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1.

Limites materiais (definição)

Disposições constitucionais, expressas ou implícitas, que vedam ao poder de revisão


constitucional a faculdade de suprimir ou alterar normas incidentes sobre certas matérias
qualificadas ou de, se a alteração for possível, reduzir ou depreciar o seu conteúdo
fundamental.

2. Os limites materiais são imprescindíveis e insuperáveis (Gomes Canotilho)

O poder de revisão, uma vez criado pela Constituição e por ela regulada quanto ao modo de
se exercer, sendo um poder constituído, tem necessariamente de se compreender dentro dos
seus parâmetros; não lhe compete dispor contra as opções fundamentais do poder
constituinte originário.

A faculdade de reformar a Constituição é a faculdade de substituir uma ou várias regras legal-


constitucionais por outra ou outras, no pressuposto de que fiquem garantidas a identidade e a
continuidade da Constituição considerada como um todo. Não é a faculdade de fazer uma
nova Constituição, nem de substituir o próprio fundamento da competência de revisão.
Solidário do regime estabelecido pela Constituição, não poderia o órgão de revisão, sem
cometer um desvio de poder, pôr em causa as bases desse regime tal como a Constituição as
define.

A norma que consagra a irreversibilidade de certas matérias é igualmente inalterável, pese o


facto de não consagrar a sua própria irreversibilidade (seria um limite material implícito), pois
carece de sentido admitir que um poder subordinado pudesse pôr em causa uma regra
estabelecida por um poder subordinante, como forma de destruir ou defraudar a identidade
constitucional, ao invés de a defender como decorreria da sua função garantística.

3. Os limites materiais não têm legitimidade nem eficácia jurídica (Marcello Caetano)

Esta posição sustenta-se na inexistência da diferença de raiz entre poder constituinte e poder
de revisão - ambos expressão da soberania do Estado e ambos, num Estado democrático
representativo, exercidos por representantes eleitos; a inexistência de diferença entre normas
constitucionais originárias e supervenientes - umas e outras, afinal, inseridas no mesmo
sistema normativo; e a inexistência de diferença entre matérias constitucionais - todas do
mesmo valor, se constantes da mesma Constituição formal.

O poder constituinte de certo momento não é superior ao poder constituinte de momento


posterior. Pelo contrário, deve aplicar-se a regra geral da revogabilidade de normas anteriores
por normas subsequentes. Nem seria concebível uma autolimitação da vontade nacional, pois,
como proclamou o art. 28º da Constituição francesa de 1793, um povo tem sempre o direito
de rever, de reformar e de modificar a sua Constituição e nenhuma geração pode sujeitar as
gerações futuras às suas leis. A declaração de intangibilidade de um regime não é senão um
simples voto sem força jurídica obrigatória, embora possa ter um significado político. Em
tempos normais podem traduzir-se numa luz vermelha útil frente a maiorias parlamentares
desejosas de mudança, mas em épocas de crise reduzem-se a folhas de papel varridas pelo
vento da realidade política. Se o fenómeno ab-rogatório se verifica entre atos do mesmo grau,
então a afirmação da superioridade da Constituição sobre as leis de revisão deveria levar a
excluir a própria admissibilidade conceitual destas últimas.

4. Os limites materiais são relativos, porventura suscetíveis de remoção através de dupla


revisão (Jorge Miranda)

Esta teoria afirma a validade dos limites materiais explícitos, mas, ao mesmo tempo, entende
que as normas que os preveem, como normas de Direito positivo que são, podem ser
modificadas ou revogadas pelo legislador da revisão constitucional, ficando, assim, aberto o
caminho para, num momento ulterior, serem removidos os próprios princípios
correspondentes aos limites (tese da dupla revisão).

As cláusulas de limites materiais são possíveis, é legítimo ao poder constituinte (originário)


decretá-las e é forçoso que sejam cumpridas enquanto estiverem em vigor. Todavia, são
normas constitucionais como quaisquer outras e podem elas próprias ser objeto de revisão,
com as consequências inerentes. Garantias políticas justificadas por situações históricas
determinadas, podem ser modificadas ou removidas mediante processo de revisão, logo que
essas situações mudem. A proibição de revisão direta em que se consubstancia a ilegalidade
formal do ato de revisão não pode confundir-se com a revogação pura e simples da proibição,
que é exercício do poder soberano do Estado. Porque a função constituinte e a função de
revisão se encontram no mesmo plano, os eventuais limites textuais devem ser tomados como
auto-obrigações que o legislador constitucional se impõe a si próprio e que, por isso, valem até
serem removidos por uma posterior manifestação igual e contrária à sua.

