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Resumo
Com o crescimento da tecnologia, houve missão do patrimônio digital. Para o desen-
uma transformação tanto na composição volvimento deste trabalho, utilizou-se de
dos bens que formam o patrimônio quanto pesquisa exploratória e qualitativa, que to-
em relação à maneira como eles são trans- mou por base dados bibliográficos e docu-
mitidos aos seus respectivos herdeiros. Um mentais. Como resultado, apontou-se que
exemplo disso são os bens digitais. Nessa a herança digital pode ser atribuída a tudo
perspectiva, este artigo tem por objetivo aquilo que o indivíduo tem possibilidade
discorrer acerca da herança digital, delimi- de arquivar em um espaço virtual e, conse-
tando o assunto para a análise da legislação quentemente, incorporar ao seu patrimônio
sucessória brasileira perante os direitos su- pessoal. No entanto, inexiste legislação que
cessórios do de cujus, no contexto de trans- discipline a transmissão de bens digitais.
1 Pós-doutorando em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia/MG, Brasil. Doutor em
Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), São Leopoldo/RS, Brasil. Mestre em
Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte/MG, Brasil. Especialista em Direito
Internacional pelo Centro de Estudos em Direito Internacional (CEDIN), Belo Horizonte/MG, Brasil. Professor
nos cursos de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), Montes Claros/MG, Brasil,
do Centro Universitário FIPMoc (UNIFIPMOC), Montes Claros/MG, Brasil, e das Faculdades Unidas do Norte
de Minas (FUNORTE), Montes Claros/MG, Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7263042388229396 / ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-7742-3891 / e-mail: gpmdamasceno@hotmail.com
2 Acadêmica do curso de Direito da Faculdade de Tecnologia Alto Médio São Francisco (FUNAM), Pirapora/MG,
Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3569961125000506 / ORCID: https://orcid.org/0009-0005-6429-1999 /
e-mail: ariele.silva@soufunam.com.br
3 Acadêmica do curso de Direito da Faculdade de Tecnologia Alto Médio São Francisco (FUNAM), Pirapora/MG,
Brasil. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2162944899653790 / ORCID: https://orcid.org/0009-0008-1380-6384 /
e-mail: jordania.almeida@soufunam.com.br
Abstract
With the growth of technology, there has been can be attributed to everything that the in-
a transformation both in the composition of dividual is able to archive in a virtual space
the assets that form the estate, and in relation and, consequently, incorporate it into his per-
to the way in which they are transmitted to sonal heritage. However, there is no legislation
their respective heirs. An example of this are governing the transmission of digital goods. It
digital assets. From this perspective, this ar- was concluded that the understanding prevails
ticle aims to discuss the digital inheritance, that, when the digital good has no economic
delimiting the subject for the analysis of the value, and concerns data related to the inti-
Brazilian inheritance legislation regarding macy and privacy of the deceased, transmis-
the inheritance rights of the de cujus, in the sion is not possible, except when the deceased
context of digital heritage transmission. For himself has left a will expressing the respect of
the development of the work, exploratory and the destination of such assets after his death.
qualitative research was used, based on bib- Keywords: digital goods; digital heritage;
liographic and documentary data. As a result, succession; testament.
it was pointed out that the digital heritage
Introdução
A tecnologia é uma realidade inerente na sociedade contemporânea, já que
a cada geração as inovações surgidas vão se moldando ao contexto social. Com
efeito, esse progresso vai transformando as relações e o modo de vida das pessoas.
É o caso da herança digital, que diz respeito a um acervo tecnológico de duas
vertentes, podendo ou não assumir valor econômico, situação que desperta o de-
bate sobre a (im)possibilidade de transmissão sucessória dos bens digitais.
Nesse sentido, esta pesquisa tem como objetivo discorrer sobre a herança
digital, delimitando o assunto para a análise da legislação sucessória brasileira
mediante os direitos sucessórios do de cujus no contexto de transmissão do
patrimônio digital.
