejado.

iv – os comportamentos indicados são exemplo de uma violação do dever


de negociação porque correspondem à frustração da vinculação assumida pelas
partes.

17
colocando a questão do cumprimento de dever de negociar nas clausulas escalonadas, veja-se Paula
costa e silva, Perturbações no cumprimento dos negócios processuais, lisboa, 2020, 83-84.

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violar o dever de negociação é não negociar, ou negociar de forma inútil, in-


consequente ou desleal.
violam seguramente tal dever as partes que, mantendo em aberto uma ins-
tância negocial, frustram deliberadamente o escopo da negociação, não concor-
rendo para a reposição do equilíbrio contratual almejado.

v – a proximidade entre a negociação vinculada e a livre negociação tem le-


vado a que se identifique o inadimplemento do dever de negociar com a violação
dos deveres pré-contratuais (próprios do instituto da culpa in contrahendo), res-
tringindo assim os danos imputáveis ao interesse contratual negativo (em particu-
lar, aos custos associados ao processo negocial).
a pretensão ressarcitória teria por horizonte apenas o investimento alocado
no processo negocial – o dano de confiança.
como vimos, porém, a proximidade entre a renegociação ex contractu e a livre
negociação é menos intensa do que aparenta. a posição jurídica de quem se en-
contra vinculado a renegociar é distinta da expectativa da conclusão de um negó-
cio, fundada no modo como foi conduzida certa negociação18. se a limitação da
responsabilidade por culpa in contahendo19 ao interesse contratual negativo tem
vindo a ser posta em causa pela doutrina mais recente20, por maioria de razão deve
ser equacionada no caso da violação do dever de negociar:

“(...) a violação da obrigação contratual de negociar não tem (...) por que estar
em coerência limitada à indemnização do chamado interesse negativo, podendo a
responsabilidade estender-se ao interesse do cumprimento. claro que o quantum in-
demnizatório deve coadunar-se com o conteúdo da prestação não realizada. e não
há dúvida que, se não houver então vinculação propriamente dita à celebração do
contrato, pode haver dificuldade de computar o prejuízo. (...) Mas nada obsta con-
ceptualmente ao ressarcimento do interesse de cumprimento do contrato.”21.

18
chamando a atenção para este ponto, Manuel caRneiRo da FRada, Teoria da confiança e res-
ponsabilidade civil, p. 503 (nota 532).
19
note-se, no entanto, que a frustração da legítima expectativa da conclusão do negócio, quando
relevante, não configura um caso de culpa in contrahendo (como já havia sublinhado caRneiRo da
FRada). os assim denominados casos de rompimento injustificado das negociações não são, em rigor,
hipóteses de responsabilidade pré-contratual. com referências, veja-se dioGo costa Gonçalves,
Novo coronavirus e crise contratual, lisboa, 2020, 14-15.
20
antÓnio MeneZes coRdeiRo, Tratado, ii, pp. 285-286.
21
Manuel caRneiRo da FRada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, p. 503 (nota 532).

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vi – sublinhe-se, todavia, que o interesse no cumprimento da obrigação de


negociar é distinto do interesse no cumprimento do contrato reequilibrado22. não
se trata, portanto, de alijar este último sobre uma das partes, a pretexto da violação
do dever de negociar.
sem prejuízo das dificuldades de determinação do quantum correspondente
à pretensão indemnizatória, a ponderação do interesse contratual positivo permi-
tirá considerar outros danos que não apenas os custos associados à negociação. a
possibilidade de chegar a um reequilíbrio contratual sem a colaboração das partes
– mediante a intervenção de um terceiro, por exemplo – e as perdas que aí se pos-
sam identificar são elementos a ponderar na violação do dever de negociação.

vii – na pendência da negociação – e mesmo admitindo o seu sucesso –


podem sempre ocorrer violações de deveres pré-contratuais proprio sensu, como
os deveres de informação.
em causa não estará, porém, a violação do próprio dever de negociar, mas
sim de outras normas de conduta presentes em qualquer fase de negociação.

1.5. A forma da modificação contratual

i – o acordo modificativo do contrato está, por regra, sujeito à forma do ne-


gócio modificado. nada dispondo a lei em contrário, impera o princípio de liber-
dade de forma: as partes exteriorizam a sua vontade do modo que lhes aprouver.
Muitos contratos contêm, porém, uma cláusula referente à forma das suas al-
terações, estipulando que qualquer modificação fica sujeita a uma determinada
forma, mais ou menos solene, que não necessariamente um instrumento público23.
tais cláusulas pretendem sujeitar a eficácia da modificação à observância da
forma prevista, afastando assim a relevância de qualquer outra manifestação de von-
tade que não tenha sido declarada por aquele concreto modo de exteriorização.
tratam-se, portanto, se formas voluntárias ad substantiam: da sua observância
depende a validade dos atos jurídicos em causa.

22
neste sentido: Manuel caRneiRo da FRada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, p. 510
(nota 540): “violado um compromisso deste género [de negociar] nenhum obstáculo se antolha na
cencessão á parte lesada de uma indemnização pelo interesse de cumprimento da vinculação ina-
dimplida. este interesse é evidentemente distinto do interesse de cumprimento do contrato cuja
negociação se visava.”.
23
Fabio MenKe, Comentário ao Código Civil (coord. Giovanni ettore Manni), são Paulo, 2019,
p. 191.

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ii – o art. 109.º ccbr é claro ao dispor que «no negócio jurídico celebrado
com a claúsula de não valer sem instrumento público, este é de substância do ato».
a letra do preceito refere-se apenas a instrumento público, mas tem-se en-
tendido que a intenção normativa abrange outras formas eleitas pelas partes, desde
logo a forma escrita24.
a violação da forma voluntária gera a invalidade do acordo modificativo, nos
termos dos arts. 104.º/iii e 166.º/v do mesmo código. só assim não será se as
partes tiverem acordado – aquando da modificação – na dispensa da observância
da forma voluntária, renascendo, assim, o princípio da liberdade de forma.

iii – a ordem jurídica portuguesa conhece também o princípio da liberdade


de forma, expresso no art. 219.º ccPt: “a validade da declaraçãoo negocial não
depende da observância de forma especial, salvo quando a lei a exigir”.
o ccPt prevê também um regime para o acordo das partes quanto à forma
(forma convencional). nos termos do art. 223.º, “podem as partes estipular uma
forma especial para a declaração”. e acrescenta o preceito: “presume-se, neste caso,
que as partes se não querem vincular senão pela forma convencionada”25.
a forma convencional é, portanto, uma forma ad substantiam e a sua não ob-
servância é sinal de que as partes se não quiseram vincular.

iv – a não vinculação das partes é, contudo, uma presunção juris tantum.


se dos elementos interpretativos disponíveis, o intérprete puder concluir que, ao
regular a forma do negócio, as partes tinham em mente algo diferente de excluir a efi-
cácia das declarações negociais que a não observassem, então, estaremos perante uma
forma convencional visando outros efeitos para lá dos que o art. 223.º/1 ccPt con-
siderou: fora, portanto, do específico âmbito da sua estatuição (que é a presunção).
Pode, por exemplo, o acordo respeitante à forma do negócio jurídico ter sido
adoptado pelas partes tão só com efeitos ad probationem. nesse caso não se aplica
o art. 223.º/1 ccPt, embora tenha havido convenção de forma.

v – outra consequência importante de estarmos perante uma mera presun-


ção reside no facto de, mesmo sendo ad substantiam, sempre se poder provar que,
naquele acordo modificativo, as partes quiseram efectivamente vincular-se, mau
grado a violação da forma convencional.

24
com referências, Fabio MenKe, Comentário, p. 191.
25
sobre estes princípios veja-se a título de exemplo antÓnio MeneZes coRdeiRo, Tratado, ii,
pp. 170 e ss., e caRlos albeRto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed., coimbra,
2005, pp. 428 e ss.

