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COMISSÃO CIENTÍFICA
DIRETOR
M. Januário da costa Gomes
COMISSÃO DE REDAÇÃO
Pedro infante Mota
catarina Monteiro Pires
Rui tavares lanceiro
Francisco Rodrigues Rocha
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO
Guilherme Grillo
PROPRIEDADE E SECRETARIADO
Faculdade de direito da universidade de lisboa
alameda da universidade – 1649-014 lisboa – Portugal
ÍNDICE 2020
ESTUDOS DE ABERTURA
Jorge Miranda
45-62 constituição e pandemia – breve nota
Constitution and pandemic – a brief note
ESTUDOS DOUTRINAIS
Catarina Salgado
117-148 o impacto da pandemia na aviação civil – um novo 11/9?
The impact of the pandemic on civil aviation – a new 9/11?
Eduardo Vera-Cruz
187-205 o direito após a pandemia de covid-19: os binómios fundamentais
Law after the COVID-19 pandemic: the fundamental binomials
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Isabel Alexandre
261-289 audiências à distância em processo civil e princípio da publicidade das audiências
Remote hearings in civil proceedings and principle of publicity of hearings
Isabel Graes
291-320 breves notas sobre as soluções de política sanitária em Portugal nos séculos Xvi-XiX
Brief notes about the Portuguese sanitary policy in the 16th-19th centuries
Judith Martins-Costa
391-427 impossibilidade de prestar e excessiva onerosidade superveniente na relação entre shopping
center e seus lojistas
Impossibility to perform and excessive burden in shopping center lease agreements
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Rui Pinto
717-727 a suspensão dos atos de penhora no quadro das medidas extraordinárias aprovadas pela
lei nº 1-a/2020, de 19 de março, alterada pela lei nº 4-a/2020, de 6 de abril e pela
lei nº 20/2020, de 29 de maio. notas breves
The suspension of attachment acts in the context of the extraordinary measures approved by Law No.
1-A/2020, of March 19, amended by Law No. 4-A/2020, of April 6 and Law No. 20/2020, of May
29. Brief notes
Rute Saraiva
747-792 uma leitura de economia comportamental da crise covidiana
A Behavioural Economics approach to the covidian crisis
Tiago Serrão
793-804 uma epidemia anunciada: a epidemia da litigância em matéria de execução contratual pública
An announced epidemic: the epidemic of public contract enforcement litigation
Vitalino Canas
813-827 o império da exceção: a inevitabilidade do autoritarismo em democracia?
The empire of exception: the inevitability of authoritarianism in democracy?
Christian Baldus
855-866 arguição da tese de doutoramento do Mestre Jorge silva santos sobre “teoria geral do
direito civil, cripto-justificações e performatividade da decisão jurídica. Historiografia
jurídica e ciência do direito como invenção agonística de discursos. Para uma arqueologia
do autor Guilherme Moreira”
6
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Resumo: neste estudo refletimos sobre o Abstract: this paper offers a reflection on
fundamento e o conteúdo do dever de negociar the duty to negotiate (ex contractu vs. ex
(ex contractu vs. ex bona fide) perante uma su- bona fide) based on the crisis covid-19.
perveniência disruptiva do equilíbrio contratual Keywords: crisis – hardship clauses – duty
como a situação pandémica covid-19. to negotiate – material adverse changes –
Palvras-chave: crise – hardship clauses – dever default.
de negociar – base do negócio – incumprimento.
1. Renegociação do contratos
“1. A party to a contract is bound to perform its contractual duties even if events
have rendered performance more onerous than could reasonably have been anticipated at
the time of the conclusion of the contract.
2. Notwithstanding paragraph 1 of this Clause, where a party to a contract proves that:
a) the continued performance of its contractual duties has become excessively onerous
due to an event beyond its reasonable control which it could not reasonably have been
expected to have taken into account at the time of the conclusion of the contract; and that
b) it could not reasonably have avoided or overcome the event or its consequences,
the parties are bound, within a reasonable time of the invocation of this Clause, to negotiate
1
lauRa coRandini FRantZ, excessiva onerosidade superveniente: uma análise dos julgados do stJ,
in Modelos de Direito Privado (coord. Judith Martins-costa), são Paulo, 2014, 236.