A justificativa para a construção deste trabalho diz respeito à relevância cien-
tífica e social do debate e da compreensão sobre a herança digital, que ainda não
conta com legislação específica no Brasil, embora seja necessário tratamento nor-
mativo acerca da sucessão desse patrimônio, a fim de evitar futuros conflitos.
Para alcance do objetivo proposto, serão analisadas variadas questões que
abarcam a temática, dividindo-se, para tanto, o artigo em três seções, as quais
serão responsáveis por apresentar: os aspectos introdutórios a respeito da herança
digital; a proteção dos direitos fundamentais no meio digital a partir do ordena-
mento jurídico brasileiro; e, por fim, a herança digital e os direitos fundamentais
do de cujus.
Destaca-se que, para o desenvolvimento do presente trabalho, será adotado o
método dedutivo, aliado ao procedimento de pesquisa bibliográfica e documental,
cuja abordagem dará enfoque aos entendimentos constitucionais, legais e teóricos
acerca do assunto.
fim com a morte. Como consequência desse evento, tem-se, no campo sucessório,
a abertura da sucessão, de modo que serão transmitidas aos herdeiros e legatários
as relações jurídicas patrimoniais. O direito sucessório, além de trazer normas
regulamentadoras do direito em razão da morte, dispõe destes princípios: o prin-
cípio do respeito da vontade do testador, o princípio da liberdade limitada para
testar e o princípio da saisine, para facilitar a distribuição dos bens e a relação
entre a lei e a vontade manifesta pelo autor da herança (Peluso, 2018).
O princípio do respeito da vontade do testador é aquele que, independen-
temente do motivo, assevera que a destinação dos bens disponíveis deve ser deli-
mitada conforme a vontade do testador. Nesse sentido, Gonçalves (2022, p. 233)
também ressalta que:
A vontade do falecido, a quem a lei assegura a liberdade de testar,
limitada apenas pelos direitos dos herdeiros necessários, consti-
tui, nesse caso, a causa necessária e suficiente da sucessão. Tal
espécie permite a instituição de herdeiros e legatários, que são,
respectivamente, sucessores a título universal e particular.
todos os seus direitos e obrigações, será transmitida aos herdeiros legítimos e testa-
mentários de modo automático, após a morte real ou presumida (Tartuce, 2022).
Assim, tem-se que, com a morte, é dada a abertura da sucessão e o patrimônio é
transmitido imediatamente aos herdeiros. No entanto, ninguém pode ser herdeiro
contra sua vontade, de modo que pode aceitar ou renunciar à herança (Gagliano;
Pamplona Filho, 2022).
A renúncia é um ato unilateral e deve ser solene e obrigatoriamente expresso.
De acordo com Cassetari (2021, p. 369), “pode ser feita por escritura pública ou
termo nos autos (art. 1.806 do CC)”.
A capacidade para suceder é composta por dois elementos, conforme assinala
Donizetti (2021, p. 1.041):
[…] existência da pessoa e o direito sucessório eventual. Ou seja,
tem capacidade para suceder a pessoa que existir no momento da
abertura da sucessão e que estiver investida de direito eventual à
sucessão, seja por disposição testamentária ou pela lei.
Para Novelino (2020), é possível inferir que a ideia de vida privada se afigura
como um conceito mais amplo que a intimidade, pois, enquanto aquela envolve
todos os relacionamentos do indivíduo (trabalho, comercial, estudo etc.), esta se
limita às suas relações íntimas e pessoais.
Na visão de Mendes e Branco (2021), o direito à intimidade consiste em uma
forma de salvaguardar, em face do conhecimento ou intromissão alheia, aspectos
relativos à vida pessoal do indivíduo. Para Cunha Jr. e Novelino (2016, p. 57),
“a esfera íntima se refere ao modo de ser de cada pessoa, ao mundo intrapsíquico
aliado aos sentimentos identitários próprios (autoestima, autoconfiança) e à sexu-
alidade”.