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crise e renegociação dos contratos no direito português e brasileiro – algumas reflexões

com efeito, a vontade das partes é tão soberana e juridicamente relevante


para excluir a eficácia da declaração negocial emitida sem a observância da forma
convencionada, quanto para se vincular a certo negócio sem a observância da
mesma forma.

vi – as diferenças os regimes português e brasileiro são sobretudo de sistema


externo. as soluções normativas não são – se bem vemos – radicalmente distintas.
talvez à luz do art. 109.º ccbr não seja possível concluir que a sujeição do
negócio a uma forma definida pelas partes tem, naquele caso concreto, um escopo
meramente probatório.
contudo, já parece seguro que é possivel às partes invocar o princípio da au-
tonomia privada para demonstar que a preclusão da forma convencionada não
afastou a vinculação. tratar-se-á sempre de uma questão de prova, já que a dis-
cussão só surgirá em fase de litígio, quando uma das partes se quer fazer prevalecer
da modificação contratual e à outra a mesma modificação não aproveita.

1.6. Dever de negociar e os regimes legais de reposição do equilíbrio contratual

i – detenhamo-nos, agora, na relação existente entre as cláusulas de revisão


contratual e as disposições legais que determinam a reposição do equilíbrio do
contrato.
Partindo do ordenamento jurídico brasileiro, pergunta-se: é válida uma cláu-
sula como a ICC hardship clause inserida num contrato sujeito à lei brasileira?
sendo, que relação conserva com disposições como as dos arts. 478.º e 479.º ccbr?

art. 478. nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de


uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra,
em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir
a resolução do contrato. os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da
citação.
art. 479. a resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüi-
tativamente as condições do contrato.

não cabe aqui saber se a factualidade subsumível ao n.º 2 da ICC hardship


clause coincide ou não com o previsto no art. 478.º ccbr. admitamos que exis-
tem, pelos menos, casos de sobreposição aplicativa. neste cenário: a ICC hardship
clause afasta a aplicação do regime da onerosidade excessiva? aplica-se cumulati-
vamente? em que termos?

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ii – a resposta depende, em primeiro lugar, do que se entenda acerca da in-


juntividade dos regimes legais de reposição do equilíbrio contratual.
no espaço europeu, a questão tem-se colocado, com frequência, a propósito
da aplicação do art. 3.º/3 da convenção de Roma, nos termos do qual, “a escolha
pelas partes de uma lei estrangeira, acompanhada ou não da escolha de um tribu-
nal estrangeiro, não pode, sempre que todos os outros elementos da situação se
localizem num único país no momento dessa escolha, prejudicar a aplicação das
disposições não derrogáveis por acordo, nos termos da lei desse país (...)”.
Pergunta-se, em concreto, se as disposições legais de reposição do equilíbrio con-
tratual – em particular, no caso português, o regime da alteração das circunstâncias
(art. 437.º ccPt) – são mandatory law e, como tal, indisponíveis para as partes.

iii – alguns institutos conjugam um núcleo intangível de indisponibilidade


com uma periferia normativa permeável à autonomia privada. neste casos, a dis-
ponibilidade é gradativa: não se trata de saber se as partes podem dispor do regime
no seu todo, mas sim de saber até que ponto podem dispor: que elementos nor-
mativos são, portanto, absolutamente indisponíveis – porque constitutivos de uma
ideia de justiça material irrenunciável pelo ordenamento – e que outros podem
ser moldados pela vontade das partes.
no caso do instituto da alteração das circunstâncias, a liberdade das partes
para afastar a aplicação do instituto não é plena.
nada impede, com efeito, que as partes convencionem um regime contratual
próprio para a alteração das circunstâncias, regime esse que prevalecerá sobre o
art. 437.º ccPt. neste sentido, é correto afirmar que o art. 437.º é uma norma
supletiva, isto é: pode ser afastada pela vontade das partes, na medida em que elas
podem criar um regime contratual de alteração das circunstâncias26.
Mas a supletividade do art. 437.º ccPt não é absoluta. a construção da al-
teração das circunstâncias a partir da boa-fé comunica ao instituto a injuntividade
própria deste princípio.
assim como não é concebível que a vontade das partes afaste a aplicação do
abuso de direito, da culpa in contrahendo, dos deveres de lealdade post pactum fini-

26
como refere antÓnio MeneZes coRdeiRo, “para além de lícita, tal prática é, mesmo desejável:
transfere para a negociação o regime das superveniências e evita litígios futuros, permitindo en-
contrar soluções mais adequadas para as ocorrências possíveis, de acordo com as aspirações das par-
tes” - Tratado de Direito Civil, iX, 3.ª ed., coimbra, 2017, p. 672. a supletividade do instituto é
evidenciada v.g. em cataRina MonteiRo PiRes, Contratos – I. Perturbações na execução, coimbra,
2019, p. 197.

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crise e renegociação dos contratos no direito português e brasileiro – algumas reflexões

tum – tudo concretizações do instituto geral da boa fé –; também não é sustentável


que as partes possam afastar completamente a aplicação do regime da alteração
das circunstâncias.

iv – estamos, assim, diante de uma disponibilidade relativa ou supletividade


de princípio (parafraseando Menezes cordeiro27) que se concretiza no seguinte: (i)
as partes não podem pura e simplesmente afastar toda e qualquer modificação do
contrato por alteração das circunstâncias (entendendo que nenhuma superveniên-
cia – seja qual for a sua magnitude e natureza – é juridicamente relevante); (ii) as
partes podem, outrossim, afastar a aplicação do art. 437.º ccPt, criando um re-
gime contratual de alteração das circunstâncias; (iii) mas mesmo nestes casos,
quando afastam a aplicação do regime legal, não o podem fazer em tais moldes
que viole o princípio da boa fé.
aí onde as partes podem dispor, mantém-se – parafraseando Menezes cordeiro
– a sujeição ao nihil obstat da boa fé28.

v – de notar ainda que a disponibilidade relativa do regime previsto no art.


437.º ccPt é compatível com a supletividade da aplicação do instituto e a im-
possibilidade de conhecimento oficioso, pelo tribunal.
a parte lesada pode sempre dispor sobre o exercício do direito, confor-
mando-se com a lesão e renunciando ao reequilíbrio do contrato. Mas a renúncia
ao exercício de um direito não se confunde com a disponibilidade sobre os seus
elementos constitutivos.
não exercer um direito é sempre legítimo (salvo se o seu exercício for vincu-
lado), mas estruturalmente distinto da possibilidade de afastar a relevância nor-
mativa dos seus factos constitutivos.

27
“(...) a referência ao risco, constante do artigo 437.º/1, indica a natureza supletiva da alteração
das circunstâncias. Mas tal relação de supletividade não deve ser entendida em termos absolutos: a
interpretação das normas que cominem as repartições particulares do risco ou similares deve revelar
se a atribuição realizada é definitiva, plena, ou se, ainda aí, é admissível, passada certa margem,
que a exigência dos deveres contratuais possa contrariar «gravemente os princípios da boa fé». esta
apresenta, assim, como segundo papel, uma função de controlo.». e conclui o autor: «efectuada,
nos termos preconizados, a interpretação do artigo 437.º/1, constata-se, no seu dispositivo, uma
omnipresença da boa fé: ela indica o tipo e a intensidade que as alterações hão-de assumir, para
justificar a modificação ou a resolução do contrato e intervém no definir das adaptações a que haja
lugar. apurou-se, também, uma supletividade de princípio do esquema da alteração das circuns-
tâncias; mas, ainda aí, mantém-se a sujeição ao nihil obstat da boa fé.” - antÓnio MeneZes
coRdeiRo, Da Boa Fé no Direito Civil, coimbra, 2001, pp. 1107-1108.
28
antÓnio MeneZes coRdeiRo, Da Boa Fé no Direito Civil, p. 1108.

