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OS IMPACTOS DAS

NOVAS TECNOLOGIAS
NO DIREITO E NA
SOCIEDADE
Editor
Francine Zanin Bagatini

Conselho Editorial
Dra. Janaína Rigo Santin
Dr. Edison Alencar Casagranda
Dr. Sérgio Fernandes Aquino
Dra. Cecília Maria Pinto Pires
Dra. Ironita Policarpo Machado
Dra. Gizele Zanotto
Dr. Victor Machado Reis
Dr. Wilson Engelmann
Dr. Antonio Manuel de Almeida Pereira
Dr. Eduardo Borba Neves

Editora Deviant LTDA


Rua Clementina Rossi, 585.
Erechim-RS / CEP: 99704-094
www.editoradeviant.com.br
Aline Mapelli
Marina Giongo
Rita Carnevale
(Organizadoras)

OS IMPACTOS DAS NOVAS


TECNOLOGIAS NO DIREITO
E NA SOCIEDADE

Editora Deviant
2018
Copyright © Editora Deviant LTDA

Categoria: Direito

Produção Editorial
Editora Deviant LTDA

Todos os Direitos Reservados

ISBN
xxx-xx-xxxx-xxx-x

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

M297 Mapelli, Aline.


Os impactos das novas tecnologias no Direito e na
Sociedade / Aline Mapelli, Marina Giongo, Rita
Carnevale - Erechim: Deviant, 2018.
233 p. 23 cm.
ISBN: xxx-xx-xxxx-xxx-x
1. Direito. I. Título.

CDD 340
SUMÁRIO

EXISTE ESPAÇO PARA O DISCURSO DOS DIREITOS


I FUNDAMENTAIS EM ERAS DE BIG DATA?  7
Pedro Arthur Capelari de Lucena

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NA ECONOMIA


II CRIATIVA E DIREITOS AUTORAIS  21
Lucie Menegon Alessi

ADVOCACIA 4.0 E A REINVENÇÃO DAS


III ORGANIZAÇÕES JURÍDICAS  39
Gérson Salvi Cunha

A EPIDEMIA NA PROPAGAÇÃO DAS FAKE NEWS SOB


IV A PERSPECTIVA DO DIREITO BRASILEIRO  51
Rafael Caselli Pereira

CLOUD COMPUTING: UM ESTUDO DA JURISDIÇÃO


V APLICÁVEL A PARTIR DOS TERMOS DE SERVIÇO DO
DROPBOX E DA AMAZON WEB SERVICES (AWS)  63
Vanessa de Oliveira Bernardi Bidinotto
Andrey Moser Bidinotto

SMART CONTRACTS EM BLOCKCHAIN: GARANTIA


VI DE “BOA-FÉ COMPUTACIONAL”  77
Carolina Trindade Martins Lira

A TRIBUTAÇÃO DA RENDA DA PESSOA FÍSICA NO


VII USO DAS CRIPTOMOEDAS: O CASO DO BITCOIN  93
Graziela Moraes
BLOCKCHAIN: UM ÔNUS OU UM BÔNUS PARA A
VIII CAPACIDADE ARRECADATÓRIA DOS ESTADOS?  111
Melissa Guimarães Castello

HOME SHARING E SUA APLICAÇÃO NO BRASIL:


IX UMA ANÁLISE LEGISLATIVA E FUNDAMENTALISTA
DO INSTITUTO NAS RELAÇÕES LOCATÍCIAS  127
Marcelo Marques Forni

PROTEÇÃO DE SOFTWARES NO BRASIL: ASPECTOS


X PRÁTICOS EM TEMPOS DE CLOUD COMPUTING  141
Marcílio Henrique Guedes Drummond

ALGORITMOS E DEMOCRACIA: REFLEXÕES SOBRE


XI A INFLUÊNCIA DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NOS
PROCESSOS DEMOCRÁTICOS CONTEMPORÂNEOS  153
Leonardo Abido

FRANK E O ROBÔ: A ROBÓTICA E A


XII HIPERVULNERABILIDADE DO IDOSO  167
Cristina Stringari Pasqual

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E DIREITOS DE IMAGEM* 183


XIII
Vítor Palmela Fidalgo

A AUTOREGULAÇÃO REGULADA COMO MODELO


XIV DO DIREITO PROCEDURALIZADO: REGULAÇÃO DE
REDES SOCIAIS E PROCEDURALIZAÇÃO  211
Georges Abboud
Ricardo Campos
8 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE
CAPÍTULO 1 - 9

1
EXISTE ESPAÇO PARA O DISCURSO
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
EM ERAS DE BIG DATA?
Pedro Arthur Capelari de Lucena1

1 INTRODUÇÃO

Duas visões dicotômicas tomam espaço nas discussões sobre o uso da in-
teligência artificial, e seus modelos de aplicações às novas realidades pela con-
temporaneidade. Uma retoma a visão já um tanto quanto conservadora, que
explora no caso de maior uso da Inteligência Artificial, um ambiente distópico
e cruel, daqueles percebidos normalmente nas obras de ficção. O conservador
tecnológico assente então, pela manutenção do que já funciona, com um grande
receio de aplicações contrárias àquelas previamente bem testadas, legisladas e
compreensíveis a sociedade.
Outros veem o uso como um ato meramente mercantilista, com os dados
tendo papel quase único, de objeto de ganhos econômicos.
Contudo há um terceiro grupo, que cada vez ganha mais adeptos, que vê as
mudanças na seara tecnológica, de maior implantação da Inteligência Artificial

1  Pedro Arthur Capelari de Lucena, Mestre em Direito Constitucional pela Faculdade de Direi-
to da Universidade de Lisboa, Advogado. Contato em: pedroarthurclucena@gmail.com
10 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

como passíveis de serem boas ferramentas, factíveis às alterações estruturais do


arranjo social, se bem aplicadas. São a estes que nos atrelamos, por enxergarmos
– sem desmerecer a capacidade de ganhos financeiros que as novas tecnologias
tendem a trazer – um apreço no uso de dados na construção de realidades posi-
tivas, de legitimação dos Direitos Fundamentais.
Ao nos filiarmos neste grupo, que compreende, aceita e busca os avanços
tecnológicos, sem deixar de lado o respeito aos Direitos Humanos, encontramos
uma série de dúvidas quanto alguns limites éticos do uso das tecnologias, como
na aplicação algorítmica, de forma inteligente, em Big Data.
Neste artigo buscamos, longe do mero discurso cientificista, com compre-
ensão acessível à sociedade em sua generalidade, e não apenas ao profissional de
Direito ou ao das áreas da tecnologia, dialogar sobre os aspectos relacionados às
implicações do uso de análise de Big Data e Direitos Fundamentais.

2 BEM VINDO A MÁQUINA. QUE MÁQUINA?

Em 1975, o então jovem Roger Waters, baixista da renomada banda ingle-


sa Pink Floyd, escreveu uma letra, que aparentemente, tratava sobre sua desilu-
são com o cenário musical britânico. A letra, musicada e posta como segunda
faixa do celebrado álbum Wish Your Here, tornou-se uma das mais conhecidas da
banda, sendo até hoje, muito tocada em plataformas de streaming.
A música, recheada de efeitos sonoros feitos por sintetizadores, soa um
tanto quanto futurista. Na voz de Roger Waters, se ouvem frases de efeito como:

“Bem-vindo meu filho, bem-vindo a máquina. O que você sonhou? Tudo


bem, nós dissemos com o que devia sonhar. Você sonhou como uma
grande estrela. Ele tocava uma guitarra bestial, comia sempre no bar. E
adorava dirigir o seu jaguar. Por isso, bem-vindo à máquina”. (Tradução
livre).
CAPÍTULO 1 - 11

Na mente genial do autor, a letra musicada percorre diversos outros sen-


tidos, que não apenas a do complexo cenário musical britânico. Estas percep-
ções foram mais compreensíveis ao grande público quando o ilustrador Gerald
Scarfe, deu vida visual à obra. As projeções para Welcome to the Machine são
primorosas. Inicia com um monstro metalizado, que lembra um grande inseto,
percorrendo uma terra arrasada e observando constantemente o espectador. Pas-
sa para uma fábrica que escorre sangue, plataformas com ratos, corpos humanos
putrefatos, cabeças decepadas, um mar vermelho com mãos de homens desespe-
rados e figuras geométricas, tomando espaço.
Todas estas informações2, nos fazem refletir sobre o significado da músi-
ca como componente artístico. E mesmo assim acarreta, em inúmeras outras
compreensões, a partir das referências dos seus intérpretes. Uma das possíveis
significações, confirmada pela arte de Gerald Scarfe, é o de descrença no poten-
cial benéfico da tecnologia e da racionalidade humana, frente a um mundo de
inúmeras percepções e de um alto índice de recepção de informação e controle.
As compreensões são, para alguns, bem contraditórias quando se analisa
as performances da banda, tendo em vista que o Pink Floyd usou e abusou de
componentes tecnológicos na composição de suas músicas, e nos seus shows.
Este possível contrassenso entre uso tecnológico e o receio da tecnologia, é
quase que um componente típico dos seres humanos. A humanidade de modo
geral, tem certo medo da tecnologia.
Martin Heidegger foi um dos autores que provocou a reflexão sobre a
questão da tecnologia e de seus usos. Em seu ensaio “Introdução à metafísica”3,
o autor traz que:

“Quando o recanto mais remoto do globo tiver sido conquistado pela


técnica e explorado pela economia, quando um qualquer acontecimento
se tiver tornado acessível em qualquer lugar a qualquer hora e com uma
rapidez qualquer, quando se puder “viver” simultaneamente um atenta-

2  Há ainda, em toda a contextualização da música, o fato da saída de Syd Barret, um dos fun-
dadores da banda, e os seus motivos. Barret foi expulso da banda pelo seu uso abusivo de drogas,
principalmente de lsd e sua desconexão com o mundo real.
3  O ensaio foi escrito originalmente em 1935. Contudo foi publicado apenas em 1953. Trazemos
a versão traduzida pela Editora Tempo Brasileiro, em 1999, p. 45.
12 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

do a um rei na França e um concerto sinfônico em Tóquio, quando o


tempo for apenas rapidez, momentaneidade e simultaneidade e o tempo
enquanto História tiver de todo desaparecido da existência de todos os
povos, quando o pugilista for considerado o grande homem de um povo,
quando os milhões de manifestantes constituírem um triunfo – então,
mesmo então continuará a pairar e estender-se, como um fantasma sobre
toda esta maldição, a questão: para quê? – para onde? – e depois, o que? O
declínio espiritual da terra está tão avançado que os povos ameaçam per-
der a sua última força espiritual que [no que concerne o destino do “Ser”]
permite sequer ver e avaliar o declínio como tal. Esta simples constata-
ção nada tem a ver com um pessimismo cultural, nem tampouco, como
é óbvio, com um otimismo; pois o obscurecimento do mundo, a fuga dos
deuses, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odienta
contra tudo que é criador e livre, atingiu, em toda a terra, proporções tais
que categorias tão infantis como pessimismo e otimismo já há muito se
tornaram ridículas.” (HEIDEGGER, 1999, p. 45).

Sua perspicácia tem relação ao conceituar e diferenciar daquilo que chama-


mos de tecnologia tradicional, com as revelações das potencialidades do mundo,
como a arte ou as construções, e da moderna tecnologia, na relação de utilidade
de um objeto, em busca do maior potencial. A tecnologia que Heidegger critica
no ensaio é a da construção moderna.
Ou seja, para Heidegger o uso de amplificadores e de projeções pelo Pink
Floyd em nada entra em oposição com as suas análises das sociedades tecnológi-
cas. Uma tecnologia pouco tem a ver com a outra.
A provocação do autor, é verdade, também foi realizada por inúmeras ou-
tras pessoas ao longo da história, e em especial no campo artístico. Músicas,
filmes, séries e livros tratam, de forma um tanto quanto hedônica nossa ideia
de futuro, em realidades não menos distópicas e, não menos aterrorizadoras, em
um alcance ficto de prazer, como é o percebido na leitura de Admirável Mundo
Novo, de Aldous Huxley.
Ou seja, para Heidegger e para muitos artistas, a grande questão dos “pro-
blemas da tecnologia” não estão essencialmente relacionados a ela, em seu es-
CAPÍTULO 1 - 13

tado bruto, mas sim no seu uso, e na forma que nos induz, por mecanismos de
linguagem, a lhe utilizar.4
Há uma constante no livro de Huxley e na hermenêutica filosófica de Hei-
degger de que o controle social as práticas hedonistas geradas pela aplicação
tecnológica trariam relações de certos “tédios eternos”, e de aceitações de mun-
do, postos por aqueles que o dominam, e dominam a linguagem. O tédio, cons-
truído por essa linha de raciocínio, é, de alguma forma, característica de vida em
todos os humanos.
Contudo – o que em Huxley trabalha de forma lúdica, e em Heidegger de
modo acadêmico – é, já naquela época, a constante necessidade de não termos
tédio em sociedades hiperconectadas, e em civilizações ultra-estruturadas. O
que por mais confuso que possa soar, faz com que a busca pela hiperconexão e
não tédio, nos entedie.
Em “O pesadelo de Descartes: Do mundo mecânico à Inteligência Artifi-
cial”, João de Fernandes Teixera nos traz a reflexão do que o tédio contemporâ-
neo é gerado de algum modo, pela ampla necessidade de estarmos “hiperconec-
tados”, mesmo que de forma breve e ruim.
Segundo suas palavras:

É quando nos sentimos fúteis que temos certeza de estarmos usufruindo


de algum tempo livre. A futilidade nos torna humanos, demasiadamente
humanos. Essa é provavelmente, uma das maiores razões que levam as
pessoas a se viciarem em redes sociais. A internet vicia por nos dar a
oportunidade de tornar a nossa vida mais lúdica, baixar jogo e brincar por
algum tempo sentindo-nos livres e seguros, Ao criar o mundo virtual, a
internet gerou um ambiente fluido, plástico, que se aproxima da maneira
como concebemos a atividade de nossas próprias mentes. Nesse mundo
confortável, nada oferece resistência e é possível se deslocar rapidamente.
(TEIXEIRA, 2018, p. 182).

O receio de tal modo foi ampliado a uma dimensão, que gerou em alguns,
na contemporaneidade, a total descrença de sociedades hiperconectadas.

4  Construção de análise a partir da leitura de Gregory Field em Heidegger’s Polemos: From Being
to Politics.
14 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

Theodore Kacynski é um desses descrentes extremistas. O matemático,


graduado em Harvard, está preso há mais de duas décadas por, na sua visão, lutar
contra a tecnologia. E, na visão da Sociedade Estado-Unidense, por ter enviado
16 cartas-bombas, que geraram 3 mortes, 23 graves acidentes, e lhe remeteram
o apelido de Unabomber. Theodore Kacynski, por anos foi considerado um dos
serial killers mais procurados dos Estados Unidos.
Em seu manifesto, Kacynski explicita, com bastante desenvoltura e alguma
bagagem acadêmica, suas noções do que percebe que é a realidade contemporâ-
nea, na aplicação e uso de tecnologia.
Vejamos trecho do seu manifesto:

Parece que para muita gente, talvez a maioria, estas formas artificiais do
processo de afirmação pessoal não chegam. Um tema recorrente nos es-
critos dos observadores sociais da segunda metade do século XX é a sen-
sação de falta de objectivos de que sofre muita gente nas sociedades mo-
dernas. [...] Sugerimos que aquilo a que se chama “crise de identidade” é
na verdade uma busca de um rumo, frequentemente traduzida na dedica-
ção a uma actividade de substituição. Pode ser que o existencialismo seja
em grande parte uma reacção à falta de objectivos da vida moderna. [...]
Prevalece muito nas sociedades modernas a busca de “realização”. Mas
pensamos que para a maioria das pessoas uma actividade cujo objectivo
principal é a realização (isto é, uma actividade de substituição) acaba por
não trazer realização completamente satisfatória. Por outras palavras, não
satisfaz completamente a necessidade do processo de afirmação pessoal.
(KACYNSKI, 1995).

O texto de Kacynski nos lembra alguns dos conceitos trazidos por Hei-
degger. Contudo há a presença de um conhecimento de outro cientista para a
construção de sua visão negativa. Foi muito, as invenções (e suas aplicabilidades)
de Alan Turing, que moldaram a visão negativa do Unabomber.
CAPÍTULO 1 - 15

3 A “DESMISTIFICAÇÃO” DE TURING
E A CHEGADA DA BIG DATA.

Turing pode ser descrito como o mais importante criptoanalista da histó-


ria. O matemático inglês foi um dos pioneiros na construção da inteligência ar-
tificial e da Ciência da Computação. Seus conhecimentos moldaram a realidade
social contemporânea da qual vivemos.
A despeito da sua descrença social tradicional, que o levou ao suicídio,
ocasionado por gigantescos preconceitos pelas suas escolhas sexuais, Turing era
maravilhado pelos computadores. E sabia que deles, poderíamos encontrar solu-
ções para as mudanças das condições sociais.
De forma programada Turing nos mostrou que os computadores “atrai-
riam” inteligências. Aplicados com algoritmos, máquinas, logicamente sem atos
de consciência ou de emoção, trariam, de modo já não primariamente programa-
do, resultados inteligentes. É um conceito que até hoje pode soar bem complexo
àqueles que desconhecem teorias da Computação e os princípios básicos de
Inteligência Artificial. A de que o computador programado, programa e faz a
gestão e aplicação dos resultados.
A ideia foge, e muito, se levarmos a um prisma negativo e distópico, de que
as máquinas poderiam um dia nos controlar. Pelo menos não em um controle
de modo incisivo, abrupto e consciente. Não há um Welcome to The Machine com
robôs malditos e fábricas que destroem cadáveres e nem Stephen Byerleys.5
O problema da tecnologia de Inteligência Artificial aplicada, e isto pouco
é estudado por Turing que estava maravilhado com os avanços tecnológicos,
mas de algum modo remete-nos em partes às ideias de Heidegger, e principal-
mente aos do manifesto Unabomber (que tinha conhecimento do filósofo e do

5  Isaac Asimov foi um autor Russo que tem na sua obra um grande apreço pela Ficção Científica.
Em Eu, Robô, Asimov traz contos sobre a evolução da robótica. Robbie, conto que abre a obra,
nos mostra o preconceito da sociedade com os robôs. Já Byerleys, o último conto da obra, é nos
mostra um possível robô que dita o funcionamento do mundo com o uso de máquinas. Há na obra
a questão pessimista quanto a tecnologia. Contudo Asimov, que era um profícuo escritor, elaborou
várias teses, publicadas em sua ampla obra, sobre benefícios da tecnologia, se bem aplicada.
16 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

cientista), são os possíveis relaxamentos críticos, e exposições às realidades de


manutenção ou até, de fomento de preconceito.
Há, em suma, uma grande dificuldade de ensinar as máquinas neste am-
biente de programação que não venha a trazer as realidades sociais, de tradições
machistas, racistas, xenófobas, homofóbicas, antissemitas, ou de qualquer outra
linha de preconceito.
Há um receio em especial, a aplicação do conhecimento de máquina6 à big
data7, ou seja, de uso e aplicação a partir de uma análise de dados disponíveis, em
uma base gigantesca, alimentada constantemente, em um modelo que se adequa
a novos panoramas, sem intervenções humanas.
Deve-se salientar que o uso dos algoritmos pela inteligência artificial em
big data muito facilitou nossa vida. Anteriormente técnicas avançadas de estatís-
tica e de probabilidade, como análises de frequências, séries históricas, e estudos
de médias móveis, eram realizadas de forma manual.
Hoje estas atividades são feitas por softwares com algoritmos que agregam
uma quantidade infindável de dados, os relacionando e autogerando conclusões,
não sendo mais necessário que humanos elaborem atividades desumanas. Temos
que ter a compreensão também de que os seres humanos geram, em média, algo
próximo a 2,5 quintilhão de bytes de dados por dia. Produzimos a cada um ano
e meio (e esta relação tende a diminuir, principalmente com a popularização da
Internet das Coisas), toda a quantidade de dados gerados pela humanidade, em
todos os tempos.

6  Não há precisão sobre quem inventou a machine learning. Contudo pode-se dizer que Alan
Turing foi um dos primeiros pesquisadores da matéria, com seus questionamentos sobre poder a
máquina pensar. O Teste de Turing é fundamental para a construção da ideia de machine learning.
Outro grande cientista, a qual remete como o primeiro aplicador de machine learning é Arthur
Samuel, que criou um programa de aprendizagem para jogo de damas.
7  Big data é um conceito. São os grandes dados de grande volume, de alta velocidade e de ampla
variedade que podem estar não estruturados.
CAPÍTULO 1 - 17

Mas onde ficam os direitos fundamentais, como a proteção da intimidade


e da vida privada dentro da realidade na qual estamos inseridas de análise de big
data?8 9
Existem tentativas de respostas a estes questionamentos. De algum modo,
políticos no mundo, muito devido às pressões civis, atentaram para essas ques-
tões.
Em 2013, após violações gravíssimas feitas pelos Estados Unidos, nas co-
municações, de quem o Governo Brasileiro foi vítima, a então presidente brasi-
leira, discursou na Assembleia Geral das Nações Unidas sobre as prerrogativas
soberanas do Estado Brasileiro. Tal ato, acompanhado de grande pressão da so-
ciedade civil, trouxe como consequência a aprovação pelo Congresso Nacional,
do Marco Civil da Internet, tendo este sido promulgado em 2014. O Governo
Brasileiro, também por provocações e pressões civis, aprovou recentemente a Lei
Geral de Proteção de Dados, que segue o modelo do Regulamento Geral sobre
a Proteção de Dados da União Europeia.
São com certeza, excelentes objetos de proteção. Mas pairam dúvidas
quanto as suas aplicabilidades, principalmente em inferências aos seus campos
de proteção, e descoberta.
Retornamos então a relação contraditória entre o receio do futuro e o medo
do progresso. Se bem aplicada, a análise de big data gera avanços sociais signi-
ficativos, como melhoramentos em políticas públicas, tal como uso em saúde
pública, em questões ambientais e civis. Há também avanços, em boa aplicação,
na pesquisa e no desenvolvimento educacional. A possibilidade de comparti-
lhamento aberto, e de algoritmos “inteligentes”, faz do big data um instrumento
para a real transparência de informação.

