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Ano LXIV 2023 Número 2

RevistaFDUL_LXIV_2_2023_paginacao 30/01/2024 23:36 Page 2

Revista da Faculdade de diReito


da univeRsidade de lisboa
Periodicidade semestral
vol. lXiv (2023) 2

LISBON LAW REVIEW

COMISSÃO CIENTÍFICA

alfredo calderale (Professor da universidade de Foggia)


christian baldus (Professor da universidade de Heidelberg)
dinah shelton (Professora da universidade de Georgetown)
ingo Wolfgang sarlet (Professor da Pontifícia universidade católica do Rio Grande do sul)
Jean-louis Halpérin (Professor da escola normal superior de Paris)
José luis díez Ripollés (Professor da universidade de Málaga)
José luís García-Pita y lastres (Professor da universidade da corunha)
Judith Martins-costa (ex-Professora da universidade Federal do Rio Grande do sul)
Ken Pennington (Professor da universidade católica da américa)
Marc bungenberg (Professor da universidade do sarre)
Marco antonio Marques da silva (Professor da Pontifícia universidade católica de são Paulo)
Miodrag Jovanovic (Professor da universidade de belgrado)
Pedro ortego Gil (Professor da universidade de santiago de compostela)
Pierluigi chiassoni (Professor da universidade de Génova)

DIRETOR
M. Januário da costa Gomes

COMISSÃO DE REDAÇÃO
Paula Rosado Pereira
catarina Monteiro Pires
Rui tavares lanceiro
Francisco Rodrigues Rocha

SECRETÁRIO DE REDAÇÃO
Guilherme Grillo

PROPRIEDADE E SECRETARIADO
Faculdade de direito da universidade de lisboa
alameda da universidade – 1649-014 lisboa – Portugal

EDIÇÃO, EXECUÇÃO GRÁFICA E DISTRIBUIÇÃO


LISBON LAW EDITIONS
alameda da universidade – cidade universitária – 1649-014 lisboa – Portugal

issn 0870-3116 depósito legal n.º 75611/95

data: Fevereiro, 2024


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ÍNDICE 2023

M. Januário da Costa Gomes


11-21 editorial

ESTUDOS DE ABERTURA

Christian Baldus
25-38 tudo podemos... ou: pão integral antes do bolo! internacionalização da
formação jurídica entre política e prática
Wir können alles... oder: Schwarzbrot vor Kuchen! Internationalisierung der Juristenausbildung
zwischen Politik und Praxis

Jean-Louis Halpérin
39-60 o direito e as suas histórias
Law and its Histories

ESTUDOS DOUTRINAIS

Alfredo Calderale
63-118 carta della foresta e mutamenti economico-sociali in inghilterra dal Xv al
XX secolo
The Forest Charter and Socio-economical Changes in England from the XVth to the XXth
Century

André Mendes Barata


119-167 o sistema europeu de Garantia de depósitos: perspectivas para a construção
do terceiro pilar da união bancária
The European Deposit Insurance Scheme: perspectives for the construction of the third
pillar of the Banking Union

Aquilino Paulo Antunes


169-190 Falhas de abastecimento de medicamentos
Medicines shortages

Carlos de Oliveira Coelho


191-238 em torno de duas leituras da lex sane si maris. sobre as visões de Grotius e
de serafim de Freitas a respeito da liberdade dos mares
On two readings related to the lex sane si maris. About the views of Grotius and Serafim
de Freitas regarding the freedom of the seas

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Carlos Sardinha
239-254 introdução ao estudo da História da ciência do direito Privado na europa:
alemanha
Introduction to the Study of the History of the Science of Private Law in Europe: Germany

Daniel de Bettencourt Rodrigues Silva Morais


255-300 inventory Proceeding according to the Goa Succession, Special Notaries and
Inventory Proceeding Act 2012: still portuguese law?
O processo de inventário de acordo com o Goa succession, special notaries and inventory
Proceeding act 2012: ainda direito português?

Daniele Coduti
301-333 la legge ex art. 116, co. 3, della costituzione italiana: punto fermo od ostacolo
per l’attuazione del regionalismo differenziato?
A lei nos termos do art. 116, par. 3º, da Constituição italiana: ponto fixo ou obstáculo
para a implementação do regionalismo diferenciado?

Eduardo Vera-Cruz Pinto


335-376 a constituição brasileira de 1824 e o fim da Confederação Brasílica: efeitos
jurídicos da rejeição política de juntar cabo verde e angola ao brasil
The Brazilian Constitution of 1824 and the end of the brazilian confederation: legal
effects of the political rejection of joining Cape Verde and Angola to Brazil

Filipe de Arede Nunes


377-398 a guerra como continuação da política de estado: o confronto dialético entre
direito e Poder
War as continuation of State politics: the dialectic confrontation between Law and
Power

Francesco Astone
399-416 contratto, interpretazione, Pubblica amministrazione
Contract, Interpretation, Public Administration

Francisco Mendes Correia


417-466 Responsabilidade e risco nas operações de pagamento não autorizadas
Risk and liability for unauthorised payment transactions

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Francisco Rodrigues Rocha


467-517 limites de indemnização e capital seguro. os artigos 508.º do cc e 12.º do
RsoRca
Indemnity Limits and Insured Sum. Articles 508 of the Civil Code and 12 of the Compulsory
Motor Vehicle Insurance Law

Gabrielle Bezerra Sales Sarlet | Ingo Wolfgang Sarlet


519-538 os desafios da implementação do 5G em um cenário de exclusão digital e
de hiperconexão e o estado democrático de direito no brasil
The Challenges of Implementing 5G in a Scenario of Digital Exclusion and Hyperconnectivity
and the Democratic Rule of Law in Brazil

Giovanni Damele | Inês Pinheiro


539-544 Kelsen e a Górgona do poder: uma resposta a Kaufmann
Kelsen and the Gorgon of power: a response to Kaufmann

Glauto Lisboa Melo Junior


545-573 navegando por padrões obscuros: uma análise crítica da lei dos Mercados
digitais (dMa) e da lei dos serviços digitais (dsa) para a proteção dos
consumidores on-line
Navigating through dark patterns: a critical analysis of the Digital Market Act (DMA)
and Digital Services Act (DSA) in protecting consumers online

Inês Ferreira Leite


575-599 Fundamento e axiologia de um conceito de ação jurídico-penal (a propósito
da definição de “o mesmo crime”)
Reasoning and axiology of a universal concept of a legally liable criminal act (about the
concept of the “same offense”)

João de Oliveira Geraldes


601-660 sobre o âmbito e os limites das denominações de origem e das indicações
geográficas nas propostas de revisão da regulamentação europeia
On the Scope and Limits of Designations of Origin and Geographical Indications on the
Proposals for the Revision of European Regulations

Jorge Reis Novais


661-722 Financiamento de contencioso por terceiros e constituição
The Constitution and third-party litigation funding

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José Maria Cortes


723-740 destapar o consultor: os proxy advisors e a solução portuguesa
Uncovering the advisor: proxy advisors and the Portuguese solution

Luis Satúrio Pires


741-766 sobre a (des)proporcionalidade do regime da revogação por ingratidão
About the (dis)proportionality of the ingratitude revocation regime

Manuel Barreto Gaspar


767-802 as idiossincrasias Jus-administrativas do estado novo Português e do estado
Fascista italiano: breve Jornada pela evolução Histórica do direito administrativo
e pelo Pensamento Jurídico Marcellista – Parte i
The Jus-Administrative of the Portuguese Estado Novo and the Italian Fascist State: Brief
Journey through the Historical Evolution of Administrative Law and the Marcellista
Juridical Thought – Part I

Pierluigi Chiassoni
803-822 dos conceptos de discrecionalidad judicial
Two concepts of judicial discretion

JURISPRUDÊNCIA CRÍTICA

João Gomes de Almeida


825-835 uma ou múltiplas residências habituais do(s) cônjuge(s): comentário ao
acórdão do tribunal de Justiça da união europeia de 25 de novembro de
2021, IB contra FA, proc. c-289/20
One or multiple habitual residences of the spouse(s): annotation on the European Court
of Justice Judgment of 25 November 2021, ib v Fa, case C-289/20

VIDA CIENTÍFICA DA FACULDADE

Adelaide Menezes Leitão


839-850 arguição da tese de doutoramento de José anchieta da silva sobre “a posição
dos credores e a Recuperação da empresa”
Discussion of the doctoral thesis presented by José Anchieta da Silva on the subject “Creditors’
position and the recovery of the company”

6
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José Luís Bonifácio Ramos


851-858 arguição da tese de doutoramento de Geovana Mendes baía, “Poderes instrutórios
do Juiz e negócios Processuais em Matéria de Prova”
Discussion of the Doctoral Thesis of Geovana Mendes Baía, “Poderes instrutórios do Juiz
e negócios Processuais em Matéria de Prova”

Vitalino Canas
859-890 arguição da tese de doutoramento de Jorge Manuel da silva sampaio
sobre “Ponderação e proporcionalidade. uma teoria analítica do raciocínio
constitucional”
Discussion of the PhD exam by Jorge Manuel da Silva Sampaio, on the thesis “Weighting
and proportionality. An Analytical Theory of Constitutional Reasoning”

LIVROS & REVISTAS

Adelaide Menezes Leitão


893-900 Recensão à obra Krisen des fallimento, de Johannes Heck

Javier Llobet Rodriguez


901-920 Recensão à obra Nationalsozialistisches Strafrecht. Kontinuität und Radikalisierung,
de Kai ambos

João de Oliveira Geraldes


921-938 Recensão à obra Causa contractus: Auf der Suche nach den Bedingungen der
Wirksamkeit des vertraglichen Willens/Alla ricerca delle condizioni di efficacia
della volontà contrattuale/À la recherche des conditions de l’efficacité de la
volonté contractuelle, (org.) Gregor albers/Francesco Paolo Patti/dorothée
Perrouin-verbe

Maria José Capelo


939-957 Recensão à obra Manual de Processo Civil, volume i e ii, de João de castro
Mendes e Miguel teixeira de sousa

Nuno Andrade Pissarra


959-975 Recensão à obra Römisches Recht, de alfred söllner e christian baldus

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Fundamento e axiologia de um conceito de ação


jurídico-penal (a propósito da definição de “o mesmo
crime”)
Reasoning and axiology of a universal concept of a legally
liable criminal act (about the concept of the “same offense”)

Inês Ferreira Leite*

Resumo: o presente artigo analisa a evolução Abstract: in this article i seek to understand
da construção dogmática do conceito de if the concept of actus reus – in all its legal
ação como pressuposto e predicado do history and evolution within the continental
conceito de crime, procurando um conceito approach to criminal law – may serve as
de ação comum a todas as manifestações do a common element in all manifestations
crime – ação, omissão, dolosa, negligente, of criminal behavior (criminal action or
face a crimes de mera atividade ou de omission, intentional or negligent) and if
resultado – a propósito da virtualidade this potentially universal concept can support
de um tal conceito para a densificação do the concept of “the same offense” for double
conceito de “o mesmo crime” constante do jeopardy purposes.
n.º 5 do artigo 29.º da constituição da Keywords: the same offense, act, omission,
República Portuguesa. actus reus, mens rea, negligence.
Palavras-chave: o mesmo crime, ação, omissão,
dolo, negligência, finalismo.

Sumário: 1. introdução; 2. as funções do conceito de ação na dogmática penal; 3. análise


crítica da evolução do conceito de ação jurídico-penal; 4. o conceito funcionalista de ação
e as teorias comunicativas da ação; 5. Propostas para um conceito jurídico-penalmente
relevante de ação.

*
Professora auxiliar da Faculdade de direito da universidade de lisboa, inesfleite@fd.ulisboa.pt.