2
Por esta razão, também se designam cláusuas de adaptação automática. veja-se JuditH MaRtins-
-costa, a cláusula hardship e a obrigação de renegociar nos contratos de longa duração, Revista de
Arbitragem e Mediação 7 (2010) 25, pp. 14-15.
3
sobre as cláusulas de adaptação semi-automáticas, com referências, JuditH MaRtins-costa, a
cláusula hardship, pp.14-15.
4
JuditH MaRtins-costa, a cláusula hardship, pp. 14-15.
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alternative contractual terms which reasonably allow to overcome the consequences of the
event.”
v – Por fim, que dizer dos contratos que não preveem qualquer obrigação de
renegociação: poder-se-á sustentar um dever cogente de renegociar o contrato ante
5
com referencias, Fabio QueiRoZ PeReiRa / daniel de Pádua andRade, a obrigação de rene-
gociar e as consequências de seu inadimplemento, RDCC 5 (2018) 15, pp. 209-237, p. 217.
6
sobre a articulação entre o regime dos arts. 478.º e ss. ccbr veja-se tHiaGo RodovalHo, o
dever de renegociar no ordenamento jurídico brasileiro, RJLB 1 (2015) 6, pp.1634-1636.
7
a obrigação de renegociar é por vezes discutida em face de circunstâncias que ponham em evi-
dência a insuficiência ou insatisfatoridade da regulação inicial do contrato, como dá nota antÓnio
MeneZes coRdeiRo, Tratado de Direito Civil, ii (Parte Geral – Negócio Jurídico), 4.ª ed., coimbra,
2014, p. 778.
8
como defende antÓnio MeneZes coRdeiRo, Tratado, ii, p. 778, com recurso à boa-fé como
fonte desse dever.
9
JuditH MaRtins-costa, a cláusula hardship, p. 16.
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iii – esta nota é importante porquanto nos previne para o erro que seria a
identificação absoluta da conduta exigível às partes em cumprimento da obrigação
de negociar com os ditames impostos pela culpa in contahendo10.
naturalmente que quem se encontra a negociar uma modificação contratual
deve fazê-lo segundo a boa-fé. Mas na obrigação de negociar está presente uma
eficácia qualitativamente distinta daquela que impõe a boa-fé pré-contratual: a
conduta exigível às partes é normativamente distinta.
sublinha-o carneiro da Frada, referindo-se expressamente às cláusulas que
impõem um dever de negociação:
“(...) não pensamos que a eficácia das convenções descritas se possa de algum modo
descrever como mero reforço do dever de negociar de boa fé, pois essa eficácia é negocial
e, portanto, qualitativamente disnta daquela que produz a regra da boa fé nas negociações
(...). no acordo de negociação, a vontade decide soberana e diretamente a existencia ou
configuração de condutas exigíveis; já os ditames da boa fé representam, como sabemos,
um corolário de juízos objectivos da ordem jurídica que se impõem heteronomamente
aos sujeitos e em cuja formulação a sua vontade não intervém de forma directa.”11
estamos, portanto, mais perto da boa-fé na execução dos contratos do que na sua
conclusão (arts. 762.º ccPt e 422.º ccbr)12, o que permite retirar consequências di-
versas para a modelação do comportamento das partes e em sede de inadimplemento.
10
com referências, veja-se dioGo costa Gonçalves, anotação ao artigo 227.º, in Novo corona-
virus e crise contratual, lisboa, 2020, pp. 7-16.
11
Manuel caRneiRo da FRada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, coimbra, 2004, pp.
539 (nota 566)
12
neste sentido, JuditH MaRtins-costa, a cláusula hardship, passim. veja-se ainda dioGo costa
Gonçalves, anotação ao artigo 762.º, in Novo coronavirus e crise contratual, Lisboa, 2020, pp.
69-78.