8  Há uma série de críticos negativos a forma que utilizamos o Big Data. Em especial trago duas
cientistas e seus respectivos livros, para consulta a quem tenha interesse: Cathy O’ Neil - Weapons of
Math Destruction e Sofiya Noble,- Algorithmics of Opression: How Search Engines Reinforce Racism.
9  Há de se ter a lembrança de que no Brasil, e em quase todos os países considerados democrá-
ticos, o direito à intimidade e à vida privada estão consagrados, como direitos fundamentais. No
Brasil o direito de privacidade, além de ser componente de criação de todo o texto constitucional,
está presente de forma expressa no artigo 5º da Constituição Federal. No tocante de direito de
personalidade, o artigo 21 do Código Civil nos garante.
18 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

Nesses usos, tem de estar sempre presente e atrelado à interpretação, a


posição dos direitos fundamentais. Se por um lado, o trabalho desumano de
hipercoleta de dados e de correlação, não tem mais como ser feito por humanos,
sua última interpretação é cada vez mais necessária, assim como o cuidado da
programação e do conteúdo filosófico exposto. Tem de se ter amplo cuidado ao
que está sendo analisado e suas aplicações, com total ciência do que está sendo
gerado, ao fim de não atacar nossos preceitos fundamentais.
Infere-se na questão de uso de aplicação algorítmica em big data, uma su-
posta colisão entre os direitos fundamentais, que tem de algum modo, ser pon-
derada aos casos específicos. Caso contrário ou retiraríamos direitos, em am-
bientes extremamente libertários, ou percorreríamos para situações totalmente
reacionárias às novas tecnologias.
Avanços – e na questão existem méritos nas legislações sobre os temas –
são vistas quanto aos dados sensíveis. Estes relacionam-se principalmente sobre
aquilo que não entendemos que está sendo mantido em base de dados gigantes,
ou que de forma ilegal, são coletados. Qualquer empresa que tem interesse nesta
coleta tem que, de forma expressa, usando termos simples, explicar ao usuário
que está sendo feito seu armazenamento e a sua aplicação.
Tem de ter um conhecimento ademais, sobre modelos de uso destes dados
nos ambientes sociais. Em especial aplicadores de políticas públicas devem ter
cuidado com o seu aproveitamento.
A relação que parte, é a que os princípios podem ser contrapostos para
serem ponderados nas verificações de conexões e distanciamentos. E em casos
concretos a partir das proporcionalidades, que exigirão a observância da adequa-
ção, além da necessidade e obviamente, da proporcionalidade, no seu sentido
estrito.
CAPÍTULO 1 - 19

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Existem diversos casos que nos revelam um mal-uso de big data em polí-
ticas públicas e na iniciativa privada10, acarretando aquilo que Turing mais de-
testaria, o de que máquinas inteligentes fizessem, uma manutenção e propensão
de discursos preconceituosos. Mas também, além do uso por empresas, existem
incríveis aplicações em políticas públicas de big data, com um potenciais usos
futuros.
Exemplos podem ser vistos, como no controle de expansão de epidemias.
Em 2009 se pôde, com aplicação algorítmica em Big Data, antecipar o surto
da Gripe H1N1 em diversas regiões do mundo. Outros exemplos de seus usos
podem ser vistos na prevenção de crimes ou de desastres naturais. Ou seja, a big
data é uma ferramenta, e sua análise tem e terá aplicações positivas, ou negativas,
de acordo com o uso.
Por isso o discurso daquele que estuda o tema tem e terá cada vez mais que
ser suplantado na ciência e na análise crítica e interpretativa, sem pré-conceitos
de aplicações da tecnologia, com olhares cínicos sobre suas disruptivas caracte-
rísticas. E este é talvez o ponto chave, que terá que invariavelmente ser analisado
por aqueles que buscarem interpretar as aplicações em big data analytics e todas
suas possibilidades: o caráter disruptivo.11
A ideia de disrupção, tem o sentido de modificar de tal forma a realidade,
que deixa a realidade anterior, de certo modo, obsoleta. É, no mais tradicional
significado, de Schumpeter, uma revolução. A superficial e aparente problemá-
tica da disrupção é que esta não acompanha, e nem tem como acompanhar, o
mundo do direito positivado. Além das questões relacionadas ao direito pri-
vado, existem as de direito público. Como proteger os cidadãos daquilo que

10  Como algoritmos usando inteligência artificial, aplicado ao big data, decidindo empréstimos
de bancos, não somente pelo histórico econômico do cidadão, mas pelo seu local de moradia, cor
de pele, sexo e outras questões.
11Clayton Christensen cunhou em 1995, o termo disrupção, no conceito que temos, e o trouxe
pela primeira vez no artigo Disruptive Technologies: Catching the wave. Contudo a sua inspiração
vem de Joseph Schumpeter, com o seu conceito de destruição criativa, presente principalmente no
seu livro Capitalismo, Socialismo e Democracia.
20 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

sequer existe, e que sequer temos verdadeiras compreensões do que é. Tal fator
é relevante, pois a machine learning e a big data analytics foram, são, e serão, ins-
trumentos de criação de ambientes disruptivos, utilizados em larga escala pela
humanidade.
O que definirá o bom e o mau uso em uma realidade de mudanças em
velocidades ímpar? Será o papel do Direito, que deverá, ao nosso entender, ver
o mundo das novas tecnologias também com os olhares disruptivos, por mais
complexo que possa soar.
Caso não haja a ponderação em uma nova perspectiva, não tão só positiva
e positivada, quanto as várias respostas disruptivas, simplesmente estaremos de
algum modo negando as novas tecnologias, ambiente este em que está, por mui-
tas vezes, as respostas das inovações e das melhoras sociais.
Frente à nossa compreensão em que há uma impossibilidade do acompa-
nhamento do direito positivado as novas tecnologias e as análises de Big Data,
deveremos resgatar com prudência os valores dos direitos fundamentais, e reco-
nhecendo os novos, no passo da evolução humana.
Talvez Pink Floyd tenha “errado”12 na sua projeção de Welcome to the Ma-
chine, se distanciando daquilo que efetivamente será, de algum modo, a reali-
dade. Assim como fez Asimov em seu “Eu, Robô”, e Huxley em “Admirável
Mundo Novo”. Compreensível, pois estamos falando de arte, e não de ciência.
A análise de big data, se bem aproveitada, sem o uso meramente comercial,
nos dá um alicerce a aplicação de tecnologias disruptivas, que tendem a gerar
transformações sociais, de melhoria, sempre com respeito aos “velhos” e “novos”
direitos fundamentais.
Será a primeira que, como humanidade, teremos a chave da biblioteca de
Borges.13
Que façamos um bom uso.

12  Não há em realidade erro, por se tratar de obra de arte, com inúmeras percepções, como
referimos no texto. Por este motivo fizemos usos das aspas.
13  Alusão ao conto Biblioteca de Babel, em que Jorge Luis Borges imagina como seria a bi-
blioteca babilônica, sendo esta infinita. A biblioteca babilônica de Borges valoriza a leitura, não é
tão ordeira permitindo leituras saltadas e não sequenciais e mistura diversas referências. Borges,
inconscientemente e de forma ficcional, trazia elementos percebidos pela contemporaneidade,
com o acesso a Big Data.
CAPÍTULO 1 - 21

REFERÊNCIAS

ASIMOV, Isaac. Eu, Robô. 1 Ed. Editora Aleph. São Paulo, 2014.

BORGES, Jorge Luis. Ficções. 1 Ed. Companhia das Letras. São Paulo, 2007.

CHRISTENSEN, Clayton Christensen; BOWER, Joseph. Disruptive Technologies:


Catching the Wave. Harvard Business Review. Ensaio escrito em janeiro de 1995.
Disponível em: <https://hbr.org/1995/01/disruptive-technologies-catching-the-wa-
ve.>. Acesso em: out. 2018.

FRIED, Gregory. Heidegger’s Polemos: From Being to Politics. 1ª Ed. New Haven,
Yale University Press, 2000.

HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Edições


Tempo Brasileiro, 1987.

HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. 22 Ed. Rio de Janeiro. Editora Biblioteca
Azul, 2014.

KACYNSKI, Theodore. A Sociedade Industrial e seu Futuro: Manifesto de “Unabom-


ber”. Publicado pela New York Times e Washington Post, em 1995. Versão traduzida
disponível em: <http://www.anarquista.net/wp-content/uploads/2013/10/A-Socieda-
de-Industrial-e-seu-futuro-Manifesto-de-Unabomber.pdf.>. Acesso em: out. 2018.

SCARFE, Gerald. Projeções Visuais em Welcome to The Machine, in In the Flesh


Tour, 1977.

TEIXEIRA, João Fernandes. O pesadelo de Descartes: Do mundo mecânico à Inteli-


gência Artificial. 1 Ed. Porto Alegre. Editora Fi, 2018.

WATERS, Roger. Welcome to the Machine. In: FLOYD, Pink. Wish you Were Here.
Harverst EMI, 1975.
22 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE
CAPÍTULO 2 - 23

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INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NA ECONOMIA
CRIATIVA E DIREITOS AUTORAIS
Lucie Menegon Alessi14

INTRODUÇÃO

Este estudo versa sobre a propriedade intelectual da arte “criada” por Inte-
ligência Artificial. Neste viés, objetiva investigar as possíveis soluções oferecidas
pelo Direito às questões oriundas dos avanços tecnológicos frente ao aperfei-
çoamento e evolução da Inteligência Artificial. A principal motivação para o
presente estudo é o desejo de estudar as questões inerentes ao desenvolvimento
de “Artistas Artificiais” - através de sistemas artificiais autônomos de criação
artística com capacidades semelhantes às dos artistas humanos.
A Inteligência Artificial (IA) é um ramo da ciência da computação em que
as máquinas podem sentir, aprender, pensar, agir e adaptar-se ao mundo real,
ampliando e simulando a capacidade humana, automatizando tarefas e ajudan-
do a solucionar alguns dos problemas sociais mais desafiadores. Exemplos de

14  Advogada nas áreas de Direito Autoral e Gestão de Negócios, com MBA em Business Law
pela FGV e Pós-Graduação em Gestão de Empresas e Negócios pela ESPM-Sul, Propriedade
Intelectual, Direito Autoral, Blockchain e Novas Economias pelo ITSRJ, Advanced em Negócios
Exponenciais pela Harvard Business Review. Mestranda em Gestão Empresarial pela Universi-
dade Autônoma de Lisboa. Membro da comissão executiva do Legal Hackers Porto Alegre e da
comissão AB2L Porto Alegre. E-mail: lucie@ascadvogados.com.br.
24 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

projetos de (IA) clássicos como Deep Blue (que superou o campeão de xadrez
Kasparov) e Jeopardy da IBM, bem como o AlphaGo e Deep Mind da Google
reforçam as evidências de que estamos no caminho da singularidade das má-
quinas, conforme defende o futurista Raymond Kurzweil (OLIVEIRA, 2018).
O estudo When Will Artificial Intelligence Exceed Human Performance? re-
alizado por investigadores da Universidade de Yale (Estados Unidos) e Uni-
versidade Oxford (Reino Unido) recolheu a opinião de 352 cientistas e espe-
cialistas renomados segundo os quais daqui a 45 anos há 50% de probabilidade
das tarefas ocupadas por humanos conseguirem ser superadas por um sistema
de Inteligência Artificial, sendo que em cerca de 10% das probabilidades a data
reduz para nove anos.
O relatório confirma a Lei de Moore e retrata a exponencialidade da evolução
tecnológica e as mudanças completas da sociedade como conhecemos. Segundo
os alertas do físico Stephen Hawking, os humanos estão limitados a sua evolu-
ção biológica e não poderão competir com a Inteligência Artificial, uma vez que
se tornará independente e veloz (GRACE et al., 2018).
Desta forma, frente às conclusões de um futuro previsível, vive-se uma
mudança de era na qual é impossível ignorar os avanços da tecnologia (neuro-
tecnologia), notadamente da Inteligência Artificial, e seus reflexos nas relações
humanas, o que gera um sem número de indagações e desafios. O primeiro pas-
so neste caminho consiste na análise do estado da arte no domínio da aplicação
da Inteligência Artificial em atividades artísticas.
Sabe-se, também, que o Direito é demasiado lento para acompanhar todas
as transformações sociais, ou seja, não é tão rápido para debater e regulamentar
questões oriundas do desenvolvimento tecnológico, e que a eficácia das normas
jurídicas dependerá da capacidade de seus operadores em acompanhar as trans-
formações sociais, econômicas e políticas.
Com foco no exposto, este estudo é relevante porque as inúmeras ques-
tões geradas pela criação por Inteligência Artificial demandam potencialmente
a definição dos novos direitos autorais, em razão da diversidade de situações
surgidas dessa nova realidade. Para trazer a lume este tema, inicialmente são
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abordadas as possibilidades da união da Inteligência Artificial com a criativida-


de na criação de obras artísticas (dentro da seara da economia criativa), e, por
fim, o confronto entre a Inteligência Artificial e o Direito do Autor, em face da
legislação brasileira vigente.

1 INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E
CRIATIVIDADE: POSSIBILIDADES

Na antiguidade, sob o ponto de vista da filosofia, a criatividade era vista,


como parte da natureza humana, um dom divino, um “estado místico de recep-
tividade a algum tipo de mensagem proveniente de entidades divinas.”(Alencar,
2001,p.15). Entretanto, criatividade, como bem conceitua Albert Szent-Györ-
gyi, bioquímico e ganhador do prêmio Nobel, citado por Dell’Isola (2012, n.p.),
“consiste em olhar para a mesma coisa que todos, mas pensar em algo diferente”.
Para Ghiselin (1952), “é o processo de mudança, de desenvolvimento, de
evolução na organização da vida subjetiva”. Desta forma, a criatividade é consi-
derada uma capacidade humana de grande valor universal e tudo indica que nes-
ta competência reside a memória biológica para o impulso da evolução humana.
O mundo da arte e da cultura é preeminentemente um mundo criativo e
o artista apresenta uma expressão criativa como resultado direto de sua liber-
dade. Também a arte comporta um número imenso de significados, como, por
exemplo: o atribuído por Ernst Fischer, em 1959, que diz que “a arte é necessária
para que o homem se torne capaz de conhecer o mundo. Mas a arte também é
necessária em virtude da magia que lhe é inerente” (MORAIS, 2002, p. 35); ou
a definição de Piotr Kowalski, em 1977, que afirma que “a arte é um conceito
estatístico. Se á gente suficiente que decide que uma coisa é arte, então é arte”
(MORAIS, 2002, p. 33); ou ainda, o conceito expresso por Robert E. Matta, em
1968, que defende que “a arte é o desejo do que não existe e ao mesmo tempo a
ferramenta para realizar este desejo”.
26 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

A Inteligência Artificial, por outro lado, é definida por Teixeira (2014, n.p.)
como “uma tecnologia que fica a meio caminho entre a ciência e a arte”, cujo
propósito “é construir máquinas que, ao resolver problemas, pareçam pensar”. Se
o segredo da inteligência humana é a fisiologia do cérebro, que é formado pelos
neurônios e pelas ligações entre eles, a Inteligência Artificial, como a própria
denominação indica, utiliza redes neurais construídas para simular o processa-
mento cerebral, criando “artificialmente” um modelo bastante aproximado do
cérebro humano (TEIXEIRA, 2014).
Pode-se estudar a relação do comportamento de expressão criativa através
da aplicação de técnicas de IA sob dois paradigmas 18 composicionais: com-
posição assistida pelo computador e composição pelo computador (ROADS,
1996; POHLMANN, 2002). No primeiro paradigma, a composição artística é
realizada por um usuário através do auxílio do computador. A segunda aborda-
gem diz respeito à composição totalmente realizada por um computador, sendo
bem mais promissor para o estudo do ponto de vista da inteligência artificial
(ROADS, 1996).
Mas a inteligência artificial poderá ser consciente, além de criativa? Em
um texto postado no portal The Conversation, Subhash Kak, professor de en-
genharia elétrica e computacional da Universidade Estadual de Oklahoma, nos
Estados Unidos, que trabalha na aprendizagem mecânica e na teoria quântica,
discute essa possibilidade. Ele relata que os pesquisadores estão divididos sobre
se esses tipos de máquinas hiperconscientes existirão, e aponta que tudo depen-
de do que entendemos por consciência (MAES, 2017).
A maioria dos cientistas da computação acredita que a consciência é uma
característica que à medida que a tecnologia se desenvolve. Alguns acreditam
que a consciência envolve a aceitação de novas informações, armazenamento
e recuperação de informações antigas e processamento cognitivo de tudo em
percepções e ações”, define Kak. Ele diz que, se definirmos a consciência assim,
“um dia as máquinas serão, de fato, a consciência final” (MAES, 2017).
Em contraste desta perspectiva, Jan Vogler, violoncelista clássico nascido
na Alemanha e residente em Nova York, afirmou que a arte, ligadas ao consci-
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ência criativa é o que nos faz humanos (NAKAZAWA, 2018), fazendo surgir
uma importante questão: e se as máquinas puderem criar arte?
De certa forma. Há anos, segundo Oliveira (2018), computadores – e sof-
twares – são utilizados para a concepção de obras protegidas por direitos auto-
rais. Assim, livros são escritos no Microsoft Word, sistema integrante da plata-
forma Office; projetos de arquitetura são desenvolvidos no AutoCAD, software
criado pela Autodesk, Inc., em que CAD significa Computer Aided Design, ou,
em português, desenho auxiliado por computador; imagens são editadas com
Photoshop, desenvolvido pela Adobe Systems, caracterizado como editor de
imagens bidimensionais; e artistas utilizam software para esboçar, criar, retocar
e finalizar suas obras.
A Inteligência Artificial vem sendo empregada na música, e não é uma
prática recente, haja vista que a primeira partitura composta com a ajuda de
máquinas data de 1957, chama-se “Suíte Illiac” e foi inspirada nos corais de Bach
(NOGUEIRA, 2018). Ademais, um projeto desenvolvido pela Sony em parce-
ria com a Universidade Pierre e Marie Curie, em Paris, por mais de vinte anos,
resultou na Flow Machine Composer, um código que permitiu que a Inteligên-
cia Artificial gerasse músicas automaticamente ou em colaboração com artistas
(TEIXEIRA, 2018). Em janeiro de 2018, foi lançado um álbum com quinze
músicas, cujos padrões de artistas e de estilos são identificados pelo sistema
e reproduzidos, gerando novas composições, uma delas – One Note Samba, ou
Samba de uma nota só – no padrão de Tom Jobim (NOGUEIRA, 2018).
Carboni (2017) comenta que o rapper Sabotage, falecido em 2003, “ressus-
citou” de certa forma treze anos mais tarde com a música Neural, lançada pelo
Spotify e criada com base na utilização de Inteligência Artificial e com o auxílio
da família, amigos e antigos produtores do artista.
Na seara das artes plásticas, cabe mencionar “About a Theory of ‘Graffiti’”,
obra criada por um computador “treinado” com imagens referência de grafita-
gem, que controla um cabeçote de plotagem que borrifa água e tinta sobre blo-
cos de concreto, e resultou em desenhos considerados uma nova forma de arte
gerada por Inteligência Artificial.
28 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

Outro exemplo é o quadro “The New Rembrandt”, criado por um grupo


de holandeses a partir de imagens referência de diversos quadros pintados pelo
pintor holandês do século XVII alimentadas em um software de Inteligência
Artificial, gerando uma nova pintura, que poderia, de fato, ter sido pintada pelo
próprio artista (OLIVEIRA, 2018).
Ainda, a Christie’s, em seus 252 anos de história, inovou ao leiloar obra de
arte gerada pela Inteligência Artificial. O quadro “Retrato de Edmond de Be-
lamy”, criado pelo grupo de arte francês Obvious, integra uma série de pinturas
da família fictícia Belamy geradas por um algoritmo de duas partes, denomina-
do GAN - abreviação de “rede de adversários generativos” – alimentado com um
conjunto de dados de quinze mil retratos pintados entre os séculos XIV e XX,
em que uma parte cria uma nova imagem com base no conjunto de informações
e a outra parte é levada a “pensar” que as novas imagens são reais. Os lucros com
a venda da obra, inicialmente estimados entre sete e dez mil dólares, alcançaram
a cifra de US$ 432,500.00, que devem ser utilizados para a realização de melho-
rias no próprio algoritmo (TOUCHARTE, 2018).
Em que pese o valor alcançado pela obra, a controvérsia causada pela sim-
ples notícia de que a obra seria leiloada gerou a postergação do leilão por mais
de um ano e trouxe a lume variadas questões sobre a arte, a propriedade intelec-
tual (direitos autorais) e, principalmente, a possibilidade de atribuir capacidade
criativa às máquinas.
Alguns pensadores chegaram a formas de questionar a criatividade da in-
teligência artificial, e um deles foi Alan Turing, pai da ciência da computação,
que afirmou que uma máquina terá produzido algo criativo quando nós formos
incapazes de reconhecer se uma obra foi feita por robôs ou por humanos.
Ada Lovelace, pioneira da computação, conhecida como a primeira pro-
gramadora da história, acreditava que uma máquina não poderia ter inteligência
equivalente à humana enquanto fizesse apenas o que os humanos a programas-
sem para fazer. Daí nasceu o Lovelace Test, com o seguinte desafio: uma máquina
será considerada criativa quando produzir qualquer coisa que não conseguir ser
explicada pelos seus desenvolvedores, com base no código que eles criaram. Se
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um dia um robô fizer isso significa que ele criou algo realmente original. Até
2016 nenhuma máquina passaria no teste de Lovelace, mas no de Turing, algu-
mas já passariam, principalmente quando o assunto é criar videogames (AS-
SENNATO, 2016).
Ainda, Julian Togelius, professor do departamento de Engenharia da New
York University, trabalha para criar computadores mais inteligentes do que os
humanos, e a sua pesquisa é voltada a videogames onde os personagens do jogo
são dotados de inteligência artificial criativa. Ele é pioneiro no uso dos chama-
dos “algoritmos evolutivos”, que são inspirados em funções biológicas, como
mutação, reprodução e seleção natural, e que são capazes de se adaptar às habi-
lidades e preferências do jogador.
O professor trabalha ainda com um sistema chamado geração processual
de conteúdo, seguindo a tese de que as próprias máquinas serão capazes de criar
conteúdos do jogo, ou até um game inteiro, com base em seus próprios algo-
ritmos. Ele acredita que, dessa forma, os computadores se tornem ainda mais
criativos do que os humanos, os quais, segundo ele, acabam se plagiando incons-
cientemente diversas vezes (ASSENNATO, 2016).
Por fim, cumpre mencionar o movimento Ciborgue, o qual conceitualmen-
te é explicado pelo hibridismo entre o ser humano e a máquina, frente a incor-
poração das tecnologias nos modos de existência humana (HARAWAY, 2000).
O nome do “primeiro ciborgue” é Neil Harbisson, reconhecido em 2016.
Tal ideia foi concebida após uma reflexão sobre a necessidade de esta-
belecer uma relação mais íntima entre os seres humanos e máquinas, em um
momento em que o tema da exploração espacial começava a ser discutido. O
cientista Clynes, desenvolvedor de instrumentação fisiológica e de sistemas de
processamento de dados, transmitiu essa ideia escrevendo uma introdução para
o livro Cyborg: evolution of the superman (1965) de D. S. Halacy, onde fala de
“uma nova fronteira”, não meramente espacial mas, mais profundamente, o re-
lacionamento entre o “espaço interior” e o “espaço exterior” - ou seja, uma ponte
entre a mente e a matéria.
30 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

Encerrando este tópico, observa-se que se por um lado restou provado que
a criatividade humana pode, numa justa dimensão, ser “replicada” pela Inteligên-
cia Artificial, e por consequência, surgem inúmeros questionamentos sobre os
conceitos de criatividade, arte, direitos do autor, e os efeitos gerados no campo
da propriedade intelectual são analisados a seguir.