RFdul-llR, lXiv (2023) 2, 575-599 575


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inês Ferreira leite

1. Introdução

em 1974, Franz von liszt afirmava no seu manual que o crime era ação:
“das verbrechen ist Handlung”1. este jurista teve enorme importância na cultura
jurídica portuguesa e brasileira2, bem como, evidentemente, em todo o direito
penal de natureza continental. não estranha, portanto, que na delimitação do
conceito de “o mesmo crime”, utilizada pelo legislador constituinte no n.º 5 do
artigo 29.º da constituição da República Portuguesa3, a doutrina tenda a iniciar
a sua abordagem no conceito de ação, procurando saber se este, em alguma das
suas modalidades ou tendências, poderá ter utilidade dogmática4. o conceito
de ação tem sido empregue como suporte da construção do próprio conceito de
crime, de tal modo que contenha, em si mesmo, um conjunto de predicados
que, simultaneamente, definam em que consiste o crime e possam ser aceites
como atributos de toda e qualquer espécie de infração5. assim, não é surpreendente
que, tal como tem feito grande parte da doutrina anterior, se tenha vindo a partir

1
Strafrechtliche Aufsätze und Vorträge, 1, J.Guttentag, berlin, 1905, p. 248 (a primeira edição do
manual é de 1874).
2
Para uma interesaante história da primeira tradução do manual em língua portuguesa, ver
natHÁlia noGueiRa esPÍndola de sena/RicaRdo sontaG, “the brazilian translation of Franz
von liszt’s lehrbuch des deutschen strafrechts (1899): a History of cultural translation between
brazil and Germany”, Max Planck Institute for European Legal History. Research paper series, 17,
2019, (online), consultado a 30/12/2022.
3
Para mais desenvolvimentos, ver inês FeRReiRa leite, Ne (idem) bis in idem. Proibição de Dupla
Punição e de Duplo Julgamento: Contributos para a Racionalidade do Poder Punitivo Público, aaFdl,
2016, i, §36 e ss.
4
Fazendo um percurso semelhante, mas a partir de um conceito naturalístico de ação e rejeitando
os seus efeitos na teoria do concurso, eduaRdo coRReia, A teoria do concurso em direito criminal:
unidade e pluralidade de infracções, atlântida, coimbra, 1945, pp. 16 e ss. também, na ótica do
conceito de identidade do facto processual, acabando igualmente por concluir pela insuficiência
da doutrina da ação neste campo, beRtel, Die Identität der Tat. Der Umfang von Prozeßgegenstand
und Sperrwirkung im Strafverfahren, Wien, springer verlag, 1970, pp. 51 e ss. e 56 e ss. Rejeitando
o papel da ação na compreensão do conceito de “same offence”, mas por partir de uma conceção
objetiva de ação, da qual se excluem as “intenções”, GeoRGe tHoMas iii, “a blameworthy act
approach to the double Jeopardy same offense Problem”, California Law Review, 83, 1995, p.
1065.
5
a título de exemplo, eduaRdo coRReia, Direito Criminal, I, com a colaboração de Figueiredo
dias, reimpressão, livraria almedina, coimbra, 2004, p. 232; PuPPe, Idealkonkurrenz und
Einzelverbrechen. Logische Studien zum Verhältnis von Tatbestand und Handlung, duncker&Humblot,
berlin, 1979, p. 39. notando esta tendência, mas entendendo que um tal omni-conceito de ação
seria praticamente inútil, RoXin, Problemas fundamentais de Direito Penal, vega, lisboa, 1986, p.
92.

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Fundamento e axiologia de um conceito de ação jurídico-penal

do conceito de “a mesma ação”, para só depois determinar o que seja “o mesmo


crime”6. sucede, porém, que esta tarefa – só aparentemente simples – que consiste
em reunir as capacidades de compreensão e de individualização numa fórmula
genérica e flexível, tem-se revelado hercúlea, o que tem conduzido a que nem
toda a doutrina confira tal função ao conceito de ação7. Pois para que um conceito
de ação possa servir de critério distintivo de “o mesmo crime”, é necessário que
nele se incluam elementos suficientemente individualizadores que permitam não
só identificar a presença do crime, mas também caracterizar a conduta como
comportamento único e autónomo. e, ainda assim, manter o caráter universal
do conceito, para que se possa aplicar a todas as manifestações do crime. será
possível?

2. As funções do conceito de ação na dogmática penal

Por outro lado, constata-se que os conceitos de ação são tão diversos quanto
as funções que os seus autores lhes atribuem. o que implica que tenha de se
considerar, num primeiro momento, as funções e, só depois, os conceitos. a
doutrina maioritária costuma identificar duas funções fundamentais8 do conceito

6
seguindo uma lógica idêntica, Reyes alvaRado, El concurso de delitos, ediciones Reyes, bogotá,
1990, pp. 11 e ss.; e WaRda, “Grundfragen der strafrechtlichen Konkurrenzlehre”, Juristische
Schulung, 3, 1964, pp. 83 e ss.
7
veja-se, por exemplo, esta conclusão tão expressiva de FiGueiRedo dias: “é um preconceito –
e na verdade, um preconceito idealista – pensar que os fenómenos deste mundo hão-de por força
reconduzir-se a conceitos de maior abstracção e formar uma «ordem» pré-estabelecida, que só
importaria “conhecer”. deixemos em paz – se é lícito exprimir-me assim – a «ação» em geral, e
ocupemo-nos das acções e omissões concretas, das dolosas e das negligentes, tal como concretamente
nos são dadas nos tipos-legais de crimes”, “direito Penal e estado-de-direito Material. sobre o
método, a construção e o sentido da doutrina geral do crime”, Revista de Direito Penal, 31, 1981,
p. 45.
8
embora haja autores que apontem mais funções, como é o caso de JescHecK/ WeiGend, que
referem as funções de classificação, definição (mínimo de substância e materialidade que permita
determinar os predicados da ilicitude e culpa sem as antecipar), e delimitação, Tratado de Derecho
Penal, Parte General, 5.ª ed., duncker u. Humblot, berlim, 1996, tradução de Miguel olmedo
cardenete, editorial comares, Granada, 2002, p. 234. toMÁs s. vives antón encontra quatro
funções para o conceito de ação: a função classificatória (ação como elemento comum dos vários
tipos de comportamentos típicos); coordenadora (ação como substantivo sobre o qual assentam os
predicados da tipicidade, ilicitude culpa, não os podendo antecipar), definidora (mínimo denominador
comum dos conceitos de tipicidade, ilicitude e culpa) e negativa (equivalente à função delimitadora),
Fundamentos del sistema penal, tirant lo blanch, valencia, 1996, pp. 104 e ss. FeRnanda PalMa,
para além da função de definição e delimitação, refere uma função garantística do conceito de ação,
Direito Penal, Parte Geral, II, A Teoria Geral da Infracção como teoria da Decisão Penal, aaFdl,

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inês Ferreira leite

de ação: i) a função de classificação9, cabendo ao conceito de ação constituir-se


como elemento comum de todos os fenómenos criminais; e ii) a função de
delimitação, mediante a qual o conceito de ação exclui do seu âmbito os fenómenos
que permanecem, sem margem para dúvidas, de fora do direito Penal 10.
no entanto, a busca doutrinária de uma função de definição para o conceito de
ação – mediante o qual se conseguisse captar a essência do crime11 –, conferiu à
construção do conceito uma tensão dialética insustentável12. Pois, ora se avançava
para uma estrutura mais compreensiva do crime e se perdia a flexibilidade do
conceito, ora se recuava, em prol da flexibilidade, apenas para se retornar a um
conceito neutro e desprovido de materialidade13.
assim, nos extremos opostos, pode encontrar-se a definição de Hegel,
que incluía a culpabilidade14 e, como contraponto, o conceito de ação proposto
por Jakobs, que se reduz à não evitabilidade de um resultado evitável (que

lisboa, 1999, pp. 13 e ss.; ideM, Direito Penal. Parte geral. A teoria geral da infração como teoria da
decisão penal, aaFdl, lisboa, 2013, pp. 15, 54 e 55. J. M. silva sÁncHeZ, a par das funções
classificatória e delimitadora, refere a função sistemática, cabendo à ação expressar um conteúdo
material mínimo de suporte à ilicitude e culpabilidade, “sobre los movimientos «impulsivos»
y el concepto jurídico-penal de acción”, Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, 44, i, 1991,
pp. 1 e ss.
9
neste sentido, JüRGen bauMann, Derecho Penal. Conceptos fundamentales y sistema, edições
depalma, buenos aires, 1981, p. 94; taiPa de caRvalHo, Direito Penal. Parte Geral. Teoria
Geral do Crime, ii Publicações universidade católica, Porto, 2004, p. 249; MiR PuiG, Derecho
Penal. Parte general, PPu, barcelona, 1995, p. 180; RoXin, Derecho Penal. Parte General, civitas,
Madrid, 1997, pp. 233 e ss. embora alguns autores adotem nomenclaturas distintas, como é o
caso de MeZGeR, que fala nas funções de classificação (na qual inclui a exclusão dos fenómenos
que não são, sequer ação) e de definição (como reunião dos atributos do facto punível), Derecho
Penal. Parte General, editorial bibliográfica argentina, buenos aires, 1958, p. 86. sobre a
evolução do conceito de ação ver, por todos, vives antón, Fundamentos del sistema penal, cit.,
pp. 101 e ss.
10
dando primazia a esta função, eRnst von belinG, Die Lehre von Verbrechen, J. c. b. Mohr,
tübingen, 1906 (reimpressão na scientia, aalen, 1964), §3, p. 17.
11
na medida em que o conceito deveria ter um substrato material que permita servir de base à
ilicitude e à culpa, como entendem JescHecK/ WeiGend, Tratado de Derecho Penal, cit., p. 234.
12
no mesmo sentido, FiGueiRedo dias, “direito Penal e estado-de-direito Material...”, cit.,
p. 45; silva sÁncHeZ, “sobre los movimientos «impulsivos»...”, cit., pp. 2 e 3.
13
ou de utilidade prática, restando-lhe uma função “estético-arquitetónica”, como aponta RoXin,
Problemas Fundamentais..., cit., p. 93.
14
“erst die äußerung des moralischen Willens ist Handlung”, Grundlinien der Philosophie des
Rechts, nicola, berlin, 1821, §113, p. 110. sobre o conceito de HeGel ver ainda JaKobs, Derecho
Penal, Parte general – fundamentos y teoría de la imputación, tradução de Joaquín cuello contreras
e J. González de Murillo, Marcial Pons, Madrid, 1995, p. 157; e RoXin, Derecho Penal..., cit.,
p. 235.

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Fundamento e axiologia de um conceito de ação jurídico-penal

pode ser o mero movimento corporal)15. e não falta quem considere supérfluas
todas estas funções, quer conferindo ao conceito de ação uma única (ou mesmo
nenhuma) finalidade 16, quer negando um suporte conceitual comum aos
fenómenos do direito Penal 17 e advogando, ao invés, que tais funções sejam
parciariamente prosseguidas pela tipicidade 18. como exemplo, Jorge de
Figueiredo dias, que atribui apenas a função de delimitação ao conceito de
ação, e que substitui um conceito geral por “vários conceitos de ação tipicamente
conformados”19, remetendo a resolução dos problemas inerentes ao conceito de
crime para a tipicidade20.