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vi – se bem vemos, as questões ora mapeadas também se colocam no orde-


namento jurídico brasileiro.
nada impede que as partes criem um regime contratual de reposição do equilíbrio
(como as cláusulas hardship) que prevalecerá sobre as disposições legais aplicáveis29. do
mesmo modo, o silêncio das partes não exclui a aplicação dessas mesmas disposições30.
Já a identificação concreta de um núcleo ético-jurídico absolutamente indis-
ponível para a vontade das partes depende dos compromissos dogmáticos do or-
denamento em presença.
É frequente identificar-se a figura da onerosidade excessiva com a cláusula
medieva segundo a qual contractus qui habent tractum successivum et dependentiam
de futuro, rebus sic stantibus intelliguntur31.
a rebus sic stantibus foi compreendida como uma cláusula contratual, ainda
que tacitamente fixada, segundo a qual o contrato apenas vincularia as partes en-
quanto persistisse o ambiente objetivo vigente ao tempo da celebração32. ao aplicar
a rebus sic stantibus, os juristas estavam ainda a mover-se no âmbito do princípio
pacta sunt servanda e a respeitar a vontade das partes.
o mesmo pode dizer-se da teoria da pressuposição: para Windscheid, estava
em causa uma condição ou pressuposição (Voraussetzung) presente na vontade ne-
gocial, ainda que não desenvolvida ou tacitamente assumida33.
seria só com o desenvolvimento posterior da noção de base negocial (oert-
mann), que a alteração das circunstâncias se deslocaria do âmbito do dogma da
vontade para o espaço dogmático da boa-fé34.
uma compreensão dos institutos de reposição do equilíbrio contratual dog-
maticamente tributária do dogma da vontade terá maior dificuldade em funda-

29
neste sentido, Fabio QueiRoZ PeReiRa/daniel de Pádua andRade, a obrigação de renegociar,
p. 216.
30
JuditH MaRtins-costa, A boa-fé no Direito privado, 2.ª ed., são Paulo, 2018, p. 655: “quando
os contraentes não estabelecem preceitos relativos à regulação dos riscos do desequilíbrio futuro
advindos da modificaçãoo do entorno contratual, pode a lei operar para promover o reequilíbrio,
pela revisão heterônoma (...).Quando as partes nada dispõem, portanto, incidem as normas suple-
tivas do código civil uma vez configurados os seus suportes fáticos.”.
31
neste contexto, a onerosidade excessiva seria apenas uma hipótese (entre outras) de perturbação
da base negocial, desta sorte com assento legal.
32
sobre a origem história, veja-se, por exemplo, osti, “la cosi detta clausola r.s.s. nel suo sciluppo
storico”, Riv. Dir. Privato, 1912, p. 212. veja-se também, entre nós, João antunes vaRela,
Ineficácia do testamento e vontade conjectural do testador, 1950, coimbra, pp. 264 e ss.
33
beRnHaRd WindscHeid, “die voraussetzung”, AcP 78 (1892), pp. 161-202.
34
com desenvolvimento, antÓnio MeneZes coRdeiRo, Da Boa Fé no Direito Civil, pp. 1035
e ss.

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crise e renegociação dos contratos no direito português e brasileiro – algumas reflexões

mentar uma limitação à autonomia privada. Já quanto maior for o peso dogmático
da boa-fé, maior a tendência para identificar nos institutos de reposição do equi-
líbrio contratual um núcleo irredutível de indisponibilidade, correspondente a
uma sindicância mínima da justiça material do contrato.

1.7. A intervenção heterónoma na reposição do equilíbrio contratual

i – nem sempre o reequilíbrio contratual é obtido pela intervenção das partes,


cabendo nestes casos a um terceiro – por regra, um juiz ou árbitro – proceder à
readaptação do contrato (revisão heterónoma).
a revisão heterónoma pode surgir como (i) uma hipótese contratualmente pre-
vista para a reposição do equilíbrio contratual, ou como (ii) consequência da aplicação
imediata de um instituto legal, a que não tenha precedido qualquer negociação.

ii – volvamos ao exemplo da ICC hardship clause. Malogradas as negociações


previstas no n.º 2/b) da referida cláusula-modelo, são apresentadas três alternativas
possíveis para a redação no n.º 3:

3a 3b 3c
Party to terminate Judge adapt or terminate Judge to terminate

Where paragraph 2 of this Where paragraph 2 of this Where paragraph 2 of this


clause applies, but where the clause applies, but where the clause applies, but where the
parties have been unable to parties have been unable to parties have been unable to
agree alternative contractual agree alternative contractual agree alternative contractual
terms as provided in that terms as provided for in that terms as provided in that
paragraph, the party invoking paragraph, either party is en- paragraph, either party is en-
this Clause is entitled to ter- titled to request the judge or titled to request the judge or
minate the contract, but cannot arbitrator to adapt the contract arbitrator to declare the ter-
request adaptation by the judge with a view to restoring its mination of the contract.
or arbitrator without the agree- equilibrium, or to terminate
ment of the other party. the contract, as appropriate.

a versões 3a e 3b preveem a possibilidade de uma revisão heterónoma do


contrato, por juiz ou árbitro. na versão 3a, é à parte lesada que cabe o direito de
pedir a revisão, podendo a outra parte opor-se à intervenção do terceiro na repo-
sição do equilíbrio contratual. na versão 3b, qualquer das partes pode requerer a
revisão por um juiz ou árbitro.

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em qualquer dos casos, o recurso à revisão heterónoma surge como uma so-
lução contratual para o insucesso de uma obrigação de renegociação, também ela
contratualmente prevista.

iii – noutros casos, a intervenção do juiz ou do árbitro decorre diretamente


da lei, com fundamento numa superveniência disrupriva do equilíbrio contratual
originário. É o que vemos suceder nas hipóteses de onerosidade excessiva e de per-
turbação da base do negócio.
nos termos do art. 478.º ccbr, à parte lesada cabe pedir ao tribunal a reso-
lução do contrato. como recorda cristiano de sousa Zanetti, perante o pedido
de resolução, o réu pode tomar uma de três atitudes: (i) conformar-se com a re-
solução (e com a correspondente liquidação da relação contratual); (ii) opor-se
aos seus fundamentos; ou, (iii) nos termos do art. 479.º ccbr, pleitear a revisão
do contrato35.
a revisão contratual surge, assim, como um meio de defesa contra a resolução
com fundamento em onerosidade excessiva, à semelhança do que sucede no di-
reito italiano (art. 1467.º Codice Civile), no qual o regime brasileiro se inspirou.
não assim na experiência alemã: a perturbação da base negocial permite à
parte lesada exigir a adaptação do contrato – § 313 (1) bGb –; só quando a adap-
tação não for possível é que há lugar à resolução ou denúncia – § 313 (3) bGb.

iv – em Portugal, o regime vertido no art. 437.º parece permitir ao lesado a


opção entre a modificação do contrato e a sua resolução:

1. se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem


sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato,
ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações
por ela assumidas afete gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos
riscos próprios do contrato.
2. Requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se ao pedido, declarando
aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior.

Recorde-se que o preceito data de 1966, momento em que o regime italiano


(1942) era já conhecido, mas a solução alemã só viria a ser consagrada muito mais
tarde, com a reforma de 2002.

35
cRistiano de sousa Zanetti, Comentário ao Código Civil (coord. Giovanni ettore Manni),
são Paulo, 2019, 779.

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crise e renegociação dos contratos no direito português e brasileiro – algumas reflexões

em face da redação do art. 437.º ccPt, tem-se discutido se a parte lesada


pode livremente escolher entre a resolução e a modificação do contrato ou se, ao
contrário, existe uma hierarquia entre os remédios legais em presença36.
o direito prefere, quando possível, a modificação equitativa do contrato à
sua resolução: “a modificação tem precedência sobre a resolução do contrato”37.
o próprio preceito permite à contraparte opor a modificação à resolução, mas
não o seu inverso38. daqui decorre que, sendo possível a modificação, ela pode
paralisar a resolução e o seu efeito destrutivo do contrato39.

v – a preferência sistemática pela modificação – ditada também pelo prin-


cípio do aproveitamento dos atos jurídicos – carece de articulação com o que se
entenda acerca do dever de renegociação ex bona fide.
adiantando: uma superveniência absolutamente disruptiva do equilíbrio con-
tratual, como a que encontramos em sede de alteração das circunstâncias, consti-
tuirá – nõ necessariamente, mas com elevada probabilidade – fundamento de um
dever de renegociar o contrato40.
neste contexto – e admitindo que não existiram negociações prévias – o pe-
dido de resolução pela parte lesada só poderá significar uma de duas coisas: (i) ou
a parte lesada entende que a modificação não é juridicamente possível e, portanto,
a resolução é o único remédio legal; ou (ii) a parte lesada recusa-se a negociar, o
que, dependendo das circunstância, poderá ser valorado como uma protestatio de
incumprimento do dever de renegociação (ainda que o pedido seja a revisão he-
terónoma).
a preferência do ordenamento pela modificação não condiciona, portanto, o
lesado na escolha entre a modificação (quando possível) e a resolução41, mas per-
mite atribuir consequência jurídicas diversas à sua conduta, atendendo sempre às
particularidades do caso concreto.