13
sobre este pressuposto hermenêutico na interpretação dos contratos, veja-se Manuel caRneiRo
da FRada, sobre a interpretação do contrato, in Forjar o Direito, coimbra, 2015, p. 18.
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14
tHiaGo RodovalHo, o dever de renegociar, pp.1631-1632.
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que ser tecnicamente propostas contratuais, mas nalgum momento terá que ter existido
a manifestação de uma vontade firme e concreta de modificação contratual, como ma-
nifestação desse «dever de empenho» a que corresponde o conteúdo mínimo da obrigação
de negociação15. até lá, o cumprimento do dever de negociar não é perfeito.
temos, portanto, que o primeiro critério para aferir o cumprimento da ob-
rigação de negociar é o da existência, nalgum momento das negociações, dos ele-
mentos estruturais da formação do contrato.
só assim não será naqueles casos em que o início das negociações permitiu
constatar a impossibilidade de qualquer acordo modificativo. não porque alguma
das partes se tenha recusado a negociar, mas porque ficou claro que as perspectivas
da reforma contratual eram absolutamente inconciliáveis.
nestes casos, o cumprimento da obrigação de negociar não exige a formulação de
uma proposta firme e concreta de modificação contratual. o cumprimento da obrigação
segundo os ditames da boa-fé pode até exigir o fim célere das negociações, identificado
que seja um dissenso inultrapassável. a inexistência dos elementos estruturais da for-
mação do contrato não implica, nestes casos, violação do dever de negociar.
voltemos ao exemplo a). o mecanismo de actualização das rendas tem por pres-
suposto que o valor de faturação de P2 cresce todos os anos e que é sempre superior
à percentagem do valor de mercado do imóvel. Pressupõe ainda a participação de P1
no sucesso económico de P2.
a pandemia determinou, porém, que o valor atual da renda – contratualmente
devido durante o ano de 2020 – esteja muito acima da taxa de esforço de P2, cujo
estabelecimento foi compulsivamente encerrado. Prevê-se, aliás, que assim se mantenha
ao longo de todo o ano. Já o preço dos imóveis não se ressentiu de forma tão severa.
daqui resulta que o limite mínimo de renda contratualmente previsto é,
atualmente, bastante superior ao limite máximo fixado no contrato. o mesmo é
dizer: o mínimo que o locador exigiu para contratar é muito superior, atualmente,
ao máximo que o locatário aceitou como taxa de esforço economicamente razoável.
uma proposta de reequilíbrio contratual terá que passar pela recriação do
equilíbrio genético, nas circunstâncias atuais de mercado. se as partes acordam numa
suspensão temporária do pagamento das rendas, numa redução da percentagem do
15
Manuel caRneiRo da FRada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, p. 539 (nota 566).
16
tHiaGo RodovalHo, o dever de renegociar, pp. 1631-1632, oferece um elenco diferente: serão
exemplificativamente casos de inadimplemento deste dever a recusa em participar na renegociação,
a resposta intempestiva, e a violação do dever de considerar seriamente a proposta da outra parte
ou o silêncio perante essa proposta.
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ii – não tendo havido recusa das negociações, pode ainda assim nenhuma
das partes ter chegado a manifestar uma vontade firme e concreta de modificação
contratual.
os vários contactos negociais não chegaram a permitir a identificação de ne-
nhuma proposta de revisão, não porque as partes tenham esgotado as possibilida-
des negociais – sem que se vislumbrasse um consenso –, mas porque, a partir de
determinado momento, a falta de empenho de alguma delas não permite alcançar
um acordo.
uma das partes (ou eventualmente ambas) adoptaram um comportamento
de quem não quer deixar de negociar, mas também não quer verdadeiramente
obter um consenso.
iii – Próximo deste comportamento está aquele outro em que as partes apre-
sentam propostas concretas de modificação contratual, mas manifestamente ina-
ceitáveis para a outra parte.
o conteúdo de tais propostas é, por regra, alheio ao equilíbrio contratual ori-
ginário. não se destinam a recriar esse equilíbrio, antes sugerem à contraparte
outro conteúdo negocial, completamente desajustado do contrato em revisão.
trata-se, sem dúvida, de uma proposta de revisão contratual. Mas não permite
dizer que se cumpriu o dever de renegociação destinado a obter o reequilíbrio
contratual desejado.