3. Análise crítica da evolução do conceito de ação jurídico-penal

durante o percurso dialético da construção de um conceito satisfatório de


ação, as teorias causais-naturalísticas da ação21 e a teoria finalista da ação22 foram

15
JaKobs, Derecho Penal..., cit., pp. 174 e 177. criticando o conceito de JaKobs por excessivamente
normativista, beRnd scHüneMann, “la relación entre ontologismo y normativismo en la
dogmática jurídico-penal”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, 44, tradução de Mariana sacher,
2003, p. 17.
16
assim, JaKobs, Derecho Penal..., cit., pp. 157 e ss., para quem o conceito de ação não tem
qualquer utilidade na definição do crime, servindo apenas para excluir os comportamentos que
ficam, manifesta e definitivamente, fora do âmbito da responsabilidade penal. negando qualquer
finalidade ao conceito de ação, enquanto conceito prévio ao tipo penal, aRMin KauFMann, “Zum
stand der lehre vom personalen unrecht”, Festschrift für Hans Welzel zum 70. Geburtstag am 25
Marz 1974, Walter de Gruyter, berlin, 1974, pp. 393 e ss.
17
designadamente, recusando que ação e omissão possam ser subespécies de um conceito comum,
como já afirmava Gustav RadbRucH, no seu Der Handlungsbegriff in seiner Bedeutung für das
Strafrechtssystem. Zugleich ein Beitrag zur Lehre von der rechtswissenschaftlichen Systematik, berlin,
1903, pp. 141 e ss., e como atualmente conclui vives antón, Fundamentos del sistema penal, cit.,
p. 143; e ota WeinbeRGeR, Law, Institution and Legal Politics. Fundamental Problems of Legal
Theory and Social Philosophy, Kluwer academic Publishers, 1991, p. 143.
18
criticando estas teorias, por privarem o direito Penal de um critério de valoração extra-típico
da incriminação, ZaFFaRoni, Derecho Penal. Parte General, 2.ª ed., com a colaboração de alejandro
alagia e alejandro slokar, sociedad anónima editora, buenos aires, 2002, pp. 409 e 410.
19
Temas Básicos da Doutrina Penal, coimbra editora, 2001, pp. 216 e ss.; ideM, Direito Penal.
Parte Geral, I, 2.ª Ed., Coimbra Editora, 2007, pp. 259 e ss. em sentido próximo, teResa beleZa,
Direito Penal, II, 2.ª ed., aaFdl, lisboa, 1985, p. 101.
20
demonstrando inequivocamente, porém, a falência da remissão para o âmbito da tipicidade dos
problemas de voluntariedade da ação, especialmente nas situações de automatismo ou atio libera
in agendo, HaRt, Punishment and Responsibility. Essays in the Philosophy of Law, 2.ª ed., oxford
university Press, 2008, pp. 110 a 112.
21
Propugnadas inicialmente por belinG, Die Lehre von Verbrechen, J. c. b. Mohr, tübingen, 1906
(reimpressão na scientia, aalen, 1964), §3, pp. 9 e ss.; ideM, Esquema de Derecho Penal. La Doctrina

RFdul-llR, lXiv (2023) 2, 575-599 579


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inês Ferreira leite

protagonistas. as primeiras resultaram das influências do naturalismo positivista


do séc. XiX23; a segunda surge em oposição às primeiras, revelando a insatisfação
provocada pelas correntes normativas dominantes, à época24, de que era exemplo
a construção estritamente jurídica de binding – autor que negou a existência ou
relevância de um conceito pré-jurídico de ação25 –, para quem a ação corresponderia
à realização da vontade juridicamente relevante. Por sua vez, os finalistas clamaram
pelo regresso a um conceito ontológico de ação26. de acordo com as conceções
naturalísticas, a ação corresponderia a uma modificação do mundo exterior dominada
pela vontade27, cuja função seria ainda – e apenas – a exclusão de certos comportamentos
da incidência da tipicidade. a conceção finalista parte do conceito ontológico de
ação e elege a finalidade como atributo essencial, sempre presente no agir humano
dotado de relevância penal28. Para os finalistas, a ação resulta da direção final da
vontade e caracteriza-se pela escolha consciente dos meios necessários para alcançar
um fim. de todos os contributos que as teorias finalistas trouxeram à dogmática
penal, o conceito de ação foi o que motivou mais críticas29, não tendo conseguido
reunir muitos adeptos30.

del Delito-Tipo, libraría el Foro, buenos aires, 2002, p. 42, e lisZt, Lehrbuch des Deutschen
Strafrechts, cit., §28, pp. 102 e ss.
22
defendida mais veementemente por WelZel, Teoría de la acción finalista, editorial depalma,
astrea, 1951, pp. 19 e ss.; ideM, El nuevo sistema de Derecho Penal. Una introducción a la doctrina
de la acción finalista, tradução e notas de José cerezo Mir, editorial Montevideo, buenos aires,
2004, pp. 41 e ss.
23
FiGueiRedo dias, Direito Penal..., i, cit., p. 239.
24
FiGueiRedo dias, Direito Penal..., i, cit., p. 244.
25
em Die Normen und ihre Übertretung: Eine Untersuchung über die rechtmässige Handlung und die
Arten des Delikts, ii, pp. 88 e ss.., referido por aRMin KauFMann, Teoría de las normas. Fundamentos
de la dogmática penal moderna, edições depalma, buenos aires, 1977, p. 32.
26
assim, WelZel, Teoría de la acción finalista, cit., p. 18. sobre a ação finalista ver JosÉ ceReZo
MiR, “el finalismo, hoy”, Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, 56, i, 1993, pp. 5 e ss.
27
na conceção de lisZt, Lehrbuch des Deutschen Strafrechts, cit., §28, pp. 102 e 103. belinG falava
já em movimento corporal dominado pela vontade, Esquema de Derecho Penal..., cit., p. 42.
28
sobre este conceito ontológico de ação, MeZGeR, Derecho Penal..., cit., pp. 87 e 92.
29
Por exemplo, MeZGeR que, apesar de neoclássico, sustentou um conceito de ação ontológico,
teceu várias críticas ao finalismo (Derecho Penal..., cit., pp. 87, 88 e 91 e ss..), e foi, por sua vez,
criticado por WelZel, El nuevo sistema de Derecho Penal..., cit., pp. 58 e ss. ver, também,
FiGueiRedo dias, Direito Penal..., i, cit., p. 247.
30
como defensores mais recentes podemos apontar FRancisco MuñoZ conde, Teoria general
del delito, tirant lo blanch, valencia, 1984, pp. 27 e ss.; MauRacH/ZiPF/Gössel, os dois primeiros
em Strafrecht. AT, i, cit., §16, pp. 208 e ss., e os três em Derecho Penal. Parte General, ii, cit., §42,
pp. 123 e 124; e stRatenWeRtH, Derecho Penal, Parte general, I..., cit., p. 101.

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Fundamento e axiologia de um conceito de ação jurídico-penal

ao longo de anos de gládio doutrinário31, surgiram outras propostas32, das


quais se destaca o conceito social de ação33, que a define como um conjunto
funcional de sentido, com um conteúdo objetivamente cognoscível34, cuja relevância
penal depende de um crivo social prévio35. ou, nas palavras de Jescheck/Weigend,
“a ação é um comportamento humano com transcendência social”36. contudo, a
doutrina da ação social, porque demasiado apegada à conceção finalista, acabou
por ser alvo de um conjunto bastante semelhante de críticas37.
o erro dos finalistas foi associar a finalidade da ação ao dolo38 e pretender
antecipar já as categorias da tipicidade e da ilicitude39, em busca da tal essência do
31
Que WelZel resume no seu El nuevo sistema de Derecho Penal..., cit., pp. 58 e ss.
32
conceito negativo de ação, como “não evitar evitável de um resultado”, do qual se aproxima JaKobs,
Derecho Penal..., cit., pp. 174 e ss.; e o conceito pessoal de ação, enquanto conformação responsável
e atribuidora de sentido, para aRtHuR KauFMann, “die ontologische struktur der Handlung. skizze
einer personalen Handlungslehre”, Schuld und Strafe: studien zur Strafrechtsdogmatik, carl Heymanns,
Koln, 1966, pp. 39 e 65; ou enquanto “manifestação da personalidade”, para RoXin, Derecho Penal...,
cit., pp. 252 e ss. Para uma crítica da teoria pessoal da ação, ver, entre outros, FiGueiRedo dias, Temas
Básicos da Doutrina Penal, cit., p. 216; e ZaFFaRoni, Derecho Penal. Parte General, cit., pp. 412-413.
33
sustentado essencialmente por ebeRHaRd scHMidt, “teoria da acção social”, AA.VV., Textos de
apoio de Direito Penal, ii, aaFdl, lisboa, 1999, pp. 185 e ss.; e mais recentemente por JescHecK/
WeiGend, Tratado de Derecho Penal, cit., pp. 239 e ss. considerando-o a proposta mais interessante,
teResa beleZa, Direito Penal, II, cit., p. 98. defendendo um conceito “normativo-social” de ação,
enquanto conceito pré-jurídico, taiPa de caRvalHo, Direito Penal. Parte Geral..., cit., pp. 250 e ss.
34
ebeRHaRd scHMidt, “teoria da acção social”, cit., pp. 189.
35
existem tantas versões da ação social quanto os autores; para enGisH, atuar é a “produção
voluntária de consequências objetivamente perseguíveis por parte de um homem” (“der finale
Handlungsbegriff ”, Probleme der Strafrechtserneuerung: Festschrift für Eduard Kohlrausch, 1944, p.
164); para MaiHoFeR, a ação seria uma “conduta perseguível com resultado social objetivamente
calculável” (“der soziale Handlungsbegriff ”, Festschrift für Eberhard Schmidt, 1961, p. 182), como
explica stRatenWeRtH, Derecho Penal..., cit., pp. 102 e 103. sobre o conceito social de ação, ver
também vives antón, Fundamentos del sistema penal, cit., pp. 114 e ss; JaKobs, Derecho Penal...,
cit., p. 171; e RoXin, Derecho Penal..., cit., pp. 243 e ss. neste sentido, concluindo que em comum
entre as várias teorias esteja talvez o reconhecimento de um significado social que transcende o
sujeito da ação, ZaFFaRoni, Derecho Penal. Parte General, cit., p. 408.
36
Tratado de Derecho Penal, cit., p. 239.
37
assim, bauMann, Derecho Penal..., cit., p. 108 e ss.; RoXin, Derecho Penal..., cit., pp. 244 e ss.
numa perspetiva finalista, o conceito social de ação seria demasiado vago, ota WeinbeRGeR, Law,
Institution and Legal Politics..., cit., p. 141.
38
como fez WelZel, Teoría de la acción finalista, cit., p. 23. esta associação infeliz motivou o
seguinte comentário de MeZGeR: “la confusión no advertida entre tipo de acción y tipo del injusto,
constituye el presupuesto constante de todos los encantamientos seductores de un finalismo
desacertado”, Derecho Penal..., cit., p. 93. com a mesma crítica, FiGueiRedo dias, Temas Básicos
da Doutrina Penal, cit., p. 210.
39
em sentido próximo, FeRnanda PalMa, Direito Penal, Parte Geral..., II, cit., p. 41; ideM, Direito
Penal. Parte geral..., 2013, cit., pp. 32 e 53; ideM, “do sentido histórico do ensino do direito

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crime. apesar de ter sido inicialmente traçada sobre o modelo paradigmático do


crime doloso por ação40, foram mais tarde feitos esforços para adaptar a teoria
finalista da ação à negligência e à omissão41. Mezger acabou por trabalhar a distinção
entre a finalidade ontológica da ação e a finalidade legal como elementos distintos
e autónomos42, e Welzel admite que, nos crimes dolosos, a ação final é concretizada,
mas não é devida, enquanto nos crimes negligentes, a ação final era devida, mas,
porque o agente não conferiu um mínimo de orientação final do comportamento,
acabou por não ser concretizada43. contudo, estas argumentações foram vistas
como desvirtuamento inútil do finalismo44. e as posteriores tentativas de distinguir
finalidade ontológica e finalidade devida45 tiveram também pouca assimilação46.
o falhanço do finalismo em resolver os problemas da omissão e da negligência é
demonstrativo da futilidade de impor ao direito Penal um conceito prévio e
ontológico de ação, e, consequentemente, de crime47.
Já o erro da doutrina social, ao definir a ação como “comportamento objetivamente
dominável, dirigido a um resultado social objetivamente previsível”, foi o de
minimizar o papel da capacidade individual de ação para fazer prevalecer um
conceito objetivo48, mas demasiado vago – a relevância social –, que não permite

Penal na universidade portuguesa à actual questão metodológica”, Revista Portuguesa de Ciência


Criminal, 9, 1999, p. 441.
40
WelZel, Teoría de la acción finalista, cit., pp. 19 e 20.
41
WelZel, El nuevo sistema de Derecho Penal. Una introducción a la doctrina de la acción finalista,
tradução e notas de José cerezo Mir, editorial Montevideo, buenos aires, 2004, pp. 59 e ss.; ideM,
Derecho Penal. Parte General, Roque depalma editor, buenos aires, 1956, pp. 47 e 48.
42
Derecho Penal..., cit., p. 91.
43
Derecho Penal. Parte General, cit., pp. 47 e 48. ver também, do autor Estudios de derecho penal.
Estudios sobre el sistema de derecho penal. Causalidad y acción. Derecho penal y filosofía, tradução de
Gustavo eduardo aboso e tea low, Julio césar Faira, Montevideo, 2002, pp. 3 e ss.
44
RoXin, Derecho Penal..., cit., p. 241.
45
no sentido da compatibilidade entre a teoria final da ação e a dogmática do crime negligente,
entre outros, Reyes alvaRado, El concurso de delitos, cit., p. 26; vives antón, Fundamentos del
sistema penal, cit., p. 110; e MiR PuiG, Derecho Penal. Parte general, cit., p. 176.
46
FiGueiRedo dias pondera esta possibilidade, apenas para concluir que, mesmo assim, um tal
conceito não poderá exercer as funções de classificação e definição, Direito Penal. Parte Geral, cit.,
pp. 254 e 255. no sentido indicado no texto, ZaFFaRoni, Derecho Penal. Parte General, cit., p.
407.
47
assim, sustentando uma teoria finalista (teleológica) da ação, mas concluindo que esta não pode
ser a base de um direito Penal que puna genericamente omissões e ações negligentes, ota
WeinbeRGeR, Law, Institution and Legal Politics..., cit., p. 143.
48
neste sentido, vives antón, Fundamentos del sistema penal, cit., p. 114; FeRnanda PalMa,
Direito Penal, Parte Geral..., II, cit., p. 12; ideM, Direito Penal. Parte geral..., 2013, cit., pp. 13 e
14.