36
com referências, cataRina MonteiRo PiRes, efeitos da alteração das circunstâncias, O Direito
145 (2013) i-ii, pp. 181-206, pp. 184 e ss.
37
Manuel caRneiRo da FRada, crise financeira mundial e alteração das circunstâncias – contratos
de depósito vs. contratos de gestão de carteiras, in Forjar o Direito, coimbra, 2015, pp. 23-82, p.
79. no mesmo sentido, JosÉ de oliveiRa ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, iii, coimbra,
2002, p. 207.
38
neste sentido, PedRo Pais de vasconcelos / PedRo leitão Pais de vasconcelos, Teoria
Geral do Direito Civil, 9.ª ed., coimbra, 2019, p. 381.
39
antÓnio MeneZes coRdeiRo, Da Boa Fé no Direito Civil, p.1105.
40
antÓnio MeneZes coRdeiRo, Tratado, ii, p. 778.
41
neste sentido, cataRina MonteiRo PiRes, efeitos da alteração das circunstâncias, p. 185.

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1.8. A modificação equitativa e o comportamento das partes

i – a revisão heterónoma do contrato é feita segundo juízos de equidade.


É comum definir-se a equidade como a justiça do caso concreto, por oposição
à solução legal que, sendo geral e abstrata, não teria em conta as especificidades
do caso42. vista assim, a equidade surge como uma forma mais perfeita de realizar
a justiça, permitindo ponderar as diferenciações que a lei, nas categorias abstractas
com que se expressa, não pode valorar.

ii – esta compreensão parte de uma oposição entre sistema (enquanto modo


de decisão regido pela perspectiva generalizadora da norma) e equidade (enquanto
modo de decisão ditado pela perspectiva individualizadora do casus), semelhante
à oposição clássica – e hoje ultrapassada – entre tópica e sistemática43.
a metodologia jurídica contemporânea superou esta aparente dicotomia: as
decisões sistemáticas são sempre uma adequação da justiça ao caso concreto (ver-
dadeiro prius metodológico). tal adequação é garantida, entre outros fatores, através
(i) de uma interpretação aperfeiçoadora; (ii) de cláusulas gerais; (iii) da plasticidade
dos instiutos que gravitam em torno da boa fé; (iv) e, com especial relevo, através
(iv) do depuramento dos modelos de decisão facultados pela doutrina44.
uma noção de sistema como a presente em engisch e canaris45, por exemplo,
procura a justiça do caso concreto e pode até ufanar-se de afirmar que o sistema
não tolera situações materialmente injustas.
o sentido tradicional de æquitas fica assim consumido pelas virtuosidades de
um sistema móvel, pelo manuseamento de conceitos ordenadores (Ordnungsbe-
riff), por modelos tipológicos de decisão, pelo relevo conferido ao pensamento
analógico, etc. o espaço para uma decisão verdadeiramente a-sistemática, segundo
juízos de equidade, torna-se muito reduzido.

iii – com esta noção coeva de sistema e de método jurídico, há ainda espaço
para uma decisão segunda a equidade?

42
acerca do tema, com mais desenvolvimento, cfr. Manuel caRneiRo da FRada, “a equidade
(ou a “Justiça com coração) – a propósito da decisão arbitral segundo a equidade”, in Forjar O
Direito, coimbra, 2015, pp. 653-687.
43
dioGo costa Gonçalves, Pessoa coletiva e sociedades comerciais, coimbra, 2015, pp. 68-73.
44
Quanto a esta última nota, veja-se JuditH MaRtins-costa, autoridade e utilidade da doutrina: a
construção dos modelos doutrinários, in Modelos de Direito Privado, são Paulo, 2014, pp. 9-40.
45
KaRl enGiscH, Introdução ao pensamento jurídico, 8.ª ed., lisboa, 2001, passim e claus WilHelM
canaRis, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito, lisboa, 2002, passim.

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crise e renegociação dos contratos no direito português e brasileiro – algumas reflexões

o sistema jurídico, na sua dimensão histórico-cultural, cristaliza modelos de


realização da justiça. tais modelos não são, porém, os únicos possíveis. o dever de
reparar um dano, por exemplo, é uma demanda ético-jurídica. Mas que a reparação
consista numa indemnização pecuniária, é uma solução de um concreto sistema
histórico: a mesma ideia de justiça pode ser afirmada mediante outra solução46.
Pense-se, por exemplo, nos danos não patrimoniais. a ofensa à integridade
física de um jovem na sequência de um acidente de viação – num exemplo de
carneiro da Frada47 –, dá lugar a uma indemnização pecuniária. contudo, nada
impede que a reparação de tais danos de natureza não patrimonial possa ocorre
de outro modo (levando o jovem a um jogo de futebol ou a uma experiência num
parque de diversões, etc.): ter-se-ia sempre feito justiça, ainda que o modo de re-
paração do dano fosse outro que não aquele que o sistema histórico consagrou.

iv – Parece-nos, portanto, correta a proposta de carneiro da Frada: a equidade


permite uma solução justa, ainda que distinta daquela da vigente no sistema histó-
rico48. ela não é alheia ao sistema, uma vez que não pode deixar de atender às soluções
historicamente consagradas. Realiza, na verdade, os mesmo valores fundamentais que
informam e conferem identidade ao sistema jurídico. Fá-lo, todavia, sem as constri-
ções do sistema histórico e ponderando outras virtudes para além da justiça.
de forma muito abreviada, a equidade permite uma solução do caso valorativa-
mente conforme ao sistema (em particular, às exigências do sistema interno), não obs-
tante poder ser materialmente distinta da solução histórica consagrada na regra e
formalmente assistemática, na medida em que convoca outro padrão de argumentação
e fundamentação, no qual se permite a ponderação de outras virtudes e auctoritates.

v – uma última observação, também ela relevante em sede de modificação


equitativa dos contratos.
um tratamento equitativo é estruturalmente distinto de um tratamento igua-
litário. Mais que o resultado prático concreto, a diferença reside na própria ratio
decidendi: enquanto o igualitarismo se funda num juízo binário de semelhança/dis-
semelhança – constitutivo de categorias entre si alternativas e excludentes –, a
equidade supõe a ponderação do que há de singular e diferenciador em cada caso,
avaliando-o em nome da justiça na situação concreta.

46
neste sentido, Manuel caRneiRo da FRada, a equidade (ou a “Justiça com coração), pp. 674
ss.
47
Manuel caRneiRo da FRada, a equidade (ou a “Justiça com coração), p. 674.
48
Manuel caRneiRo da FRada, a equidade (ou a “Justiça com coração), pp. 674 ss.

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sem dúvida que uma decisão segundo a equidade respeita a igualdade recla-
mada pela justiça. Mas sem a ofender, pode (e deve) distinguir. a justiça do caso
concreto não consiste em dar a cada um o mesmo, mas sim em dar a cada um o
que lhe é devido49.
uma modificação equitativa do contrato não significa, portanto, tratar as par-
tes de forma igual, sujeitando-as ao mesmo risco. uma justiça salomónica pode
garantir a igualdade, mas raramente garante a equidade.

vi – a modificação equitativa do contrato conserva ainda alguma relação


com a vontade das partes. com efeito, ninguém se encontra em melhores circuns-
tâncias para definir o reequilíbrio contratual desejado que as próprias partes que
gizaram o equilíbrio originário.
se o recurso à modificação heterónoma for precedido de uma fase de nego-
ciações, o juiz ou o árbitro não podem deixar de atender ao conteúdo das nego-
ciações havidas: elas constituem como que as balizas da modificação equitativa e,
por regra identificam os elementos contratuais carecidos de revisão.
se a modificação heterónoma não for precedida de uma fase de negociações,
o juiz ou o árbitro poderão ainda socorrer-se de modelos normativos de integração
dos contratos. não porque uma superveniência disruptiva do equilíbrio do con-
trato constitua (sempre) uma lacuna negocial, mas porque o reequilíbrio há-de
aproximar-se da vontade hipotética das partes, se houvessem fixado o equilíbrio
originário no novo contexto da realidade.