2 DIREITO DO AUTOR VERSUS


INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

No Brasil, a Propriedade Intelectual abrange duas grandes áreas: a Proprie-


dade Industrial, que engloba patentes, marcas, desenho industrial, indicações
geográficas e proteção de cultivares, regida pela Lei n.º 9.279/1996; e o Direito
Autoral, que agrega obras literárias e artísticas, programas de computador, do-
mínios na Internet e cultura imaterial, disciplinada pela Lei n.º 9.610/1998.
Essa última impõe uma distinção entre Direito do Autor e Direito Autoral: o
primeiro é o ramo da ordem jurídica que disciplina a atribuição de direitos re-
lativos a obras literárias e artísticas; e o outro abrange, além disso, os chamados
direitos conexos do direito do autor (MELLO, 2013).
O Estado brasileiro está autorizado a regular qualquer atividade econômi-
ca e a atividade artística apresenta caráter econômico (RIBEIRO; FREITAS;
NEVES, 2017), assim, a interferência estatal sobre essa atividade intelectual se
justifica para proteger vários interesses: a liberdade de expressão (inciso IX do
artigo 5º da Constituição Federal); os dos titulares de direitos autorais (inciso
XXVII do artigo 5º da Constituição Federal); os dos usuários de direitos au-
torais (inciso XXXII do artigo 5º da Constituição Federal); e os interesses da
sociedade brasileira diante dos bens jurídicos socialmente relevantes ligados à
propriedade intelectual (BRASIL, 1988).
Historicamente, pode-se diferenciar o direito de autor, surgido na França,
do copyright, surgido na Inglaterra e seguido nos Estados Unidos e na Europa.
O direito de autor – droit d’auteur – corresponde ao sistema francês ou conti-
CAPÍTULO 2 - 31

nental, que originalmente, se ocupava da criatividade da obra a ser copiada e dos


direitos morais do criador da obra. No direito de cópia, ou copyright, do sistema
anglo-americano, o direito a ser protegido é a reprodução de cópias, e original-
mente enfatizava mais a proteção do editor do que do autor. No Brasil, por força
da tradição de direito romano, adotou-se o direito do autor, como pessoa física,
e é dele o direito de reprodução (VIEIRA, 2018, n.p.).
Podemos observar as diferenças entre o chamado “Sistema romano-ger-
mânico” e o “Sistema anglo-americano” do copyright baseado no Common Law,
tendo como característica diferencial o fato de que o direito autoral se baseia,
fundamentalmente, na proteção do criador. Já o copyright protege a obra em si, o
produto, dando ênfase à vertente econômica, à exploração patrimonial das obras
através do direito de reprodução,.
No âmbito internacional, a primeira regulamentação lato sensu dos direitos
autorais, que inaugurou as normas materiais de proteção e solução de conflitos e
fundamentou a elaboração de leis pertinentes a essa matéria em diversos países,
e ainda exerce grande influência na atualidade, foi a Convenção de Berna para a
Proteção das Obras Literárias e Artísticas, em 1886 (FONSECA, 2011).
Atualmente administrada pela Organização Mundial de Propriedade In-
telectual (OMPI), a Convenção de Berna tem mais de cem países signatários,
incluindo o Brasil, que aderiu a ela por meio do Decreto n.º 4.541 de 1922, e
aprovou o texto atual através do Decreto n.º 75.699, promulgado em 6 de maio
de 1975 (FONSECA, 2011).
Cabe citar, ainda, a Convenção Universal sobre Direito de Autor, assinada
em Genebra em 6 de setembro de 1952 e revisada em Paris em 24 de julho de
1971, à qual o Brasil aderiu através do Decreto n.º 48.458, promulgado em 4 de
julho de 1960 (MENEZES, 2007).
Obviamente, essas regulamentações não previam a possibilidade de atri-
buir direitos de autor a uma máquina, por conta do desenvolvimento tecno-
lógico nas suas respectivas épocas. Com efeito, em se tratando de Inteligência
Artificial, não resta dúvidas de que o tema abordado neste estudo gera polêmica,
32 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

especialmente no Direito, tendo em vista que a tecnologia evolui exponencial-


mente comparada à lei.
Para Oliveira (2018) a criação de obras artísticas por Inteligência Artificial
vai muito além da mera fixação da obra do artista, sugerindo-se aplicar o mesmo
entendimento consolidado em relação aos programas comuns quando o artista
fizer uso dela unicamente como instrumento, gerando polêmica sobre direitos
autorais se a concepção e a fixação do trabalho se processa de forma automática
e independente de intervenção humana.
Casey e Rockmore (2016) examinam outro ângulo, quando argumentam
que, pensando na forma da arte, é fundamental questionar: quem é o autor-
-artista-criador? A pessoa que desenvolveu e escreveu os códigos que geraram
poemas é um poeta? O programador de um algoritmo que gera contos é um
escritor? O programador de uma máquina que combina músicas é um DJ? A
proposta destes autores é estabelecer a fronteira entre um artista e um assistente
computacional e avaliar como desenhar essa fronteira de criação e criadores
frente ao resultado final.
A Austrália e a União Europeia, já se posicionaram no sentido de que a
proteção conferida pelo direito autoral está adstrita aos casos em que a obra for
criada por seres humanos (OLIVEIRA, 2018). Na na Inglaterra, as obras pro-
duzidas pela Inteligência Artificial são protegidas por direito autoral, atribuído
às pessoas físicas – individual ou coletivamente – que foram capazes de criar os
códigos que coordenam as ações da tecnologia (TEIXEIRA, 2018).
No Brasil, no cenário atual dos Direitos Autorais, as criações desenvolvidas
pela Inteligência Artificial que analisou e criou uma nova obra nos padrões de
The Next Rembrandt e as melodias desenvolvidas por meio do código criado
pelos pesquisadores e desenvolvedores da Flow Machines não seriam conside-
radas passíveis de proteção (TEIXEIRA, 2018), isso porque conceitualmente,
no artigo 11 da Lei n.º 9.610, de 1998, , é autor a pessoa física criadora da obra
(BRASIL, 1998), levando a concluir que o ordenamento jurídico nacional não
possibilita que direitos autorais sejam atribuídos à uma máquina.
CAPÍTULO 2 - 33

Às pessoas jurídicas a autoria será concedida, de maneira restritiva, somen-


te em poucos casos previstos pela Lei n.º 9.610, de 1998, que, a propósito, tutela
apenas as obras exteriorizadas. Enfatiza-se, assim, que a abrangência da Lei de
Direitos Autorais está prevista em seu artigo 7º, que traz a expressão “obras
intelectuais”, quais sejam as resultantes do trabalho intelectual de uma pessoa,
que se exterioriza de alguma forma como criações de espírito (BRASIL, 1998).
Por fim, a Lei de Direitos Autorais brasileira estabelece, em seu artigo 45,
incisos I e II, que pertencem ao domínio público, entre outros casos, as obras de
autores desconhecidos (BRASIL, 1998), levando a questionar se as obras criadas
pela Inteligência Artificial se enquadrariam na categoria daquelas sem autoria.
Contudo, com vistas a regular essas criações, convém aceitar a nova realida-
de no âmbito da Inteligência Artificial, que deverá levar os países que atribuem
novos direitos autorais através da evolução e adoção de novas interpretações.
Nesse prisma, Carboni (2017, n.p.) alerta para a complexidade e a variedade de
situações que a criação pela Inteligência Artificial pode gerar, dentre os quais:

a) o domínio público para todas as situações de criação por Inteligência


Artificial, independentemente de haver intervenção humana; b) a titula-
ridade das obras por parte de quem criou o sistema de Inteligência Arti-
ficial; c) a titularidade por parte das eventuais pessoas envolvidas no pro-
cesso criativo por meio de Inteligência Artificial, dependendo do grau de
participação e de haver originalidade nessas intervenções humanas; e d)
a titularidade por parte de instituições representantes de robôs para atos
da vida civil, o que demandaria uma alteração mais profunda do sistema
jurídico, uma vez que o artigo 11 da Lei n.º 9.610/1998 prevê que apenas
seres humanos podem ser titulares de direitos autorais.

Carboni (2017, n.p.) também atenta para o fato de que o Código Civil
brasileiro “estabelece que a capacidade de direitos e deveres na ordem civil é ex-
clusivamente da pessoa humana (pessoa física), apesar de países como a Arábia
Saudita já terem reconhecido a personalidade jurídica e concedido a cidadania a
uma robô, como é o caso da Sophia”. É pertinente esclarecer que Sophia é uma
robô – desenvolvido pela Hanston Robotics, com sede em Hong Kong – capaz
de aprender a expressar emoções cocomo os humanos. Pela ONU, foi nomeada
34 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

Campeã da Inovação pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimen-


to (PNUD), e deve receber um papel oficial para promover o desenvolvimento
sustentável e a garantia de direitos humanos e igualdade.
Cabe menção outra polêmica sobre os direitos autorais geradas de uma
selfie tirada por uma macaca, na Indonésia, que resultou em uma longa batalha
judicial encerrada frente a um acordo para doação de 25% da arrecadação futura
às instituições de caridade dedicadas à proteção de espécies do gênero Macaca
naquele país. Na ocasião, o fotógrafo encaixou a câmera em um tripé para fazer
um close dos macacos caso eles se aproximassem, e para surpresa de todos, um
dos animais pegou o equipamento e começou a fotografar, o que indicou que o
incremento criativo não estava nas mãos do fotógrafo, ou seja, por dedução, a
criatividade frente à selfie era da macaca (PRETTO, 2017).
Ora, que a Lei de Direitos Autorais brasileira não reconhece a titularida-
de do direito a um macaco já se sabe, contudo Pretto (2014) levanta também
a questão da propriedade (usuário) do equipamento (ou tecnologia), tendo em
vista que nenhuma lei de direito autoral no mundo trata claramente sobre este
conceito.
Por fim, Carboni (2017) chama a atenção para o risco de plágio na criação
por meio da Inteligência Artificial, mas esclarece que não há que se cogitar
a violação nos casos de inspiração em outra obra, à exemplo do projeto Flow
Machines, uma vez que o conceito de inspiração é livre, não dependente, portanto, de
autorização.

CONCLUSÃO

Ao final deste breve estudo sobre as possibilidades evolutivas criativas da


Inteligência Artificial e a necessária tutela dos direitos autorais sobre as obras
decorrentes, chama a atenção a infinidade de aplicações da junção da criativida-
de com a tecnologia, e em síntese, a fascinação ambivalente frente aos avanços
da tecnologia revela-se através do desejo de transcendência humana.
CAPÍTULO 2 - 35

A Inteligência Artificial questiona a própria condição biológica da espé-


cie humana, vislumbrando até mesmo uma possível relação de simbiose entre a
tríade homem, máquina e biotecnologia que resulta em uma nova espécie, pós-
-humana. Neste passo já podemos ser ciborgues, ou seja, termos corpos híbridos
entre o biológico e o artificial, ou melhor, entre a máquina e a humanidade.
Dado ao exposto, é inerente e legítimo o medo da subjugação e da
desumanização. Percebe-se que neste caso o dualismo platônico instalado frente
à tecnologia pode nos levar a desenhar, duvidar e quem sabe, equilibrar o nosso
entendimento na busca da transcendência, de tal sorte que a dupla face utópica
(paradisíaca) e distópica (apocalíptica) podem ser decisivas e estratégicas para
compreendermos os dilemas que cada vez mais enfrentaremos.
Do ponto de vista legal, países do mundo todo reconhecem a propriedade
intelectual - reconhecimento da capacidade criativa - exclusivamente àquelas
criadas por seres humanos, como é o caso do Brasil. Contudo, é preciso reco-
nhecer as inúmeras situações e exemplos e – por consequência – debater profun-
damente a condição de transcendência humana junto às máquinas, envolvendo
o legislador e a sociedade, com vistas a tutelar os efetivos tutelares dos direitos
daí resultantes, no sentido de adaptação social e respeito a coexistência humana.
Enquanto a evolução legislativa não ocorre, resta claro que com a crescente
utilização de sistemas de Inteligência Artificial (IA) em processos criativos, o
direito do autor é afetado por situações que não são reguladas pela Lei n.º 9.610,
de 19 de fevereiro de 1998, que regulamenta os direitos autorais no Brasil, assim
como acontece com as legislações de diversos países do mundo, que defendem a
alternativa o domínio público, isoladamente.
No Brasil, alterações à Lei de 1998 vêm sendo discutidas, mas é longo o
caminho a se trilhar até que o texto de uma nova lei seja aprovado. Por outro
lado, em outros países leis vêm sendo elaboradas com o propósito de coibir as
infrações aos direitos autorais causadas pelo desenvolvimento tecnológico, ou de
garantir maior proteção aos titulares em relação ao que circula na internet. Neste
prisma, cabe menção ao Regulamento Geral da Proteção de Dados da União
36 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

Europeia, aprovado em setembro de 2018, que gerou controvérsias em âmbito


mundial pela inclusão dos artigos 11 e 13 (ALECRIM, 2018).
Ao fim, a sociedade está em constante transformação, de maneira que o
grande desafio ao Direito é conseguir absorver os fenômenos que impactam no
social e que, por vezes, não estão regulados. Diante dessa condição, vivemos na
Aurora Pós-Humana e concluímos que realisticamente as máquinas vão além
destas condições de suporte à criatividade humana, uma vez que já são capazes
de “criar”, “agir” ou “pensar” sem ser explicitamente comandadas. Mas ao final,
não seriam esses processos exclusivos do homem?
Essa pergunta de cunho filosófico passa pelo debate do que, afinal, é a ma-
nifestação da criatividade, e por fim, demonstra a necessidade de evolução nor-
mativa, evidenciando-se que a ausência desta discussão poderá gerar caos e lesão
aos direitos fundamentais. O Direito assim, deve-se valer de uma nova visão que
seja capaz de equilibrar e conectar as múltiplas ciências a fim de reconhecer as
novas expressões da evolução tecnológica.

REFERÊNCIAS

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torais na internet. Publicado em: 12 set. 2018. Disponível em: <https://tecnoblog.
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ASSENNATO, Diana. A inteligência artificial pode ser criativa? Publicado em: 21


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CAPÍTULO 2 - 37

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40 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE
CAPÍTULO 3 - 41

3
ADVOCACIA 4.0 E A REINVENÇÃO
DAS ORGANIZAÇÕES JURÍDICAS
Gérson Salvi Cunha15

INTRODUÇÃO

A evolução tecnológica nos trouxe à Quarta Revolução, ou Revolução Di-


gital, desencadeando mudanças sociais e empresariais profundas. A digitaliza-
ção já afetou diversos modelos de negócios e profissões, como nos exemplos
clássicos do Uber, AirBnb e Netflix, e vem permeando muitos outros, como a
publicidade, as consultorias, a medicina e o direito.
Dentro deste contexto de acentuadas mudanças sociais e empresariais,
pouco a pouco, as barreiras do status quo jurídico começam a ceder, pois, a inova-
ção é impossível de ser paralisada, e o meio jurídico, forçadamente, reinventa-se
para esse admirável mundo novo, a Advocacia 4.0.

15  Estrategista nas áreas de Gestão, Inovação e Reestruturação Empresarial, membro do Stra-
tegic Management Society (SMS), Mestrando em Gestão Empresarial pela Universidade Autô-
noma de Lisboa, possui Especialização em Recuperação de Empresas pelo INSPER/SP, Pós-
-graduação em Marketing e Comunicação pela ESPM-Sul, cursou Governança Corporativa em
Empresas Familiares pelo IBCG, Advanced em Negócios Exponenciais pela Harvard Business
Review, é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS. E-mail: gerson@ascadvogados.
com.br.
42 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

1 A QUARTA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

Revolução industrial 4.0 é uma expressão cunhada pelos alemães – que


teve origem em um projeto de estratégias do governo voltadas à tecnologia – e
foi usada pela primeira vez na Feira de Hannover em 2011 para referenciar as
principais inovações tecnológicas dos campos de automação, controle e tecno-
logia da informação, aplicadas aos processos de manufatura. Na época, o foco
eram as fábricas inteligentes com capacidade e autonomia para agendar manu-
tenções, prever falhas nos processos e se adaptar aos requisitos e mudanças não
planejadas na produção (VITORINO, 2018).
Segundo Magrani (2018, p. 79), a chamada quarta revolução industrial
“teria começado na virada deste século e tem se construído a partir da revolução
digital”, a qual “se caracteriza essencialmente por uma internet ubíqua e móvel,
por sensores e dispositivos cada vez mais baratos e menores e pelo desenvolvi-
mento da inteligência artificial”.
Alcarva (2018, n.p.) revela que a quarta revolução industrial é a da econo-
mia digital e “consiste na fusão de métodos correntes de produção com os mais
recentes desenvolvimentos da tecnologia de informação e comunicação, e que se
tem desenvolvido a um ritmo frenético, impulsionado pela tendência de digita-
lização da economia e da sociedade”. Nesta perspectiva, o autor conclui que, des-
de já, está garantida “a sustentação tecnológica desta revolução, graças a sistemas
inteligentes e interligados que permitem que pessoas, máquinas, equipamentos,
sistemas logísticos e produtos comuniquem e cooperem diretamente entre si”.
Associando a Revolução Digital ao âmbito jurídico, Bertozzi e Selem
(2018, n.p) bem anotam que:

Um advogado que tivesse militado na década de 1970 não conseguiria


reconhecer o mundo que se apresenta hoje aos operadores do Direito. O
sistema, o qual é a base do serviço jurídico no Brasil, está sendo grada-
tivamente demolido: lentidão, linguagem hermética, vaidade excessiva e
atraso tecnológico estão literalmente sendo banidos das práticas jurídicas
correntes. O cliente mudou sua forma de agir e de pensar. A tecnologia
CAPÍTULO 3 - 43

acelerou a disponibilidade imediata de um volume incalculável de infor-


mação. E milhares de novos advogados são despejados anualmente no já
abarrotado mercado jurídico brasileiro. Esses fatos, somados a outros tan-
tos, estão obrigando os advogados a uma revisão plena de suas atividades
cotidianas, de suas estratégias institucionais, de sua postura profissional.

Delineando a mencionada Revolução Digital, Guerra (2017, n.p.) explica


que:

Em meados de 2016, o robô advogado Ross se tornou notícia no mundo


ao unir inteligência artificial e automação profissional de dados jurídicos
para operar junto a escritórios de advocacia nos Estados Unidos, como
uma fonte inesgotável de informações sobre falências. Trata-se de uma
biblioteca virtual constantemente alimentada com novas informações e
aprendizagem automática (‘machine learning’), com atualização perma-
nente, 24 horas por dia, e capacidade de gerar relatórios e alertas sobre
riscos envolvidos em uma determinada demanda judicial ou quanto à
elaboração colaborativa de pareceres, peças doutrinárias e contratos em
segundos.

Ainda segundo Guerra (2017), Ross consiste em um suporte de inteligên-


cia artificial desenvolvido pela NextLaw Labs, a partir da plataforma de com-
putação cognitiva Watson, desenvolvida pela IBM. O Ross está capacitado para
processar, em apenas um segundo, 500 gigabytes, o equivalente a um milhão de
livros, e não bastasse isso, pode arquivar toda a legislação, precedentes judiciais,
doutrina e dados extraídos de contratos ou coletadas a partir de documentos
avulsos.
No Brasil, cabe menção a Victor, ferramenta de inteligência artificial do
Supremo Tribunal Federal e ao Tribunal de Contas da União, com as robôs Ali-
ce, Sofia e Mônica, que atuam na caça a irregularidades em licitações (GOMES,
2018).
Ademais, como aponta Guerra (2017), em que pese a inteligência artificial
e a automação de rotinas serem exponencialmente aplicadas no Brasil, alguns
segmentos profissionais estão se sentindo ameaçados, “dentre os quais as so-
44 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

ciedades de advogados, em especial aqueles que se dedicam ao contencioso em


larga escala, a assim conhecida advocacia de massa”.
Em contraponto, Susskind (2017) prevê, em “Tomorrow’s Lawyers”, tribu-
nais virtuais, negócios jurídicos online, produção de documentos via Internet e con-
tratação de outras empresas para alguns serviços específicos, gerando novos empregos
e novos trabalhadores.
Hoje em dia, muitos advogados e organizações, adeptos à Revolução Digi-
tal, estão vivendo diariamente mudanças na forma de atuação, de forma rápida
e expressiva. A Advocacia 4.0 proporcionou “uma onda de inovações disrupti-
vas patrocinadas pelas Legaltechs (ou Lawtechs) associadas a um movimento de
reinvenção e transformação do setor, que estão provocando uma mudança no
mindset dos advogados” (GROSS, 2018, n.p.).
Certamente, a adoção das novas tecnologias aumenta a eficiência de en-
trega dos serviços, ampliando a qualidade e reduzindo o desperdício e o risco de
erros, desde que sua implementação esteja associada a uma visão revolucionária
de melhoria contínua que preserva a harmonia entre Pessoas, Processos e Tec-
nologia, os protagonistas deste processo de transformação (GROSS, 2018).
Destaca-se, também, que a tecnologia não beneficia apenas os grandes,
e sim, a todo o mercado jurídico, inclusive, os advogados autônomos. Como
esclarece Gerassi Neto (2017, n.p.), existem muitas legaltechs e lawtechs com
soluções para estes perfis. Profissionais independentes e escritórios pequenos e
médios também fazem da tecnologia uma grande aliada. “São soluções baseadas
na nuvem que proporcionam a eles acesso a recursos computacionais antes res-
tritos a grandes empresas, com a utilização de sistemas bem menos complexos e
sofisticados que o Ross”.
Também merece destaque o perfil do T-Shaped Professional, ou T-Shaped
Lawyer, cabendo observar que, sob essa ótica, o advogado deixa de ser apenas um
solucionador de problemas jurídicos para tornar-se um verdadeiro produtor de
conhecimento, visando fornecer ao cliente um panorama prévio dentro de seu
mercado de atuação, com o propósito de reduzir os riscos jurídicos, e propor-
cionar segurança na ação empreendedora e adequação normativa em múltiplos
CAPÍTULO 3 - 45

aspectos. No entendimento de Martins (2018a, n.p.), essa é a perfeita definição


do advogado 4.0, fazendo menção a “uma atuação advocatícia de atividade de
inteligência que cria um verdadeiro ciclo de produção de conhecimento em fa-
vor de uma harmonização entre ganhos financeiros e benefícios para sociedade
como um todo”.
Neste cenário, a tecnologia é protagonista em uma mudança radical na es-
trutura do mercado, intensificando o trabalho especializado e coletivo e o acesso
a novos clientes, como explica Koetz (2017). Ademais, em um futuro breve, a
advocacia em rede aliada à automação do atendimento do cliente elevará o sen-
timento de justiça na sociedade pela democratização do acesso. Grandes escri-
tórios serão portais na internet, com vasto conteúdo jurídico disponível a todos,
“para que os clientes cheguem ao advogado cada vez mais preparados”, mas não
é só a colaboração com máquinas que moldará o futuro da advocacia (KOETZ,
2017, n.p.).
Embora tudo isto por si só já seja bastante desafiador, ainda atravessa-se
um momento de disrupção ímpar, em que não é mais suficiente apenas mudar
um pouco, ajustar, reprogramar e seguir em frente. É necessário paralisar engre-
nagens e velhos conceitos e verdades, desconstruir para construir algo totalmente
novo; tem-se que aprender a desaprender para reaprender (TAURION, 2016).
Desespero? Não é preciso. Para cada uma destas mudanças abrem-se inú-
meras oportunidades de aprendizado e avanço. Sendo assim, é importante focar:
primeiro, em não perder valor humano; segundo, em não perder tempo nem
recursos, sendo refratários ao pé da negação e combate às mudanças; e terceiro,
em constante aprendizado e atualização. Considerando que o Direito transita
por tudo, leis, normas e regulamentos precisarão ser ajustados para adequação a
todas essas mudanças, e o papel do advogado será essencial para uma nova or-
dem que está sendo criada. Então, devemos considerar que somos todos agentes
dessa revolução. Nesta perspectiva, Martins (2018b, n.p) assegura que:

Compreender a introjeção da tecnologia nos serviços da advocacia passa


por reinterpretar a própria prática da advocacia e é assim que os clientes
têm exigido. A facilidade de acesso imediato à informação em conjunto
46 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

com a sempre expansiva complexidade do ordenamento jurídico exigem


uma comunicação menos hermética: o cliente anseia por entender os seus
direitos, serviços e as facilidades digitais que o cerca.

E se a tecnologia incorpora uma nova dinâmica aliada a uma nova roti-


na de trabalho, ela também exige uma mudança de mindset, comportamento,
direcionamento, que envolve, necessariamente, uma nova maneira de pensar o
negócio, gerir pessoas, gerar valor aos clientes e compreender do papel e prota-
gonismo do advogado 4.0.
O fato é que o surgimento das startups acarretou uma abundância de ino-
vação, principalmente nos métodos de gestão dos negócios. Essas empresas se
tornaram referência em novas técnicas e conceitos e estão exportando conheci-
mento a organizações tradicionais de diversos setores da economia, incluindo o
jurídico. Segundo Martins (2017, n.p):

A globalização e a popularização de novas tecnologias motivaram uma


competitividade maior no mundo empresarial. Nesse contexto, o merca-
do se tornou um local inapropriado para as instituições que insistem em
conservar práticas ultrapassadas em sua rotina. A realidade das bancas
jurídicas também foi impactada de forma definitiva. Mais do que nunca,
os advogados devem ampliar a visão estratégica de negócio com relação
a sua própria atuação ao viabilizar uma gestão de escritório de advocacia
moderna e profissionalizada.

Assim, o advogado 4.0 reconhece não só a necessidade de se reinventar


para a era digital como também a importância de integrar gestão de negócios e
inteligência relacional humana à gestão de processos judiciais.
Martins (2017, n.p.) enfatiza que:

A profissionalização dos escritórios de advocacia, independentemente do


seu porte, é uma necessidade iminente aos profissionais da área. É por isso
que o advogado deve acompanhar as inovações do setor para modernizar
sua rotina profissional. Aqueles que já se convenceram de que é preciso
encarar a gestão de escritório de advocacia com a mesma organização de
CAPÍTULO 3 - 47

uma empresa, conquistam um diferencial competitivo frente à concor-


rência.