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Fundamento e axiologia de um conceito de ação jurídico-penal

à ação exercer uma função delimitadora49. Por outro lado, os seus apologistas não
ponderaram adequadamente que a contaminação da valoração típica pela valoração
social também segue o caminho inverso50. ou seja, por vezes, é o tipo que acaba
por determinar a valoração social, ou, como explicava o homenageado, “o direito
deixa de ser um reflector passivo do facto social para se transformar ele próprio
em motor de transformação social”51. a dificuldade em extrair do conceito social
de ação respostas claras e precisas sobre problemas concretos é reveladora da
nebulosidade que circunda a abordagem da “valoração social”52. a confiança na
infalibilidade da resposta social aos problemas jurídicos é tão ilusória quanto a
convicção de que o bom senso encontraria sempre a melhor solução53.
no rescaldo da batalha, salvou-se uma fórmula mínima, neutra e maleável,
um “super-conceito de ação”54, desprendido já da vertente causal que, inicialmente,
o integrava, que consegue agregar ações e omissões55, comportamentos dolosos e
negligentes, e que corresponde, nos seus termos essenciais, à formulação da doutrina

49
assim criticamente, teResa beleZa, Direito Penal, ii, cit., p. 98; e RoXin, Derecho Penal..., cit.,
p. 245.
50
a propósito do efeito indiciador da gravidade da conduta na consciência social pela mera criação
do tipo penal respetivo, JÚlio GoMes, “uma função punitiva para a responsabilidade civil e uma
função reparatória para a responsabilidade penal?”, Revista de Direito e Economia, Xv, 1989, p.
113. no direito Penal, bauMann, Derecho Penal..., cit., p. 109; auGusto silva dias, «Delicta In
Se» e «Delicta Mere Prohibita»: uma análise das descontinuidades do ilícito penal moderno à luz da
reconstrução de uma distinção clássica, lisboa, 2003, p. 423: MiR PuiG, Función de la pena y teoría
del delito en el Estado Social y Democrático de Derecho, 2.ª ed., bosch, barcelona, 1982, p. 44; e
RoXin, Derecho Penal..., cit., p. 246.
51
oliveiRa ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral. Uma perspetiva luso-brasileira, 9.ª ed.,
almedina, coimbra, 1995, p. 29.
52
neste sentido, concluindo que “in general, common-sense theories do not provide an adequate
basis for certain more subtle investigations which are necessary for philosophical consideration and
the solution of practical problems. common-sense theories present things in a simplified manner
and as unproblematic (even though they are not unproblematic in the least)”, ota WeinbeRGeR,
Law, Institution and Legal Politics..., cit., p. 34.
53
e traz consigo o perigo do regresso à “intuição jurídica” como critério de solução para os
problemas penais, muito criticado por eduaRdo coRReia, A teoria do concurso em direito
criminal..., cit., pp. 51 e ss. criticamente, também, bettiol, El problema penal, tradução de Jose
luis Guzman dalbora, Hammurabi, buenos aires, 1995, pp. 121 e ss.
54
usando esta expressão para identificar a ação com um “genus proximum” que suporte todas as
diferenciações presentes nos fenómenos penais, como algo que esteja presente tanto nos crimes
dolosos, como negligentes, ativos, como omissivos, RoXin, Derecho Penal..., cit., p. 234. de modo
semelhante, JaKobs, Derecho Penal.., cit., p. 177. criticamente, vives antón, Fundamentos del
sistema penal, cit., p. 107.
55
e que não se adequava facilmente à omissão, RoXin, Derecho Penal..., cit., p. 238.

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neoclássica56. a ação corresponde, portanto, a um comportamento humano dominado


(ou dominável) pela vontade57. Mas, como é fácil de ver, um conceito assim formulado
tem pouco ou nenhum interesse para a densificação do que seja “o mesmo crime”.
daqui não se retiram critérios úteis para a resolução do problema do ne bis in idem,
sendo certo também que nenhum dos conceitos de ação propostos pela doutrina
contém os elementos necessários para discernir o que seja o “mesmo crime”. não
é surpreendente que assim seja, já que as finalidades subjacentes ao conceito de ação
jurídico-penal centram-se mais na identificação do que caracteriza, de modo universal,
o crime, e menos naquilo que poderá distinguir um crime de outro crime58. contudo,
entendo que alguns dos contributos trazidos pela doutrina finalista e pela teoria
social da ação podem ser relevantes na concretização da noção de “o mesmo crime”59.
o finalismo trouxe inegáveis vantagens, do ponto de vista do modo como a
doutrina aborda o comportamento criminoso, ao centralizar o problema da ação
mais no domínio da direção da vontade, e menos na vertente física, assente no
domínio corporal de processo causais60. de facto, sobre o conceito de ação, a
propósito da definição do que é “um” crime, Welzel esclarece que esta corresponde,
não a um movimento corporal, mas a uma “unidade social de sentido”, que pode
ser levada a cabo por um ou vários movimentos corporais. Mais sustenta que, a
cada conjunto de movimentos corporais, corresponde uma unidade de ação, de
acordo com a sua finalidade61. Por outro lado, ao apelar a uma abordagem teleológica

56
neste sentido, teResa beleZa, Direito Penal, ii, cit., p. 75.
57
como explica ota WeinbeRGeR, este é o único conceito que se enquadra em todas as
manifestações da criminalidade, mas não é, exatamente, uma forma substancial de definir o que é
a ação humana, Law, Institution and Legal Politics..., cit., p. 144. embora vários autores partam de
conceitos distintos, acabam por retornar a esta fórmula como conceito operativo para a resolução
de problemas práticos (de que é exemplo o percurso discursivo de teResa beleZa, Direito Penal,
ii, cit., p. 102). assumindo o conceito de ação referido no texto, entre outros, bauMann, Derecho
Penal..., cit., p. 97; eduaRdo coRReia, Direito Criminal, I, cit., pp. 234 e ss.; MicHael s. MooRe,
Act and Crime. The Philosophy of Action and its Implications for Criminal Law, clarendon Press,
oxford, 1993, p. 97; e FeRnanda PalMa, Direito Penal, Parte Geral..., II, cit., p. 10; ideM, Direito
Penal. Parte geral..., 2013, cit., p. 16.
58
no mesmo sentido, JescHecK/ WeiGend, Tratado de Derecho Penal, cit., p. 765.
59
admitindo a validade, para a dogmática penal, de alguns contributos dos finalistas e da teoria
social da ação, teResa beleZa, Direito Penal, ii, cit., p. 98; e FiGueiRedo dias, Temas Básicos da
Doutrina Penal, cit., p. 209.
60
Por outro lado, a exigência de uma ação finalisticamente orientada para a violação da norma
traduz da melhor forma a relação entre os pressupostos da responsabilidade final e a própria função
preventiva do direito Penal, MiR PuiG, Función de la pena y teoría del delito..., cit., p. 50.
61
“los movimientos corporales, en el espacio y en el tiempo, son en elles solamente los portadores
reales físicos del sentido social de la acción”, Derecho Penal..., cit., p. 215.

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Fundamento e axiologia de um conceito de ação jurídico-penal

do conceito de ação62, os finalistas relembraram-nos que o excesso de normativismo


conduz a um profundo desapego da realidade63 e que um tal divórcio entre direito
e sociedade não coloca apenas em causa uma suposta função ético-social do
mesmo64, mas a própria função preventiva65. assim, Welzel acrescenta à temática
da unidade final da ação a valoração social dada pelo tipo, que pode determinar
a existência e formação de unidades de ação66, abrindo o caminho para que, mais
tarde, outros autores viessem a reforçar a importância da valoração social – prévia,
subjacente ou mesmo em resultado do tipo penal – na definição e compreensão
da ação67.
infelizmente, esta clareza argumentativa de Welzel não se estendeu à análise
do problema do concurso ideal, já que, neste âmbito, o autor associa indelevelmente
a manifestação de uma vontade final a uma unidade física e corporal68. ao dar
como exemplo de uma manifestação única de uma vontade final a colocação de
uma bomba que mata várias pessoas69, Welzel entra em aberta contradição com
os pressupostos teóricos de que parte para definir o conceito jurídico-penal de
ação70.

62
Para uma análise sobre o sentido teleológico do conceito de ação, ver ota WeinbeRGeR, Law,
Institution and Legal Politics..., cit., pp. 49 e ss.
63
apontando também este fator como contributo positivo do finalismo, beRnd scHüneMann,
“la relación entre ontologismo y normativismo en la dogmática jurídico-penal”, cit., p. 30.
64
WelZel, Teoría de la acción finalista, cit., p. 12; ideM, Derecho Penal..., cit., p. 1. ver também
supra, §§45-46.
65
ver supra, §47.
66
WelZel, Derecho Penal..., cit., p. 217.
67
o que foi feito pelos subscritores das teorias sociais da ação, já citados supra, §79.
68
esta tendência é partilhada por outros autores; como nota cavaleiRo de FeRReiRa “é também
uma das matérias em que mais vulgarmente se manifesta a inconsequência dos escritores do direito
Penal, por não respeitarem a concepção de crime primeiramente definida e propugnada, na
argumentação e na solução dada às questões que se compreendem sob a designação de concurso
de crimes”, A Tipicidade na técnica do Direito Penal, imprensa lucas, lisboa, 1935, p. 27.
69
Derecho Penal..., cit., p. 218.
70
como aponta eduaRdo coRReia, atribuindo-a a um “desejo de pôr a sua construção,
acriticamente, de harmonia com o sistema alemão em vigor”, A teoria do concurso em direito
criminal..., cit., p. 82. contradição vê-se também em alFRedo etcHebeRRy oRtHustÉGuy, que
sustenta um conceito finalista da unidade da ação, mas entendendo que o movimento físico é o
“ponto de partida objetivo indispensável”, “el concurso aparente de leyes Penales”, Coleccion de
Seminarios e Institutos, II, Derecho penal, santiago, editorial Juridica de chile, 1954, p. 5.

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4. O conceito funcionalista de ação e as teorias comunicativas da ação

no pós-finalismo, foram apresentadas duas novas propostas para um conceito


de ação. de um lado, encontra-se o conceito funcionalista de ação de Jakobs71,
para quem a ação é uma “produção individual evitável do resultado”. a evitabilidade
é avaliada a partir de uma esfera de competência imputável ao agente, sendo
afastado qualquer substrato material ou remotamente ôntico. esta conceção não
pode ser aceite, pois não só não apresenta qualquer utilidade para a densificação
do conceito de crime, como revela também fragilidades noutros aspetos da teoria
geral da infração72.
de rejeitar são também as novas teorias que, à falta de uma designação melhor,
podem chamar-se de “teorias comunicativas” da ação73. estas teorias, formadas a
partir de uma combinação entre a filosofia da linguagem e uma abordagem
sociológica do direito, propõem que o objeto de estudo deixe de ser a ação enquanto
realidade ôntica – movimento corporal e intenção – e passe a estudar-se apenas o
significado social da conduta74. como nota Fernanda Palma, o objeto do conhecimento
passa a ser composto pelas regras da linguagem social75, sendo a ação reduzida
a mero aspeto da linguagem76, a um conjunto de interpretações, de acordo
com códigos e regras sociais, que se conferem aos comportamentos humanos77.