2. Renegociação ex bona fide?

2.1. O problema

i – cláusulas como a hardship constituem as partes numa obrigação de ne-


gociar ex contractu. sendo o contrato silente, poder-se-á sustentar a existência de
um dever de negociar ex bona fide?
isto é: não tendo as partes previsto qualquer cláusula de revisão, pode ainda
assim entender-se que perante uma superveniência disruptiva do equilíbrio con-
tratual, a boa-fé é fundamento constitutivo de um dever de renegociação? sempre
e quanto a todo o tipo de contratos?

49
MaRtiM de albuQueRQue, Da Igualdade – Introdução à Jurisprudência, coimbra, 1993, 332.

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crise e renegociação dos contratos no direito português e brasileiro – algumas reflexões

ii – na alemanha, a questão colocou-se a propósito da aplicação do § 242


bGb, tendo-se sustentado que a boa-fé na execução dos contratos era fonte de
um dever legal de renegociação (Neuverhandlungspflicht)50, correspondendo a sua
violação a uma hipótese de violação positiva do contrato.
a reforma do bGb (2002) levou à codificação das perturbações da base do
negócio51 e, com ela, à possibilidade da parte lesada exigir a adaptação do contrato
(Anpassung des Vertrags), nos termos do § 313 (1).
Perante o (novo) regime da perturbação da base do negócio (§ 313 bGb),
alguma doutrina afastou um dever legal de renegociação ex bona fide (fundado no
§ 242)52. outros autores entenderam, porém, que a articulação sistemática de
ambos os preceitos impunha às partes – enquanto primeiras responsáveis pelo
equilíbrio contratual – o dever de negociar a adaptação do contrato prevista para
a perturbação da base negocial53.
christian Grüneberg parece ir mais longe, vendo na prévia tentativa de rene-
gociação uma condição para a ação judicial modificativa do contrato54.

iii – o problema enunciado coloca-se também no direito português e, se


bem vemos, pode também colocar-se no direito brasileiro. afinal, o art. 762.º/2
ccPt e o 422.º ccbr – à semelhança do § 242 bGb – impõem às partes deveres
de boa-fé in executivis.
Poder-se-á sustentar a existência de um dever de renegociar o contrato – en-
quanto dever acessório decorrente da padrão ético-normativo da boa-fé –, ainda
que o próprio contrato seja silente quanto à sua renegociação?

iv – Por princípio, o silêncio das partes não tem valor performativo: dele não
pode retirar-se (sem qualquer outro indício hermenêutico), que as partes quiseram
afastar qualquer negociação tendente à revisão do contrato perante uma superve-

50
noRbeRt HoRn, vertragsbindung unter veränderten umständen, NJW 1985, pp. 1123 e ss. e,
do mesmo autor, “neuverhandlungspflicht “, AcP 1981, pp. 276 e ss.
51
com referências, veja-se antÓnio MeneZes coRdeiRo, A modernização do Direito Civil, coim-
bra, 2004, pp. 114 e ss.
52
neste sentido, dieteR Medicus, Prütting, Wegen, Weinreich BGB Kommentar, 5.ª ed., München,
2010, § 313, rn. 85; Hannes RösleR, “störung der Geschäftsgrundlage nach schuldrechtsreform”,
ZGS 10 (2003), p. 388 e volKeR eMMeRicH, Das Recht der Leistungsstörungen, München, 2005,
p. 464 (a mero título exemplificativo).
53
Por exemplo, HelMut HeiRicHs, “vertragsanpassung bei störung der Geschäftsgrundlage. eine
skizze der anspruchslösung des 313 bGb”, FS Andreas Heldrich 70. Geburtstag, München, 2005,
pp. 196-197.
54
cHRistian GRünebeR, Palandt BGB, 72.ª ed., München, 2013, § 313, rn. 41.

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niência disruptiva do equilíbrio contratual. tão pouco a inexistência de uma cláu-


sula Mac, por exemplo, permite por si concluir que as partes quiseram afastar a
relevância jurídica de qualquer material adverse change.
se bem vemos, as maiores objeções ao reconhecimento de um dever de rene-
gociação ex bona fide residem em dois argumentos: (i) a inexistência de uma ob-
rigação de equilíbrio entre prestações; e (ii) e o facto de a renegociação não se
orientar ao cumprimento proprio sensu mas antes à modificação do dever de pres-
tar, estando assim fora do âmbito regulativo da boa-fé in executivis.
com efeito, o facto de a ordem jurídica admitir vinculações desequilibradas
parece retirar respaldo a um dever de renegociar o contrato ante perturbações do
equilíbrio contratual. afinal, a ordem jurídica não poderá exigir em momento
subsequente à celebração do negócio, aquele equilíbrio a que não obrigou na sua
génese.
do mesmo modo, os deveres acessórios da boa-fé contratual dirigem-se ao
cumprimento das prestações, não parecendo ser possível deles exaurir uma norma
de conduta dirigida, justamente, à modificação do conteúdo das prestações e, por
isso, à realização de um aliud.
vejamo-lo com melhor detalhe.

2.2. O real alcance do princípio do equilíbrio contratual

i – não existe, com efeito, qualquer proibição absoluta de assunção de obrigações


contratuais desequilibradas ou assimétricas55. ao contrário: o princípio da liberdade
contratual (arts. 405.º ccPt e 421.º ccbr) reclama, justamente, a possibilidade
de as partes estipularem livremente o conteúdo das obrigações que assumem56,
sem que caiba à ordem jurídica sindicar a bondade ou adequação das vinculações
assumidas aos interesses materiais em jogo.
isto não significa que o direito – enquanto realização axiológica da ideia de
justiça – tolere todo e qualquer desequilíbrio.
com efeito, os sistemas jurídicos português e brasileiro – como a generalidade
dos sistemas de matriz romano-germânica – tolera o desequilíbrio contratual apenas
até certo ponto. uma vez ultrapassado esse ponto, o sistema jurídico reage, ferindo
o negócio de ineficácia ou exigindo uma recomposição dos interesses em causa.

55
com referências, Rui Pinto duaRte, o equilíbrio contratual como princípio jurídico, in Estudos
em memória do Conselheiro Artur Maurício, coimbra, 2014, 1331-1345 e antÓnio MeneZes
coRdeiRo, Da Boa Fé no Direito Civil, cit., 651.
56
cRistiano de sousa Zanetti, Comentário ao Código Civil, pp. 696 e ss.

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crise e renegociação dos contratos no direito português e brasileiro – algumas reflexões

Mas até ser ultrapassado o limiar desse “mínimo de justiça no conteúdo”57 –


manifestação da eticidade profunda do ordenamento58 –, o espaço normativo é
preenchido pela liberdade contratual que tem, como reverso, a responsabilidade.
se as partes celebraram negócios jurídicos desequilibrados, sibi imputet.

ii – como identificar esse ponto nevrálgico que uma vez ultrapassado afasta
a eficácia vinculativa da vontade das partes? Pode ainda assim falar-se de um prin-
cípio do equilíbrio contratual (que justifique um dever de renegociação)?
atendamos no regime dos negócios usurários. À luz do art. 282.º do ccPt, o
direito não tolera que a desproporção entre prestações se fique a dever a um apro-
veitamento da necessidade ou inexperiência de alguém59. não é o desequilíbrio em
si mesmo que ofende o direito, mas sim o facto de tal desequilíbrio ter origem no
aproveitamento de uma especial vulnerabilidade de um dos contratantes60.
constatada a exploração de uma particular vulnerabilidade, a ordem jurídica
fere de ineficácia o negócio usurário, expurgando do ordenamento aquele concreto
desequilíbrio contratual.
também a contrariedade à ordem pública e aos bons costumes (art. 280.º
ccPt) tem sido invocada para justificar um controlo material da justiça do con-
tratual (ainda que apenas invocável in exterminis):

“É de ordem pública – sustenta carneiro da Frada – aquilo que constitui uma


exigência indeclinável da justiça, pois o que faz com que uma certa ordem se possa
ainda reclamar de direito constitui seguramente um condicionamento da autonomia
privada dos sujeitos». e acrescenta: «um contrato iniquamente desproporcionado atenta,
afinal, contra os bons costumes, sendo por isso, enquanto tal, proscrito e ineficaz (...)”61.

