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Duas Revoluções

Antonio Gramsci

3 de julho de 1920

Toda forma de poder político não pode ser historicamente concebida e


justificada se não como o aparato jurídico de um real poder econômico, não
pode ser concebida e justificada se não como a organização de defesa e a
condição de desenvolvimento de um determinado ordenamento nas
relações de produção e de distribuição de riqueza: este cânone fundamental
(e elementar) do materialismo histórico resume todo o complexo de teses
que tentamos desenvolver organicamente em torno do problema dos
conselhos de fábrica, resume as razões pelas quais colocamos como
centrais e preeminentes, no tratamento dos problemas reais da classe
proletária, as experiências positivas determinadas pelo movimento profundo
das massas operárias para criação, desenvolvimento e coordenação dos
conselhos. Por isso, sustentamos que:

1. a revolução não é necessariamente proletária e comunista quando se


propõe e consegue abater o governo político do Estado burguês;
2. não é proletária e comunista nem mesmo quando propõe e consegue
destruir os institutos representativos e a máquina administrativa
através das quais o governo central exercita o poder político da
burguesia;
3. também não é proletária e comunista quando a onda de insurreições
populares entrega o poder em mãos de homens que se dizem (e
sejam sinceramente) comunistas.

A revolução é proletária e comunista apenas quando é liberação de


forças produtivas proletárias e comunistas que vinham elaborando-se no
seio mesmo da sociedade dominada pela classe capitalista, é proletária e
comunista na medida em que consegue favorecer e promover a expansão e
a sistematização das forças proletárias e comunistas capazes de iniciar o
trabalho paciente e metódico necessário para construir uma nova ordem
nas relações de produção e distribuição, uma nova ordem na qual se torne
impossível a existência da sociedade dividida em classes e cujo
desenvolvimento sistemático tenda, por isso, a coincidir com um processo
de esgotamento do poder de Estado, com a dissolução sistemática da
organização política de defesa da classe proletária, que se dissolve como
classe para se tornar humanidade.

A revolução que se concretiza na destruição do aparelho estatal


burguês, bem como na construção de um novo aparelho estatal interessa e
envolve todas as classes oprimidas pelo capitalismo. Ela é determinada
imediatamente pelo fato brutal de que, nas condições de carestia legadas
pela guerra imperialista, a grande maioria da população (constituída por
artesãos, por pequenos proprietários rurais, por pequenos burgueses
intelectuais, por massas camponesas paupérrimas e também por massas
proletárias atrasadas) não possuem mais nenhuma garantia no que se
refere às elementares exigências da vida cotidiana. Esta revolução tende a
ter, predominantemente, um caráter anárquico e destrutivo e a manifestar-
se como uma explosão cega de cólera, como um tremendo
desencadeamento de furores sem objetivo concreto, que se compõem num
novo poder de Estado somente quando a fadiga, a desilusão e a fome
terminam por reconhecer a necessidade de uma ordem constituída e de um
poder que a faça verdadeiramente respeitar.

Esta revolução pode produzir uma pura e simples assembléia


constituinte, que procure medicar as feridas provocadas no aparelho estatal
burguês pela cólera popular; pode alcançar até o soviet, até a organização
política autônoma do proletariado e das outras classes oprimidas, porém
não ousam ir para além das organizações, não ousam tocar nas relações
econômicas e são, portanto, obrigadas a recuar diante da reação das
classes proprietárias; pode ir até a destruição completa da máquina estatal
burguesa, bem como ao estabelecimento de uma condição de desordem
permanente, na qual as riquezas existentes e a população vão se
dissolvendo e desaparecendo, esmagadas pela impossibilidade de qualquer
organização autônoma; pode até chegar a estabelecer um poder proletário
e comunista que, não obstante, se esgota em repetidas e desesperadas
tentativas para suscitar pela autoridade as condições econômicas de sua
permanência e de seu fortalecimento, mas que termina, no final, derrotado
pela reação capitalista.

Na Alemanha, na Áustria, na Baviera, na Ucrânia e na Hungria


realizam-se desenvolvimentos históricos deste tipo; o ato destrutivo da
revolução não é seguido pelo processo de reconstrução da revolução em
sentido comunista. A existência das condições externas — Partido
Comunista, destruição do Estado burguês; fortes organizações sindicais,
armamento do proletariado — não foi suficiente para compensar a ausência
destas condições: existência de forças produtivas tendentes ao
desenvolvimento e à expansão, movimento consciente das massas
proletárias no sentido de dar substância ao poder econômico agregando-lhe
o poder político, vontade das massas proletárias de introduzir na fábrica a
ordem proletária, de fazer da fábrica a célula do novo Estado, de construir o
novo Estado como reflexo das relações industriais do sistema de fábrica.