71
Derecho Penal..., cit., pp. 174 e 177. criticando o conceito de Jakobs por excessivamente
normativista, beRnd scHüneMann, “la relación entre ontologismo y normativismo en la dogmática
jurídico-penal”, cit., pp. 17 e 19.
72
Por exemplo, certos erros do agente podem ser natural e causalmente inevitáveis, e nem por isso
deixa de haver facto juridicamente relevante, como aponta RoXin, Derecho Penal..., cit., pp. 249 e
250. ou, na perspetiva crítica de ZaFFaRoni, o conceito acaba por remeter a valoração da ação para
a esfera típica, nada acrescentando de novo à tipicidade, Derecho Penal. Parte General, cit., p. 411.
73
o termo decorre da construção de JüRGen HabeRMas (em The Theory of Communicative
Action..., (1), cit., pp. 273 e ss.), embora os posteriores filósofos e penalistas se tenham afastado
do conceito original e levado o papel da linguagem na delimitação da ação longe demais. com
a mesma designação, luHMann, “the autopoiesis of social systems”, Sociocybernetic Paradoxes,
F. Geyer and J. van der Zouwen, sage, london, 1986, p. 178; FeRnanda PalMa, Direito Penal,
Parte Geral..., II, cit., p. 45; ideM, Direito Penal. Parte geral..., 2013, cit., pp. 46 e ss..
74
neste sentido, vives antón, Fundamentos del sistema penal, cit., pp. 204 e ss..
75
Direito Penal, Parte Geral..., II, cit., p. 46; ideM, Direito Penal. Parte geral..., 2013, cit., pp. 46
e 47.
76
a convicção de lisZt de que todo o crime é ação substituía-se, assim, pela convicção de que
todo o crime é linguagem, numa leitura literal do primeiro versículo do evangelho segundo são
João: “no princípio já existia o verbo, e o verbo estava com deus, e o verbo era deus. ele estava
no princípio com deus”, 1:1.
77
vives antón, Fundamentos del sistema penal, cit., p. 205.

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Fundamento e axiologia de um conceito de ação jurídico-penal

esta nova perspetiva reveste-se, claro, da enorme vantagem de desvalorizar o papel


do movimento corporal como determinante do conceito de ação. contudo, permite
que se vá longe demais na atribuição de valor jurídico às regras de compreensibilidade
social. uma vez que, como sustenta vives antón, os significados sociais atribuídos
ao comportamento humano tendem a objetivar-se, a autonomizar-se face ao próprio
comportamento78, chega a ser possível concluir-se como prevalecente o significado
social da ação, em vez da intencionalidade que o agente atribuiu, efetivamente, ao
comportamento79.

5. Propostas para um conceito jurídico-penalmente relevante de ação

se focarmos a atenção na interação entre sociedade e tipo penal, vista como


uma relação simbiótica80, compreendemos a importância que a valoração social
pode assumir na construção e interpretação do tipo e na própria definição jurídica
de crime. não se trata de negar a existência de uma realidade ôntica da qual se
possa extrair o conceito de ação81, nem de desconsiderar, por completo, a ação
como objeto de análise82, mas de reconhecer que a nossa própria apreensão do
conteúdo ôntico da ação se encontra mediada por valorações sociais, às quais não
nos podemos subtrair. ou, como explica Fernanda Palma, sem aderir expressamente:
“a acção não é vista como um puro facto, uma substância ou um subtracto
físico-comportamental, mas não é também uma mera construcção do sistema jurídico.
surge como interpretação normativa ou construção normativa (através das regras
sociais) do mundo”83. Por outro lado, sendo o conceito de ação um conceito
jurídico, não constituirá um reflexo perfeito de uma ação real, vindo a possuir um

78
Fundamentos del sistema penal, cit., p. 245.
79
Fundamentos del sistema penal, cit., p. 127.
80
o que pressupõe que se afastem as teses empiristas ou deterministas do direito, como explica
oliveiRa ascensão, O Direito..., cit., p. 29.
81
como explica MiR PuiG, “sin duda, el comportamiento a enjuiciar no lo crea el derecho, sino
que preexiste a éste: el matar existiría, aunque no se hallara penado por la ley. Pero el comportamiento
preexistente puede contemplarse en distintos sentidos: así, como acción final o como causación de
un evento”, Función de la pena y teoría del delito..., cit., p. 50. também FeRnanda PalMa conclui
que todas as construções sobre a ação foram de algum modo ontologistas, “a teoria do crime como
teoria da decisão Penal...”, cit., p. 539.
82
como faz vives antón, Fundamentos del sistema penal, cit., pp. 197 e ss.
83
FeRnanda PalMa, Direito Penal, Parte Geral..., II, cit., p. 45. em sentido próximo, veja-se esta
conclusão de HaslinGeR: “die Handlung interessiert nicht als physiologisches Phänomen unter
naturwissenschaftlichen Gesichtspunkten, sondern als soziales Phänomen in seiner «Wirkungsrichtung
auf die soziale Wirklichkeit hin»“, Die Mitbestrafte Vortat, München, 1963, p. 8.

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sentido autónomo resultante de um processo de abstração e de valoração84. nesta


medida – e afastando quer as conceções naturalistas, quer as conceções normativistas
acima referidas –, o conceito de ação não se reconduz a um puro conceito normativo,
nem a um puro conceito ôntico, mas antes a um conceito jurídico-penalmente
relevante85, que serve para exprimir e caracterizar um facto – que não corresponde
ao conceito de crime, mas servirá de base à construção do conceito de crime –, ao
qual estão associados certos efeitos jurídicos.
interessa, porém, aprofundar um pouco mais o conceito de ação. toda a
utilidade acrescida, face ao conceito de tipicidade, que possa assumir um conceito
prévio e universal de ação, só pode assentar em duas vertentes: uma vertente
constitutiva, cabendo ao conceito de ação a tarefa de traçar as fronteiras para a
intervenção do direito Penal; e uma vertente aglutinadora, cabendo à ação conter
a expressão da legitimação da referida intervenção86. a primeira função corresponde
à tradicional função de delimitação, acrescida de uma função de garantia da racionalidade
da intervenção do poder punitivo87. Quanto à segunda, importa ter o cuidado de
não querer antecipar qualquer das precedentes categorias da responsabilidade penal,
pois não se trata de definir compreensivamente o que seja o crime, mas tão-só de
expressar o que, no crime, justifica a reação punitiva do estado88.
ora, do que atrás já ficou dito, pode concluir-se que o conceito de ação é
composto por dois elementos fulcrais89: a volição e a exteriorização. esta ideia vem

84
ZaFFaRoni, Derecho Penal. Parte General, cit., p. 414.
85
sobre a distinção, conferindo ao conceito juridicamente relevante a natureza de conceito sobre
uma realidade extrajurídica, retirada da própria vida, Gustav RadbRucH, Filosofia do Direito, 6.ª ed.,
tradução de l. cabral Moncada, arménio amado editor, coimbra, 1997, pp. 351-352.
86
em sentido próximo, associando a importância de um conceito autónomo de ação a funções de
garantia e objetividade, FeRnanda PalMa, Direito Penal, Parte Geral..., II, cit., p. 13; ideM, Direito
Penal. Parte geral..., 2013, cit., pp. 13-15. em sentido semelhante, taiPa de caRvalHo, Direito
Penal. Parte Geral..., cit., p. 249; e GeeRds, Zu Lehre von den Konkurrenz, dunker&Humblot,
berlin, 1961, p. 254.
87
atribuindo esta função ao conceito de ação, sob a designação de função política, ZaFFaRoni,
Derecho Penal. Parte General, cit., p. 400. afirmando que decorre da constituição penal a exigência
de que na base do crime esteja um comportamento assente na estrutura humana da ação com uma
forte base de desvalor da ação material, FeRnanda PalMa, “constituição e direito Penal. as questões
inevitáveis”, Casos e Materiais de Direito Penal, 3.ª ed., 2008, p. 29. no sentido indicado no texto,
também, Reyes alvaRado, El concurso de delitos, cit., p. 18.
88
no mesmo sentido, FletcHeR, “the theory of criminal negligence: a comparative analysis”,
University of Pennsylvania Law Review, 119, 1970-1971, p. 408.
89
contra, concluindo que o problema do conceito de ação consiste, precisamente, na tradicional
integração de dois elementos: um elemento físico (corporal) e um psíquico (ato de vontade), vives
antón, Fundamentos del sistema penal, cit., p. 144.

588
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Fundamento e axiologia de um conceito de ação jurídico-penal

já da construção de Pufendorf90, que entendia que a ação moral, humana, era


caracterizada por três elementos fundamentais: manifestação externa-objetiva,
(através do movimento corporal ou da contenção do movimento corporal);
voluntariedade, como resultado de uma escolha de liberdade (manifestada pela
própria forma de perceção e descrição do movimento corporal); e imputabilidade
(conexão do efeito da ação ao seu agente).
verificou-se também que todas as tentativas de reduzir o conceito de ação a
um só destes elementos – o que aconteceu com algumas versões da teoria social
da ação, que substitui a voluntariedade enquanto capacidade pessoal por um
conjunto de expectativas sociais objetivas91 – ou de engrandecer o papel de um
dos elementos, por comparação ao outro) conduziram a doutrinas que ficaram
expostas a uma imensidão de críticas92; todas elas insuperáveis, quando se procurava
um conceito de ação capaz de exercer alguma das várias funções que lhe são
tradicionalmente atribuídas93. exemplo da segunda tendência pode encontrar-se
nas teorias pessoais da ação, especialmente na concebida por Roxin, que define
ação como “manifestação da personalidade”, e quase substitui a dimensão da
vontade por um juízo objetivo do que seja a personalidade: “es acción todo lo que
se puede atribuir a un ser humano como centro anímico-espiritual de acción, y
eso falta en caso de efectos que parten únicamente de la esfera corporal («somática»)
del hombre”94. esta representação da ação não exclui decisivamente certos atos
reflexos que sejam, ainda assim, uma manifestação da personalidade do agente,
quando por hipótese este mantenha hábitos nutricionais insistentemente pobres
em magnésio95. Podemos apontar o mesmo “pecado”, numa tendência inversa, à
conceção de binding, que exacerbava o papel da vontade na definição da ação96,
e às teorias causais-naturalísticas, cuja neutralidade extrema praticamente reduzia
a ação a um conjunto de impulsos motores manifestados no mundo exterior, e

90
Two Books of the Elements of Universal Jurisprudence, tradução de William abbott oldfather,
liberty Fund, indianápolis, 1931, “definition i – by human actions are meant the voluntary actions
of a man in communal life regarded under the imputation of their effects”, 1-4, p. 21.
91
Por exemplo, vives antón, Fundamentos del sistema penal, cit., p. 114.
92
assim, bettiol, “oggettivismo e soggettivismo...”, cit., pp. 990 a 992.
93
em sentido próximo, falando na irracionalidade da redução do conceito de ação, ZaFFaRoni,
Derecho Penal. Parte General, cit., p. 401.
94
Derecho Penal..., cit., p. 252.
95
em sentido próximo, FiGueiRedo dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, cit., p. 216; ZaFFaRoni,
Derecho Penal. Parte General, cit., p. 413.
96
Grundriss des Deutschen Strafrechts. Allgemeiner Teil, 6.ª ed., verlag von Wilhelm engelmann,
leipzig, 1902, §28, p. 103. criticamente, também, aRMin KauFMann, Teoría de las normas.
Fundamentos de la dogmática penal moderna, edições depalma, buenos aires, 1977, p. 32.