57
JosÉ de oliveiRa ascensão, Direito Civil, p. 262.
58
Reforçada, aliás, no código civil brasileiro de de 2002. com desenvolvimento, JuditH MaRtins-
-costa, o novo código civil brasileiro: em busca da ética da situação, in Diretrizes teóricas do novo
código civil, são Paulo, 2002, p. 140. veja-se ainda MiGuel Reale, O Novo Código Civil – Discutido
por juristas brasileiros, são Paulo, 2003, pp. 47 e ss. e Joseli liMa MaGalHães, Da recodificação do
Direito civil brasileiro, são Paulo, 2006, pp. 115 e ss.
59
sobre os negócio usurários veja-se em geral PedRo eiRÓ, Do negócio usurário, 1990, passim, e
dioGo costa Gonçalves / dioGo taPada dos santos, Juros de mora, indemnização e anatocismo
potestativo, (no prelo).
60
HeinRicH eWald HöRsteR / eva sÓnia MoReiRa da silva, A parte geral do Código Civil portu-
guês, 2.ª ed., coimbra, 2019, p. 621, põem em evidência este aspeto salientado que o escopo do
artigo 282.º ccPt é a proteção das pessoas em situação de vulnerabilidade e não o controlo abstrato
do conteúdo do contrato.
61
Manuel caRneiRo da FRada, autonomia Privada e Justiça contratual – duas questões, nos
50 anos do código civil, in Forjar o Direito, 2.ª ed., coimbra, 2019, pp. 13-29, pp. 25 e 26.

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em causa não está um qualquer desequilíbrio contratual. a eventual invoca-


ção da ordem pública e dos bons costumes depende da existência de um desequi-
líbrio absolutamente iníquo, que reclame um rasgar de vestes, uma vez que a sua
admissibilidade comprometeria a própria ideia de direito subjacente ao ordena-
mento e à identidade do sistema interno62.
exige ainda que a iniquidade em causa não possa ser reconduzida a nenhum
outro instituto restando, ao decisor, o apelo para a ordem pública e para os bons
costumes, como última salvaguarda da eticidade do sistema.

iii – se o negócio desequilibrado não puder ser expurgado do ordenamento,


o princípio do equilíbrio é chamado a intervir como critério hermenêutico.
atenda-se ao disposto no art. 237.º do ccPt: em caso de dúvida, e estando
em causa negócios onerosos, prevalece o sentido negocial que “conduzir ao maior
equilíbrio das prestações”.
se bem vemos, o princípio do equilíbrio não se restringe aos casos de duvidosa
interpretação. Quando o tipo negocial não pressupõe o desequilíbrio (como o
pressupõe a doação, por exemplo), e na ausência de outros elementos que o des-
mintam, o resultado interpretativo de um contrato sinalagmático e oneroso tende
a coincidir com o que conduza ao maior equilíbrio das prestações.
com efeito, a razoabilidade e racionalidade do comportamento das partes é um
postulado hermenêutico dos contratos: o intérprete pode e deve contar com ele63. tal
não significa que um sentido menos razoável não possa ser vinculante. Poderá sê-lo,
certamente, desde que no respeito dos limites materiais consentidos pelo ordenamento.
Mas a irrazoabilidade do sentido normativo alcançado carece de especial demonstração.
na dúvida e na falta de elementos interpretativos suficientemente concludentes, pre-
valece o sentido mais razoável e dotado de maior racionalidade económica.
uma negociação razoável e economicamente racional traduz-se no equilíbrio
das prestações contratadas: na fixação daquele ponto óptimo negocial (no contexto
de cada caso concreto) em que a relação proveitos vs. sacrifícios se encontra sufi-
cientemente optimizada para que as partes se decidam a contratar.

iv – Por fim, o equilíbrio contratual é ainda convocado na execução dos con-


tratos, maxime através de institutos como a alteração das circunstâncias (art. 437.º
do ccPt).
62
sobre as relações entre sistema interno e externo, cfr., com referências, FRanZ bydlinsKi, Zum
verhältnis von äuβerem und innerem system im Privatrecht, in FS Claus-Wilhelm Canaris 70. Geburtstag,
ii, München, 2007, pp. 1017-1040.
63
Manuel caRneiRo da FRada, sobre a interpretação do contrato, pp. 16-17.

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crise e renegociação dos contratos no direito português e brasileiro – algumas reflexões

a perturbação abrupta do equilíbrio contratual originário pode tornar inexi-


gível o cumprimento pontual das obrigações assumidas (dando lugar à resolução
ou modificação do contrato). a concretização de critérios como alteração anormal
das circunstâncias, risco próprio do contrato e princípios da boa-fé não é alheia à
ponderação do equilíbrio das prestações.
Maxime, um evento disruptivo do equilíbrio contratual pode levar à resolução
ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias, pese embora o
mesmo desequilíbrio superveniente – se presente ao tempo da celebração do ne-
gócio – não ser rejeitado pelo ordenamento.

v – temos, portanto, que a ordem jurídica portuguesa deseja o equilíbrio


contratual. Promove-o, aliás, sempre que a liberdade das partes a não constrange.
nalguns casos, certamente extremos, a ordem jurídica impõe- no, ferindo de
invalidade o contrato desequilibrado ou permitindo a sua modificação ou
resolução.
Fora destes limites, porém, prevalece a vontade das partes – sempre que livre
e esclarecida – e a sujeição do contrato ao princípio pacta sunt servanda.
a constatação da existência de um princípio do equilíbrio contratual
não permite concluir, portanto, que todas prestações devem ser paritárias.
impõe, outrossim, reconhecer que na génese dos contratos, na sua interpretação
e nas perturbações ocorridas ao longo sua execução, o equilíbrio é um dos
elementos axiológicos (a par de outros) a ter conta na solução do caso
concreto64. e nem sempre é o prevalecente. Mas, como qualquer princípio, deve
ser maximizado.

2.3. Cont.: também assim no Brasil?

i – Poder-se-á afirmar, do direito brasileiro, tudo quanto fica dito do prin-


cípio do equilíbrio contratual no direito português?
a proximidade de fontes normativas é inegável. os negócios usurários do di-
reito português correspondem à lesão do direito brasileiro. também aí se fere de
invalidade o negócio, salvo se for oferecido suplemento suficiente ou se a parte
beneficiada concordar com a redução do proveito obtido à custa da exploração
da fragilidade alheia (art. 157.º/§ 2). a correção do desequilíbrio contratual afasta,
portanto, a invalidade do negócio.

64
neste sentido, Rui Pinto duaRte, o equilíbrio contratual como princípio jurídico, p. 1341.

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importante é ainda o regime da onerosidade excessiva, previsto no art. 478.º


ccbr65. ao tempo da celebração, não existia qualquer desequilíbrio contratual
relevante. a superveniência de um acontecimento extraordinário e imprevisível
determinou, porém, que o cumprimento da obrigação nos exatos termos em que
foi assumida (pacta sunt servanda) daria origem a um desequilíbrio contratual de
tal modo gritante, que o sistema é chamado a intervir, admitindo a resolução ou
a modificação equitativa do contrato (art. 479.º ccbr).
o mesmo pode ser dito quanto às hipóteses previstas no art. 317.º ccbr: a
superveniência de motivos imprevisíveis gera uma tal desproporção que o sistema
permite a correção do desequilíbrio contratual66.
se bem vemos, o equilíbrio contratual subjacente à lesão e à onerosidade ex-
cessiva é manifestação de uma exigência de justiça material nos contratos67, que
determina que “à ênfase na liberdade suced[a] a ênfase na paridade”68.
Por fim, a licitude do objeto negocial depende igualmente da sua conformi-
dade com os bons costumes e a ordem pública (arts. 104.º/ii, 122.º, 166.º/ii, iii,
vi e vii do ccbr)69.

ii – será isto suficiente para concluir no sentido da existência de um prin-


cípio do equilíbrio, tal como gizado na ordem jurídica portuguesa? ou estare-
mos perante “soluções para particulares situações de desequilíbrio”70, sem incidência
geral?
a resposta a esta questão não pode ser dada a partir de um olhar exógeno do
ordenamento. a proximidade das fontes é um fator determinante, sem dúvida,

65
com referências, lauRa coRandini FRantZ, excessiva onerosidade superveniente, pp. 215-248.
66
Giovanni etoRe nanni, Comentário ao Código Civil (coord. Giovanni ettore Manni), são
Paulo, 2019, pp. 502 e ss.
67
neste sentido, lauRa coRandini FRantZ, excessiva onerosidade superveniente, p. 217.
68
teResa neGReiRos, Teoria do contrato: novos paradigmas, 2.ª ed., são Paulo, 2006, p. 158.
69
a jurisprudência portuguesa só muito raramente invoca os bons costumes como limite à autonomia
privada e mais raramente ainda a ordem pública. alguns exemplos de decisões em que os tribunais
atenderam à cláusula dos bons costumes podem encontrar-se em antÓnio MeneZes coRdeiRo,
Tratado, ii, pp. 601-602. esta visão restritiva das cláusulas gerais em presença garante – e bem! –
que elas só serão convocadas em casos extremos, como última ratio decisória perante um caso in-
dubitavelmente injusto.
noutro contexto cultural como o brasileiro, a mesma invocação corre o risco de abrir portas a um
indesejado ativismo judiciário e a uma jurisprudência das emoções, acrítica e acientífica, certamente
indesejada. veja-se ainda dioGo costa Gonçalves, Reflexões sobre a recepção dos direitos de per-
sonalidade nos brasil e os desafios dogmáticos contemporâneos, RDC v (2020) 1, 127-167.
70
na expressão de JuditH MaRtins-costa / Paula costa e silva, Crise e perturbações do cumpri-
mentos, no prelo.