Eis porque nós sempre sustentamos que o dever dos núcleos


comunistas existentes no Partido seja aquele de não cair em alucinações
particularistas (problema do abstencionismo eleitoral, problema da
constituição de um partido “verdadeiramente” comunista), mas de trabalhar
para criar as condições de massa nas quais seja possível resolver todos os
problemas particulares como problemas do desenvolvimento orgânico da
revolução comunista. Pode, de facto, existir um Partido Comunista (que seja
partido de ação e não uma academia de doutrinários puros e de
politiqueiros, que pensam “bem” e se exprimem “bem” em matéria de
comunismo) se não existirem, no meio das massas, o espírito de iniciativa
histórica e a aspiração à autonomia industrial que devem encontrar seu
reflexo e sua síntese no Partido Comunista? E, uma vez que a formação dos
partidos e o surgimento das forças reais históricas de que os partidos são o
reflexo, não surgem de um só golpe, a partir do nada, mas segundo um
processo dialético, o dever maior das forças comunistas não é, portanto,
aquele de dar consciência e organização às forças produtivas,
essencialmente comunistas, que deverão, ao se desenvolver e expandir,
criar a base econômica segura permanente do poder político proletário?

Do mesmo modo: pode o Partido abster-se da participação nas lutas


eleitorais para as instituições representativas da democracia burguesa, se
ele tem o dever de organizar politicamente todas as classes oprimidas em
torno do proletariado comunista de modo que, para obter isto, é necessário
que ele se torne o partido de governo destas classes em sentido
democrático, dado que somente do proletariado comunista pode ser partido
em sentido revolucionário?

Na medida em que se torna o partido da confiança “democrática” de


todas as classes oprimidas, na medida em que se mantém
permanentemente em contato com todos os estratos do povo trabalhador, o
Partido Comunista conduz todos os estratos do povo a reconhecer no
proletariado comunista a classe dirigente que deve substituir o poder de
Estado da classe capitalista, ou seja, ele cria as condições nas quais é
possível que a revolução como destruição do Estado burguês se identifique
com a revolução proletária, com a revolução que deve expropriar os
expropriadores, que deve iniciar o desenvolvimento de uma nova ordem nas
relações de produção e de distribuição.

Destarte, enquanto se apresenta como partido específico do


proletariado industrial, enquanto trabalha para dar consciência e direção
precisa às forças produtivas que o capitalismo suscitou com seu
desenvolvimento, o Partido Comunista cria as condições do poder de Estado
nas mãos do proletariado comunista, cria as condições nas quais é possível
que a revolução proletária se identifique com a revolta popular contra o
Estado burguês, na qual esta revolta se transforma no ato de liberação das
forças produtivas reais que se acumularam no seio da sociedade capitalista.

Estas séries diversas de acontecimentos históricos não são separadas e


independentes; são momentos de um mesmo processo dialético de
desenvolvimento, no curso do qual as relações de causa e efeito se
articulam, se invertem, interagem entre si. A experiência das revoluções
mostrou, todavia, como, depois da Rússia, todas as outras revoluções
fracassaram subitamente; mostrou, ainda, como o fracasso da segunda
revolução mergulhou as classes operárias em um estado de prostração e
envilecimento, que permitiu às classes burguesas se reorganizarem
fortemente e iniciar a obra sistemática de esmagamento das vanguardas
comunistas que tentavam se reconstituírem.

Para os comunistas que não se contentam em ruminar monotonamente


os primeiros elementos do comunismo e do materialismo histórico, mas que
vivem na realidade da luta e compreendem a realidade assim como ela é,
do ponto de vista do materialismo histórico e do comunismo, a revolução
como conquista do poder social por parte do proletariado não pode ser
concebida se não como o processo dialético na qual o poder político torna
possível o poder industrial e o poder industrial torna possível o poder
político. O soviet é o instrumento de luta revolucionária que permite o
desenvolvimento autônomo da organização econômica comunista, de modo
que, a partir dos conselhos de fábrica, chega ao conselho central da
economia, que estabelece os planos de produção e distribuição,
conseguindo assim suprimir a concorrência capitalista. O conselho de
fábrica, como forma da autonomia do produtor no campo industrial e como
base da organização econômica socialista, é o instrumento da luta mortal
para o regime capitalista, na medida em que cria as condições nas quais a
sociedade dividida em classes é suprimida e se torna “materialmente”
impossível qualquer nova divisão em classes.
Mas para os comunistas que vivem na luta, esta conceção não
permanece como pensamento abstrato: transforma-se em motivo de luta,
isto é, em estímulo para um esforço de organização e propaganda.

O desenvolvimento industrial determinou nas massas certo grau de


autonomia espiritual e certo espírito de iniciativa histórica positiva: é
necessário dar uma organização e uma forma a estes elementos de
revolução proletária, criar as condições psicológicas de seu desenvolvimento
e de sua generalização no meio de todas as massas trabalhadoras mediante
a luta pelo controle da produção.

É necessário promover a constituição orgânica de um partido


comunista, que não seja uma corja de doutrinários ou de
pequenos Maquiáveis, mas um partido de ação comunista revolucionária,
um partido que tenha consciência exata da missão histórica do proletariado
e saiba guiá-lo para a realização desta sua missão, que, por isso, seja o
partido das massas que querem libertar-se, com seus próprios meios,
autonomamente, da escravidão política e industrial através da organização
da economia social e não um partido que se sirva das massas para tentar
imitações heróicas dos jacobinos franceses. É necessário criar, na medida
em que isso pode ser obtido pela ação de um partido, as condições nas
quais existam duas revoluções, mas onde a revolta popular contra o Estado
burguês encontre as forças organizadas capazes de iniciar a transformação
do aparelho nacional de produção por um instrumento de opressão
plutocrática em instrumento de libertação comunista.

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