A per-positivação do já positivado apenas tem o sentido de aumentar a estabilidade da norma


ou do princípio de primeiro grau (isto é, de agravar o seu processo de revisão), e não o
conteúdo valioso de quaisquer normas ou princípios materiais. Tratar-se-á de uma tentativa de
reservar um mais longo período de experiência a certo ou certos projetos de realização da
ideia constitucional. Não se pode negar nenhuma forma de eficácia às regras constitucionais
objeto de intangibilidade, mas trata-se de uma força obrigatória relativa, porque importa
assentar na ideia de um exercício dividido da soberania. O órgão jurisdicional (por exemplo, o
Tribunal Constitucional federal alemão) que anula uma norma constitucional nova sobre
matéria intangível em virtude de uma regra constitucional anterior detém uma parcela da
soberania popular tão legítima como o poder constituinte sancionado. Garantindo o respeito
por todos os seus representantes das regras fundamentais estabelecidas pelo povo soberano,
o órgão jurisdicional aumenta a efetividade dessa vontade popular. Todavia, nenhuma
imutabilidade de princípio pode opor-se, de modo absoluto, à evolução do Direito do Estado.

5. Aprofundamento da posição de Jorge Miranda

Mantendo-se em vigor a mesma Constituição, o poder de revisão é um poder constituído,


como tal sujeito às normas constitucionais; quando o poder de revisão se libertasse da
Constituição, nem mais haveria Constituição, nem poder de revisão, mas sim Constituição nova
e poder constituinte originário. A subordinação material do poder de revisão constitucional ao
poder constituinte (originário), da revisão constitucional à Constituição, é um postulado lógico:
por uma banda, se o poder de revisão constitucional se deriva do poder constituinte, a revisão
constitucional que realizar não pode ir contra a Constituição como totalidade instituída pelo
mesmo poder constituinte; por outra banda, se a revisão constitucional é a revisão de normas
constitucionais, não a feitura de uma Constituição nova, ela fica encerrada nos limites da
Constituição. O poder de revisão constitucional é um poder constituinte, porque diz respeito a
normas constitucionais. Mas é poder constituinte derivado, porque nao consiste em fazer nova
Constituição, introduzindo princípios fundamentais em vez de outros princípios fundamentais.
Os limites materiais da revisão tornam-se, por isso, juridicamente necessários, mesmo em
Constituição flexível, havendo que distinguir entre limites expressos e limites implícitos e
definindo-se estes a partir da forma de Estado e da forma de governo e da rigidez ou
flexibilidade constitucional. Mas há limites cuja violação significa alteração da Constituição ou,
porventura, criação de nova Constituição e limites cuja violação parece determinar apenas
inconstitucionalidade material. As cláusulas de limites realçam de novo a ideia de Direito, a
estrutura fundamental, aquilo que identifica a Constituição em sentido material subjacente à
Constituição em sentido formal. Mas não podem impedir futuras alterações que atinjam tais
limites, porque o poder constituinte é, por definição, soberano. O que obrigam é a dois
processos, em tempos sucessivos, um para eliminar o limite da revisão e o outro para
substituir a norma constitucional de fundo garantida através dele; o que obrigam é a tornar
patente, a darem-se as modificações que dificultam, que a Constituição em sentido material já
não é a mesma. Logicamente necessários, os limites materiais não podem ser violados ou
removidos, sob pena de se deixar de fazer revisão para se passar a fazer Constituição nova.
Mas uma coisa é remover os princípios que definem a Constituição em sentido material e que
se traduzem em limites de revisão, outra coisa é remover ou alterar as disposições especificas
do articulado constitucional que explicitam, num contexto histórico determinado, alguns
desses limites. Nada permite equiparar supra-rigidez a insusceptibilidade de modificação, salvo
revolução, ou assimilar limites materiais a limites absolutos. Não há limites absolutos.
Absoluto deve ser, sim, o respeito de todos os limites, de todas as regras-tanto materiais como
formais -enquanto se conservarem em vigor.