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crise e renegociação dos contratos no direito português e brasileiro – algumas reflexões

mas não exclusivo. dependendo do ambiente cultural em que o direito é aplicado,


as mesmas fontes podem conhecer concretizações muito distintas, conduzido a
uma praxis muito diversa.
no caso do direito brasileiro, é ainda necessário ter em conta que muitas relações
jurídico-privadas são relações de consumo e, como tal, sujeitas ao direito do consumidor,
cuja modelação normativa e ponderação axiológica não é exatamente a mesma.

ii – o parágrafo único aditado ao art. 421.º ccbr pela lei da liberdade eco-
nómica (lei n.º 13.874, de 20-set.-2019) é claro ao dispor que “nas relações con-
tratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a
excepcionalidade da revisão contratual”.
a excepcionalidade da revisão heterónoma do contrato é um dado pacífico
no direito continental. a necessidade, porém, de o legislador brasileiro sublinhar
essa excepcionalidade parece supor um ambiente aplicativo de acentuado ativismo
judiciário, marcado por uma intervenção corretiva da vontade das partes mais per-
missiva do que a que encontramos em ordenamentos jurídicos como o português.

iii – atenda-se ainda ao disposto no art. 421.º-a ccbr, aditado pela mesma
lei da liberdade económica:

os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a


presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, res-
salvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:
i – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação
das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;
ii – a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e
iii – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.

a desconfiança para com a modificação contratual parece evidente. ao pre-


sumir a a paridade ou simetria contratual (ainda que possamos não estar perante
um verdeira presunção71), o legislador brasileiro parece ter querido restringir ao
máximo a possibilidade de invocar um desequilíbrio contratual para justificar uma
intervenção corretiva heterónoma.

71
com efeito, se lei não proíbe a celebração de contratos assimétricos ou desequilibrados, tão pouco
pode presumir a sua paridade ou simetria. o sentido normativo do preceito parecer ser antes este:
respeite-se a vontade das partes. esta só pode ser afastada por uma exigência ética do sistema, espe-
cialmente intensa.

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a proteção face à intervenção judicial ou arbitral no contrato surge, aliás,


como uma garantia fundamental da liberdade económica.

iv – o ponto de partida dogmático parece ser, na verdade, distinto daquele


que encontramos em Portugal. o ambiente juscultural português não é especialmente
permeável à revisão heterónoma do contrato. as possibilidades de aplicação tendem
a ser interpretadas restritivamente, reforçando-se assim a primazia da vontade. o
repto colocado à doutrina portuguesa é, ainda hoje, o de conseguir persuadir o
decisor da necessidade de uma intervenção corretiva do equilíbrio contratual.
no brasil, parece viver-se a situação inversa: tanto quanto podemos avaliar,
existe uma acentuada disponibilidade do sistema judiciário para intervir no contrato,
corrigindo a vontade das partes.
Reforçar a intangibilidade do contrato – dificultando, assim, a possibilidade de
uma revisão heterónoma – parece ser o mote da intervenção do legislador. Recorde-se
que a ainda recente lei n.º 14.010/20, de 10-jun. (Regime jurídico emergencial e
transitório das relações jurídicas de direito privado – RJET) previa expressamente o
afastamento da aplicação dos institutos de revisão contratual, negando ex lege a
qualificação de facto imprevisível à situação pandémica relativa à covid-19 (art. 7.º).
o veto presidencial afastou o regime emergencial em causa, pelo menos por enquanto.
estas circunstâncias condicionam, naturalmente, o que se pode afirmar acerca
do princípio do equilíbrio72.

2.4. A conservação do equilíbrio originário

i – a liberdade reconhecida às partes de assumirem vinculações desequilibradas


tem como reverso a responsabilidade pelo equilíbrio contratual originário.
se é verdade que a ordem jurídica não proíbe absolutamente o desequilíbrio
contratual, também parece ser verdade que impõe às partes o dever de velar pela
manutenção do equilíbrio contratual estabilizado no sinalagma genético. tal decorre,
se bem vemos, do dever de colaboração ou cooperação na execução dos contratos
e, como tal, impõe-se-nos como uma decorrência da boa-fé in executivis.
com efeito, prolongando-se a execução do contrato no tempo, a cooperação
devida entre as partes exige a conservação daquele equilíbrio originário, havido
como adequado para a decisão de contratar.

72
afastando a existência de um princípio geral de equilíbrio contratual e um princípio geral de
revisibilidade no direito brasileiro, pese embora a sua aplicação nas relações de consumo, veja-se
JuditH MaRtins-costa / Paula costa e silva, Crise e perturbações do cumprimentos, no prelo.

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crise e renegociação dos contratos no direito português e brasileiro – algumas reflexões

ii – Perante uma superveniência disruptiva do equilíbrio contratual genético,


pode sustentar-se a existência de um dever de renegociação ex bona fide73, destinado
não à criação de um novo equilíbrio contratual, mas à conservação ou reposição
do equilíbrio originário.
sublinhe-se: o sinalagma genético pode ser objetivamente desequilibrado.
como vimos, a ordem jurídica portuguesa (e tão pouco a ordem jurídica brasileira)
não proíbe a celebração de contratos desequilibrados. Mas uma vez estabilizado
certo equilíbrio contratual, é juridicamente exigível às partes que velem pela sua
manutenção ao longo da vida do contrato.

ii – esta precisão permite, a nossos olhos, afastar a primeira objeção à admis-


sibilidade de um dever de renegociar ex bona fide, fundada na inexistência de uma
proibição geral de desequilíbrio.
em causa não está, na obrigação de renegociar, a imposição – na execução do
contrato – de um equilíbrio a que as partes não se encontravam vinculadas ao tempo
da celebração. trata-se antes de manter o mesmo equilíbrio cinzelado no sinalagma
genético – livremente assumido pelas partes (e ainda que objectivamente desequilibrado)
–, sem ignorar a disrupção causada por determinada superveniência factual.
o dever de velar pelo equilíbrio contratual genético é, portanto, distinto de
um dever (inexistente) de celebrar contratos objetivamente equilibrados.

2.4. Dever de renegociação ex contractu vs. ex bona fide

i – a exata compreensão da natureza e alcance do dever de negociação ex bona


fide exige ainda que se distinga este dever da renegociação ex contractu74. a distinção
será especialmente útil na ponderação da segunda objeção acima apontada.
o dever de negociar ex bona fide ou ex contractu consubstancia uma “vinculação
relativa a um “processo” ou procedimento de negociação”75, e não a obrigação de
chegar a um acordo.
todavia, na renegociação ex contratu é a vontade soberana das partes que se
vincula a uma concreta conduta negocial (desejada por um ato dispositivo de

73
com referências, veja-se cataRina MonteiRo PiRes, efeitos da alteração das circunstâncias, pp.
198 e ss.
74
sublinhando também a existencia de consequências processuais diversas consoante esteja em
causa a violação de uma dever legal ou contratual de negociar, Paula costa e silva, Perturbações
no cumprimento, p. 68.
75
cataRina MonteiRo PiRes, efeitos da alteração das circunstâncias, p. 204.