O intraempreendedorismo passa a ser uma característica essencial aos no-


vos times jurídicos, e é preciso criar um ambiente favorável ao desenvolvimento
de profissionais com características intraempreendedoras, estimulando o cola-
borador a empreender dentro da empresa, fazendo com que ele sinta-se livre e
capaz para sugerir melhorias nos procedimentos internos, analisar cenários e
buscar oportunidades para inovar.
Por isto, é de fundamental importância que os gestores comecem a direcio-
nar os seus esforços para promover treinamentos para construção de uma cultura
e identidade organizacional em que todos da organização se reconheçam e se
sintam parte. O desenvolvimento e crescimento profissional dos colaboradores
é a primeira medida que poderá ser revertida positivamente para os resultados
do escritório a médio e longo prazo.
No campo das metodologias e estratégias, Design thinking, Scrum (meto-
dologia ágil para gestão e planejamento de projetos de software), OKR (método
de definição e acompanhamento de metas), Getting Things Done (GTD), Lean
Startup, Ágile, 1×1 (reunião de feedback), Inbound Marketing, Growth Hacking e
Gamification são apenas alguns exemplos que nasceram com as startups e estão ins-
pirando os advogados 4.0 (GERASSI NETO, 2017).
A advocacia 4.0 exige dos seus líderes conhecimentos de gestão estratégi-
ca, para planejar, executar, medir, motivar, reter e redirecionar, e com a ajuda da
tecnologia esse processo de reinvenção e evolução é tão viável quanto possível e
necessário. Saito (2017, n.p.) comenta que:

Para o consultor Frédéric Laloux, autor do livro ‘Reinventando as Or-


ganizações’, a humanidade vive um momento de grande transformação
e, como consequência, um novo paradigma de gestão está nascendo. Ele
explica que a humanidade evolui em estágios e, a cada transição, mudam
os fundamentos da sociedade: tecnologia, economia, política, ideologia
etc. Com os fundamentos, muda também a forma como nos organizamos
para cooperar e produzir coletivamente aquilo que a sociedade precisa.
48 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

Ou seja, em cada grande era da humanidade surgiu um modelo de gestão


que corresponde à visão de mundo e ao modus operandi da época.

A partir da inadequação dos modelos de gestão vigentes, “Laloux identi-


ficou e estudou doze organizações pioneiras que parecem trabalhar de forma
mais adequada aos novos tempos” e, em que pese a diversidade de setores e
tamanhos, “encontrou similaridades significativas na forma como são geridas, o
que parece indicar que um novo modelo está emergindo” (SAITO, 2017, n.p.).
Em complemento, Silva (2018, n.p.) conclui que “as organizações evolutivas se
fundamentam em três pilares: um propósito vivo e claro, estruturas autogeridas
(sem ‘chefes’ ou cadeias de comando) e um ambiente integral”.
Assim, no entendimento de Martins (2018b, n.p.):

a quarta onda de revolução é irreprimível, não poderá ser detida por ne-
nhuma força reacionária e o futuro de internet onipresente, interação com
bots, machine learning, big data, e-commerce e inteligência artificial, permi-
tirão transformações ainda mais radicais nas relações humanas e entre
clientes, empresas e corporações. A advocacia vive intensamente este mo-
mento e seus agentes não podem pecar por omissão ou mesmo inaptidão,
visto que a boa aceitação dos serviços já ofertados, por meio de platafor-
mas virtuais bem estruturadas e acessíveis, confirma essa nova realidade.

Feigelson (2018, n.p.) acrescenta que a nova economia implica em nova


advocacia – a advocacia 4.0 – e elenca sete características que preponderam
nessa nova realidade, a saber: rápida democratização do conhecimento jurídico
– “dificilmente será possível vender as mesmas ‘teses’ e o mesmo ‘conhecimento’
por um grande espaço de tempo”; ineditismo e velocidade de interpretação – “a
nova memória é a nuvem, nivelando grande parte dos profissionais. Analisar
e interpretar na velocidade dos acontecimentos é o valor”; fim do argumento
de autoridade – “em uma realidade nivelada de conhecimento, o argumento de
autoridade deixa de existir, e a racionalidade e legitimidade dos argumentos
precisam imperar (dados, construção lógica e propagação adequada)”; criativi-
dade e design – “os desafios postos não terão precedentes e ensejarão soluções
CAPÍTULO 3 - 49

criativas”; velocidade na resolução das disputas – “em uma sociedade acelerada,


a resolução de conflitos por meios alternativos será crescente”; empatia, rele-
vância e acesso – “em um mundo de abundância de informações, conexões e
compromissos, a briga pela ‘audiência’ individual e coletiva passa a ser pauta da
advocacia”; e capacidade de conexão, de abstração e analítica (data driven) – “é
preciso mergulhar nos desafios, emergir à superfície (abstrair) para resolvê-los e
se pautar em números e dados (data driven)”.
O que se vê neste novo cenário transformado pela tecnologia é uma inte-
gração não só de informações, mas também de atividades, de modo de agir e de
pensar, levando os advogados a terem mais maturidade como gestores. O desfe-
cho é a inovação, que resulta em melhor desempenho financeiro e operacional
dos negócios do Direito e, consequentemente, do setor jurídico (GERASSI,
2017).

CONCLUSÃO

Com foco em todo o exposto, este breve estudo enfatizou que a quarta
revolução é essencialmente digital, mas tem força suficiente para reestruturar
um segmento tão tradicional como é o jurídico. Delineando, assim, a figura de
um novo advogado que tem a tecnologia como aliada e que usa estratégias de
gestão tanto no exercício da sua profissão quanto para imprimir excelência no
atendimento ao seu cliente.
A profundidade desta mudança no âmbito jurídico é tamanha que os tradi-
cionais tribunais superiores no Brasil – inclusive a máxima corte da Justiça, que
é o Superior Tribunal Federal, o guardião da Constituição – agora fazem uso de
robôs com Inteligência Artificial.
Ademais, não se pode perder de vista na implementação do debate sobre
a advocacia 4.0 que os clientes também são afetados por essa transformação,
porque hoje eles têm acesso à informação, e futuramente, como já comentado,
mais dados estarão ao seu alcance, inclusive fornecidos pelos grandes escritórios
50 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

de advocacia, que se tornarão portais para o compartilhamento desse conheci-


mento.
Embora em inúmeros momentos, no decorrer deste estudo, os verbos
tenham sido empregados no tempo futuro, a advocacia 4.0 é uma realidade e
precisa ser implementada já, pois, como bem observa Alcarva (2018, n.p.), “a
inércia de quem se mantiver arraigado aos processos existentes e aos sistemas de
distribuição tradicionais vai ter um custo bem alto”.
Em síntese, o advogado 4.0 usa a tecnologia como ferramenta, e ela, por
sua vez, é a protagonista dessa mudança na estrutura do mercado, que impõe o
trabalho especializado, a amplificação do conhecimento e traz a advocacia para
essa nova realidade. Nas palavras de Bertozzi e Selem (2018), “o equivalente
corporativo do sofrimento é a crise. E nada melhor que uma para revolucionar a
todos nós. É a reinvenção da advocacia, levando uma das profissões mais antigas
à modernização. Ao Século XXI”.
Por fim, Susskind (2017, n.p.), autor de “Tomorrow’s Lawyer”, materializa a
revolução digital na advocacia 4.0 quando afirma: “Precisamos de uma geração
de advogados capazes de desenhar, desenvolver, entregar e manter os sistemas
que substituirão as velhas formas de trabalhar. Precisamos de uma geração de
engenheiros legais.”

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CAPÍTULO 4 - 53

4
A EPIDEMIA NA PROPAGAÇÃO DAS FAKE NEWS
SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO BRASILEIRO
Rafael Caselli Pereira16

1 INTRODUÇÃO

Desde a primeira década do século XXI, vivemos a denominada sociedade


digitalizada ou da informação. O ambiente da Internet, outrora utilizado com
a finalidade de liberdade de expressão e manifestação de pensamento, com o
passar dos anos, transforma-se em uma ameaça constante a direitos e garantias
fundamentais, como a proteção à honra, à privacidade e à imagem pela propa-
gação desenfreada e irresponsável das fake news. Uma das formas de controle da
informação é a vedação ao anonimato, como garantia constitucional prevista no
inciso IV, do artigo 5º, da CF/88.
Com as mídias sociais, diariamente, verifica-se a utilização da Internet
como arma de manipulação de fake news, de forma instantânea, barata e em
escala exponencial, atingindo, dependendo da manchete, milhares de pessoas

16  Advogado. Doutorando e Mestre pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul - PUCRS. Membro da ABDPro - Associação Brasileira de Direito Processual, Membro do
IBDP - Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil, Membro do CEAPRO - Centro de
Estudos Avançados de Processo; Pós-Graduado e Membro Honorário da ABDPC - Academia
Brasileira de Direito Processual Civil. Autor de diversos artigos e livros jurídicos. E-mail de con-
tato: rafaeladv2011@gmail.com.
54 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

curiosas acerca do conteúdo daquela notícia. As matérias falsas, especialmente


aquelas de cunho sensacionalista, tendem a não ser apenas multiacessadas, mas
também, não raras vezes, compartilhadas por terceiros, tornando-se trend topics
mesmo quando seu conteúdo é inverídico.
Vivemos em uma Era da pós-verdade – vocábulo escolhido como palavra
do ano de 2016, na qual, segundo o jornalista Matthew D’Ancona, autor do
livro Post-Truth, “a certeza predomina sobre os fatos, o visceral sobre o racional,
o enganosamente simples sobre o honestamente complexo. Nosso tempo, sem
dúvida, prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade.
Enfim: a aparência ao ser”.
Atualmente, o principal instrumento para o combate de notícias falsas é
a Lei do Marco Civil da Internet (Lei nº. 12.965/14). De qualquer forma, o
Congresso brasileiro tem se movimentado para regulamentar o fenômeno das
fake news, pois estão tramitando entre a Câmara dos Deputados e o Senado
Federal 16 (dezesseis) projetos de lei sobre o tema. Oportuno destacar que, em-
bora não trate do assunto de forma específica, um dos fundamentos utilizados
para a aprovação do Regulamento n.º 2016/679 do Parlamento Europeu e do
Conselho, de 27 de abril de 2016, aprovado recentemente e cuja vigência se deu
em 25 de abril de 2018, é a proteção das pessoas singulares relativamente ao
tratamento de dados pessoais é um direito fundamental.
As notícias falsas, aqui denominadas de fake news, sempre estiveram pre-
sentes na imprensa mundial. Enquanto aguardamos a regularização do assunto,
mediante aprovação de algum dos projetos de lei em tramitação, é imprescin-
dível que o Poder Judiciário faça o devido controle da disseminação maliciosa,
com a utilização da tutela inibitória e, caso já haja um dano a ser indenizado,
através da tutela ressarcitória.
Por meio do presente artigo, portanto, busca-se analisar a atuação do Poder
Judiciário em alguns casos concretos envolvendo fake news, mediante a aplica-
ção dos institutos da tutela inibitória, como forma de identificar e interromper,
de forma imediata, a propagação das matérias falsas; e, da tutela ressarcitória, no
sentido de compensar e reparar o dano sofrido.
CAPÍTULO 4 - 55

2 UMA ANÁLISE DO FENÔMENO DAS FAKE NEWS


E A NECESSIDADE DE VEDAÇÃO AO ANONIMATO

Em interessante estudo realizado a partir de 126.000 (cento e vinte e seis


mil) histórias coletadas do aplicativo Twitter, entre 2006 e 2017, acerca da dis-
seminação de notícias verdadeiras e falsas online, verificou-se que as notícias
falsas foram difundidas, de forma mais ampla e rápida, do que as tidas como
verdadeiras. Se houvesse um ranking de notícias falsas mais propagadas, terí-
amos a seguinte ordem: em primeiro lugar, estariam as relacionadas à política,
seguidas de notícias sobre terrorismo, desastres naturais, ciências, lendas urbanas
e informações financeiras.
O referido estudo demonstrou que as fake news atingiram um número
bem maior de pessoas do que as notícias verdadeiras. Enquanto as notícias ve-
rídicas alcançaram em torno de 1.000 (mil pessoas), as fake news atingiram até
100.000 (cem mil pessoas), o que significa que muito mais pessoas retweetaram
a falsidade do que a verdade. A disseminação da falsidade foi auxiliada por sua
viralidade, o que equivale a dizer que a falsidade não se espalhou simplesmente
pela dinâmica da transmissão, mas sim pela difusão, ponto a ponto, caracterizada
por um processo de ramificação viral. (VOSOUGHI; ROY; ARAL, 2017).
A Internet, cada vez mais, mostra-se como o principal meio de comuni-
cação, sendo responsável pela maior parte da distribuição de informações pelo
mundo. (STRAUSS; ROGERSON, 2002). Lucca (2008, p. 27) aponta para o
surgimento de “uma nova espécie de consumidor [...] – a do consumidor inter-
nauta – e, com ela, a necessidade de proteção normativa, já tão evidente no plano
da economia tradicional”. (LUCCA, 2008, p. 27).
Os boatos são quase tão antigos quanto a história humana, mas, com o ad-
vento da Internet, tornaram-se onipresentes hoje. Os boatos falsos são especial-
mente preocupantes, pois causam danos reais a indivíduos e instituições e, em
geral, são resistentes a correções. Podem ameaçar carreiras políticas, autoridades
públicas e, às vezes, até mesmo a própria democracia. Os boatos mais difundidos
atingem pessoas famosas da política e do entretenimento, empresas grandes ou
56 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

pequenas e, ainda, indivíduos inteiramente desconhecidos do público. Todos nós


somos vítimas, em potencial, dos boatos, incluindo os falsos e maldosos, adverte
Sunstein (2010).
Considerando os chamados “novos direitos”17 deste mundo digital em que
vivemos, mostra-se imperiosa a necessidade de ser criada alguma legislação es-
pecífica sobre a matéria dos boatos ou notícias falsas. Na ausência de um regra-
mento específico com a identificação de direitos e deveres, e seus respectivos
limites para o controle do fenômeno da propagação das fake news, tal controle
deverá ocorrer, como já acontece na prática, mediante a aplicação do Marco
Civil da Internet, na tentativa de vedação ao anonimato e visando estabelecer
parâmetros para utilização do meio virtual com responsabilidade.
Na prática, verifica-se que, por detrás da criação das fake news, há um
enorme interesse econômico, que já vem sendo denominado como a “corrida
do ouro digital chamada clickbait, em português, “caça-clique” (ÉPOCA, 2018,
s/p), onde pessoas lucram a cada curtida, compartilhamento ou, até mesmo, pela
manchete da notícia falsa junto ao GOOGLE e ao Facebook, por exemplo.
Aliás, Sunstein (2010, p. 60-61) pondera que “os boatos se espalham atra-
vés de cascatas informacionais e polarizações de grupo. Ainda mais alarmante é
a descoberta de que a correção de ideias falsas pode aumentar nossa fidelidade a
elas. As correções, portanto, podem ser contraproducentes”.
O fenômeno das fake news na sociedade da informação, em que vivemos,
sugere uma atuação eficiente e tempestiva, por parte do Poder Judiciário, espe-
cialmente pela velocidade de propagação que determinada notícia falsa pode
alcançar e, como consequência, aumentar a extensão dos danos sofridos por
determinada pessoa, seja pública ou não. (LYON, 1998). Há a necessidade de
aprovação de uma lei específica para que todos saibam, exatamente, as consequ-
ências civis (tutela inibitória e de ressarcimento) e penais decorrentes da criação
e propagação de notícias falsas.

17  Sobre a expressão “novos direitos”, sugere-se a leitura de BARILEI, Paolo. Diritti e libertà
fondamentali. In: RICCOBONO, Francesco. (Org.) Nuovi diritti dela società tecnológica. Mi-
lano: Giuffrè, 1991, p.1-12.
CAPÍTULO 4 - 57

Ao tratar de responsabilidade civil dos intermediários, o Marco Civil da


Internet, no Brasil, estabelece uma regra: não se pode exigir das empresas priva-
das, mas sim do Poder Judiciário o papel de decidir o que é lícito ou ilícito, e o
que deve ser removido ou não das redes sociais.
Toda pessoa que cria e veicula determinada notícia falsa na Internet tem de
saber que poderá ser responsabilizada, civil e criminalmente (calúnia, injúria ou
difamação), pela parte prejudicada. Aliás, não só aqueles que criam o conteúdo,
como também e, de forma solidária, todo aquele que compartilha tal material.
Ora, se uma notícia, possivelmente falsa, alcança quase cem mil pessoas em re-
lação às mil pessoas que são atingidas por uma notícia verdadeira, identifica-se
a necessidade de punição, não só dos terceiros, que veiculam as fake news, como
também de toda e qualquer pessoa que ajudar nesta propagação.
Devem-se sopesar as garantias constitucionais do direito de livre expressão
à atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (artigo 5º, IX e 220,
§§ 1.º e 2.º da CF) e da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra
e da imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano mate-
rial ou moral decorrente de sua violação (artigo 5º, X, CF).
A responsabilização pela criação e divulgação de  fake news  pode gerar
dúvidas a respeito do direito à liberdade de expressão e pensamento. É claro
que a liberdade de manifestação do pensamento é o direito de qualquer um
manifestar, livremente, suas opiniões, ideias e pensamentos, sem medo de
retaliação ou censura. Mas é importante esclarecer que o direito à liberdade de
manifestação e pensamento, previsto na Constituição e em outros dispositivos
legais, não autoriza ofensas que possam ferir a honra e a dignidade de uma
pessoa.
Todo jurisdicionado lesado pela propagação irresponsável de notícias fal-
sas tem ao seu dispor duas formas de tutela de direitos. A primeira é a tutela
inibitória, de eficácia imediata e de cognição sumária, cujo objetivo é coagir,
psicologicamente, mediante ameaça de multa judicial (astreinte), para que, de
imediato, sejam removidos os links onde foram veiculadas as notícias, além de
disponibilizar ao ofendido as informações necessárias para possibilitar o rastrea-
58 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

mento do ofensor, a fim de individualizar o causador do dano sofrido. Já a tutela


ressarcitória, existe para minimizar os danos materiais ou morais sofridos pelo
cidadão lesado, conforme veremos a seguir.

3 SOLUÇÕES PARA COIBIR E COMPENSAR


A PROPAGAÇÃO DAS FAKE NEWS: BREVES
CONSIDERAÇÕES SOBRE A TUTELA INIBITÓRIA E
DE RESSARCIMENTO NO DIREITO BRASILEIRO

A tutela inibitória, ilustrada pela multa periódica (astreintes)18 constante


do art. 537 do CPC, ao contrário da indenização (tutela ressarcitória), tem na-
tureza processual (coerção e sanção) e sua finalidade é compelir o devedor ao
cumprimento da obrigação, para que se dê ao credor a tutela específica ou resul-
tado prático equivalente. Após analisar inúmeros conceitos acerca do instituto
das astreintes, podemos conceituá-la como a medida coercitiva protagonista do
CPC/2015, de caráter acessório, cuja finalidade é assegurar a efetividade da tu-
tela específica, na medida em que municia o magistrado, com um meio executivo
idôneo, a atuar sobre a vontade psicológica do devedor em detrimento do direito
do credor e da autoridade do próprio Poder Judiciário.
A multa judicial (astreinte)19, prevista no artigo 537 do CPC, é estipulada
em benefício direto do prejudicado pela demora no cumprimento da obrigação
de fazer ou não fazer, independente de eventual ressarcimento por prejuízos
(perdas e danos) sofridos pelo credor.
Todo cidadão que tiver ciência de uma notícia falsa sua pode acionar o
Poder Judiciário para, em um primeiro momento, buscar a remoção dos links
com os quais foram veiculados tais conteúdos e, posteriormente, mediante a

18  Sua incidência pode dar-se por qualquer medida de tempo (ano, mês, quinzena, semana, dia,
hora, minuto, segundo) ou por quantidade de eventos em que a medida restou descumprida, de-
pendendo da finalidade e do objeto a ser tutelado, sendo devida desde o dia em que se configurar
o descumprimento e incidirá enquanto a decisão não for cumprida.
19  Sobre o tema, sugere-se a leitura do que propomos com a 2.ª edição de nossa obra: PEREI-
RA, Rafael Caselli. A multa judicial (astreinte) e o CPC/2015 – visão teórica, prática e jurispru-
dencial. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.
CAPÍTULO 4 - 59

identificação do ofensor e das demais pessoas que compartilharam essa falsa


informação, ser indenizado pelos danos materiais e morais sofridos.
A esse respeito, Marcel Leonardi observa que o provedor deve exigir, con-
forme a natureza do serviço prestado:

[...] os números de IP atribuídos e utilizados pelo usuário, os números


de telefone utilizados para estabelecer conexão, o endereço físico de ins-
talação dos equipamentos utilizados para conexões de alta velocidade e
demais informações que se fizerem necessárias para prevenir o anonimato
do usuário. (LEONARDI, 2005, p. 82).

Sobre a questão do direito à privacidade dos usuários, é de conhecimento


notório que os dados pessoais fornecidos ao provedor devem ser mantidos em
absoluto sigilo, sendo divulgados apenas quando se constatar a prática de algo
ilícito e mediante ordem judicial, tal como no exemplo anteriormente referido.
No caso de descumprimento à ordem judicial, o quantum alcançado pela
multa judicial (astreinte) poderá ser executado (sendo possível a modulação do valor,
dependendo das circunstâncias do caso concreto, especialmente do comportamento do
credor e do devedor da obrigação, além de outros parâmetros)20, independente da
possibilidade da parte ofendida buscar indenização pelos danos materiais e mo-
rais sofridos. (artigo 50021 - CPC/2015).
A letra da lei vigente, de imediato, demonstra tratar-se as astreintes e as
perdas e danos de procedimentos autônomos e independentes, sendo possível
o ajuizamento de ação indenizatória própria, independentemente de já ter sido
fixada multa pelo descumprimento de ordem judicial em demanda pretérita.
Ao conceituar perdas e danos, o civilista Carlos Roberto Gonçalves, lecio-
na que

20  Sobre o ponto, sugere-se a leitura do capítulo 15, item 15.6 de nossa obra, onde sugerimos
critérios para o momento de fixação e critérios para modulação do quantum final alcançado pela
astreinte – uma proposta de fundamentação qualificada do processo, a partir da sistematização das
bases ideológicas do Novo Código. (PEREIRA, 2018, p. 306-322).
21  A indenização por perdas e danos dar-se-á, sem prejuízo da multa fixada periodicamente,
para compelir o réu ao cumprimento específico da obrigação.
60 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

[...] o inadimplemento do contrato causa, em regra, dano ao contraente


pontual. Este pode ser material, por atingir e diminuir o patrimônio do
lesado, ou simplesmente moral, ou seja, sem repercussão na órbita finan-
ceira deste. O Código Civil ora usa a expressão dano, ora prejuízo e ora
perdas e danos. (GONÇALVES, 2004, p. 373, grifos nossos).