17
colocando a questão do cumprimento de dever de negociar nas clausulas escalonadas, veja-se Paula
costa e silva, Perturbações no cumprimento dos negócios processuais, lisboa, 2020, 83-84.
“(...) a violação da obrigação contratual de negociar não tem (...) por que estar
em coerência limitada à indemnização do chamado interesse negativo, podendo a
responsabilidade estender-se ao interesse do cumprimento. claro que o quantum in-
demnizatório deve coadunar-se com o conteúdo da prestação não realizada. e não
há dúvida que, se não houver então vinculação propriamente dita à celebração do
contrato, pode haver dificuldade de computar o prejuízo. (...) Mas nada obsta con-
ceptualmente ao ressarcimento do interesse de cumprimento do contrato.”21.
18
chamando a atenção para este ponto, Manuel caRneiRo da FRada, Teoria da confiança e res-
ponsabilidade civil, p. 503 (nota 532).
19
note-se, no entanto, que a frustração da legítima expectativa da conclusão do negócio, quando
relevante, não configura um caso de culpa in contrahendo (como já havia sublinhado caRneiRo da
FRada). os assim denominados casos de rompimento injustificado das negociações não são, em rigor,
hipóteses de responsabilidade pré-contratual. com referências, veja-se dioGo costa Gonçalves,
Novo coronavirus e crise contratual, lisboa, 2020, 14-15.
20
antÓnio MeneZes coRdeiRo, Tratado, ii, pp. 285-286.
21
Manuel caRneiRo da FRada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, p. 503 (nota 532).
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22
neste sentido: Manuel caRneiRo da FRada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, p. 510
(nota 540): “violado um compromisso deste género [de negociar] nenhum obstáculo se antolha na
cencessão á parte lesada de uma indemnização pelo interesse de cumprimento da vinculação ina-
dimplida. este interesse é evidentemente distinto do interesse de cumprimento do contrato cuja
negociação se visava.”.
23
Fabio MenKe, Comentário ao Código Civil (coord. Giovanni ettore Manni), são Paulo, 2019,
p. 191.
ii – o art. 109.º ccbr é claro ao dispor que «no negócio jurídico celebrado
com a claúsula de não valer sem instrumento público, este é de substância do ato».
a letra do preceito refere-se apenas a instrumento público, mas tem-se en-
tendido que a intenção normativa abrange outras formas eleitas pelas partes, desde
logo a forma escrita24.
a violação da forma voluntária gera a invalidade do acordo modificativo, nos
termos dos arts. 104.º/iii e 166.º/v do mesmo código. só assim não será se as
partes tiverem acordado – aquando da modificação – na dispensa da observância
da forma voluntária, renascendo, assim, o princípio da liberdade de forma.
24
com referências, Fabio MenKe, Comentário, p. 191.
25
sobre estes princípios veja-se a título de exemplo antÓnio MeneZes coRdeiRo, Tratado, ii,
pp. 170 e ss., e caRlos albeRto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed., coimbra,
2005, pp. 428 e ss.
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26
como refere antÓnio MeneZes coRdeiRo, “para além de lícita, tal prática é, mesmo desejável:
transfere para a negociação o regime das superveniências e evita litígios futuros, permitindo en-
contrar soluções mais adequadas para as ocorrências possíveis, de acordo com as aspirações das par-
tes” - Tratado de Direito Civil, iX, 3.ª ed., coimbra, 2017, p. 672. a supletividade do instituto é
evidenciada v.g. em cataRina MonteiRo PiRes, Contratos – I. Perturbações na execução, coimbra,
2019, p. 197.