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inês Ferreira leite

que originou a tão difundida conceção que liszt deu inicialmente da injúria, como
um conjunto de vibrações do ar e excitações nervosas dos músculos dos ouvidos97.
Resta o mérito que repousa no equilíbrio entre os dois elementos apontados e na
junção de um outro: a lesão ou colocação em causa de valores juridicamente
protegidos. Há que rejeitar, portanto, o caminho de Mezger, autor que acrescenta
o resultado como terceiro elemento do conceito de ação98. de facto, nem todos
os crimes incluem um resultado99, embora todos tenham de configurar, pelo menos,
uma ameaça, ainda que longínqua, para bens jurídicos, sob pena de perderem
legitimidade punitiva.
ação penalmente relevante é o comportamento humano voluntário que
constitui uma ameaça ou um ataque contra bens jurídicos com dignidade
jurídico-penal. a volição surge como o primeiro garante de que a responsabilidade
penal decorre de critérios de imputabilidade; pois, de outro modo, a aplicação da
pena constituiria uma indignidade100. a exclusão dos atos reflexos e dos que resultam
da coação absoluta corresponde a um primeiro reflexo do princípio geral de que
apenas poderá haver responsabilidade penal quando a mesma possa assentar num
comportamento livre101. Partindo de um conceito de liberdade penal que inclui
necessariamente duas componentes fundamentais – a saber, a possibilidade de agir

97
esta descrição serviu depois de mote a duras críticas de WelZel, Derecho Penal..., cit., p. 45.
e, mais tarde, para afastar um conceito de modificação do mundo exterior naturalístico ou material,
(adotando antes uma conceção segundo a qual a modificação do mundo exterior depende também
de critérios valorativos e comunicacionais), às críticas de Rocco, El objeto del delito y de la tutela
juridica penal. Contribucion a las teorias generales del delito y de la pena, tradução de Geronimo
seminara, editorial b de F, Montevideo, buenos aires, 2001, pp. 337 e ss. críticos, também, vives
antón, Fundamentos del sistema penal, cit., p. 113; teResa beleZa, Direito Penal, ii, cit., p. 52;
RoXin, Derecho Penal..., cit., p. 239.
98
Derecho Penal..., cit., p. 103.
99
criticando a inclusão do resultado no conceito de ação, por razões distintas, JüRGen bauMann,
Derecho Penal..., cit., p. 104.
100
em sentido próximo, Reyes alvaRado, El concurso de delitos, cit., p. 19; caRnelutti, Teoría
general del delito, tradução de víctor conde, Revista de derecho Privado, Madrid, 1952, p. 125;
luiGi FeRRaJoli, Derecho y razón. Teoría del garantismo penal, editorial trotta, tradução de Perfecto
andrés ibáñez, alfonso Ruiz Miguel, Juan carlos bayón Mohino, Juan terradillos basoco e Rocío
cantarero bandrés, Madrid, 1995, p. 706; FletcHeR, “the theory of criminal negligence...”,
cit., p. 414; FeRnanda PalMa, Direito Penal, Parte Geral..., II, cit., p. 55. colocando em causa a
exigência de voluntariedade da ação por parte da jurisprudência inglesa, HaRt, Punishment and
Responsibility..., cit., pp. 95 e ss.
101
ou, como aponta silva sÁncHeZ, expressa a necessidade de que a ação permita a imputação do
comportamento ao seu agente – ou a “adscripción” – pelo que onde não houver um comportamento
passível de interpretação como unidade de sentido imputável ao seu agente, não haverá ação
penalmente relevante, “sobre los movimientos «impulsivos»...”, cit., pp. 4 e 5.

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Fundamento e axiologia de um conceito de ação jurídico-penal

de outro modo e a consciência do significado do comportamento executado – e


adotando um conceito normativo-social de culpa102, nesta primeira fase, a doutrina
juspenalista procura apenas saber se, subjacente ao comportamento do agente,
houve alguma possibilidade de que o mesmo não atuasse de todo ou que atuasse
de outro modo103, por muito teórica e remota que seja a referida possibilidade.
complementarmente, a exteriorização incorpora uma função de garantia do
princípio da segurança jurídica e funciona como travão contra eventuais interferências
arbitrárias do estado104. não se trata, aqui, de um problema de causalidade-naturalística,
mas de vincular a intervenção penal à ocorrência de um fator objetivo e mensurável,
que seja simultaneamente suporte e testemunho do domínio da vontade 105.

102
ainda assente no poder agir de outro modo e de um juízo material de culpabilidade passível de
graduação, à semelhança de JescHecK/ WeiGend, Tratado de Derecho Penal, cit., p. 457; FeRnanda
PalMa, Direito Penal, Parte Geral..., II, cit., pp. 28 e 29; ideM, Direito Penal. Parte geral..., 2013,
cit., pp. 29 e 30; ideM, O Princípio da Desculpa em Direito Penal, almedina, coimbra, 2005, pp.
81 a 83. em sentido diferente, por assentar o juízo de culpa no “ter que responder pela personalidade
que fundamenta um facto ilícito-típico e nele se exprime”, conferindo menor relevância à possibilidade
de agir de outro modo no momento concreto do facto, FiGueiRedo dias, Direito Penal..., i, cit.,
p. 525; ideM, Temas Básicos da Doutrina Penal, cit., pp. 241 e 242; ideM, Liberdade. Culpa. Direito
Penal, 3.ª ed., coimbra editora, coimbra, 1995, p. 54.
103
tratando-se de um comportamento ativo, interessa apenas demonstrar que o agente poderia
ter-se abstido de atuar, tratando-se de uma omissão, importa demonstrar que o agente poderia ter
atuado de modo diferente (mesmo que não fosse do modo exido pela norma, uma vez que esta
questão é debatida a propósito do nexo de imputação objetiva).
104
afirmando que “la necesidad de que éste [estado social] sea, además, democrático y de derecho
confiere fundamento político-constitucional a la exigencia de que todo delito esté constituido por
un comportamiento externo y no meramente mental”, MiR PuiG, Función de la pena y teoría del
delito..., cit., p. 56. neste sentido, cavaleiRo de FeRReiRa, Lições de Direito Penal, 1992, cit., p.
57. explicando que os princípios da legalidade e da proibição de retroatividade seriam esvaziados
de sentido, caso não se referissem à definição de factos objetivos como crimes, FeRnanda PalMa,
Direito Penal, Parte Geral..., II, cit., p. 9; ideM, Direito Penal. Parte geral..., 2013, cit., p. 11.
Referindo os problemas das teorias do direito penal do agente, populares na alemanha nazi, FiGueiRedo
dias, Direito Penal..., i, cit., pp. 235-236. em sentido semelhante, falando no princípio da
materialidade, luiGi FeRRaJoli, Derecho y razón..., cit., p. 705. no sentido indicado no texto, ainda,
Reyes alvaRado, El concurso de delitos, cit., p. 21; ZaFFaRoni, Derecho Penal. Parte General, cit.,
pp. 399-400.
105
veja-se esta afirmação de ZiPF, “Gedanken und Gesinnungen sind grundsatzlich solange
strafrechtlich irrelevant, als sie sich nicht zur bewirkung in der außenwelt anschicken. der rechtliche
schuldvorwurf braucht einen in der realen umwelt faßbaren ansatzpunkt, einen «schuldsachverhalt»”,
Die Strafmassrevision, c. H. beck, Munique, 1969, p. 85. em sentido próximo, bauMGaRten, “die
idealkonkurrenz”, Festgabe für Reinhard von Frank zum 70. Geburtstag, verlag von J. c. b. Mohr,
tübingen, 1930, p. 190; GeeRds, Zu Lehre von den Konkurrenz, cit., p. 254; e ZaFFaRoni, Derecho
Penal. Parte General, cit., p. 416.

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inês Ferreira leite

não se quer com isto dizer que a exteriorização ocupa um papel subalterno ao da
vontade, mas apenas que estes dois elementos, de idêntica importância, ocupam
funções distintas na densificação da responsabilidade penal. a vontade – que, no
conceito de ação, surge na sua dimensão mais ínfima (de mera voluntariedade) –,
irá ser depois, progressivamente, dissecada em dolo ou, por contraponto, mera
violação do dever de cuidado, no âmbito do tipo de ilícito, e, de seguida, em
indiferença ao bem jurídico ou desinteresse face ao cumprimento de deveres de
cuidado, no âmbito da culpabilidade106.
Por sua vez, o elemento de exteriorização conserva sempre um papel instrumental
e uma função garantística; isto é, suporta a manifestação da vontade, exprime a
relação entre o agente e o facto e revela os elementos que irão compor os posteriores
juízos de ilicitude e de culpa107. assim, explica Fernanda Palma que “a intenção
ou dolo de uma acção não será matéria de culpa, isto é, de censurabilidade social,
sem ter sido, antes, objecto da constatação de factos à luz de critérios não valorativos
de interpretação da realidade”. o movimento corporal funciona como o carimbo
da vontade no mundo dos sentidos e exerce uma função de fotografia de um
determinado momento e espaço, enquanto suporte dos atributos da teoria geral
da infração108. não pode ser identificado, por conseguinte, em si mesmo, como a
essência da ação humana109. o movimento corporal não caracteriza a ação (esteja

106
de forma semelhante, atribuindo ao conceito de ação a função de “coordenação” no sentido
em que a ação será o substantivo sobre o qual assentam os predicados da tipicidade, ilicitude e
culpa, vives antón, Fundamentos del sistema penal, cit., p. 105. também em FeRRi encontramos
esta ideia de densificação progressiva de valoração jurídica sobre um mesmo suporte naturalístico,
quando decompõe o elemento psicológico do crime em voluntariedade, intenção e motivação,
Sociologia criminale, 3.ª ed., Frateli boca, turim, 1892, pp. 503-504. em sentido próximo,
ZaFFaRoni, Derecho Penal. Parte General, cit., p. 423. notando uma atividade circular inevitável
na teoria geral da infração, a partir de certos pressupostos que serão determinantes para todas as
categorias dogmáticas, sousa e bRito, “sentido e valor da análise do crime”, Textos de apoio de
Direito Penal, 1, aaFdl, lisboa, 1983/84, pp. 79-80.
107
Direito Penal, Parte Geral..., II, cit., p. 13. ver, da mesma autora, mais recentemente, Direito
Penal. Parte geral..., 2013, cit., pp. 14-16. no mesmo sentido, conclui ZiPF, Die Strafmassrevision,
cit., p. 85. em sentido próximo, bauMGaRten, “die idealkonkurrenz”, Festgabe für Reinhard von
Frank zum 70. Geburtstag, verlag von J. c. b. Mohr, tübingen, 1930, p. 190; GeeRds, Zu Lehre
von den Konkurrenz, cit., p. 254; e ZaFFaRoni, Derecho Penal. Parte General, cit., pp. 401 e 416
108
“o crime é um facto porque tem que exibir primariamente uma objetividade indiscutível, uma
tradução no mundo exterior sobre a qual seja exercível um juízo afirmativo de verdade, de certeza”,
FeRnanda PalMa, Direito Penal, Parte Geral..., II, cit., p. 9; ideM, Direito Penal. Parte geral...,
2013, cit., p. 11.
109
nem mesmo assumindo relevância dogmática enquanto mero controlo sobro movimentos
musculares, como aponta criticamente HaRt, Punishment and Responsibility..., cit., pp. 103-107.