O problema dos limites materiais da revisão reconduz-se, no fundo, ao traçar de fronteiras


entre o que vem a ser a função própria de uma revisão e o que seria já convolação em
Constituição diferente. Em toda e qualquer Constituição, a revisão consiste em adotar
preceitos sem bulir com os princípios, ela surge sempre, haja ou não disposições que
enumerem, mais ou menos significativamente, certos e determinados limites. Suscita-se, seja a
Constituição rígida ou flexível. Não é o regime de rigidez que, de per si, o provoca ou deixa de
provocar. Mais: como em Constituição flexível a revisão pode dar-se quase inopinadamente,
mais necessário se torna aí tomar consciência, em cada instante, de quais os princípios vitais
insuperáveis e inelimináveis da ordem jurídico-política (até porque em Constituição flexível,
por maioria de razão, nunca há limites explícitos). A experiência inglesa comprova-o
exuberantemente. No vasto campo das alterações constitucionais stricto sensu, é a fidelidade
ou não a certos princípios substanciais, recorde-se, que, em última análise, permite distinguir a
simples rutura da revolução propriamente dita. Em inteiro rigor, os limites não deveriam
qualificar-se de explícitos e implícitos. Todos os limites materiais deveriam ter-se, ao mesmo
tempo, por explícitos (enquanto só podem agir efetivamente quando explicitados em cada revisão
constitucional em concreto) e implícitos (na medida em que o critério básico para os conhecer é
o perscrutar do sistema constitucional como um todo). Estas cláusulas possuem, pelo menos,
uma dupla utilidade: a de externar os princípios constitucionais, evitando ou pondo termo às
incertezas que possam fortunar-se acerca da Constituição material; e, com isso, a de lhes
reforçar a garantia - pois a revisão constitucional é instrumento de garantia da Constituição.
6. Pode ocorrer uma supressão total dos limites materiais ou existem princípios dotadas de
hierarquias e proeminências distintas, assumindo assim caráter irreversível?

No tempo presente, o debate sobre os limites materiais parte já da admissibilidade da “dupla


revisão”, praticamente operada na revisão constitucional de 1989, que eliminou o limite
material do princípio da “apropriação coletiva dos principais meios de produção e solos, dos
recursos naturais bem como a eliminação dos monopólios e dos latifúndios” e um artigo que
consagrava a cláusula da "irreversibilidade das nacionalizações.” (a lógica subjacente à
eliminação simultânea dos dois foi a dissociação material entre esses dois princípios, porém
Carlos Blanco de Morais considera que tal poderia ter sido melhor justificado recorrendo ao
facto de a irreversibilidade das nacionalizações dava consequência ao princípio da apropriação
coletiva, pelo que só faz sentido a existência paralelo dos dois).

Jorge Miranda, pese o facto de negar a existencia de uma hierarquia entre disposições
constitucionais, considera que existem enunciados normativos de caráter transcendente
(como os direitos, liberdades e garantias) e imanente (como a soberania e unidade do Estado,
atributos de Estado de Direito, etc) que assumiam o estatuto de limites materiais de primeiro
grau, pelo que, mesmo que fossem eliminado o art. 288º, continuariam a valer como limites
implícitos.

Luís Miguel Nogueira de Brito defende a imanência de limites implícitos intransponíveis, pelo
que o processo de revisão constitucional não poderia eliminar os principios que se reportam à
identidade nuclear da Constituição (são limites implícitos, de hierarquia superior,
independentemente de estarem consagrados no 288º ou não), já que essa identidade, fixada
pelo poder constituinte, não poderia ser questionada pelo poder constituído de revisão
constitucional. Este nunca poderia operar uma transição para outra ordem constitucional, que
ocorreria se forem modificados preceitos relacionados com o núcleo caracterológico da CRP.

Carlos Blanco de Morais defende igualmente que o poder constituído tem que respeitar os
princípios do núcleo que define uma dada ordem jurídica e cuja eliminação ou
descaracterização, por via de revisão, implicaria a transição para uma nova ideia de Direito e
para uma Constituição diferente. A seleção desses princípios (que podem não coincidir
totalmente com os que constam do 288º) deve assumir um caráter restringente, utilizando o
critério de essencialidade e absoluta indispensabilidade para a conservação da fisionomia
singular da ordem constitucional vigente. Concorda com a tese de Jorge Miranda de que a
forma para conhecer esses princípios será “perscrutar o sistema constitucional como um
todo”.

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