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27
“(...) a referência ao risco, constante do artigo 437.º/1, indica a natureza supletiva da alteração
das circunstâncias. Mas tal relação de supletividade não deve ser entendida em termos absolutos: a
interpretação das normas que cominem as repartições particulares do risco ou similares deve revelar
se a atribuição realizada é definitiva, plena, ou se, ainda aí, é admissível, passada certa margem,
que a exigência dos deveres contratuais possa contrariar «gravemente os princípios da boa fé». esta
apresenta, assim, como segundo papel, uma função de controlo.». e conclui o autor: «efectuada,
nos termos preconizados, a interpretação do artigo 437.º/1, constata-se, no seu dispositivo, uma
omnipresença da boa fé: ela indica o tipo e a intensidade que as alterações hão-de assumir, para
justificar a modificação ou a resolução do contrato e intervém no definir das adaptações a que haja
lugar. apurou-se, também, uma supletividade de princípio do esquema da alteração das circuns-
tâncias; mas, ainda aí, mantém-se a sujeição ao nihil obstat da boa fé.” - antÓnio MeneZes
coRdeiRo, Da Boa Fé no Direito Civil, coimbra, 2001, pp. 1107-1108.
28
antÓnio MeneZes coRdeiRo, Da Boa Fé no Direito Civil, p. 1108.
29
neste sentido, Fabio QueiRoZ PeReiRa/daniel de Pádua andRade, a obrigação de renegociar,
p. 216.
30
JuditH MaRtins-costa, A boa-fé no Direito privado, 2.ª ed., são Paulo, 2018, p. 655: “quando
os contraentes não estabelecem preceitos relativos à regulação dos riscos do desequilíbrio futuro
advindos da modificaçãoo do entorno contratual, pode a lei operar para promover o reequilíbrio,
pela revisão heterônoma (...).Quando as partes nada dispõem, portanto, incidem as normas suple-
tivas do código civil uma vez configurados os seus suportes fáticos.”.
31
neste contexto, a onerosidade excessiva seria apenas uma hipótese (entre outras) de perturbação
da base negocial, desta sorte com assento legal.
32
sobre a origem história, veja-se, por exemplo, osti, “la cosi detta clausola r.s.s. nel suo sciluppo
storico”, Riv. Dir. Privato, 1912, p. 212. veja-se também, entre nós, João antunes vaRela,
Ineficácia do testamento e vontade conjectural do testador, 1950, coimbra, pp. 264 e ss.
33
beRnHaRd WindscHeid, “die voraussetzung”, AcP 78 (1892), pp. 161-202.
34
com desenvolvimento, antÓnio MeneZes coRdeiRo, Da Boa Fé no Direito Civil, pp. 1035
e ss.
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mentar uma limitação à autonomia privada. Já quanto maior for o peso dogmático
da boa-fé, maior a tendência para identificar nos institutos de reposição do equi-
líbrio contratual um núcleo irredutível de indisponibilidade, correspondente a
uma sindicância mínima da justiça material do contrato.
3a 3b 3c
Party to terminate Judge adapt or terminate Judge to terminate
em qualquer dos casos, o recurso à revisão heterónoma surge como uma so-
lução contratual para o insucesso de uma obrigação de renegociação, também ela
contratualmente prevista.
35
cRistiano de sousa Zanetti, Comentário ao Código Civil (coord. Giovanni ettore Manni),
são Paulo, 2019, 779.
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36
com referências, cataRina MonteiRo PiRes, efeitos da alteração das circunstâncias, O Direito
145 (2013) i-ii, pp. 181-206, pp. 184 e ss.
37
Manuel caRneiRo da FRada, crise financeira mundial e alteração das circunstâncias – contratos
de depósito vs. contratos de gestão de carteiras, in Forjar o Direito, coimbra, 2015, pp. 23-82, p.
79. no mesmo sentido, JosÉ de oliveiRa ascensão, Direito Civil – Teoria Geral, iii, coimbra,
2002, p. 207.
38
neste sentido, PedRo Pais de vasconcelos / PedRo leitão Pais de vasconcelos, Teoria
Geral do Direito Civil, 9.ª ed., coimbra, 2019, p. 381.
39
antÓnio MeneZes coRdeiRo, Da Boa Fé no Direito Civil, p.1105.