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Fundamento e axiologia de um conceito de ação jurídico-penal

a pensar-se num sentido amplo ou num sentido mais estrito do conceito), tanto
quanto a ausência de movimento corporal também não se revela apta a caracterizar
a omissão110. também na omissão se terá de localizar, como base da responsabilidade
penal, uma exteriorização da vontade111.
nesta ótica, não parece acertado que não seja possível encontrar uma essência
comum entre ações dolosas e negligentes que vá para além da capacidade de ação112
e a respetiva exteriorização (ativa, na ação, em sentido estrito, ou passiva, na omissão);
isto é, do domínio da vontade sobre a exteriorização percetível aos sentidos. entende-se
que a essência da ação dolosa, em sentido amplo, reside na direção da vontade para
a ameaça ou lesão de bens jurídicos113, complementada pelo domínio da vontade na
correspondente exteriorização corporal (ativa ou passiva); enquanto a essência da ação
negligente, em sentido amplo, reside na direção da vontade em prol da violação de
deveres de cuidado, complementada do mesmo modo114. este elemento está presente

110
assim, recorrendo à significação social do comportamento para a identificação do quid
comportamental subjacente à omissão penalmente relevante, FeRnanda PalMa, Direito Penal. Parte
geral..., 2013, cit., pp. 70 e 71. afirmando que a omissão não consiste num “nada fazer”, mas num
comportamento negativo, na decisão de não realizar o comportamento devido, teResa beleZa,
Direito Penal, II, cit., p. 502. no sentido indicado no texto, também, Reyes alvaRado, El concurso
de delitos, cit., pp. 27 e 28. no mesmo sentido, embora o autor vá mais longe e entenda que existem
tantas “ações” típicas nas omissões quantas as possibilidades de ação do agente no caso concreto,
MiR PuiG, Función de la pena y teoría del delito..., cit., pp. 54 e 55. Já qualificando a omissão como
sintoma mais claro da falência das conceções naturalísticas sobre a unidade da ação, eduaRdo
coRReia, A teoria do concurso em direito criminal..., cit., p. 72.
111
exigindo, também na omissão, um quid comportamental passível de significação social,
FeRnanda PalMa, “a teoria do crime como teoria da decisão Penal...”, cit., p. 555. Próximos,
vives antón, Fundamentos del sistema penal, cit., p. 131; e FRosali, Concorso di norme e concorso
di reati, Giuffré, Milão, 1971, pp. 89 e 97.
112
neste sentido, JosÉ ceReZo MiR, “el finalismo, hoy”, Anuario de Derecho Penal y Ciencias
Penales, 56, i, 1993, p. 10. notando, com razão, que “também na negligência é possível encontrar
uma finalidade referida ao programa de interesses do agente”, sem que pretenda reabilitar a teoria
da ação final, PedRo caeiRo, “sentido e função do instituto da perda de vantagens relacionadas
com o crime no confronto com outros meios de prevenção da criminalidade creditícia (em especial,
os procedimentos de confisco in rem e a criminalização do enriquecimento «ilícito»)”, Revista
Portuguesa de Ciência Criminal, ano 21, n.º 2, 2011, pp. 273 e 274.
113
no mesmo sentido, a propósito da ação (em sentido estrito) dolosa, salientado que “the
intentionality of action has to be regarded as its essence. action pursues purposes; this has to be
regarded as the fundamental characteristic of action even where additional elements, such as habits,
norms and others have to be taken into consideration as determinants of action.”, ota
WeinbeRGeR, Law, Institution and Legal Politics..., cit., p. 189.
114
no mesmo sentido, exatamente, MiR PuiG, Derecho Penal. Parte general, cit., p. 177. Já parecendo
entender que a negligência inconsciente exclui qualquer decisão consciente da vontade pelo ilícito,
FiGueiRedo dias, Liberdade..., cit., pp. 60, 61 e 64.

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na negligência consciente e na negligência inconsciente. obviamente, não se exige


que a violação concreta do dever de cuidado que causalmente provoca o dano, ou
objetivamente não o evita, tenha sido consciente (pois o agente pode não ter parado
no sinal vermelho porque nem sequer o viu)115, mas de exigir, como fundamento da
responsabilidade penal negligente, um momento em que o agente opta pela conduta
descuidada cujo percurso próximo conduz a uma concreta, e decisiva, violação de
um dever de cuidado (o condutor que não vê o sinal vermelho apenas poderá ser
responsabilizado se tal se ficou a dever a uma distração voluntária, e não porque o
sinal estivesse coberto, porque a sua atenção foi forçadamente desviada, etc.)116.
num caminho próximo, Fernanda Palma aponta a relação de identificação
entre o agente e o seu facto, como vivência interior do facto, como elo comum
entre infrações dolosas e negligentes117. numa obra anterior, a autora tinha deixado
dúvidas sobre esta continuidade, notando a existência de momentos de “irracionalidade”
no agir negligente118. Pensa-se que há razão em ambos os pontos. também a violação
do dever de cuidado serve algum objetivo do agente119 – nem que seja a poupança
do esforço exigido pelo comportamento diligente – mas na maioria das vezes é a
ausência de reflexão sobre as consequências da violação do dever de cuidado que
caracteriza o comportamento negligente120. daqui resulta um outro elemento

115
como salienta criticamente, RoXin, Derecho Penal..., cit., p. 242.
116
também, a propósito de acidentes provocados por condutores que adormecem ao volante,
entendendo que só poderá haver responsabilidade penal quando o condutor estivesse consciente
de uma propensão para adormecer, HaRt, Punishment and Responsibility..., cit., p. 110. de modo
próximo, ainda, referindo-se à necessidade, num acidente provocado por excesso de velocidade, da
condução em excesso de velocidade ter sido querida, stRatenWeRtH, Derecho Penal, Parte general,
I – El hecho punible, tradução de Manuel cancio Meliá e Marcelo a. sancinetti, thompson civitas,
navarra, 2005, p. 106; MeZGeR, Derecho Penal..., cit., p. 254 (Strafrecht. Ein Lehrbuch, 6.ª ed.,
duncker & Humblot, Munique, 1955, p. 355). e, mas situando o problema na culpa, FiGueiRedo
dias/nuno bRandão, “comentário ao art. 137.º”, Comentário Conimbricense do Código Penal,
Parte Especial, i, 2.ª ed., direção de Jorge de Figueiredo dias, coimbra editora, 2012, p. 184.
117
O Princípio da Desculpa..., cit., p. 39.
118
“a vontade no dolo eventual”, in Estudos de Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães
Colaço, coimbra, almedina, 2002, p. 813.
119
Referindo que a consciência da perigosidade da conduta – e o correspondente dever de tomar
consciência da mesma – é essencial para a punição negligente, FletcHeR, “the theory of criminal
negligence...”, cit., pp. 423-424. em sentido semelhante, dasKalaKis, La notion d’unité e de
pluralité d’infractions et son rôle dans le procès pénal, Paris, 1969, p. 40.
120
sustentando que, também no crime negligente, a conduta ilícita – violação do dever de cuidado
– representa o “desejo de prosseguir determinado interesse próprio”, o qual será, em muito casos,
a “fuga” ao comportamento cuidadoso, mais trabalhoso ou oneroso para o agente, PedRo caeiRo,
“sentido e função do instituto da perda de vantagens...”, cit., p. 273.

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Fundamento e axiologia de um conceito de ação jurídico-penal

comum entre ação (ou omissão) dolosa e negligente: a opção consciente pelo ilícito
(mesmo sem uma plena consciência da ilicitude da conduta)121. simplesmente, o
ilícito doloso assenta na voluntária e consciente ameaça ou lesão de bens jurídicos,
enquanto o ilícito negligente assenta na voluntária122 e consciente123 violação do
dever de cuidado. Frontalmente contra, eduardo correia oferece como exemplo
o caso em que o condutor, que conduz em excesso de velocidade, simplesmente
se esqueceu do limite de velocidade124. contudo, este será um problema de erro
sobre elementos de direito do tipo, ou de falta de conhecimento da proibição,
que não excluem a responsabilidade negligente125, e não um problema de volun-
tariedade da violação do dever de cuidado. Presumindo que do excesso de velocidade
decorreu um resultado danoso, ilícito, que o condutor poderia ter evitado caso
estivesse a conduzir a uma velocidade menor (dentro do limite legal), a censurabilidade
não recai na violação do limite legal (mera desobediência inconsciente da norma),
mas antes na condução a uma velocidade desadequada a circunstâncias que o

121
entendendo também que a ação voluntária e consciente é o que há em comum entre crime
doloso e negligente, e que a distinção irá determinar-se no âmbito da tipicidade, MiR PuiG, Derecho
Penal. Parte general, cit., p. 177. considerando que a negligência resulta sempre de um conjunto
de circunstâncias perante as quais a conduta do agente adquire uma potencialidade lesiva que
justifica a censurabilidade penal, conclui enRiQue del castillo codes, (La imprudencia: Autoría
e Participación, dykinson, Madrid, 2007, pp. 117 e 122 e ss.) que só haverá negligência quando o
agente conheça, do conjunto de circunstâncias das quais vem a resultar o resultado danoso, o
suficiente para que se tenha apercebido (ou se pudesse ter apercebido) da potencialidade lesiva,
perigosa, da sua conduta. afirmando algo semelhante: “the defendant’s failure to exercise a
responsibility shared by all, be it a responsibility to avoid intentional violations or to avoid creating
substantial and unjustified risks, provides a warrant for the state’s intrusion upon his autonomy as
an individual”, FletcHeR, “the theory of criminal negligence...”, cit., p. 417. em sentido
próximo, FRosali, Concorso di norme..., cit., p. 106.
122
no mesmo sentido, FletcHeR, “the theory of criminal negligence...”, cit., pp. 416 e 423.
o que não exclui absolutamente o automatismo como objeto da responsabilidade penal, pois
também nestes casos se torna necessário encontrar, no comportamento complexo em que se integra
o automatismo, um momento de dirigibilidade final, FeRnanda PalMa, Direito Penal, Parte Geral...,
II, cit., pp. 59 e ss.; ideM, Direito Penal. Parte geral..., 2013, cit., p. 59; ideM, “a teoria do crime
como teoria da decisão Penal...”, cit., p. 541, nota (9).
123
igualmente, FletcHeR, “the theory of criminal negligence...”, cit., p. 423.
124
Direito Criminal, I, com a colaboração de Figueiredo dias, reimpressão, livraria almedina,
coimbra, 2004, p. 431.
125
criticando também a confusão entre falta de consciência da violação do dever legal (erro factual)
e falta de conhecimento da proibição legal (erro sobre a proibição), FletcHeR, “the theory of
criminal negligence...”, cit., pp. 420 e ss. assim, a falta de conhecimento atual da norma violada
(que, por si só não fundamenta a materialidade da violação dos deveres de cuidado) é irrelevante
para a verificação do tipo legal. concluindo também pela irrelevância, mas com uma fundamentação
a que não adere completamente, FiGueiRedo dias, Direito Penal..., i, cit., p. 897.

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condutor conhecia (proximidade de escola, localidade, cruzamento, passadeira,


etc.) e das quais estava consciente, tal como estava consciente da velocidade que
imprimia ao veículo126.
em contrapartida, não se pretende com esta tomada de posição, aderir às teses
de eduardo correia para a fundamentação da punibilidade da negligência inconsciente,
segundo as quais a mesma seria o resultado de uma falta de preparação do agente
para a conduta lícita127. Para este autor, o agente deve preparar-se para representar,
em cada caso concreto, a possibilidade de uma sua atividade provocar riscos
ou lesões de bens jurídicos, e quando falha nesta preparação “(...) aí começa
a sua negligência, que se estende até ao momento em que, pela não representação
de um certo efeito punível, o agente leva a cabo uma certa atividade que pode
produzi-lo”. a mera não representação seria a “(...) prova de que o agente se não
determinou de harmonia com aquilo que exige a representação de certos factos
proibidos”, decorrendo a censura da negligência da própria falta de representação128.
ora, não se vê como é que, num estado de direito democrático, a censura penal
possa decorrer da mera incapacidade de representação, de meras limitações de
personalidade, ou de apreensão da realidade129. aliás, eduardo correia reconhece
isto mesmo, quando acrescenta, como cerne da censura penal da negligência, para

126
só não haveria negligência se o condutor desconhecesse estar em excesso de velocidade, pois,
apesar de circular a 110 km, o velocímetro indicava apenas 95 km, num veículo novo e, aparentemente,
sem defeitos, como exemplifica enRiQue del castillo codes, La imprudencia..., cit., p. 121.
no sentido de que o fundamento da negligência não é a mera violação da regra, mas a efetiva
violação do dever de cuidado exigido face às circunstâncias, FiGueiRedo dias/nuno bRandão,
“comentário ao art. 137.º”, CCCP/2012, p. 178.
127
Direito Criminal, I, cit., p. 433.
128
Direito Criminal, I, cit., p. 433.
129
não se concorda ainda com a avaliação feita por Paula RibeiRo de FaRia quando se refere ao
caso em que o agente, por estar embriagado, desrespeita inconscientemente um sinal vermelho, A
adequação social da conduta no Direito Penal. Ou o valor dos sentidos sociais na interpretação da lei
penal, Publicações universidade católica, Porto, 2005, p. 218. a violação do dever de cuidado
neste caso não reside na desobediência aos sinais de trânsito, mas na condução embriagada, e essa
terá de ter sido consciente, ainda que no quadro de uma actio ou omitio libera in agendo ou omitendo
(ver JaKobs, Derecho Penal..., cit., pp. 181 e 182). o problema é semelhante ao do agente que
decida conduzir de olhos fechados e que, a certa altura, não vê o sinal vermelho, atropelando o
peão. a violação do dever de cuidado não reside no desrespeito do sinal, mas na condução de olhos
fechados (ou embriagado), uma violação voluntária e permanente dos deveres de cuidado na
condução. salvo quando o estado de alcoolémia tenha sido tal que não tenha permitido ao agente
uma decisão conforme ao direito – no que respeita à condução – não existe qualquer problema de
inimputabilidade. no mesmo sentido, afastando estes juízos da actio libera in causa ou de uma
culpa pela condução de vida, MicHael s. MooRe, Act and Crime..., cit., pp. 34-37; RoXin, Derecho
Penal..., cit., pp. 187 e 1038.