À luz desses princípios, é forçoso concluir que, sempre que os direitos cons-
titucionais são colocados em confronto, um condiciona o outro, atuando como
limites estabelecidos na própria Lei Maior para impedir excessos e arbítrios.
Assim, se ao direito à livre expressão da atividade intelectual e de comunicação
contrapõe-se o direito à inviolabilidade da vida privada, da honra e da imagem,
segue-se, como consequência lógica, que este último condiciona o exercício do
primeiro, conforme leciona Cavalieri Filho (2007).
A multa (tutela inibitória) não é um fim em si mesma, mas o meio que,
portanto, só existe e se justifica para a garantia do moderno processo de resul-
tados através do cumprimento da obrigação determinada que, nada mais é, do
que a entrega do bem da vida, de forma sumária e antecipada, nas obrigações
de fazer e de não fazer. Não visa compensar (tutela ressarcitória) o prejudicado,
que sofreu um dano pelo ato ilícito causado por todo aquele que cria, divulga,
propaga, dissemina e, inclusive, compartilha fake news. Sendo de conhecimento
notório que, em relação à mensuração dos danos inexiste no sistema brasileiro
critérios fixos e objetivos para tanto, propõem-se, neste item, alguns critérios a
serem considerados pelo Poder Judiciário para fixação da indenização por danos
morais pela propagação das fake news.
A nosso ver, a partir do caso concreto, o juiz deverá sempre considerar os
aspectos subjetivos dos envolvidos, tais como: a) condição social, cultural e con-
dição financeira do ofensor e do ofendido; b) a intensidade do abalo psíquico
suportado consubstanciado pela extensão do dano, que poderá ser mensurado
através da quantidade de visualizações e compartilhamentos da notícia falsa,
sendo que, mesmo que tal dano possa ser considerado in re ipsa, ou seja, inde-
pendente de prova, a prova testemunhal ou o resultado de uma eleição em que
determinado político foi derrotado pela quantidade de notícias falsas divulgadas
CAPÍTULO 4 - 61

contra si, podem ser considerados para se alcançar o valor devido, a título de
reparação por danos morais e materiais. Por fim, considerando a relevância do
tema e da gravidade dos danos sofridos pelo ofendido com base em fake news,
que terá sua reputação atinginda pelo resto de sua vida, é imperioso que as con-
denações sejam exemplares, tendo como justificativa: c) o caráter punitivo e, ao
mesmo tempo, pedagógico da medida.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse ponto, cabe frisar que a liberdade de manifestação do pensamento,


assegurada pelo artigo 5º, IV, da CF/88, não é irrestrita, sendo “vedado o ano-
nimato”. Em outras palavras, qualquer um pode se expressar livremente, desde
que se identifique.
Diante disso, quanto mais a web se difunde, maior o desafio de encontrar
um limite para o anonimato de seus usuários, um equilíbrio entre o virtual e o
material, de modo a proporcionar segurança para as inúmeras relações que se
estabelecem via Internet, mas sem tolher a informalidade que lhe é peculiar.
A tutela ressarcitória específica pode coexistir com a tutela inibitória,
quando da prestação da tutela jurisdicional, pois, além de ter fundamento legal
expresso, a Constituição Federal assegura o direito fundamental à tutela efetiva,
e a lei, que lhe deve implementar, prevê a adoção de medidas que asseguram a
recomposição das coisas ao estado anterior ao dano, tutelando adequadamente o
direito no caso concreto. E, sendo caracterizado o dano através dos descumpri-
mentos aqui abordados, nada impede que haja o sucedâneo indenizatório.
Se, ao exercer a liberdade garantida na Constituição, uma pessoa ofender
a dignidade de outra mediante a propagação e compartilhamento de notícias
falsas, surge, então, o direito de indenização, que pode ser configurado em dano
moral e/ou material, haja vista o princípio constitucional de vedação ao ano-
nimato e da dignidade da pessoa humana, salientando, ainda, que o princípio
62 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

constitucional da liberdade de manifestação do pensamento deve ser exercido


com consciência e responsabilidade.
Com a vigência do Marco Civil da Internet, estabeleceu-se no caput e §
único do art. 19, que o provedor de aplicações de Internet somente poderá ser
responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por ter-
ceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no
âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, e dentro do prazo assinalado, tornar
indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições
legais em contrário.
Assim, caso não cumpra com determinada ordem judicial (tutela inibitó-
ria) fixada pelo Poder Judiciário, será solidariamente responsável com aquele
terceiro que criou e divulgou na Internet a notícia falsa, bem como com toda e
qualquer pessoa que compartilhou tal informação.
Pelo artigo 500 do CPC/2015, verifica-se que o fato de ter sido fixada
multa judicial (astreinte), como forma de inibir o dano praticado, não impede
que a parte que sofreu prejuízo morais e materiais decorrentes da propagação da
fake news, possa buscar a reparação de tais danos (tutela ressarcitória).
A concepção do processo, sob o prisma constitucional, através da garantia
da entrega da tutela adequada, tempestiva e efetiva do direito da parte, deve ser
prioridade nos dias atuais, sobretudo, pelo potencial que as fake news têm de se-
rem rapidamente propagadas e atingirem milhares de indivíduos em alguns se-
gundos, maculando a vida de determinada pessoa, pública ou não, para sempre.
Forte nessa afirmação, concluímos que a tutela inibitória mediante fixação
de multa diária, que se projeta para o futuro e almeja impedir a concretização,
reiteração ou continuação do ilícito, e a tutela ressarcitória, que objetiva inde-
nizar (perdas e danos) exatamente este ilícito já praticado, convivem de forma
harmônica, autônoma e, inclusive, cumuláveis, a fim de garantir a maior eficácia
possível ao jurisdicionado que sofreu prejuízos pela propagação irresponsável de
notícias e/ou boatos falsos sobre si.
CAPÍTULO 4 - 63

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CAPÍTULO 5 - 65

5
CLOUD COMPUTING: UM ESTUDO DA
JURISDIÇÃO APLICÁVEL A PARTIR DOS
TERMOS DE SERVIÇO DO DROPBOX E
DA AMAZON WEB SERVICES (AWS)

Vanessa de Oliveira Bernardi Bidinotto22


Andrey Moser Bidinotto23

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem o objetivo de estudar a jurisdição aplicável em


contratos de cloud computing, analisando-se mais especificamente os termos de
serviço do Dropbox e da Amazon Web Services. Para tanto, o estudo será di-
vidido em duas partes, sendo a primeira os conceitos e definições sobre cloud
computing, para após passar a analisar as questões referentes à jurisdição e análise
dos termos de serviço propostos.

22  Mestre em Direito Público pela UNISINOS. Especialista em Relações Internacionais pela
Verbo Jurídico. Pós-graduanda em Tecnologia e Inovações Web pelo SENAC. Bacharela em Di-
reito pelo UniRitter. Professora de Direito Internacional na UNIFIN, empresária e Advogada.
E-mail: vanessaolbernardi@gmail.com
23  Bacharel em Ciências da Computação pela PUCRS. Arquiteto de Software na e-Core e
empresário. E-mail: andreymoser@gmail.com
66 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

Primeiramente, serão abordados os conceitos e definições sobre cloud com-


puting, para após expor suas características essenciais, os três tipos de serviço e
seus métodos de implantação. Por uma questão de delimitação necessária ao
trabalho, destacar-se-á o estudo sobre os três tipos de serviço, quais sejam: i)
Software as a Service (SaaS), ii) Platform as a Service (PaaS), e, iii) Infrastructure
as a Service (IaaS).
Em seguida, será feita uma análise acerca das questões jurisdicionais pre-
vistas no Código de Processo Civil (CPC) brasileiro. Por fim, serão vistos os
termos de uso dos serviços do Dropbox, que consiste em uma solução SaaS, e os
termos de serviço da AWS, que propõem soluções PaaS e IaaS.

2 SERVIÇOS DE NUVENS: ASPECTOS GERAIS

Nesta perspectiva emergiu um novo paradigma de computação distribu-


ída, expandindo além das fronteiras da internet como meios de comunicação,
negócios e sociedade. Assim o campo de pesquisa multidisciplinar é a resultante
destas combinações da nuvem: sob demanda, elasticidade, virtualização, armaze-
namento, terceirização de conteúdo, segurança e web 2.0. (PALLIS, 2010, p. 70).
Ela se destaca pela otimização de uso dos recursos visando um maior ren-
dimento através da sua elasticidade e capacidade de computação. Desta maneira,
devido à complexidade na sua estrutura, ela trabalha com virtualização, escala-
bilidade, interoperabilidade, qualidade de serviço (Qos) e modelos de implanta-
ção. ( JADEJA; MODI, 2012, p. 877).
Tendo em vista os aspectos da nuvem, ela também se destaca no provi-
sionamento facilitado de hardware e/ou software, estimulando a sensação que
os recursos são infinitos, assim ela acompanha os picos de uso sem interferên-
cia manual e/ou planejamento dos administradores (especialistas em redes e/ou
programadores) para o fornecimento dos recursos. (ARMBRUST, 2010, p. 51).
Assim, o modelo de negócio estabelecido na cloud computing é baseado no
pagamento sob consumo, oferecidos por pioneiros na área como Amazon, Goo-
CAPÍTULO 5 - 67

gle, Microsoft, e diversas empresas de tecnologia que seguiram esta tendência.


Considerando os aspectos comercial e social, este modelo equivale a serviços
de utilidade pública, tais como água, luz, telefone e internet. (BUYYA; BRO-
BERG; GOSCINSKI, 2011, p. 3).
O NIST24 apresenta um conceito mais abrangente dos serviços de compu-
tação em nuvem, definindo-o como um modelo baseado em sistemas acessíveis
pela internet e/ou redes privadas, sob demanda, que compartilha recursos confi-
guráveis, e possui provisionamento auto gerenciável e escalável. (MELL, 2011).
Para tanto, o Instituto aponta cinco características essenciais25 do serviço, três
modelos de serviço e quatro formas de implantação.26
Diante da diversidade de recursos da nuvem, nota-se que por natureza
existem serviços diferenciados para cada tipo de usuário e finalidade (MALIKl;
WANI; RASHID, 2018, p. 378). Logo, estes modelos de serviços são separados
em três categorias: i) SaaS – Software as a Service; ii) PaaS – Platform as a Service;
e, iii) IaaS – Infrastructure as a Service. Antes de analisar cada um dos tipos de
serviço, é necessário referir que a arquitetura de um sistema de cloud computing
pode ser dividida em quatro camadas, que são: camada de aplicação, a camada de
plataforma, a camada de infraestrutura, e a camada de hardware.
Para cada camada da arquitetura, o serviço pode se conectar com o usuá-
rio utilizando recursos diferentes, os quais são chamados de serviços. (MALIK;
WANI; RASHID, 2018, p. 378). O primeiro tipo de serviço é o SaaS é locali-
zado na primeira camada e pode ser visualizado quando há fornecimento de um
software completo, sendo o modelo mais visível para o usuário final. (VIEIRA,
2015, p.1218-1219; SRILAKSHMI, 2013, p. 136).

24  O NIST é o Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia, foi fundado em 1901 e faz parte do
Departamento de Comércio dos EUA, sendo um dos mais antigos laboratórios de ciências físicas
do país. (NIST, 2017)
25  As características que compõem esse modelo de serviço são: i) serviço sob demanda, ii) ampla
rede de acessos, iii) agrupamento de recurso, iv) rápida elasticidade, e, v) serviço medido. (MELL,
2011, p. 3).
26  Devido à delimitação do presente artigo, não será apresentado os modelos de implantação,
mas salienta-se que há quatro, quais sejam: público, privado, comunitário ou híbrido. Para saber
mais, ver: Mell, 2011.
68 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

Nessa perspectiva, o SaaS é um modelo de serviço abrangente que con-


templa qualquer tipo de usuário fornecendo aplicações completas e acessíveis.
(PEDROSA, 2011, p. 2). Assim, Microsoft 365, YouTube, Facebook ou Gmail
são exemplos de SaaS.
Já o PaaS encontra-se na segunda camada de serviço e consiste na dispo-
nibilização de ferramentas e/ou recursos para o desenvolvimento e provisiona-
mento de aplicativos, assim suportando a interoperabilidade no desenvolvimen-
to de software. (VIEIRA, 2015, p. 1218-1219, ZHANG, CHENG, BOUTA-
BA, 2010, p. 10).
Nesse cenário, os usuários são por grande maioria programadores, por-
quanto estes não precisam se preocupar com a infraestrutura a qual é totalmente
abstraída neste nível (MALIK; WANI; RASHID, 2018, p. 380). Pode-se citar
como exemplos desses serviços o AWS S3 e Lambda (Amazon), Heroku, Mi-
crosoft Azure Cloud Services e Firebase (Google).
Na última está o IaaS que é o modelo focado no fornecimento de recursos
virtualizados de infraestrutura sob demanda, tais como discos de armazena-
mento, computadores, e componentes de redes. É um modelo utilizado por ad-
ministradores de sistemas operacionais e redes e possui um nível baixíssimo de
abstração de software e altíssimo de hardware (HAJIBABA; GORGIN, 2014,
p. 72, VIEIRA, 2015, p. 1218-1219).
Esse serviço possui como usuários os especialistas de infraestrutura, pos-
suindo o SLA mais complexo dos serviços de computação em nuvem. Pode-se
apresentar como exemplos o Amazon EC2, serviços de firewall ou DataCenters.
Tendo em vista os aspectos da nuvem, torna-se visível a economia quanto
à remoção de despesas em hardware e otimização operacional para empresas e
profissionais focados em desenvolvimento de software. Há ganhos diretos, tais
como a eliminação de custos de infraestruturas, mas também há ganhos indire-
tos que consistem na diminuição de gastos com eletricidade, administradores do
sistema, engenheiros de software, entre outros. (HAJIBABA; GORGIN, 2014,
p. 70-71).
CAPÍTULO 5 - 69

Diante disso, optou-se por estudar especificamente um contrato de ser-


viço SaaS – Dropbox –, bem como os serviços oferecidos pela AWS, os quais
consistem em PaaS e IaaS. Assim, na sequência, serão tratadas as questões de
jurisdição relativas aos dois termos de serviço.

3 ESCOLHENDO A JURISDIÇÃO

O termo jurisdição é a junção da palavra juris, que provém do latim signi-


ficando dizer ou julgar, com a palavra dictos também do latim, que significa di-
reito. Ou seja, jurisdição significa dizer o direito, ou também, aplicar uma norma
abstrata à um caso concreto. (BARROSO, 2003, p. 47).
Nesse viés, a jurisdição é a função que o Estado desenvolve no processo,
com a finalidade de aplicar a lei e fazer justiça, podendo ser definida como a
“aplicação do direito objetivo em relação a uma pretensão”. (MARQUES, 2003,
p. 46). As hipóteses de atuação da jurisdição nacional encontram-se previstas no
CPC e na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).
Importante salientar que o Marco Civil da Internet trouxe a necessidade
de que todas as operações de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de
registros, dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexões, bem
como aplicações de internet, deverão respeitar a legislação brasileira. Assim, in-
dependentemente de o provedor não estar localizado no Brasil, se este oferecer
serviço ao público brasileiro, deverá sempre respeitar nossa legislação (art. 11).
Em 2013 houve a tentativa de aprovação pela Câmara dos Deputados do
Projeto de Lei nº. 5344 o qual dispunha sobre “diretrizes gerais e normas para
a promoção, desenvolvimento e exploração da atividade de computação em nu-
vem”. (BRASIL, 2013). Porém, o projeto não saiu do papel, sendo arquivado em
janeiro de 2015, e, nos dias atuais o Brasil não tem uma legislação específica para
serviços de cloud computing, devendo utilizar-se da legislação geral que se aplica
ao assunto, qual seja, o CPC e a LINDB.
70 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

As legislações abordam tanto as possibilidades de competência concorren-


te – quando o Brasil, assim como outros países são igualmente competentes
27

para julgar uma demanda – quanto a jurisdição exclusiva28 – quando apenas o


Brasil pode julgar a demanda. Enquanto na primeira, o Brasil concorre com
outro país para decidir sobre a demanda, estando ambos aptos para resolvê-la29,
na segunda cabe apenas ao judiciário brasileiro o deslinde da questão.30
Entretanto, é necessário referir que, caso haja cláusula de eleição de foro
elegendo um foro internacional para dirimir o conflito, esta cláusula deverá ser
aplicada, não sendo competência da autoridade judiciária brasileira o seu julga-
mento. Assim prescreve o artigo 25 do CPC, o qual também excetua as hipóte-
ses de competência concorrente e caso haja abusividade da cláusula de eleição
(art. 63, § §3 e 4 do CPC).
Os termos de serviço do Dropbox e da AWS possuem cláusulas que deter-
minam a jurisdição competente para dirimir quaisquer questões judiciais pro-
venientes do contrato. Escolheu-se delimitar o estudo a esses dois serviços, pois
são provedores amplamente conhecidos e renomados, tanto pelos usuários finais
quanto pelos desenvolvedores e técnicos da área de tecnologia da informação
(TI).
O Dropbox é um serviço de armazenamento e compartilhamento de do-
cumentos no qual é possível armazenar documentos e acessá-los através de dife-
rentes dispositivos. Trata-se de uma solução SaaS que é contratada diretamente
pelo usuário final, o qual opta pelos planos apresentados para pessoas físicas ou
jurídicas, de acordo com sua utilização, mas ainda há possibilidade de uso gra-
tuito com limite de espaço limitado (no caso, 2GB de espaço).

27  As hipóteses de competência concorrente estão presentes no art. 12 caput da LINDB e nos
artigos 21 e 22 do CPC. Tratam-se de hipóteses bastante amplas de possibilidade de julgamento
pelo judiciário brasileiro.
28  A única possibilidade de competência exclusiva diz respeito a ações relativas a bens situados
no território nacional (art. 23 CPC e art. 12, §1 LINDB).
29  Na competência concorrente, é possível que a sentença estrangeira proferida por outro país
seja homologada pelo judiciário brasileiro pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), desde que
cumpra os requisitos legais, quais sejam, aqueles previstos nos art. 15 da LINDB e no art. 963 do
CPC.
30  Na competência exclusiva, em regra, não é possível a homologação da sentença estrangeira
proferida por outro país, principalmente por entender que sua homologação feriria a soberania
nacional (art. 17 LINDB).
CAPÍTULO 5 - 71

Por ser essa a camada de maior hierarquia do cloud computing, o objetivo é


fornecer aplicações completas ao usuário final (PEDROSA, 2011, p. 2), logo, o
usuário não gerencia a aplicação, possuindo acesso somente as suas configura-
ções pessoais. (PINHEIRO, 2016, p. 323). Ademais, esse serviço é contratado
diretamente pelo usuário no site da empresa fornecedora.
Por esse motivo, ao contratar o serviço, o usuário deve concordar com os
termos de uso31, o qual assim define:

Você e o Dropbox concordam que qualquer procedimento judicial para


resolver reclamações referentes a estes Termos ou aos Serviços será apre-
sentado aos tribunais federais ou estaduais do Condado de São Francisco,
Califórnia, e estará sujeito às disposições obrigatórias sobre arbitragem.
[...] Caso você resida em um país com leis que fornecem ao consumidor
direito de levar a disputa para seus tribunais locais (como os membros da
União Europeia, por exemplo), este parágrafo não afeta essas exigências.
(DROPBOX, 2018).

Desse modo, como regra geral, todo e qualquer conflito relacionado aos
serviços prestados pela empresa devem ser encaminhados aos tribunais da Cali-
fórnia, Estados Unidos da América. Entretanto, há uma ressalva, qual seja a de
existência de normas que protegem o consumidor, exceção que se entende ser
aplicada no Brasil, diante da existência de normas de proteção ao consumidor –
Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Entretanto, diferentemente dos consumidores, que são os usuários finais
de serviços na nuvem, os serviços da AWS oferecidos pela Amazon tem como
objetivo atingir um outro publico mais específico, quais sejam, os especialistas
de tecnologia. A AWS disponibiliza tanto soluções PaaS como IaaS para desen-
volvedores e especialistas de infraestrutura.
A AWS é uma plataforma da Amazon que “consiste em produtos e servi-
ços em nuvem seguros que oferecem poder computacional, armazenamento de
banco de dados, entrega de conteúdo” (AMAZON, s/d), entre outras soluções

31  Geralmente os termos de uso são contratos apresentados no momento da contratação do


serviço online, gerando o aceite no momento em que o usuário seleciona ou aperta o botão de
‘aceitar termos de uso’.
72 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

PaaS e IaaS. Nesses serviços, cabe ao profissional de tecnologia da informação


contratar o serviço e ler os termos de uso.
Enquanto em uma solução PaaS o desenvolvedor controla os aplicativos
implantados e possui acesso às configurações para o ambiente de hospedagem.
Por outro lado, em uma solução IaaS o especialista de infraestrutura possui o
controle sobre o sistema operacional, o armazenamento e os aplicativos im-
plantados e, possivelmente, possui o controle limitado de componentes de rede
selecionados. (MELL, 2011, p. 2-3).
Dessa forma, ambas soluções proporcionam que um aplicativo seja dispo-
nibilizado, mas não representam o aplicativo em si. Em outras palavras, constitui
uma ferramenta que fornece os recursos necessários para a disponibilização de
um aplicativo32 final.
Assim, não há que se falar que o profissional que contrata o serviço pode
ser considerado consumidor, principalmente porque o próprio CDC o consi-
dera como “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza o serviço como
destinatário final”.33 Assim, uma aquisição que tem como finalidade um fim
profissional não é considerado um ato de consumo. (BENJAMIN, 1988, p. 78).
Mesmo se tratando de empresas, ela apenas pode ser considerada consu-
midora quando compra um produto para uso próprio. Ou seja, pode-se exem-
plificar essa situação com uma oficina mecânica, que pode ser consumidora no
momento em que adquire uma mesa para seu escritório, mas não será conside-
rada consumidora quando compra uma peça para consertar um veículo. (AL-
MEIDA, 2002, p. 14).
Nesse cenário, na contratação de serviços da AWS, não importa se existe
uma empresa ou se é apenas um desenvolvedor contratando seus serviços para
criar um aplicativo pequeno. Principalmente porque não há como se falar em
aplicar o CDC, porquanto não haverá a utilização do serviço como destinatário
final.

32  Aqui utiliza-se a palavra aplicativo como qualquer sistema ou aplicação disponibilizado atra-
vés da Internet, e não com o viés de aplicativo apenas mobile (para celular).
33  Art. 2 CDC.
CAPÍTULO 5 - 73

Desse modo, quanto a estes profissionais, deverão ser aplicados os termos


de serviço que foram apresentados no momento da contratação do serviço, sem
a possibilidade de utilização de hipossuficiência de uma das partes. Os termos
da AWS de referem tribunais e legislações específicas que deverão ser utilizadas
em caso de conflito, no item 13.4 e 13.5, que assim dispõe:

13.4 - Lei Aplicável. As Leis Regentes, sem referência a regras de confli-


tos de leis, regem este Contrato e qualquer disputa de qualquer tipo que
possa surgir entre você e nós. [...]
13.5 - Disputas. Qualquer disputa ou reclamação relacionada de qualquer
forma ao seu uso das Ofertas de Serviço, ou a quaisquer produtos ou
serviços vendidos ou distribuídos pela AWS será adjudicada nos Tribu-
nais Governantes, e você concorda com a jurisdição e foro exclusivos nos
Tribunais Governantes; [...]. (AMAZON s/d).

Ou seja, o foro aplicável e a legislação34 em caso de disputa acerca do con-


trato ou dos serviços prestados pela AWS devem ser discutidos no que a Ama-
zon estipulou de ‘leis regentes’ e ‘tribunais governantes’. Entretanto, em seu tó-
pico de definições, o contrato estabelece o que seriam os conceitos trazidos pelo
contrato, conforme a tabela seguinte:

Leis regentes Tribunais governantes

Amazon
Web Services Leis de Luxemburgo Tribunais de Luxemburgo
EMEA SARL
Amazon Web
Leis de Washington Tribunais de Washington
Services, Inc.