40
antÓnio MeneZes coRdeiRo, Tratado, ii, p. 778.
41
neste sentido, cataRina MonteiRo PiRes, efeitos da alteração das circunstâncias, p. 185.
iii – com esta noção coeva de sistema e de método jurídico, há ainda espaço
para uma decisão segunda a equidade?
42
acerca do tema, com mais desenvolvimento, cfr. Manuel caRneiRo da FRada, “a equidade
(ou a “Justiça com coração) – a propósito da decisão arbitral segundo a equidade”, in Forjar O
Direito, coimbra, 2015, pp. 653-687.
43
dioGo costa Gonçalves, Pessoa coletiva e sociedades comerciais, coimbra, 2015, pp. 68-73.
44
Quanto a esta última nota, veja-se JuditH MaRtins-costa, autoridade e utilidade da doutrina: a
construção dos modelos doutrinários, in Modelos de Direito Privado, são Paulo, 2014, pp. 9-40.
45
KaRl enGiscH, Introdução ao pensamento jurídico, 8.ª ed., lisboa, 2001, passim e claus WilHelM
canaRis, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do Direito, lisboa, 2002, passim.
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46
neste sentido, Manuel caRneiRo da FRada, a equidade (ou a “Justiça com coração), pp. 674
ss.
47
Manuel caRneiRo da FRada, a equidade (ou a “Justiça com coração), p. 674.
48
Manuel caRneiRo da FRada, a equidade (ou a “Justiça com coração), pp. 674 ss.
sem dúvida que uma decisão segundo a equidade respeita a igualdade recla-
mada pela justiça. Mas sem a ofender, pode (e deve) distinguir. a justiça do caso
concreto não consiste em dar a cada um o mesmo, mas sim em dar a cada um o
que lhe é devido49.
uma modificação equitativa do contrato não significa, portanto, tratar as par-
tes de forma igual, sujeitando-as ao mesmo risco. uma justiça salomónica pode
garantir a igualdade, mas raramente garante a equidade.
2.1. O problema
49
MaRtiM de albuQueRQue, Da Igualdade – Introdução à Jurisprudência, coimbra, 1993, 332.
172
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iv – Por princípio, o silêncio das partes não tem valor performativo: dele não
pode retirar-se (sem qualquer outro indício hermenêutico), que as partes quiseram
afastar qualquer negociação tendente à revisão do contrato perante uma superve-
50
noRbeRt HoRn, vertragsbindung unter veränderten umständen, NJW 1985, pp. 1123 e ss. e,
do mesmo autor, “neuverhandlungspflicht “, AcP 1981, pp. 276 e ss.
51
com referências, veja-se antÓnio MeneZes coRdeiRo, A modernização do Direito Civil, coim-
bra, 2004, pp. 114 e ss.
52
neste sentido, dieteR Medicus, Prütting, Wegen, Weinreich BGB Kommentar, 5.ª ed., München,
2010, § 313, rn. 85; Hannes RösleR, “störung der Geschäftsgrundlage nach schuldrechtsreform”,
ZGS 10 (2003), p. 388 e volKeR eMMeRicH, Das Recht der Leistungsstörungen, München, 2005,
p. 464 (a mero título exemplificativo).
53
Por exemplo, HelMut HeiRicHs, “vertragsanpassung bei störung der Geschäftsgrundlage. eine
skizze der anspruchslösung des 313 bGb”, FS Andreas Heldrich 70. Geburtstag, München, 2005,
pp. 196-197.
54
cHRistian GRünebeR, Palandt BGB, 72.ª ed., München, 2013, § 313, rn. 41.
55
com referências, Rui Pinto duaRte, o equilíbrio contratual como princípio jurídico, in Estudos
em memória do Conselheiro Artur Maurício, coimbra, 2014, 1331-1345 e antÓnio MeneZes
coRdeiRo, Da Boa Fé no Direito Civil, cit., 651.
56
cRistiano de sousa Zanetti, Comentário ao Código Civil, pp. 696 e ss.