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vontade), ao passo que na renegociação ex bona fide a mesma conduta é imposta


heteronomamente, como corolário da concretização do dever de cooperação na
execução dos contratos.

ii – ora, o dever de cooperação entre as partes conhece graus de intensidade


muito diversos76, consoante a natureza do próprio contrato e da relação entre os
contraentes.
a boa-fé in executivis não é sempre a mesma. ou melhor dito: da boa-fé na
execução dos contratos não se retira sempre o mesmo conteúdo normativo. Há
condutas que são exigíveis às partes ex bona fide num determinado contrato e que
o não são noutro modelo ou contexto contratual.
Pense-se, por exemplo, nos contratos de escopo comum ou nas formas jurídicas
de joint venture. as exigências normativas da boa-fé são seguramente distintas,
neste modelos contratuais que exigem uma conduta nostra res agitur, daquelas que
encontramos noutras manifestações de cooperação. uma relação contratual uberrimae
fidei77 impõe exigências ético-jurídicas à conduta das partes diversas daquelas que
imputamos aos sujeitos de outras relações obrigacionais.

iii – daqui resulta uma importante precisão: o dever de renegociação ex bona


fide não pode ser afirmado universalmente, quanto a todos os contratos. exige-se
sempre, para a aferição da existência de um tal dever, um juízo casuístico que
pondere valorativamente as particularidades da relação contratual em presença.
Para a pergunta se é possível fundar um dever de renegociação no princípio
da boa-fé, não existe uma resposta unívoca. neste sentido: sim, é possível fundamentar
um dever de renegociação com base na boa-fé in executivis, mas não quanto a todos
os contratos e não, seguramente, em todas as circunstâncias.

iv – É certo que podemos apontar contratos-padrão, onde o dever de renegociar


é facilmente admitido (contratos duradouros, de intensa cooperação, etc.). Mas
tal critério não basta. É sempre necessário ponderar a natureza da superveniência
disruptiva (que pode tornar irreformável o equilíbrio contratual, determinando a

76
neste sentido, JuditH MaRtins-costa, A boa-fé no Direito privado, p. 576, João de Matos
antunes vaRela, Das obrigações em geral, ii, 7.ª ed., coimbra, 1997, pp. 12-13, e o ilustrativo
aresto do stJ, de 14-jan.-2014 (Fonseca RaMos), Proc. n.º 511/11.2tbPvl.G1.s1 no qual se
discute a medida do dever de cooperação e o seu impacto na existência de mora do credor.
77
com referências, Manuel caRneiRo da FRada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, pp.
544 ss.

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crise e renegociação dos contratos no direito português e brasileiro – algumas reflexões

aplicação de outros institutos) e, em particular, o “ambiente de confiança” entre


as partes.
não será juridicamente exigível ex bona fide renegociar um contrato se as
relações entre as partes se degradaram, se já existiam litígios latentes ou obstáculos
de comunicação manifestos, por exemplo.

v – também aqui a diferença face a um dever de renegociar ex contractu é


acentuada. se as partes se obrigaram a negociar, a degradação das condições vitais
para uma renegociação do contrato não afastará, por regra, o inadimplemento.
Recorde-se que as partes gozam, na renegociação ex contractu, de uma pretensão
absoluta à negociação78.
Já estando em causa uma negociação ex bona fide, a inexistência de um ambiente
vital que permita a renegociação pode ser um elemento que afasta a constituição
do próprio dever de negociar.

vi – neste contexto, e com estas precisões, não nos parece que a segunda
objeção apontada quanto à admissibilidade de um dever de renegociar ex bona fide
seja determinante.
o dever de renegociar decorre de uma co-responsabilidade pelo equilíbrio contratual
originário. a renegociação dá origem a um diferente conteúdo das prestações, é certo,
mas que se apresenta como o equivalente funcional do mesmo sinalagma genético.
se bem vemos, estamos ainda no âmbito da boa-fé in executivis. o mesmo é
dizer: negociar ex bona fide é ainda cumprir o programa contratual a que as partes
se encontram vinculadas. esta dimensão valorativa torna-se, na verdade, o limite
normativo do próprio dever de negociar.

2.5. Facti species do dever de negociar

i – sendo possível admitir a existência casuística de um dever de renegociar


o contrato ex bona fides, cabe-nos ainda perguntar qual a facti species constitutiva
de tal dever.
uma perturbação da base do negócio que permita a resolução ou modificação
do contrato nos termos do art. 437.º é in abstracto fundamento do dever de negociar,
como vimos. e dizemos in abstracto porque a existência de um dever de negociar
ex bona fide exige sempre uma ponderação casuística.

78
Razão pelo qual, como supra procuramos demonstrar, não é de afastar um interesse no cumpri-
mento ante a violação do dever de negociar ex contractu.

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uma superveniência disruptiva do equilíbrio contratual pode justificar a


aplicação do art. 437.º do ccPt sem que, no entanto, seja juridicamente exigível
às partes aquele grau de cooperação que justifica o dever de renegociar.
temos, portanto, que pode constituir-se na esfera jurídica do lesado a pretensão
correspondente à resolução ou modificação do contrato, ao abrigo do art. 437.º
do ccPt, sem que se tenha constituído o dever de negociar.

ii – os casos em que a pretensão resolutiva ou modificativa coincide com a


constituição do dever de negociar, o critério de solução foi já enunciado: o recurso
aos remédios previstos no art. 437.º não exige a prévia negociação.
se a negociação prévia não existiu, o dever de negociar ex bona fide pode ter
sido violado mas tal violação não afasta o recurso à resolução ou modificação do
contrato, por alteração das circunstâncias.
ainda assim, a identificação de um dever de negociar omitido pelas partes
tem relevância: a mesma que estiver associada ao seu inadimplemento (que aqui
não cuidaremos).

iii – Maiores dúvidas se colocam quanto a saber se uma superveniência


disruptiva do equilíbrio contratual que não possa ser subsumível ao instituto da
alteração das circunstâncias, pode ainda assim constituir fundamento de um dever
de renegociação ex bona fide.
Pergunta-se: estarão as partes obrigadas a renegociar a reposição do equilíbrio genético
do contrato perante uma factualidade que, à luz do art. 437.º, não constitui uma alteração
das circunstâncias? se sim, quais as consequências para o incumprimento de tal dever, uma
vez que o recurso à resolução ou modificação nos termos do art. 437.º se encontra afastado?

iv – como assinalamos, a jurisprudência portuguesa tende a ser particularmente


restritiva na interpretação dos requisitos constitutivos da alteração das circunstâncias.
basta recordar que as convulsões económicas e sociais no pós 25 de abril e a des-
colonização não foram qualificadas como alteração das circunstâncias, para os
efeitos do art. 437.º do ccPt. também na última crise financeira de 2008 ficou
marcada por uma jurisprudência restritiva: nos litígios com intermediários financeiros,
por exemplo, foram mais a decisões a reconhecer a violação de deveres pré-contratuais
de informação do que a aplicar o instituto da alteração das circunstâncias79.

79
sobre a jurisprudência portuguesa, veja-se antÓnio MeneZes coRdeiRo, Tratado de Direito
Civil, iX (Direito das Obrigações), 3.ª ed., coimbra, 2017, p. 694 e ss. veja-se ainda, em especial
quanto à jurisprudência sobre contratos de swap, a. baRReto MeneZes coRdeiRo, Manual de
Direito dos valores mobiliários, 2.ª ed., coimbra, 2018, p. 245.

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crise e renegociação dos contratos no direito português e brasileiro – algumas reflexões

esta concepção restritiva do instituto da alteração das circunstâncias não nos


merece especial reparo: em causa está, na verdade, uma solução extrema do orde-
namento, invocável apenas em “casos-limite em que não tenha aplicação qualquer
outro instituto”80.
Justamente por tal razão, o âmbito aplicativo do dever de renegociar ex bona
fide não coincide necessariamente com a rebus sic stantibus. Pode a superveniência
disruptiva do equilíbrio contratual não facultar às partes o recurso à resolução ou
modificação nos termos do art. 437.º e, ainda assim, ser-lhes exigível a renegociação
em ordem à reposição do equilíbrio contratual.
tudo dependerá da densificação ético-jurídica da boa-fé in executivis naquela
concreta relação contratual.

80
antÓnio MeneZes coRdeiRo, Tratado, iX, p. 696.

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