Em outras palavras, há duas possibilidades, caso a contratada seja a Ama-


zon Web Services EMEA SARL, o processo deverá ser proposto no Tribunal de
Luxemburgo, com as leis locais. Entretanto, seja a Amazon Web Services, Inc, o

34  A ideia desse trabalho não é estudar especificamente sobre a legislação a ser aplicada, prin-
cipalmente por uma questão de delimitação do tema, mas preferiu-se trazer de forma ampla a
jurisdição e a legislação aplicável no caso do contrato.
74 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

processo deverá ser interposto nos Tribunais de Washington com aplicação das
leis locais.
Diante disso, é importante lembrar que não apenas as grandes empresas
estão utilizando os recursos de cloud computing, mas principalmente os pequenos
desenvolvedores e as startups. Esses recursos estão sendo amplamente utiliza-
dos, especialmente porque permite a economia de todos os custos computa-
cionais, como infraestrutura e custos indiretos, como eletricidade, engenheiros,
entre outros. (HAJIBABA; GORGIN, 2014, p. 70-71).
Diante disso, é possível identificar uma relação desproporcional, princi-
palmente porque, se de um lado existe a presença de uma das maiores empresas
do mundo, de outro pode haver uma pessoa física ou até mesmo uma pequena
empresa. Assim, há uma lacuna no direito a qual deve ser estudada, para que
possam surgir propostas e soluções que, de certo modo, protejam esses consu-
midores intermediários.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho teve por finalidade estudar a jurisdição aplicável em


contratos de cloud computing a partir da leitura e análise dos termos de serviço
do Dropbox e da Amazon Web Services. Nesse ínterim, primeiramente foram
expostos alguns conceitos e definições sobre os serviços de cloud computing, após
foram analisadas questões referentes à jurisdição e foi realizado um estudo sobre
os termos de serviço propostos.
Nesse cenário, concentrou-se no estudo dos tipos de serviço oferecidos
pelo sistema de cloud computing, quais sejam o SaaS, PaaS e o IaaS, principal-
mente a fim de analisar os termos de serviço do Dropbox, modelo SaaS e da
AWS, modelo PaaS ou IaaS. Entretanto, é necessário referir que os serviços
não são utilizados apenas pelas empresas de grande porte, pelo contrário, são
serviços que estão sendo cada vez mais utilizados por pequenos desenvolvedores
e pelas startups.
CAPÍTULO 5 - 75

A partir disso, pode-se concluir que, apesar do CDC proteger o consu-


midor de produtos SaaS, existe um limbo jurídico com relação à proteção dos
usuários dos serviços da AWS, principalmente porque, muitas vezes, há uma
relação desproporcional entre o desenvolvedor e a pequena empresa e uma das
maiores empresas do mundo (Amazon). Assim, conclui-se como necessário que
o direito busque soluções para resolver problemas como esse, advindos do avan-
ço da tecnologia e da facilidade de contratação de soluções.

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78 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE
CAPÍTULO 6 - 79

6
SMART CONTRACTS EM BLOCKCHAIN:
GARANTIA DE “BOA-FÉ COMPUTACIONAL”
Carolina Trindade Martins Lira35

1 INTRODUÇÃO

A Revolução Digital em curso não só deixou para trás todas as Revoluções


Industriais anteriores, como o modelo de pensamento linear, seu regime ope-
racional repetitivo e o capitalismo à moda antiga. As mudanças foram e ainda
são disruptivas, na medida em que as formas de consumir, de se comunicar e de
trabalhar se transformam enquanto o crescimento e desenvolvimento tecnoló-
gico são exponenciais.
Nesse universo onde quaisquer tipos de transações podem ser transfor-
mados em código, os contratos, que fazem parte da vida do homem moderno
desde o seu início, também têm lugar. A negociação sempre esteve presente no
dia-a-dia das sociedades, permitindo transações acerca de diversos institutos,
das propriedades às promessas. Com o passar do tempo, foi se percebendo que
as espécies contratuais se tornavam antiquadas, ineficientes e insuficientes. Os
acordos verbais eram de fácil manipulação, as testemunhas oculares não eram
seguras ou confiáveis o bastante, e a cooperação entre estranhos era um desafio

35  Acadêmica do curso de Direito da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: ca-
rolt06@gmail.com.
80 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

árduo, além de que a vida útil dos contratos era curta, dificultando a execução
de outros modos que não fossem pelo uso compulsório da força. O contrato
escrito formalizou algumas situações, tornando-se “uma maneira de codificar
uma obrigação, de estabelecer confiança e definir expectativas”. (TAPSCOTT,
2016, p. 137).
É preciso ter em mente que o ecossistema digital em que vivemos pede
mais do que a simples digitalização dos contratos físicos para fins de organização
sistêmica, ou com o cuidado para com os papéis e documentos em geral. Essa
prática já não corresponde às necessidades atuais nem inserem de forma satis-
fatória os contratos nesse meio. Faz-se necessário compreender que, apesar do
apreço especial que os operadores do direito têm pelo papel, seu uso tende a
se tornar cada vez menor. Através dessas novas formas de elaboração do ins-
trumento de contrato, a própria gestão destes é facilitada pela capacidade de
manutenção proporcionada pelo armazenamento computacional e acompanha-
mento eficaz de etapas contratuais. É importante estar apto para fazer uso das
informações apresentadas pelo contrato e decidir de forma mais célere, através
da livre e fácil navegação. (LIMA; NYBO; PAZETTI, 2017).
Os contratos ordinários, previstos em espécies no Código Civil, têm como
função principal a documentação de acordos, sendo assim muito limitados. Se,
tal qual preveem Jensen e Mickling (1976), as corporações e entidades, de modo
geral, são tão somente um conjunto de contratos e relações consensuais, seria
quase mágica a abertura de possibilidades que os softwares distribuídos no blo-
ckchain poderiam ocasionar, facilitando a colaboração entre negócios, bem como
entre eles e os recursos externos. Desta feita, através da redução dos custos de
contratação proporcionada pela tecnologia, faz-se possível a maior abertura das
empresas, com o desenvolvimento de novos relacionamentos fora da sua redoma.
CAPÍTULO 6 - 81

2 A TECNOLOGIA BLOCKCHAIN COMO


BASE PARA OS SMART CONTRACTS

O blockchain, enquanto ferramenta tecnológica, permite programar e gra-


var praticamente todas as coisas e relações que tenham alguma importância ou
valor para as sociedades contemporâneas, inclusive e principalmente, as diversas
transações contratuais que ocorrem todos os dias, desde uma compra ou venda,
passando pelo funcionamento de uma empresa, até uma partilha de bens, por
exemplo.
A tecnologia possui diversas definições que, embora distintas, são comple-
mentares. A sua definição puramente técnica a trata como um banco de dados
de back-end que sustenta um registro distribuído inspecionável abertamente.
Sua definição corporativa a tem, em modelos de negócios, como uma rede de
troca transacional que movimenta valores e ativos entre pares, totalmente sem
intermediários. E, legalmente, o blockchain tem por função primordial a valida-
ção de transações, substituindo as instituições entendidas como confiáveis. Em
síntese, unindo técnica, corporação e legalidade é que se obtém a real e completa
capacidade da tecnologia.
Sua multiplicidade de definições leva a multiplicidade de funções, propor-
cionando elencar diversas propriedades. Dessa forma, a tecnologia blockchain
se molda, simultaneamente, a uma criptomoeda digital, a uma infraestrutura
computacional, a uma plataforma de transação, a um banco de dados descentra-
lizado, a um registro contábil distribuído, a uma plataforma de desenvolvimento,
a um software de código aberto, ao mercado de serviços financeiros, a uma rede
peer-to-peer e a uma camada de serviços confiáveis. Essa é a margem de incidên-
cia atual, havendo ainda uma vasta possibilidade de desenvolvimento dentro do
que já existe e para além do blockchain em si.
A blockchain, por ser uma tecnologia basilar, é de grande impacto, indo
muito além daquelas que têm por função a melhora de processos. É, portanto,
disruptiva em seu potencial de desenvolvimento máximo, elevando o risco ine-
rente às escolhas eventualmente feitas pelos regulamentadores e legisladores,
82 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

que normalmente enfrentam novas tecnologias mantendo-se inertes, deixando


que o mercado evolua e amadureça de maneira autônoma; controlando os gar-
galos, impondo licenciamentos; ou, ainda, inserindo regulamentação automática
ao tempo da transação ou em seu processo. O grande perigo está na heteroge-
neidade de origens dessa regulação que oferece diferentes tipos e intensidades
de restrições, contendo o desenvolvimento técnico da tecnologia antes mesmo
que ela alcance sua fruição. Assim, as regulamentações protegem as instituições
das inovações ao passo que podem prejudicá-las por não evoluírem.
O ideal seria permitir um ecossistema normativo e legislativo ágil e res-
ponsável, no qual o blockchain respirasse e, aos poucos, ganhasse espaço para se
autodesenvolver com riscos reduzidos e estabilidade assegurada a partir da ajuda
dos governos, empresas, indústrias e toda a sociedade civil, posto que é uma
tecnologia revolucionária e poderosa demais para ser repreendida antes mesmo
de expor toda a sua capacidade. Num futuro muito próximo, qualquer queixa ou
problema do mundo, muito provavelmente, possuirá uma alternativa descentra-
lizada para uma solução diretamente relacionada com o blockchain, dispensando
todos os operadores tradicionais.
Nesse contexto, o destaque incide nos Smart Contracts (Contratos Inte-
ligentes), que governam as relações não previstas anteriormente, deixando os
contratos escritos em segundo plano, por tratar-se de maneira mais complexa e
custosa de codificar uma obrigação. O estabelecimento de confiança e definição
de expectativas passou a ocorrer de forma muito mais dinâmica e segura, devido
à autoexecutividade que reduz os custos e níveis de fricção entre os contratantes,
além da transparência sem precedentes que permite fácil acesso ao andamento
de forma plena.

Uma maneira de delinear a ideia de Smart Contract é a de que este é a


representação de um acordo no qual se verifica o cumprimento de uma
condição anteriormente estabelecida, a qual ocasiona uma consequência,
também previamente consentida. Assim, o funcionamento do Smart Con-
tract segue a lógica “se X, então Y”, contida no código pelo qual o contrato
será regido. Com isso, o Smart Contract se torna autoexecutável, na me-
dida em que o adimplemento da condição desencadeia o resultado, sendo
CAPÍTULO 6 - 83

assim, a materialização do conceito de Code is Law, de Lawrence Lessig.


(GONÇALVES, 2017).

Pensado por Nick Szabo na década de 1990, foi descrito como sendo um
protocolo de transação informatizado, que executa os termos de um contrato,
satisfazendo as condições contratuais comuns, minimizando as falhas maliciosas
e acidentais, reduzindo a necessidade de intermediários de confiança. O que a
ferramenta proporciona, economicamente e de forma prática, é a redução dos
custos de elaboração e de execução, além de outros custos de transação. (SZA-
BO, 1997).
Esse conceito foi, porém, melhorado e tomou vida, de forma efetiva, anos
depois, com o advento do blockchain do Bitcoin (NAKAMOTO, 2009), que per-
mitiu as correções das quais necessitava pela ausência de tecnologia disponível
para a implantação da forma pensada inicialmente.
A diferença pontual está na transformação das cláusulas em transações
perpétuas e invioláveis, que ficariam guardadas de forma duradoura, construin-
do um histórico acessível e quase inabalável, na medida em que hackear a rede
requer, por vezes, um gasto de tempo e recursos que não compensaria os lucros
corruptos eventualmente obtidos. Juridicamente, um Smart Contract pode ser
utilizado como rastro auditável, cujo objetivo é provar se os termos acordados
foram ou não cumpridos, favorecendo um compliance36 específico que elimina o
problema da corrupção nas auditorias em virtude da sua imutabilidade.
Desde 2015, a partir do White Paper intitulado “A Next-Generation Smart
Contract and Descentralized Application Plataform”, quando a plataforma Ethe-
reum transformou a programação desses contratos em pilar de sustentação da
estrutura blockchain, o conceito vem sem popularizando. Como decorrência,
acordos sem pagamento deixam de ser uma realidade à medida que as tran-

36  Proveniente do inglês to comply, que significa estar em conformidade, agir de acordo com uma
regra, instrução, comando ou pedido. Na prática, compliance é o conjunto de disciplinas utilizadas
como ferramenta para fazer cumprir as normas legais e regulamentares, as políticas e as diretrizes
estabelecidas institucionalmente, bem como evitar, detectar e tratar desvios ou quaisquer incon-
formidades possíveis.
84 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

sações – sejam elas comerciais ou negociais – se efetuam de forma automática,


bem como a transferência dos recursos.
Em síntese, os contratos permaneceriam com o status de título executivo
pré-negociado, podendo ser levado a juízo e isso nada tem a ver com a tecno-
logia em si. O que realmente muda é a sua forma de execução, que através do
blockchain pode acontecer em um ambiente tecnológico descentralizado, per-
mitindo que a liquidação das obrigações financeiras seja parte acoplada, e não
mais externa e posterior. (BUTTERIN, 2015). A consequência mais imediata
é o aumento da probabilidade de realização dos negócios, pela confiança na sua
efetivação.
Retornando um pouco para o modelo de Szabo, tem-se que uma das prin-
cipais características do programa é o dinamismo, posto que além de captar uma
série de informações normalmente não captáveis, tem o poder de transmiti-las,
bem como de executar decisões automaticamente. (SZABO, 1997).

2.1 PONTOS DESMISTIFICADOS

Como os Contratos Inteligentes são uma estrutura que controla um bem


ou relação valorosa para o mundo real através de ferramentas digitais, deve-se
apontar a importância da distinção entre eles e os acordos contratuais padrão.
A confusão entre as espécies tende a encarecer a quebra de um acordo baseado
em blockchain. De modo reverso, o código aberto e distribuído permite o cum-
primento de algum requisito específico, bem como a prova da efetivação de
determinada condição elencada.
Além disso, questões relacionadas à interpretação dos códigos-base dos
contratos acabam por distanciar do instituto os operadores do direito ou os pró-
prios polos da relação, em virtude da imagem de inacessibilidade que a lingua-
gem informacional transparece. Não restam dúvidas de que os desenvolvedores
com conhecimento acerca de Smart Contracts serão de grande importância, mas
faz-se necessário entender que compreender os códigos e, consequentemente,
CAPÍTULO 6 - 85

aprender a elaborar os Contratos Inteligentes confere liberdade aos mais diver-


sos profissionais, sobretudo aos advogados.
Essas linguagens, normalmente, são derivadas de C++, Java ou Python –
linguagens populares de software, que são de aprendizado relativamente sim-
plificado. A ideia principal precisa ser, porém, que o uso dos blockchain em ge-
ral dispensa o entendimento dos seus pormenores à medida que se torna uma
tecnologia cada vez mais entranhada no nosso dia-a-dia. É basicamente o que
acontece com a internet hoje: fazemos o uso indiscriminado dela sem, nem sem-
pre, compreender a linguagem que está por trás.
A tendência para as gerações futuras é que surjam pontos de entrada de
fácil utilização pelos usuários, desconstruindo a imagem de direcionamento ex-
clusivo para desenvolvedores de solftware que temos hoje. Num futuro próximo,
os “leigos”, isto é, qualquer usuário, poderá elaborar e/ou configurar Contratos
Inteligentes por meio de linguagens simplificadas e de forma segura. Até porque
“se a confiança é a principal unidade do blockchain, então os contratos inteligen-
tes são o que programa as variedades de confiança em aplicações específicas”.
(MOUGAYAR, 2017, p. 48).
Além do mais, a comunicação entre o sistema de funcionamento da tecno-
logia blockchain e os bancos de dados externos, que também era um ponto ques-
tionável, deixou de ser a partir do uso dos Oráculos Inteligentes. A diferença
fundamental de formatos e a incompatibilidade de padrões é superada a partir
da coleta de dados externos à cadeia (off-chain) feita por essa ferramenta, pro-
porcionando uma forma simples e direta de validação das condições acordadas
– conclusão de pagamentos, mudança de preços ou qualquer outra associada ao
cumprimento da obrigação – nos contratos inteligentes. Os Oráculos permitem
que os Smart Contracts atinjam todo o seu potencial e sejam aplicados em prati-
camente todos os campos disponíveis no mundo real.
86 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

3 O COMPORTAMENTO DO CENÁRIO JURÍDICO


NACIONAL FRENTE ÀS INOVAÇÕES CONTRATUAIS

Trazendo para o cenário específico do Direito Brasileiro, tem-se que os


Contratos Inteligentes não são de todo estranhos à legislação vigente em virtude
da liberdade formal contratual como permissivo para esse modelo de contrato.
Embora essa suposta validade jurídica possa vir a conflitar com o sistema bra-
sileiro de Civil Law, o Código Civil de 2002, em seu artigo 104, dispõe que os
negócios jurídicos podem tomar qualquer forma não defesa por lei para a sua
celebração e validação.
Em igual sentido, o artigo 107 do mesmo dispositivo legal – “a validade de
declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei ex-
pressamente exigir” – e a Medida Provisória nº 2.200-2/2001 (art.10 e §2º), que
equipara as forma de assinatura tradicional e eletrônica. Constata-se, portanto,
que, tecnicamente, os Smart Contracts em nada ferem a legislação nacional, ape-
sar de necessitar de regulação mais abrangente.
Ocorre que, uma vez assinado o contrato por todas as partes, este e todos os
seus procedimentos e fases, simultaneamente, cumprem-se de forma automática,
alcançando eficácia plena, em atendimento aos comandos preestabelecidos em
seu código, porque atenta-se apenas aos requisitos objetivos de determinação,
não possuindo relevância os subjetivos. Isto quer dizer que a base do funciona-
mento está na sua natureza irretroativa, que impede a reversão de transações e o
seu retorno ao status quo. Caso as partes queiram ou necessitem, por qualquer razão,
alterar o contrato, deverão formular um novo, ao menos em tese.
Em contrapartida, o ordenamento jurídico nacional exige que os contratos sejam
válidos para serem executados de forma plenamente eficaz, e isso implica em geração
de oportunidade para que as partes aleguem sua nulidade, além de tempo hábil para
que isto ocorra após o ato de assinatura. Caso fosse arguida e reconhecida a nulidade
frente ao judiciário, o juiz poderia interferir na situação prática, autorizando o re-
torno à condição anterior. Os Contratos Inteligentes em blockchain não ocorrem nesses
CAPÍTULO 6 - 87

moldes, posto que imediatamente após a execução de determinada fase do contrato os


bens ou valores, núcleo da transação, alcançam a situação de irreversibilidade.
Em síntese, os Smart Contracts possibilitam a ausência de parcela humana a ser
atacada, levando o objeto do contrato para fora do campo de alcance do poder estatal,
impedindo sua ação. Desta feita, surgem, então, questões acerca da possibilidade de
suspensão da execução dos contratos pelo judiciário em hipótese de vício de consenti-
mento ou exceção de contrato não cumprido, por exemplo.
Tem-se, então, conflitando com os diversos benefícios trazidos pelos Contratos
Inteligentes em blockchain, alguns problemas: em primeiro e principal lugar, essa im-
possibilidade de alteração de cláusulas mal elaboradas ou obsoletas; secundariamente,
questões relacionadas à interpretação dos códigos através dos quais os contratos são
construídos, tanto pelos operadores dos direitos, quanto pelos próprios polos da relação;
por fim: a ausência de legislação reguladora dessa modalidade de contrato ainda ima-
tura no nosso contexto social e jurídico brasileiro.

4 BENEFÍCIOS OFERECIDOS VERSUS DESAFIOS


DE IMPLEMENTAÇÃO: COMO OS SMART
CONTRACTS SE APLICAM AO AGORA

No plano do seu criador, os Contratos Inteligentes melhorariam a execu-


ção dos quatro objetivos básicos do contrato: observabilidade, verificabilidade,
privacidade e obrigatoriedade/autoaplicabilidade. (SZABO, 2002). Não restam
dúvidas de que os Smart Contracts oferecem mais vantagens, em áreas específicas
e importantes, do que as demais espécies contratuais disponíveis hoje. Os seus
equivalentes tradicionais, pela ausência de tecnologia, não oferecem o suporte
de autonomia, confiabilidade, segurança, velocidade, economia e precisão carac-
terísticos da modalidade em pauta.
Os Smart Contracts são autônomos na medida que excluem a necessidade
de confiança em intermediários para validar transações. Se o acordo é feito de
forma autônoma, quem gerencia a execução automática é a rede, reduzindo o
88 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

perigo da manipulação por terceiros. Um indivíduo – ou um grupo deles – seria,


certamente, tendencioso e passível de erro, enquanto a rede de nós é distribuída
e, portanto, neutra.
O princípio da confiança é embasado na criptografia blockchain, que ocorre
em ledge (livro-razão) compartilhado. Dessa forma, os documentos não podem
ser, simplesmente, perdidos em virtude da gravação irreversível que confere a
garantia de legitimidade e transparência dos processos automatizados. Por con-
sequência, o contrato é também seguro, posto que a tecnologia certifica que ele
não será tocado, alterado, perdido ou violado sem a permissão/autorização das
partes que o elaboraram.
Outra grande vantagem competitiva dos Contratos Inteligentes é a econo-
mia tanto de recursos, quanto de tempo. Processar documentos de forma ma-
nual requer tempo e recursos humanos em excesso, ao passo que o código de
software usado pelos Smart Contracts automatiza tarefas, reduzindo a quantidade
de horas e os intermediários necessários aos processos negociais. Mas não se
trata apenas de agilidade e redução de custos, porque a diminuição do número
de erros é intensa em virtude do preenchimento automático de formulários,
tornando o processo de acordo mais preciso.
Em contrapartida, alguns desafios e barreiras ainda precisam ser trabalha-
dos ou combatidos, como é o caso do fator humano. Embora automáticos e au-
toexecutáveis, os códigos são escritos por pessoas que naturalmente podem vir a
cometer erros, o que acaba por gerar problemas complexos pela irreversibilidade
característica do blockchain. Essa característica dura é, sem sobra de dúvidas, a
maior das barreiras na relação entre os sistemas jurídicos e a tecnologia.

4.1 A ARBITRAGEM ENQUANTO INSTRUMENTO APTO A SOLUCIO-


NAR CONFLITOS ADVINDOS DE SMART CONTRACTS

Nesse contexto, a arbitragem é uma alternativa eficaz por aglutinar pro-


fissionais qualificados ao tratamento de questões relacionadas ao casamento do
Direito Digital com os Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos, além
CAPÍTULO 6 - 89

de contribuir para a desconstrução da cultura de excesso de judicialização tipi-


camente brasileiro, que poderia fazer estagnar a dinâmica dos Contratos Inteli-
gentes, ao submetê-los aos prazos impraticáveis dos tribunais nacionais.
Além da arbitragem tradicional como meio alternativo de resolução de
conflitos, nasce uma figura com poderes técnicos para reverter ou alterar essas
transações, entendida e acolhida como uma espécie de árbitro, usando o termo
“Judge as a Service” para defini-la. (GONÇALVES, 2017).
As cortes de arbitragem virtual na estrutura blockchain também visam atuar,
de modo prioritário, na resolução de conflitos contratuais, em especial dos Con-
tratos Inteligentes, através de um “painel de juízes” que é responsável pela reso-
lução das disputas, e cada um deles faz suas próprias investigações das questões
em pauta, proferindo um voto acerca do apurado. Um dos primeiros exemplos,
o Jury.Online, é uma plataforma na qual profissionais podem se inscrever para
adquirir o título de árbitro, formando um mercado descentralizado.
Caminhando no mesmo sentido e contribuindo para a disseminação da
cultura conciliatória, o sistema de precedentes e resolução de demandas repeti-
tivas, disposto nos artigos 926 a 928 do Código de Processo Civil, prevê a uni-
formização jurisprudencial necessária por parte dos tribunais, de modo a trazer
mais coerência para o ordenamento jurídico pátrio, através do respeito às deci-
sões das instâncias superiores e, de igual maneira, a aplicação de determinadas
decisões em incidentes de demandas repetitivas. Na medida em que a organi-
zação, classificação e aplicação dos precedentes podem ser feitas por meio de
algoritmos, a utilização desses recursos pode acontecer de maneira muito mais
proveitosa pelos árbitros, que poderiam constatar a similaridade entre demandas
e precedentes, em meio a tantas outras funcionalidades. A verdadeira inovação
trazida pela jurimetria37 está no seu alvo, isto é, a expectativa de minar a insatis-
fação ainda na sua base, reduzindo a insistente judicialização dos conflitos.