174
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ii – como identificar esse ponto nevrálgico que uma vez ultrapassado afasta
a eficácia vinculativa da vontade das partes? Pode ainda assim falar-se de um prin-
cípio do equilíbrio contratual (que justifique um dever de renegociação)?
atendamos no regime dos negócios usurários. À luz do art. 282.º do ccPt, o
direito não tolera que a desproporção entre prestações se fique a dever a um apro-
veitamento da necessidade ou inexperiência de alguém59. não é o desequilíbrio em
si mesmo que ofende o direito, mas sim o facto de tal desequilíbrio ter origem no
aproveitamento de uma especial vulnerabilidade de um dos contratantes60.
constatada a exploração de uma particular vulnerabilidade, a ordem jurídica
fere de ineficácia o negócio usurário, expurgando do ordenamento aquele concreto
desequilíbrio contratual.
também a contrariedade à ordem pública e aos bons costumes (art. 280.º
ccPt) tem sido invocada para justificar um controlo material da justiça do con-
tratual (ainda que apenas invocável in exterminis):
57
JosÉ de oliveiRa ascensão, Direito Civil, p. 262.
58
Reforçada, aliás, no código civil brasileiro de de 2002. com desenvolvimento, JuditH MaRtins-
-costa, o novo código civil brasileiro: em busca da ética da situação, in Diretrizes teóricas do novo
código civil, são Paulo, 2002, p. 140. veja-se ainda MiGuel Reale, O Novo Código Civil – Discutido
por juristas brasileiros, são Paulo, 2003, pp. 47 e ss. e Joseli liMa MaGalHães, Da recodificação do
Direito civil brasileiro, são Paulo, 2006, pp. 115 e ss.
59
sobre os negócio usurários veja-se em geral PedRo eiRÓ, Do negócio usurário, 1990, passim, e
dioGo costa Gonçalves / dioGo taPada dos santos, Juros de mora, indemnização e anatocismo
potestativo, (no prelo).
60
HeinRicH eWald HöRsteR / eva sÓnia MoReiRa da silva, A parte geral do Código Civil portu-
guês, 2.ª ed., coimbra, 2019, p. 621, põem em evidência este aspeto salientado que o escopo do
artigo 282.º ccPt é a proteção das pessoas em situação de vulnerabilidade e não o controlo abstrato
do conteúdo do contrato.
61
Manuel caRneiRo da FRada, autonomia Privada e Justiça contratual – duas questões, nos
50 anos do código civil, in Forjar o Direito, 2.ª ed., coimbra, 2019, pp. 13-29, pp. 25 e 26.
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64
neste sentido, Rui Pinto duaRte, o equilíbrio contratual como princípio jurídico, p. 1341.
65
com referências, lauRa coRandini FRantZ, excessiva onerosidade superveniente, pp. 215-248.
66
Giovanni etoRe nanni, Comentário ao Código Civil (coord. Giovanni ettore Manni), são
Paulo, 2019, pp. 502 e ss.
67
neste sentido, lauRa coRandini FRantZ, excessiva onerosidade superveniente, p. 217.
68
teResa neGReiRos, Teoria do contrato: novos paradigmas, 2.ª ed., são Paulo, 2006, p. 158.
69
a jurisprudência portuguesa só muito raramente invoca os bons costumes como limite à autonomia
privada e mais raramente ainda a ordem pública. alguns exemplos de decisões em que os tribunais
atenderam à cláusula dos bons costumes podem encontrar-se em antÓnio MeneZes coRdeiRo,
Tratado, ii, pp. 601-602. esta visão restritiva das cláusulas gerais em presença garante – e bem! –
que elas só serão convocadas em casos extremos, como última ratio decisória perante um caso in-
dubitavelmente injusto.
noutro contexto cultural como o brasileiro, a mesma invocação corre o risco de abrir portas a um
indesejado ativismo judiciário e a uma jurisprudência das emoções, acrítica e acientífica, certamente
indesejada. veja-se ainda dioGo costa Gonçalves, Reflexões sobre a recepção dos direitos de per-
sonalidade nos brasil e os desafios dogmáticos contemporâneos, RDC v (2020) 1, 127-167.