Ao discorrer sobre o fundamento de existência do direito à intimidade, Len-
za (2022) aponta que era necessária a criação, pelo Poder Público, de um limite
instransponível, por meio do qual o próprio Estado ou outras pessoas não interfe-
rissem em aspectos mais condizentes à seara pessoal do indivíduo.
Seguindo a mesma vertente interpretativa, Bulos (2014, p. 572) acrescenta
que “a vida conjugal e familiar coloca-se distante de restrições e investidas dos
Poderes Públicos e dos particulares. Pouco importa o motivo”.
O direito à intimidade também ganhou magnitude pelo próprio contexto
de inovações digitais vivenciadas pela sociedade, de modo que passa a constituir
garantia de tutela dos cidadãos em face dos avanços tecnológicos que possibilitam
a devassa da vida individual (Bahia, 2017).
A proteção à intimidade, de acordo com o que se infere da CRFB/88, repre-
senta o núcleo intangível do texto constitucional, isto é, aquele que não pode so-
frer limitação pelo legislador constituinte derivado. Trata-se, portanto, de cláusula
pétrea (Moraes, 2018). Segundo Cunha Jr. e Novelino (2016, p. 57), essa tutela se
justifica, pois “[…] quanto mais próximo das experiências definidoras da identi-
dade do indivíduo, maior deverá ser a proteção dada ao direito”.
De acordo com Lenza (2022), nesse panorama insta consignar que o sigilo
da correspondência, dos dados e das comunicações telefônicas afiguram-se conse-
quência da proteção à intimidade conferida pela CRFB/88, que assim dispõe em
seu art. 5º, XII:
[…] é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações
telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no
último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que
a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução
processual penal (Brasil, 1988).
gera insegurança jurídica latente, inclusive em razão das controvérsias sobre o tema
existentes no âmbito teórico, conforme será explorado em detalhes na próxima
seção deste estudo.
Alves (2019, p. 39) destaca que:
Enquanto não há norma que proporcione maior segurança jurí-
dica ao tema da herança digital, a saída encontrada pela doutrina
vem sendo a produção testamentária com a expressa manifestação
de vontade pela transmissão desses ativos digitalizados.
Quando se trata de bem digital dotado de valor econômico, não há maiores dis-
cussões acerca da possibilidade de que haja a sua transmissão conforme as regras
do direito sucessório vigente no Brasil. Inclusive, pode-se reconhecer que, em de-
terminadas situações, a transmissão do patrimônio digital do falecido favorece a
preservação da identidade cultural do de cujus, possibilitando, pois, a continuida-
de do seu legado (Gomes, 2021).
O problema emerge quando se trata de bens digitais desprovidos de valor
econômico, situação em que há posicionamentos contrários ao cabimento da
transmissão dessa espécie de patrimônio (Alves, 2019).
Na esteira do entendimento de Carilho e Albuquerque (2020, p. 16), tem-se
que, “na sucessão legítima, os bens guardados na Internet, que não possuem valor
econômico, não podem fazer parte do patrimônio do falecido”. Além do mais, ve-
rifica-se, segundo Bizerra (2021), que também podem ocorrer situações nas quais
se debate se determinado bem possui valor econômico, tão somente afetivo ou
econômico e afetivo.
De acordo com Oliveira (2021, p. 45), “se o usuário utiliza as redes sociais
apenas para postar suas fotos, vídeos e mensagens com a família e amigos, não ha-
verá valor econômico, e sim finalidades pessoais, íntimas e privativas do indivíduo,
conectadas com o direito de personalidade”.
Em situações como a exemplificada no parágrafo anterior, há uma tendência
teórica em reconhecer que não caberia a transmissão do patrimônio digital, a me-
nos que houvesse manifestação de vontade do falecido a esse respeito.
Apesar disso, há quem sustente que, mesmo no caso de bens digitais despro-
vidos, em tese, de valor financeiro, poderia ser reconhecido o direito sucessório
nas circunstâncias em que o patrimônio pudesse ser comercializado, como nos
cenários de aferição de lucro por meio da utilização de imagem (Barbosa, 2017).