37  Jurimetria é a aplicação de métodos quantitativos, sobretudo a estatística, ao direito, em uma


análise simples e direta. Tem sido utilizada em conjunto com softwares jurídicos. O modelo tenta
prever resultados e oferecer probabilidades e valores envolvidos nestas análises e através delas. Em
síntese, é como se fosse a indústria de tratamento dos dados jurídicos de determinado Estado ou
Tribunal.
90 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

4.2 CONTRATOS INTELIGENTES COMPLEXOS

Questões relacionadas aos Contratos Inteligentes Complexos também


precisam ser levantadas, tendo em vista que a filosofia que embasa o blockchain é
a do consenso, através dos sistemas de reputação. Embora muito eficiente, ela só
consegue diminuir a incerteza do cumprimento do acordo até certo ponto. Faz-
-se, então, necessária a introdução de segurança nesse sistema, que normalmente
é anônimo, além de aberto.
Como resposta, surge um recurso de múltiplas assinaturas denominado
“multisig”, cujo objetivo é oferecer o suporte necessário a transações arbitrá-
rias de qualquer natureza, independente do seu nível de complexidade. Através
do modelo P2SH (“pague para o script hash”), de Gavin Andresen (GITHUB,
2012), foi criado um protocolo de segurança no qual as partes entram em acordo
acerca do número de chaves geradas, como também da quantidade necessária
para completar uma transação. Desta feita, ocorre uma concordância antecipada
a respeito do emprego de um árbitro, terceiro neutro e desinteressado, que con-
tribua para a finalização da transação núcleo do acordo, trazendo segurança e
confiança para as transações anônimas.

4.3 OUTRAS BARREIRAS PASSÍVEIS DE SOLUÇÃO

Para além dos problemas humanos-técnicos, têm-se aqueles relativos à re-


gulamentação. Atualmente o status legal dos Contratos Inteligentes é incerto
em diversos governos. A preocupação é referente, sobretudo, ao risco de as insti-
tuições governamentais optarem pelo estabelecimento de um cenário legislativo
desfavorável aos Smart Contracts.
Por fim, é importante mencionar seus custos de implementação. Embora
os Contratos Inteligentes gerem economia e barateamento de custos relativos
à execução, para sua implementação ele precisam de programação. Logo, faz-se
necessária a participação de codificadores experientes, bem como a adoção de
uma estrutura interna da corporação adaptada à tecnologia blockchain, na inten-
CAPÍTULO 6 - 91

ção de evitar falhas. Ambas as ferramentas aumentam as despesas iniciais, mas


proporcionam uma economia futura muito maior.
Como qualquer tecnologia em ascensão, o blockchain não possui resposta
para todas as questões que surgem, mas com o suporte técnico e a assessoria
profissional adequados é possível encontrar soluções para as barreiras técnicas
– infraestrutura de ecossistemas subdesenvolvida, falta de aplicações maduras,
escassez de desenvolvedores, ferramentas e middleware imaturos, falta de pa-
drões, entre outros. Para aquelas relativas ao mercado ou aos negócios – capital
de risco, problemas de custo, inclusão de novos usuários e massa crítica, dentre
outros; para as barreiras comportamentais/educacionais – falta de compreensão
do valor em potencial e confiança na rede; e para os desafios legais/regulatórios
– ausência de clareza, interferências governamentais, requisitos de compliance,
tributos e demonstrativos. (MOUGAYAR, 2017, p. 70).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que se espera dos Contratos Inteligentes é que, em um futuro próximo,


toda a sociedade se beneficie das vantagens econômicas que eles proporcionam,
através da sua intensa difusão. A sua concretização elimina os intermediários,
fornecendo robustez de confiança e integração de mercados.
Nesse sentido, os profissionais precisam estar atualizados e preparados para
as novas demandas que surgirão a partir das mudanças administrativas, finan-
ceiras e jurídicas que assolarão as empresas em geral. Através delas os negócios
serão acelerados e os conflitos reduzidos, permitindo agilidade e segurança aos
mais diversos setores.
Ao superar os problemas de automação contratual, as potencialidades dos
Contratos Inteligentes se mostrarão inúmeras e promissoras. Muitas delas já es-
tão, inclusive, sendo implementadas. Bons exemplos são os cases da cadeia de su-
primento e logística, dos conteúdos protegidos por direitos autorais, os proces-
sos de eleição, as relações com a Internet das Coisas (IoT), as leis de propriedade
92 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

e as propriedades inteligentes, as implicações do setor imobiliário e dos serviços


financeiros, as aplicações de crédito, os usos relativos às apólices de seguros, bem
como os automóveis e veículos autodirigíveis. (CARDOSO, 2018).
Vale salientar que o raio de possível incidência dos Smart Contracts não é
restrita aos exemplos elencados neste trabalho, mas atinge todas as áreas, lugares,
pessoas, governos, instituições e modelos de mercado, e portanto, necessário
compreender e internalizar o poder desta ferramenta.

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94 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE
CAPÍTULO 7 - 95

7
A TRIBUTAÇÃO DA RENDA DA PESSOA
FÍSICA NO USO DAS CRIPTOMOEDAS:
O CASO DO BITCOIN
Graziela Moraes38

1 INTRODUÇÃO

As criptomoedas surgiram no ano de 2008 e, de lá para cá, dúvidas se aglu-


tinam acerca de sua natureza jurídica e, principalmente, sua longevidade. Esta-
dos que antes rejeitavam a hipótese de reconhecer a moeda, agora pensam em
uma regulamentação, outros estudam a criação de uma moeda virtual própria.
E com essa incerteza quanto à forma de atuação no mercado das criptomoedas,
surge a indagação acerca da incidência ou não de tributação sobre a renda obtida
pelas pessoas físicas com a transação de ditas moedas virtuais.
O estudo propõe-se a analisar a perspectiva sob o prisma da União Eu-
ropeia e do Brasil, não obstante o enfoque principal seja, por ora, o Brasil, e a
forma como a qual o tema é tratado pela Receita Federal brasileira. Acredita
que o presente estudo contribuirá para a comunidade acadêmica e jurídica, na
medida em que visa identificar a lacuna legislativa em relação às criptomoedas.

38  Graziela Moraes, doutoranda em ciências jurídicas pela UAL – Universidade Autônoma de
Lisboa, advogada. E-mail: grazimoraes.adv@gmail.com
96 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

Tendo em vista a existência de inúmeras moedas virtuais, no presente es-


tudo será dada ênfase ao bitcoin, seja pela sua popularidade ou pela restrição de
análise econômica jurídica das demais moedas virtuais hoje existentes.
No intuito de analisar a incidência ou não de tributação na renda obtida
através da transação de bitcoin, iniciaremos pelo estudo das criptomoedas, onde
no primeiro capítulo será feito um breve relato acerca do bitcoin, na tentativa
de situar o leitor acerca do que é e como funciona dita moeda virtual. Ainda no
primeiro capítulo será analisada a natureza jurídica do bitcoin, acompanhada de
algumas ponderações acerca de sua atuação dentro dos Estados da União Eu-
ropeia e do Brasil.
No segundo capítulo, será realizado um breve relato acerca da tributação da
renda das pessoas físicas no Brasil, identificando o fato gerador de tal imposto,
assim como a sua incidência, para uma melhor elucidação do leitor quanto ao
estudo proposto. Por fim, no terceiro e último capítulo, será feita uma análise
acerca da orientação fornecida pela Receita Federal do Brasil para a declaração
da renda obtida por pessoas físicas por meio de transações de bitcoins, assim
como a atual política fiscalizatória dotada pelo ente.
Em desfecho, serão avaliados os resultados do estudo inicialmente propos-
to, de uma forma crítica, mas sem desvincular da legislação hoje vigente, iden-
tificando se a renda obtida através da transação de criptomoeda deve ou não ser
tributada pelas pessoas físicas.

2 CRIPTOMOEDAS

As moedas virtuais, também conhecidas como criptomoedas39, nada mais


são do que um script exponencial, ou seja, um código virtual que pode ser cam-
biado em moeda local ou, em alguns casos, utilizado em transações negociais.

39  A rede especializada em finanças, em março de 2017 explicou que: “A criptomoeda é um


código virtual que pode ser convertido em valores reais. Sua negociação se dá pela internet, sem
burocracias, sem intermediários, caracterizada pela ausência de um sistema monetário regulamen-
tado e da submissão a uma autoridade financeira”. (FINANCEONE, 2017).
CAPÍTULO 7 - 97

Existem inúmeras espécies da “moeda”, das mais variadas naturezas, como lite-
coin; ethereum; ripple; monero, sendo a de maior notoriedade o bitcoin.
Atualmente há quem defenda que a criptomoeda é uma moeda virtual
descentralizada e independente de intervenção estatal, e há quem propague ser
um mero ativo. Não há, pois, na literatura, consenso quantoà natureza jurídica
da criptomoeda, como passaremos a exemplificar. É, pois, uma divisa virtual
criptografada. No caso, não basta ser digital para ser caracterizada como cripto-
moeda, é necessário que se utilize da criptografia.
A insegurança ainda assombra investidores e curiosos, ante a ausência de
regulação e incerteza quanto ao seu reconhecimento. No entanto, ninguém “quer
ficar de fora” da nova tendência, com o que Estados, empresas e companhias
vêm investindo nas suas próprias moedas. (BRANT; OLIVEIRA, 2018).40

2.1 BITCOIN

O Bitcoin é definido como a montanha russa das criptomoedas41. Conside-


rada a criptomoeda mais popular inaugurada no mercado, foi lançado no valor
de U$0,02 em 2009, chegou a ser cotada em U$ 17.549,67 em dezembro de
2017, vindo a sofrer forte queda nos últimos dias, chegando a atingir a monta
de U$ 4.835,72.42
O mérito do desenvolvimento do Bitcoin atribui-se a uma personalidade
conhecida como Satoshi Nakamoto43, o qual se especula seja um integrante do

40  A startup portuguesa Aptoide lançou, em janeiro do corrente ano a moeda virtual AppCoins,
que em menos de 24 horas tornou-se uma das 50 criptomoedas mais valiosas. (NUNES, 2018).
41  Em março do corrente ano foi publicada uma pesquisa realizada pela agência de risco Weiss
Ratings, a qual identificou as piores criptomoedas. Em que pese o Bitcoin não tenha ficado entre
as moedas mais fracas, restou com a nota B-, abaixo de outras criptomoedas consideradas mais
fortes, como a NEO. In SA, Victor. As piores criptomoedas de acordo com a agência de risco
Weiss Ratings. (PORTAL DO BITCOIN, 20 de março de 2018). Atualmente, o bitcoin ocupa a
primeira posição no ranking da CoinMarketCap. (COINMARKETCAP:2018)
42  Gráfico histórico de preço do bitcoin. (BUY BITCOINS WORLDWIDE, 2018)
43  Até hoje a verdadeira identidade de Satoshi Nakamoto é desconhecida. Conta Luis Gallego
que: “[…] In May of the year (2015) one of the most promising announcements on the subject
occurred when Australian computer scientist Craig Wright, after several previous leaks by third
parties, claimed to be said person presenting a series of tests of this authorship, the nevertheless
were questioned by some experts. Craig Wright the promised to broadcast the final test, which
would consist of transferring bitcoins from one of the initial transaction blocks, something that
98 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

movimento cyberpunk.44 Em fins de outubro de 2008, Nakamoto publicou um


artigo onde expôs a sistemática daquela nova moeda. Destacamos os pontos que
colimam aos nossos fins. Iniciamos com Luis Gallego, em Blockchains and Title
Registration. (GALLEGO, 2017):

At the end of October 2008, in the middle of the financial crisis, Satoshi
Nakamoto published, through the Cryptography Mailing List (crypto-
graphy@metzdowd.com) and the page: http.//www.bitcoin.org, his arti-
cle: ‘Bitcoin A Peer-to-Peer Electronic Cash System’, in which the author
presented his design for an electronic payment system without trusted
third parties […]. (GALLEGO, 2017).

Nakamoto (2018) apresenta a ideia de habilitar transação de valores pelo


método peer-to-peer45, ou seja, diretamente de um computador46 para o outro,
sem a interferência de terceiros47 (instituições financeiras).
A visão simples e revolucionária cogita a possiblidade de reduzir custos
e burocracia, e nasceu em meio à crise financeira americana e à descrença nas
instituições financeiras. Explicou que cada detentor da moeda poderá trans-
feri-la ao próximo por assinatura digital, visível a todos, através da tecnologia

the true founder could only do with his private key. Finally, however, he would end up recreating,
alleging the media and police harassment […]”. (GALLEGO, 2017).
44  Movimento dos anos 90 que visava criar meios que possibilitasse excluir o poder governa-
mental, passando para os indivíduos, com meios de pagamento e moeda unicamente virtual.
45  Gabriel Barros, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, explica que o termo peer-to-peer
cuida-se de: “Um tipo de rede de computadores onde cada estação possui capacidades e respon-
sabilidades equivalentes. Isto difere da arquitetura cliente/servidor, no qual alguns computadores
são dedicados a servirem dados a outros”. (DURANTE, 2017).
46  Leia-se em sentido amplo: tablets, smartphones, laptops, etc.: “node”, na acepção técnica.
47  Em que pese a intenção de seu criador, a criatura assim não se desenvolveu. Vejamos: para
ser titular de Bitcoin, é necessário a detenção de uma wallet (carteira); dita carteira é gerenciada
por uma instituição criada para tal fim, a qual gera a chave privada e pública de determinada car-
teira, podendo o detentor possuir mais de uam carteira, dresde que cada uma tenha um numero
de Bitcoins, que não se confundem entre eles. Depois de criar sua carteira, através da qual poderá
transacionar operações ou efetuar pagamentos através do QR Code pessoal, é necessário “carregar”
a wallet, o que pode ser feito através da mineração ou da aquisição de moeda, pelo sistema peer-
-to-peer ou através da aquisição diretamente de Exchange. Ainda que as tarifas e taxas cobradas
pelas Ecxchanges sejam infinitamente desonerosas face às instituições financeiras, fato é que, na
prática, o Bitcoin necessita de terceiros para circular.
CAPÍTULO 7 - 99

nominada blockchain. Assim, o credor poderá verificar as assinaturas pretéritas e


certificar a procedência (i)legítima da moeda que recebe.48
Há outra questão de relevo. O número de Bitcons é limitado49. Ao assim
estabelecer, Satoshi pretende criar um sistema completamente livre da influên-
cia de inflação econômica. Em suas palavras (NAKAMOTO, 2017), “Once a
predetermined number of coins have entered circulation, the incentive can transition
entirely to transaction fees and be completely inflation free”.
Nesse sentido disserta Miguel Ángel, em El País:

E, como o ouro, foi projetado para ser um bem escasso: há somente 21


milhões. E já foram extraídos 16,7 milhões. A um ritmo de 25 bitcoins a
cada dez minutos. Restam poucos, e obtê-los exige cada vez mais tempo,
mais energia e computadores mais poderosos. Uma inércia que a levou à
estratosfera. [os números impressionam] Nos últimos 12 meses50 se valo-
rizou mais de 990%, e sua cotação está acima de 8.000 dólares, a mais alta
até agora. Embora sujeita a fortes vaivéns. Em alguns dias perde 20%, em
outros retoma o valor. Há quem afirme ser um absurdo sua capitalização
ser de 137 bilhões de dólares, porque não está lastreado em nada. (VEJA,
2017).

A extração ou localização de Bitcoins ocorre através da chamada mineração,


que nada mais é do que a solução de um cálculo matemático cuja complexidade
aumenta na medida em que determinado número é incluído no bloco. A má-

48  Benito Arruñada, Professor em Pompeu Fabre University e Barcelona GSE, Barcelona, Es-
panha, em seu artigo especializado no tema capitulado: Blockchain in Public Registries, explica:
“Blockchain is the technology underpinning the Bitcoin cryptocurrency. As with any other type
of money, electronic currency must make sure that it changes hands without any risk of being
diverted and that it is not spent twice by the same individual. Tradicional payment systems solve
theses problemas by relying on central, specializaed and trusted third parties such as banks, pay-
ment systems, credit card companied and clearing houses. In contrast, the Blockchain solves them
with a peer-to-peer solution. It is able to replace the trusted third party because it contains the
history of all previous transactions, and therefore is a source of evidence for establishing who owns
what at any given moment”. (ARRUÑADA, 2017).
49  Existem 24 milhões espalhados pela rede que serão localizados até 2140, o que é possível de
se afirmar por se tratar de um script de cálculo exponencial. Nos primeiros 4 anos de criação lo-
calizavam-se 50 Bitcoins por minuto, passados 4 anos passou-se a encontrar 25 a cada 10 minutos,
daqui a 4 anos serão encontrados 12,5 Bitcoins a cada 20 minutos e assim exponencialmente até
a localização de todos Bitcoins gerados. O tempo é decorrente da complexidade do cálculo que
aumenta gradativamente na medida em que determinado número de Bitcoins for mineirado.
50  Escreveu em 26 de novembro de 2017.
100 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

quina, pessoa ou grupo de pessoas que desvenda o cálculo, encontrando os algo-


ritmos, localizando determinado Bitcoin passa a ser o minerador, com direito a
anexar o Bitcoin na rede, ganhando um percentual de toda transação realizada.51
Em que pese o minerador passe a receber um percentual de toda transação,
sua identidade não é revelada. Assim como a de todos os usuários da criptomo-
eda em questão, o que resta registrado na rede é a carteira de identificação52 do
usuário, não sendo possível identificar sua verdadeira identidade. Pode-se dizer,
pois, que é o anonimato e a inviolabilidade que tornam o Bitcoin valorado.
Ao discorrer acerca do funcionamento do Bitcoin, a autoridade bancária
europeia assim o fez:

Using Bitcoin as an example, virtual currencies can be bought at an ex-


change platform using conventional currency. They are then transferred
to a personalised Bitcoin account known as a ‘digital wallet’. Using this
wallet, consumers can send Bitcoins online to anyone else willing to ac-
cept them, or convert them back into a conventional fiat currency (such as
the Euro, Pound or Dollar). New Bitcoins are created online using com-
puter-intensive software known as ‘Bitcoin miners’. This software allows
consumers to ‘mine’ small amounts of the currency through solving delib-
erately complex algorithms. However, the increase in the money supply
is fixed so only small amounts are released over time.53 (WARNING,
2018).

A forma de surgimento e circulação do Bitcoin incita questionamentos


quanto sua real natureza. Há quem diga que se trata de uma pirâmide financeira,
outros afirmam ser uma bolha econômica, sustentados na alta valoração inde-

51  Sobre o tema, vide Ulrich, 2014.


52  Codificação alfanumérica.
53  Traduzindo: “Usando o Bitcoin como exemplo, moedas virtuais podem ser compradas em
uma plataforma de troca usando moeda convencional. Em seguida, eles são transferidos para
uma conta personalizada do Bitcoin, conhecida como “carteira digital”. Usando esta carteira, os
consumidores podem enviar Bitcoins online para qualquer pessoa que os aceite, ou convertê-los de
volta em uma moeda fiduciária convencional (como o Euro, Libra ou Dólar).Os novos Bitcoins são
criados online usando um software intensivo de computador conhecido como «Bitcoin miners”.
Este software permite que os consumidores “minerem” pequenas quantias da moeda através da
solução deliberada de algoritmos complexos. No entanto, o aumento na oferta monetária é fixo,
de modo que apenas pequenas quantias são liberadas ao longo do tempo.”
CAPÍTULO 7 - 101

pendente de um sistema governamental que a controle. Longe de um consenso,


o domínio do tema ainda desafia estudiosos da economia.

2.2 MOEDA OU COMMODITIE

A classificação é relevante54, pois a resistência à livre circulação inflaciona


o hype especulativo. O monopólio financeiro em vigor tem garras encravadas no
controle da moeda. Mais que isso, é parte da identidade do povo.55 A ideia da
circulação descentralizada descaracteriza e assombra o conservatório milenar.
A internet, assim como a riqueza, não acata fronteiras políticas. Os núme-
ros se inflamam enquanto o sistema resiste. Diante da imposição de restrições
oficiais, visionários acumulam suas riquezas em galpões virtuais. É a commodity
da nova era.56
Lá no início ficou assentado que o direito tem a tarefa de regular as intera-
ções do homem em sociedade, a assegurar a paz social. O direito deve, portanto,
dar conta de estabelecer limites seguros aos atos sociais lícitos e negar curso aos
ilícitos, a bem do interesse público. Cuida-se, o surgimento da moeda criptogra-
fada, da palpitação da evolução da sociedade.
Por sua essência, a valorização das commodities57 oscilam em conformidade
com a tendência do mercado. Oferta e Procura. Em contrapartida, moeda, por
força legal, deve ser emitida por um ente estatal58 e sua aceitação é obrigatória
no país de emissão.59

54  A definição é deveras importante ante a possibilidade de tributação em conformidade com a


natureza jurídica: moeda ou commoditie.
55  A falar do papel integrador da moeda, recorda-nos o firmamento da Zona do Euro: “Moeda
comum a 19 dos 28 países da UE [União Europeia], diariamente utilizada por cerca de 338,6 mi-
lhões de europeus, o euro é a prova mais tangível da integração europeia.” (EUROPA.EU, 2017).
56  “Commodities (ou Commodity, no singular) é um termo em inglês que significa mercadoria.
Nos estudos econômicos, esse vocábulo é empregado para designar produtos de origem primária.
Esses produtos possuem grande valor no mercado mundial e podem ser armazenados durante um
longo período de tempo”. (COMMODITIES, 2017).
57  Sobre o tema vide: (MELLAGI FILHO, 1990).
58  A Constituição Federal do Brasil disciplina no artigo 21, VII, a competência da União para
a emissão de moeda.
59  O cidadão brasileiro não pode se negar a receber pagamento na sua moeda local, o Real, assim
como um cidadão português não pode se negar a receber pagamento em Euro.
102 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

Nesse contexto, o Bitcoin seria uma commoditie que é moeda, ou uma mo-
eda que é commoditie? A questão instiga juristas e economistas mundo a fora.
Não nos resta outra conclusão senão a de que o Bitcoin possui natureza híbrida.
Atualmente há quem o utilize como moeda60 e quem o torna um ativo61.
Não se pode olvidar que moedas são instrumentos monetários hábeis a dar
liquidez às transações, possui ampla aceitação e servem como referência de preço
dentro de sua territorialidade. Diante destas informações cogita-se, ao avaliar as
criptomoedas, a possibilidade de uma moeda isenta de vinculação estatal, novi-
dade esta que estremece o sistema atual e incita discussões.
O Banco Central Europeu (2018), ao definir dita criptomoeda, afirma que
se trata de um ativo especulativo, ante a ausência de autoridade pública central
que a emita, não ser aceita de forma universal, estar suscetível à ataque ciberné-
tico, e ser volátil.
A transação de criptomoedas por meio de bolsa de valores já é realidade no
Brasil, sob a denominação BOMESP – Bolsa de Moedas Virtuais Empresariais
de São Paulo – (UMPIERES, 2017) o que nos faz retomar à ideia de criptomo-
eda como commoditie e não essencialmente moeda.
Hoje, desvirtuando sua essência, é utilizada para especulação de mercado.
Amanhã, será utilizada essencialmente como moeda, só depende de seus ope-
radores.
No Brasil a curiosidade latente inspira estudos acerca do tema. A corte dos
Estados Unidos da América, ao julgar uma ação de fraude, sentenciou que Bit-
coin é commodity62. Na mesma via, o Comitê da Autoridade de Valores Mobiliá-
rios de Israel declarou formalmente que o Bitcoin não é valor mobiliário pois está
ausente o controle por uma entidade central, assim como não estaria limitada

60  Mundo a fora estabelecimentos comerciais vêm aceitando o pagamento de produtos e servi-
ços em Bitcoin.
61  A bolsa de valores de Chicago abriu o mercado de Bitcoin, o tratando como efetivo ativo. Da
mesma forma, há investidores que operam diariamente na compra e venda da criptomoeda.
62  Bitcoin cai após juiz dos EUA decidir que criptomoedas são commodities. In Cabeça Bitcoin
[em linha] 7 Mar. 2018 Disponível em: <https://cabecabitcoin.blogspot.com.br/2018/03/bitcoin-
-cai-apos-juiz-dos-eua-decidir.html?spref=fb&m=1>. Acesso em: 29 mar. 2018.
CAPÍTULO 7 - 103

a um empreendimento de risco, além de não conferir direitos adicionais.63 Ou


seja, a discussão está longe de um consenso.