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Fundamento e axiologia de um conceito de ação jurídico-penal

além da falta de representação, a “omissão concreta da vontade”, ou seja, um não


querer levar a cabo a diligência necessária130. Pretende apenas esclarecer-se que
esta falta de diligência, que tem de ser voluntária e querida (consciente), deve
manifestar-se no momento da prática do facto, e não num qualquer ponto de
formação da personalidade do agente. assim, a negligência apenas pode legitimamente
fundar-se numa opção consciente por uma conduta descuidada, ainda que a mesma
conduta não seja acompanhada – por razões imputáveis ao agente – por uma cabal
ou exata representação dos riscos inerentes àquela131. o que caracteriza a negligência
não é a ausência de uma relação volitiva entre o agente e o resultado (tal será mera
consequência do comportamento negligente, e em milhares de casos em que se
verifique tal ausência, apenas alguns constituirão negligência ilícita e culposa)132;
o que aqui se sustenta não diz respeito ao resultado (nem à ameaça ou lesão de
bens jurídicos), mas ao próprio ato de violação do dever de cuidado.
crimes dolosos e crimes negligentes representam, portanto, realidades
distintas133; o que os liga é a existência de uma exteriorização da vontade e uma
opção consciente pelo ilícito134, sem a qual a intervenção do direito Penal não
pode ser legitimada135. não se trata aqui de reunir pressupostos para fundamentar
o dever de indemnizar ou de prestar auxílio, mas sim de justificar o exercício do
poder punitivo, e através deste, legitimar a intromissão mais agressiva do estado

130
Direito Criminal, I, cit., p. 434.
131
Reforçando também a distinção entre voluntariedade na negligência e vontade de provocar o
dano, nos tipos dolosos, FletcHeR, “the theory of criminal negligence...”, cit., pp. 412 e 416.
132
MauRacH/ZiPt/Gössel, que defendem a existência de um tipo subjetivo nos crimes negligentes,
referem-se, por exemplo, somente à previsibilidade (do resultado) na negligência inconsciente,
Derecho Penal. Parte General, ii, actualizado por Karl Heinz Gössel e Heinz Zipt, astrea, buenos
aires, 1995, p. 180.
133
Reconhecendo a diferença e a paridade, entre crime doloso e crime negligente, taiPa de
caRvalHo, Direito Penal..., cit. p. 530; FiGueiRedo dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, cit.,
pp. 350 e 351; ideM, Direito Penal..., i, cit., p. 860; JescHecK/ WeiGend, Tratado de Derecho
Penal, cit., p. 606.
134
contra, concluindo que, caso se pretenda adotar um conceito de ação que pretenda definir a
sua essência – a finalidade – não é possível incluir no mesmo a ação negligente, ota WeinbeRGeR,
Law, Institution and Legal Politics..., cit., p. 143. contra, entendendo que facto doloso e negligente
apenas têm em comum a ação e a referência a um tipo incriminador, MauRacH/ZiPF/Gössel,
Derecho Penal. Parte General, ii, cit., p. 124.
135
também, resumindo exatamente o que aqui se sustenta: “what is crucial is that those whom we
punish should have had, when they acted, the normal capacities, physical and mental, for doing
what the law requires and abstaining from what it forbids, and a fair opportunity to exercise these
capacities”, HaRt, Punishment and Responsibility..., cit., p. 152. no mesmo sentido, FletcHeR,
“the theory of criminal negligence...”, cit., p. 416.

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na esfera individual136. também não se aceita um tipo subjetivo negligente de


algum modo semelhante ao doloso137, exige-se outrossim, como pressuposto da
punibilidade da negligência138, um momento de opção consciente por um agir
descuidado, sem o qual não se pode afirmar a evitabilidade da ação139 e sobre o
qual recairá o cerne da censurabilidade penal140. Pelo que o condutor que, num
certo momento inesperado, pressiona o acelerador em vez do travão e provoca
ferimentos a um transeunte, sem que para tal tivesse contribuído qualquer distração,

136
assim, vejam-se as seguintes palavras de FeRnanda PalMa: “o próprio juízo de ilicitude, isto
é, de contrariedade ao direito, não pode ser concebido apenas como lesão de bens jurídicos
(momento objetivo da acção) mas tem de incluir um momento de contrariedade da vontade da
acção (momento subjetivo da acção) ao dever jurídico emanado da norma”, em Direito Penal, Parte
Geral..., II, cit., p. 13; ideM, Direito Penal. Parte geral..., 2013, cit., pp. 14-15.
137
no que respeita a qualquer relação volitiva entre o agente e a realização do tipo, concordando-se,
neste ponto, com FiGueiRedo dias, Direito Penal..., i, cit., p. 887; e Paula RibeiRo de FaRia,
A adequação social da conduta..., cit., p. 901. claro, a via sustentada por stRuensee, “der subjektive
tatbestand des farlässigen delikts”, Juristen Zeitung, 1987, pp. 53 e ss., que praticamente equipara
os crimes negligentes a crimes dolosos de perigo, é obviamente de rejeitar.
138
Há que reconhecer alguma pertinência à exposição de JeRoMe Hall sobre a punibilidade da
negligence, por oposição à recklessness, quando censura a punição da negligence (embora adote um
conceito de negligência em que o agente atua dentro dos limites das suas capacidades e que estaria
fora do âmbito do nosso art. 15.º do cP, citando como exemplos casos em que não houve previsibilidade
nem qualquer opção consciente pela conduta descuidada) e quando conclui que “the exclusion of
negligence from penal liability is based on the great difference between consciousness and unawareness,
between action or conduct and mere behavior. it is in accord with the most enduring truth of the
history of ethics – that voluntary conduct is the essential condition of disapproval and, certainly,
of legally sanctioned punishment”, “negligent behavior should be excluded from penal liability”,
Columbia Law Review, 63, 1963, p. 643. sobre a distinção entre recklessness e negligence, FletcHeR,
Rethinking Criminal Law, oxford university Press, 2000, pp. 442 e ss.
139
em sentido semelhante, retirando tal conclusão da necessidade de a responsabilidade penal se
restringir à ameaça ou lesão evitáveis de bens jurídicos, stRatenWeRtH, Derecho Penal..., cit., p.
106. no entanto, a opção consciente por um agir descuidado não se confunde com a previsibilidade,
embora a segunda não exista sem a primeira. assim, no “caso de la mosca”, houve um momento de
opção pela conduta descuidada – condução numa estrada rural, de janela aberta – pois foi neste
comportamento que o Oberlandsgericht (olG) fundamentou a responsabilidade penal da arguida
(extratos da decisão em albin eseR/ bJöRn buRKHaRdt, Derecho Penal. Cuestines fundamentales
de la Teoría del Delito sobre la base de casos de sentencias, editorial colex, Madrid, 1995, p. 71), e,
contudo, não parece haver aqui qualquer previsibilidade, já que a entrada da mosca em direção ao
olho da condutora era bastante improvável (contrariamente ao que conclui o olG). neste sentido,
FeRnanda PalMa, Direito Penal, Parte Geral..., II, cit., p. 60.
140
constituindo a evitabilidade o limiar mínimo da voluntariedade, porquanto exprime o tal
momento mínimo de escolha entre alternativas de ação, nas palavras de FeRnanda PalMa, Direito
Penal, Parte Geral..., II, cit., p. 16. ver, também, da mesma autora, Direito Penal. Parte geral...,
2013, cit., pp. 55 e ss..

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Fundamento e axiologia de um conceito de ação jurídico-penal

cansaço, consumo de substâncias, ou mesmo uma incapacidade motora anteriormente


reconhecida, não poderá ser responsabilizado criminalmente a qualquer título141.
não houve, aqui, uma opção consciente pelo ilícito sobre a qual se possa fundar
a censurabilidade penal142. Meros erros humanos, imprevisíveis e inevitáveis,
podem fundamentar, eventualmente, um dever de indemnizar decorrente de
algum dos critérios da responsabilidade civil objetiva. não poderão, contudo, ser
razão suficiente para a aplicação de uma pena.
Por fim, todas a as ações penalmente relevantes têm de conter em si uma
ameaça, ainda que não imediata, a bens jurídicos143, em nome dos princípios da
proporcionalidade e da ofensividade144. ora, o significado jurídico da ameaça
inerente às ações penalmente relevantes só pode ser revelado após a valoração da
norma – do tipo incriminador –, o que torna impossível a construção de um
conceito de ação, prévio ao tipo, que seja dogmaticamente correspondente ao
conceito de crime. Portanto, mesmo que se conseguisse encontrar um conceito de
ação imune a quaisquer críticas, o conceito de crime não se poderia reduzir àquele.
o crime não é, pois, ação145.

141
Reconhecendo a ausência de responsabilidade penal nestes casos, através da exclusão da culpabilidade,
FiGueiRedo dias, Direito Penal..., i, cit., pp. 863 (§7) e 898 e ss.; JescHecK/ WeiGend, Tratado
de Derecho Penal, cit., p. 610.
142
no mesmo sentido, HaRt, Punishment and Responsibility..., cit., pp. 110 e 152 e ss.; GeRMano
MaRQues da silva, “conduta negligente com pluralidade de eventos. unidade ou pluralidade de
crimes”, Seminário Internacional de Direito Penal, universidade lusíada, lisboa, 2000, p. 22.
143
neste sentido, distinguindo entre evento jurídico e evento material, cavaleiRo de FeRReiRa,
Lições de Direito Penal, 1992, cit., pp. 58 e 138. também, atualmente, FaRia costa, Noções
fundamentais de Direito Penal. Fragmenta Iuris Poenalis. Introdução – A doutrina geral da infracção,
2.ª ed., coimbra editora, 2009, pp. 13 e 164.
144
assim, entre muitos outros, auGusto silva dias, “Reconhecimento e coisificação nas
sociedades contemporâneas. uma Reflexão sobre os limites da intervenção Penal do estado”,
Liber Amicorum de José de Sousa e Brito em comemoração do 70.° Aniversário. Estudos de Direito e
Filosofia, almedina, coimbra, 2010, p. 125; MauRacH/ZiPF/Gössel, Derecho Penal. Parte General,
ii, cit., p. 521.
145
como explica eduaRdo coRReia, o crime seria reduzido a um dos seus elementos, perdendo
o todo que o identifica: “se no conceito de crime se abstrai progressivamente daquilo que constitui
a sua «diferença específica», fica-nos ao fim, como conceito mais vasto, como conceito que está na
base de todos os outros, uma pura modificação do mundo exterior, ligada causalmente à vontade
do agente. deste modo, posto que outros elementos intervenham na determinação do seu conceito,
o crime seria antes de tudo acção e acção naturalística”, A teoria do concurso em direito criminal...,
cit., p. 6.

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