Sobre o imbróglio que também pode ser gerado em relação a patrimônio
digital que pode ser visto como de valor econômico e afetivo, Oliveira (2021, p.
46) afirma:
Desta forma, muitas pessoas têm, ao mesmo tempo, as redes so-
ciais como, além de um espaço para interagir com outras pessoas,
um local para consolidar seu patrimônio digital e ferramenta de
trabalho. Portanto, o maior problema reside nos bens dotados
dessas características: possuir, ao mesmo tempo, valores econô-
micos e existenciais, denominados de bens digitais mistos. A sua
destinação, por estar vinculada tanto a direitos da personalidade
do falecido quanto à possibilidade de auferir lucros, gera a maior
das discussões sobre o tema.
Não obstante, Lima (2016, p. 63) pondera que, no Brasil, ainda existem en-
traves burocráticos que dificultam a produção de testamentos digitais, a exemplo
da “necessidade de registro da vontade em cartório, geralmente a um alto custo, e
do auxílio de um advogado da área cível para que todos os termos do documento
sejam claros e não ocasionem problemas após o falecimento do testador”.
Por fim, Klein e Adolfo (2021) analisaram, com base no leading case do Der
Bundesgerichtshof, as diretrizes jurisprudenciais acerca da herança digital no or-
denamento jurídico alemão, que abordam a temática da transmissibilidade causa
mortis do acervo digital aos herdeiros legítimos a partir da necessidade da inte-
gração entre o direito e o desenvolvimento. No leading case, os genitores de uma
adolescente de 15 anos, ferida por um trem em uma das estações de Berlim, soli-
citaram judicialmente contra o Facebook para que pudessem ter acesso à conta de
sua filha na rede social virtual. Veja-se:
Os consistentes fundamentos apresentados no leading case ale-
mão proferido pelo Der Bundesgerichtshof exprimem que o jul-
gado pela transmissibilidade automática da herança digital do de
cujus aos seus herdeiros legítimos fortalece a autonomia privada
e autodeterminação dos titulares dos bens digitais, haja vista que
o usuário deve ser o responsável pelo destino de seus bens (Klein,
Adolfo, 2021, p. 198).
Considerações finais
A existência do indivíduo tem fim com a morte. Como consequência desse
evento, tem-se, no campo sucessório, a abertura da sucessão, de modo que serão
transmitidas aos herdeiros e legatários as relações jurídicas patrimoniais.
No que diz respeito à herança digital, reconhece-se que a universalidade de
bens passíveis de representá-la pode estar inserida em softwares ou mesmo em redes
sociais, seja por meio de postagens de fotos e vídeos, seja por meio de documentos.
Com efeito, na herança digital podem estar presentes bens tangíveis e intangíveis,
de modo que, mesmo os desprovidos de valor econômico (fotos e vídeos, por
exemplo), não deixam de fazer parte do acervo a ser reconhecido.
Verifica-se que, nas últimas décadas, tem ocorrido uma evolução dos meca-
nismos de proteção das informações pessoais, em decorrência da modernização
dos sistemas digitais que movem a sociedade. Esse cenário, inclusive, fez surgir, no
Brasil, tanto o Marco Civil da Internet quanto a LGPD. No entanto, nenhuma
das leis trouxe em seus textos normativos a previsão e disciplina da herança digital.
Diante desse cenário, o entendimento prevalente na doutrina é de que o
patrimônio digital somente poderá ser transmitido aos herdeiros legítimos quan-
do possuir valor econômico. Sustenta-se que, para ser possível a transmissão de
patrimônio não econômico, de conteúdo relativo à intimidade e à privacidade
do falecido, é necessário ter havido essa manifestação de vontade por meio de
testamento.
Em todo caso, observa-se que o direito brasileiro necessita de uma legislação
que determine o objeto da herança digital e que estabeleça seu procedimento su-
cessório ideal, de modo que assim se possa estabelecer os limites da transmissão,
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