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na expressão de JuditH MaRtins-costa / Paula costa e silva, Crise e perturbações do cumpri-
mentos, no prelo.
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ii – o parágrafo único aditado ao art. 421.º ccbr pela lei da liberdade eco-
nómica (lei n.º 13.874, de 20-set.-2019) é claro ao dispor que “nas relações con-
tratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a
excepcionalidade da revisão contratual”.
a excepcionalidade da revisão heterónoma do contrato é um dado pacífico
no direito continental. a necessidade, porém, de o legislador brasileiro sublinhar
essa excepcionalidade parece supor um ambiente aplicativo de acentuado ativismo
judiciário, marcado por uma intervenção corretiva da vontade das partes mais per-
missiva do que a que encontramos em ordenamentos jurídicos como o português.
iii – atenda-se ainda ao disposto no art. 421.º-a ccbr, aditado pela mesma
lei da liberdade económica:
71
com efeito, se lei não proíbe a celebração de contratos assimétricos ou desequilibrados, tão pouco
pode presumir a sua paridade ou simetria. o sentido normativo do preceito parecer ser antes este:
respeite-se a vontade das partes. esta só pode ser afastada por uma exigência ética do sistema, espe-
cialmente intensa.
72
afastando a existência de um princípio geral de equilíbrio contratual e um princípio geral de
revisibilidade no direito brasileiro, pese embora a sua aplicação nas relações de consumo, veja-se
JuditH MaRtins-costa / Paula costa e silva, Crise e perturbações do cumprimentos, no prelo.
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73
com referências, veja-se cataRina MonteiRo PiRes, efeitos da alteração das circunstâncias, pp.
198 e ss.
74
sublinhando também a existencia de consequências processuais diversas consoante esteja em
causa a violação de uma dever legal ou contratual de negociar, Paula costa e silva, Perturbações
no cumprimento, p. 68.
75
cataRina MonteiRo PiRes, efeitos da alteração das circunstâncias, p. 204.
76
neste sentido, JuditH MaRtins-costa, A boa-fé no Direito privado, p. 576, João de Matos
antunes vaRela, Das obrigações em geral, ii, 7.ª ed., coimbra, 1997, pp. 12-13, e o ilustrativo
aresto do stJ, de 14-jan.-2014 (Fonseca RaMos), Proc. n.º 511/11.2tbPvl.G1.s1 no qual se
discute a medida do dever de cooperação e o seu impacto na existência de mora do credor.
77
com referências, Manuel caRneiRo da FRada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, pp.
544 ss.
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vi – neste contexto, e com estas precisões, não nos parece que a segunda
objeção apontada quanto à admissibilidade de um dever de renegociar ex bona fide
seja determinante.
o dever de renegociar decorre de uma co-responsabilidade pelo equilíbrio contratual
originário. a renegociação dá origem a um diferente conteúdo das prestações, é certo,
mas que se apresenta como o equivalente funcional do mesmo sinalagma genético.
se bem vemos, estamos ainda no âmbito da boa-fé in executivis. o mesmo é
dizer: negociar ex bona fide é ainda cumprir o programa contratual a que as partes
se encontram vinculadas. esta dimensão valorativa torna-se, na verdade, o limite
normativo do próprio dever de negociar.
78
Razão pelo qual, como supra procuramos demonstrar, não é de afastar um interesse no cumpri-
mento ante a violação do dever de negociar ex contractu.
79
sobre a jurisprudência portuguesa, veja-se antÓnio MeneZes coRdeiRo, Tratado de Direito
Civil, iX (Direito das Obrigações), 3.ª ed., coimbra, 2017, p. 694 e ss. veja-se ainda, em especial
quanto à jurisprudência sobre contratos de swap, a. baRReto MeneZes coRdeiRo, Manual de
Direito dos valores mobiliários, 2.ª ed., coimbra, 2018, p. 245.
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80
antÓnio MeneZes coRdeiRo, Tratado, iX, p. 696.