2.3 VALOR NOMINAL

Enquanto a discussão se acirra, uma questão incita a comunidade avessa


às questões digitais. Afinal, qual o valor nominal do bitcoin? Há quem diga que
para este questionamento não há respostas; há quem afirme que depende da
cotação diária. E seria esse um valor nominal?
Somente no ano de 2017, a moeda teve variações que atingiram o percen-
tual de 1.366% em relação ao ano anterior. No Brasil, a criptomoeda em questão
chegou a atingir o valor de R$ 70.000,00 tendo, no entanto, fechado o ano de
2017 em R$ 49.700,00 (ULRICH, 2018). Já no ano de 2018 a instabilidade to-
mou conta do mercado da moeda digital, com o que nas linhas finais do presente
estudo, atingia o valor comercial de R$ 18.412,00,64 no Brasil.
Ao tratar sobre o tema, Ulrich assim define o Bitcoin: “o seu valor é deter-
minado livremente pelos indivíduos no mercado”. (ULRICH, 2014). Em que
pese tais informações, a mensuração, de fato, unitária de Bitcoin não há como ser
calculada, na medida em que se trata de inovação tecnológica, que nasceu para
ter natureza de moeda, vem sendo utilizada como especulação financeira, e não
se sabe, ao certo, qual seu deslinde.65

63  RIGGS, Wagner. Israel declara que Bitcoin não é valor mobiliário. In Portal do Bitcoin [em
linha] 31 Mar 2018. Disponível em: <https://portaldobitcoin.com/israel-bitcoin-nao-e-valor-
-mobiliario/>. Acesso em: 31 mar. 2018.
64  Bitcoin. In: Infomoney [em linha] Disponível em: <http://www.infomoney.com.br/mercados/
bitcoin>. Acesso em: 19 nov. 2018.
65  Ainda sobre o tema, reportagem veiculada (ULRICH, 2018).
104 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

3 A TRIBUTAÇAO DA RENDA DAS PESSOAS FÍSICAS

Superada a análise das criptomodoedas, em especial do Bitcoin, passamos


à análise da tributação da renda das pessoas física no Brasil. Aqui, importan-
te situar o leitor: no Brasil, as pessoas físicas estao obrigadas à declaração e
recolhimento do imposto sobre a renda, conhecido como IRPF.
Instituido no inciso III do artigo 153 da Constituição Federal brasileira,
artigo dito tributo incide sobre a renda daqueles que tenham auferido um valor
superior ao considerado como isento pela Receita Federal do Brasil. No ano de
2017 o valor mímino da renda anual a incidir tributação foi de R$ 28.559,70.
Não obstante, além da exigência do adimplemento de IRPF a incidir sobre
a renda anual superior ao valor determinado anualmente, também estao obriga-
dos a apresentar a Declaração de Ajuste Anual do imposto de renda da pessoa
física aquele que receber rendimentos isentos superior a R$ 40.0000,00 no pe-
riodo e/ou obtiver, em qualquer mês dentro do ano corrente, ganho de capital66
“na alienação de bens ou direitos, sujeito à incidência do imposto, ou realizou
operações em bolsas de valores, de mercadorias, de futuros e assemelhadas”. Aí
entramos no cerne do nosso problema, como veremos a seguir.
Antes de prosseguir, importante apontar que a tributação não é corolário
lógico da informação ao Fisco do ganho de capital auferido no mês, o que deve
ocorrer através do Programa de Apuração dos Ganhos de Capital emitido pelo
Fisco. Para que seja tributado, é necessário que os ganhos, em um único mês,
sejam superiores ao valor mínimo indicado anualmente pela Receita Federal
do Brasil. Aqui, entende-se por ganhos a subtração entre o valor declarado de
alienação e o valor declarado de aquisição, independente da cotação diária. A
observação se faz necessária, na medida em que a cotação do Bitcoin é extrema-
mente volátil, não se pode esquecer que o Bitcoin foi lançado cotado em U$0,02
e hoje está cotado em U$ 4.390,00 tendo, no entanto, já superado a barreira dos
U$ 12.000,00.

66  Ganho de capital é o lucro obtido com a alienação de determinado bem, obtido através do
cálculo aritmético de redução do custo de aquisição do valor de alienação do bem.
CAPÍTULO 7 - 105

4 A TRIBUTAÇÃO DA RENDA DAS PESSOAS


FÍSICAS NO USO DA CRIPTOMOEDA

O tema ainda é recente e pouca certeza se tem acerca da tributação dos


rendimentos obtidos através da transação de criptomoedas.
Em estudo sob a coordenação de Lefebvre (2015), o tema foi assim abor-
dado:

[...] debemos advertir que nos encontramos ante un marco tributario in-
seguro y aún por definir. Como señala Lambooji, la calificación fiscal de
los BTCs está en su infancia en la mayor parte de las jurisdicciones y, allí
donde existen pronunciamentos, las soluciones adoptadas no son siempre
favorables al uso de este nuevo instrumento. (LEFEBVRE, 2015).

Tem-se, portanto, notório os percalços encontrados até aqui.


Já no âmbito brasileiro, o então ministro da Fazenda, durante encontro do
G-20, no qual um dos temas da pauta foi a “aplicação de impostos e a regula-
mentação das criptomoedas”, afirmou que “a tributação digital é um caminho
natural”. (MARQUES, 2018). Passo seguinte, a Receita Federal do Brasil se
posicionou, enquadrando as criptomoedas como ativo financeiro e, portanto,
declaráveis como bens e direitos.67
Em detrimento de dita orientação, as pessoas físicas que transacionarem
Bitcoin ou qualquer outra criptomoeda, deverão informar ao Fisco, através do
denominado Programa de Apuração dos Ganhos de Capital, e que deverá, no
final do exercicio, ser sincronizada com a Declaração de Ajuste Anual do impos-
to de renda da pessoa física.
Surgem os problemas e indagações. 1) como comprovar a operação? 2)
como declarar todas as transações? 3) é possivel atualizar o valor de aquisição da
criptomoeda? 4) como as operações sao rastreadas? 5) como utilizar a cripto-
moeda como forma de pagamento?

67  Veja Perguntas e Respostas no sitio eletrônico da Receita Federal do Brasil.


106 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

Não é difícil perceber que muito ainda se tem a descobrir sobre o bitcoin e
sua necessidade (ou não) de regulamentação e consequente tributação.
Vejamos.
Primeiro: como comprovar a operação? Temos que as transações com crip-
tomoedas se dão de forma unica e totalmente virtual, razão pela qual é aconse-
lhável que o próprio cidadão que transacionar o “ativo” arquive todas as transa-
ções realizadas da moeda virtual, ainda que através de “print” do comprovante,
para futura comprovação frente ao fisco, se necessário.
Segundo: é possivel atualizar o valor de aquisição da criptomoeda? Dis-
cute-se, ainda, no meio jurídico, a possibilidade de agregar valor às moedas ad-
quiridas em exercícios anteriores, diante da variação da cotação, no intuito de
minorar o ganho de capital futuro o que, em um primeiro momento, não se
vislumbra possível.
Terceiro: como declarar todas as transações? As transações deverao ser de-
claradas por intermédio do programa específico, fornecido pela Receita Federal
do Brasil, Programa de Apuração dos Ganhos de Capital o qual, no final do
exercício deverá ser sincronizado com o programa de Ajuste de Declaração da
renda das pessoas físicas. Nao obstante, é sabido que a maioria das transações
são realizadas através de intermediadoras, as chamadas exchanges de criptomoe-
das. Também é sabido que são inúmeras transações diárias, em virtude das espe-
culações de mercado. Há, portanto, a dúvida não elucidada se há a necessidade
de declarar todas as transações realizadas diariamente ou tão somente a entrada
e saída de ativo da conta da exchange para a conta da pessoa física. A questão
implica análise. O Fisco vem demonstrando que fiscalizará a integralidade das
operações realizadas pelas pessoas físicas, como veremos nas linhas a seguir.
Quarto: como as operações sao rastreadas? Em que pese acredita-se ser,
ainda, irrastreável a totalidade das operações, principalmente as realizadas p2p
(peer-to-peer68), a orientação é de que a declaração seja realizada com a maior
transparência possível, incluindo data e horário da operação, número exato de
moedas adquiridas e nome ou chave de identificação do vendedor, além, claro,

68  É a denominação dada às transações realizadas entre pessoas físicas.


CAPÍTULO 7 - 107

do valor de aquisição. Aqui, é importante referir a atenção que a Receita Federal


vem dando ao tema, já demonstrando uma fiscalização atuante, de modo a con-
tornar a irrastreabilidade do sistema.69
Quinto: se eu utilizar a criptomoeda como forma de pagamento? Em que
pese o Fisco se utilize do termo criptoativo, o que demonstra o posicionamen-
to de que o Bitcoin e as demais moedas virtuais possuem natureza de ativo e,
portanto, não haveria a incidência da tributação denominada ganho de capital
se utilizada como se moeda fosse, importante referir a necessária declaração da
aquisição das moedas virtuais na qualidade de bens e direitos, ante a possível
necessidade futura de atribuir origem ao patrimônio adquirido com a renda
oriunda das transações de ditas moedas.
Notadamente, as orientações da Receita Federal deixam margens a inter-
pretações e questionamentos, os quais não podem ser sanados com exatidão, haja
vista o assunto ser recente e não existirem discussões jurídicas concretas sobre o
tema. No entanto, seu posicionamento é claro e a atuação vem sendo recorrente,
razão pela qual se vislumbra a necessária declaração das transações de forma
mais transparente, consubstanciadas em documentação hábil, para evitar danos
futuros.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer do trabalho, foi tratada inicialmente a euforia da moeda vir-


tual, suas promessas de dinheiro sem Estado, sem instituição financeira, sem
taxas ou controle externo. Em seguida, veio a dúvida acerca da confiabilidade
do Bitcoin, que se trata de um script exponencial que vem sendo minerado na
rede blockchains. A promessa de inviolabilidade e segurança extrema desaparece
diante dos hackers que ainda atingem as operações da moeda virtual.

69  A Receita Federal promulgou instrução normativa criando a obrigação acessória às corretoras
e intermediadoras de criptomoedas, denominadas exchanges, para que informem mensalmente a
integralidade das operações realizadas por seus clientes. Veja que a Receita Federal se utiliza do
termo criptoativo. (RIGGS: 2018)
108 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

Verificou-se ainda que não há na doutrina ou jurisprudência consenso acer-


ca da natureza jurídica da moeda, crucial para o mundo tributário. É necessária
uma regulamentação, ainda que branda, para que classifique as criptomoedas
como moedas ou ativos. É necessário que haja enquadramento das transações
realizadas com ditas “moedas”.
Ao avançar o estudo, constatou-se a incidência de imposto sobre a renda
das pessoas físicas no Brasil, que também incide sobre o chamado ganho de
capital auferido com a alienação de bens e direitos.
Chegando ao cerne do estudo, no que tange à tributação (ou não) dos ren-
dimentos oriundos das transações de criptomoedas se verifica que, em verdade,
há um limbo legislativo, em face da ausência de regulamentação das criptomo-
edas.
Inerte às discussões doutrinárias, a Receita Federal do Brasil se posicionou
enquadrando as “moedas virtuais” como ativos e, portanto, sujeitas à declaração
das transações e apuração de ganho de capital que poderá ter incidencia de tri-
butação, na forma explanada.
Em que pese a aclamada irrastreabilidade da moeda e anonimato das tran-
sações, o Fisco brasileiro editou instrução normativa visando a obrigação aces-
sória das intermediadoras de criptomoedas a fornecer listagem mensal contendo
todas as transações realizadas por seus clientes e, assim, possibilitar a fiscalização
e tributação.
Apesar da complexidade do tema que exposto, pode-se concluir que a au-
sência de declaração das transações efetuadas poderá configurar em acréscimo
patrimonial futuro não justificado.
A regulamentação a nível mundial no tocante à natureza jurídica e im-
plicações tributárias das criptomoedas é medida que passa a se impor, ante a
insegurança jurídica que se apresenta no caso concreto e a multiplicidade de
entendimentos a nivel mundial.
CAPÍTULO 7 - 109

REFERÊNCIAS

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national Review. IPRA CINDER. 1ª ed. Jan-Jun. 2017.

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2018.
CAPÍTULO 8 - 113

8
BLOCKCHAIN: UM ÔNUS OU UM
BÔNUS PARA A CAPACIDADE
ARRECADATÓRIA DOS ESTADOS?70
Melissa Guimarães Castello71

1 INTRODUÇÃO

Blockchain é um “protocolo de confiança”, um sistema descentralizado de


transferência de dados on line, que pode ser utilizado para diversos fins, dentre
os quais vem se destacando a transferência de recursos financeiros entre pessoas
através da internet, a partir do uso de criptomoedas, tais como a bitcoin. A gran-
de inovação do blockchain consiste em dispensar intermediários: indivíduos têm
a alternativa de fazer transações parte-a-parte, sem a necessidade de ninguém
para validar ou assegurar a legitimidade destas transações.

70  Este artigo foi originalmente publicado na Revista Interesse Público, Belo Horizonte, ano 20,
n. 108, p. 161-174, mar/abr 2018.
71  Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul. Professora do curso de Relações Internacio-
nais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM-Sul). Mestre em Direito pela Uni-
versity of Oxford (revalidado pela UFRGS), doutoranda em Direito pela Pontifícia Universidade
Católica do Estado do Rio Grande do Sul, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS,
com intercâmbio na University of Texas at Austin.
Endereço: Rua Marquês do Pombal, 1405/602, Porto Alegre-RS, CEP 90540-001.
Telefone: (51) 9 8187-1124. E-mail: melicastello@hotmail.com
114 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

Como tudo o que é novo, o blockchain vem causando o encanto de alguns


(especialmente daqueles que percebem o intermediário como alguém dispen-
sável, que existe apenas para agregar custos e complexidade à operação pre-
tendida), mas o medo de outros (daqueles que usualmente exercem o papel de
intermediário, e que agora temem se tornar dispensáveis).
O blockchain também está despertando medo nos Estados, que usualmente
se apoiam nestes intermediários para bem exercer as suas competências fiscali-
zatórias. Este último receio é o foco do presente artigo: havendo o incremento
de operações – e especialmente de operações financeiras – através do blockchain,
o Estado perderá o controle destas operações? Ou será que o blockchain pode ser
utilizado pelo Estado, para melhorar sua capacidade de fiscalização?
Conforme será demonstrado, a resposta para estas questões passa pela in-
tersecção entre duas características do blockchain que parecem ser contraditórias:
de um lado, o absoluto controle e rastreabilidade de todas as operações que
ocorrem dentro deste sistema; e de outro, a proteção à privacidade do usuário,
que decorre da estrutura do blockchain.
A primeira parte deste artigo será dedicada a explicar o funcionamento do
blockchain, analisando o motivo pelo qual ele permitiria transações seguras de
parte-a-parte, sem a presença de intermediários. Feita esta contextualização ge-
ral, se passará à segunda parte do trabalho, em que serão abordados os impactos
desta nova tecnologia sobre a capacidade arrecadatória dos Estados.

2 APRESENTANDO O BLOCKCHAIN

Como mencionado na introdução, Blockchain é um sistema de informática.


Swan lhe define como um aplicativo que adiciona à internet uma nova funcio-
nalidade, de forma a propiciar operações econômicas seguras, tanto com paga-
mento imediato em criptomoedas, quanto através do pagamento em moedas
oficiais (SWAN, 2015, p. X-XI). Diante desta definição, percebe-se que o block-
CAPÍTULO 8 - 115

chain é algo maior do que as criptomoedas; o blockchain é a tecnologia de base,


sobre a qual bitcoin e outras funcionalidades podem se desenvolver.
Segundo Iansiti, o blockchain está para o bitcoin da mesma forma que o
protocolo TCP/IP (protocolo de controle de transmissão/protocolo de internet)
está para o e-mail. O primeiro uso do protocolo TCP/IP, em 1972, foi como
base para o e-mail entre pesquisadores no ARPAnet. Contudo, esse protocolo
tinha tamanho potencial de utilização que é, até hoje, a base do desenvolvimento
da tecnologia de internet. É assim que Iansiti vislumbra o blockchain: não como
uma tecnologia “disruptiva”, que gerará rápida inovação; mas como uma tec-
nologia de base para inúmeros novos usos, que ainda estão por ser descobertos.
(IANSITI, 2017, p. 74).
Os aspectos de segurança e confiança são o que faz do blockchain uma tec-
nologia tão promissora, tanto que Don e Alex Tapscott lhe denominam o “pro-
tocolo de confiança” (TAPSCOTT e TAPSCOTT, 2016, p. 3), pois o blockchain
teoricamente assegura a consistência e imutabilidade dos dados ali registrados.
Em seguida, os autores explicam a origem do termo blockchain: a cada dez minu-
tos, todas as transações efetuadas dentro do sistema são verificadas e registradas
em um bloco, que é salvo concomitantemente em computadores de vários vo-
luntários, disponibilizados para este fim; o bloco é vinculado ao bloco anterior,
formando uma corrente (chain). (TAPSCOTT e TAPSCOTT, 2016, p. 7). O
encadeamento destes blocos de informações permite que se rastreiem todas as
operações efetuadas dentro do mesmo blockchain, motivo pelo qual Swan afirma
que esse sistema seria como uma grande planilha de dados. (SWAN, 2015, p.
XI).
A grande inovação do blockchain, segundo Tapscott, é que o sistema conse-
gue ser ao mesmo tempo público – todos têm acesso ao blockchain, que está salvo
na Internet, e não em um provedor de uma empresa particular – e criptografado.
A criptografia é segura e inviolável exatamente por que a cada dez minutos o
sistema gera um novo bloco de informações, e não haveria tempo suficiente para
quebrar as chaves criptográficas antes de se formar um outro novo bloco. (TAP-
SCOTT e TAPSCOTT, 2016, p. 6-7).
116 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

A forma como a criptografia é integrada ao sistema, evitando a necessidade


de um intermediário para validar a chave criptográfica, é a característica mais
estudada do sistema até o presente momento. Contudo, o sistema tem outra
característica central, que, segundo a equipe do Instituto para Direito Tributário
Austríaco e Internacional72, é mais relevante para o direito tributário: a criação
de um livro-razão de todas as operações ocorridas no blockchain (a “planilha de
dados gigante” indicada por Swan), distribuído entre vários blocos, os quais são
salvos em diversos computadores. (BLOCKCHAIN, 2017, p. 4). Esta caracte-
rística abre um leque de oportunidades para o uso do blockchain pela administra-
ção pública, como será debatido na segunda parte do trabalho.
Ainda sobre características gerais do blockchain, Swan (2015, p. IX) identi-
fica três categorias do sistema: blockchain 1.0, aplicável ao dinheiro, um sistema
que permite a transferência de recursos financeiros a partir do que se conven-
cionou chamar de criptomoedas; blockchain 2.0, aplicável a contratos e títulos
de propriedade, dentre outros usos mais complexos do que simples pagamentos
em moeda, e que vem mais correntemente sendo chamado de smart contracts; e
blockchain 3.0, que engloba outros usos, especialmente por governos73, na área de
saúde e nas artes.
Até a presente data, o blockchain 1.0 é o que está mais desenvolvido. Os
pagamentos por bens e serviços ou as transferências monetárias internacio-
nais através de bitcoins são cada vez mais frequentes, tanto que já há empresas
brasileiras especializadas na corretagem destas criptomoedas.74 Tendo em vista
sua crescente popularidade, a natureza jurídica das bitcoins já foi bem estudada

72  O referido Instituto realizou um encontro para estudar os usos do blockchain para fins tribu-
tários nos dias 15 e 16 de março de 2017, conforme informações disponíveis em <https://www.
wu.ac.at/en/taxlaw/institute/gtpc/
current-projects/tax-and-technology/events/>. Acesso em: 22 jun. 2017.
73  A utilização por governos pode se dar de forma ampla, e vêm se destacando os usos para
facilitar o acesso do cidadão a serviços públicos, como ocorre com a unificação de diversos dados
pessoais em um único documento ou portal. Governos também podem utilizar o blockchain para
viabilizar o exercício do direito de voto a partir dos computadores pessoais dos cidadãos. Algumas
das experiências existentes nesta área estão descritas no capítulo 8 do livro de TAPSCOTT (2016,
p. 197-224).
74  Roma e Silva mencionam as corretoras “Mercado Bitcoin” e a “Bitcoin to you” como exemplos
de corretoras de criptomoedas no Brasil (ROMA; SILVA; 2016).
CAPÍTULO 8 - 117

e controvertida pelos autores brasileiros, sendo que a maioria defende que as


criptomoedas não são moedas propriamente ditas. (VERÇOSA, 2016).
Nesse sentido, Silveira, ao tratar do crime de evasão de divisas, afirma que
as bitcoins não seriam moeda, mas meras commodities sem regulação. Por conse-
quência, a evasão de divisas através da transferência de recursos para o exterior
com o uso de criptomoedas não estaria tipificada no Brasil. (SILVEIRA, 2016).
A hipótese de que as bitcoins não são moeda impacta a esfera tributária, pois
a apuração do valor a ser pago a título de tributos está embasada na ideia de
circulação de moeda. Mesmo quando o pagamento é feito em moeda estrangeira,
se pressupõe a conversão para a moeda em curso no território nacional, segundo
o câmbio oficial.75 Por consequência, sustentando-se esta hipótese, haveria difi-
culdade para tributar as operações pagas em bitcoin, pois elas não poderiam ser
tributadas como se operações em moeda estrangeira fossem.
Tanto é assim que a Receita Federal do Brasil considera que as moedas
virtuais, por não serem consideradas como moeda nos termos do marco regu-
latório atual, devem ser declaradas (pelo valor de aquisição) na Ficha Bens e
Direitos, como “outros bens”, equiparando-se a um ativo financeiro. (RECEITA
FEDERAL, 2017). O governo norte-americano também deu este tratamento
tributário às criptomoedas, que naquele país são consideradas propriedade, e não
moeda estrangeira. (KAKAVAND; DE SEVRES; CHILTON, 2017, p. 23).
A Autoridade Bancária Europeia, por sua vez, efetuou um detalhado estu-
do sobre as criptomoedas em julho de 2014, no qual distingue essas moedas das
moedas emitidas por um Banco Central, destacando o risco do consumidor que
realiza operações com criptomoedas, inclusive o risco tributário de vê-las tribu-
tadas como se propriedade fosse. (EUROPEAN, 2017a). Em agosto de 2016,
esta mesma Autoridade emitiu uma nova opinião, em que reconheceu que será
necessário, no futuro, incluir as criptomoedas na revisão da Diretiva (UE) nº.
2015/2366, relativa aos serviços de pagamentos no mercado interno, ainda que
se manifeste contrária à inclusão imediata desta forma de pagamento, devido

75  Vide o artigo 24 do Decreto-lei n° 37/1966: “Para efeito de cálculo do imposto, os valores
expressos em moeda estrangeira serão convertidos em moeda nacional à taxa de câmbio vigente
no momento da ocorrência do fato gerador”.
118 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

aos riscos inerentes às operações com moedas virtuais. (EUROPEAN, 2017b).


Ou seja, a Autoridade Bancária Europeia sinaliza que, em breve, poderá reco-
nhecer o pagamento em criptomoedas como análogo ao pagamento em moeda,
ainda que não tenha segurança para fazer esta afirmação no presente momento.
No Brasil, os autores que têm estudado a matéria fazem questão de enfa-
tizar que as criptomoedas não são a “moeda eletrônica” de que trata o artigo 6º,
III, g, da Lei 12.865/2013, pois a moeda eletrônica consiste nos “recursos ar-
mazenados em dispositivo ou sistema eletrônico que permitem ao usuário final
efetuar transação de pagamento”, e a regulamentação desta lei vinculou a moeda
eletrônica a transações de pagamento em moeda nacional. (BEDICKS, 2017).
Esta também é a posição do Banco Central do Brasil, que, na clara tenta-
tiva de desestimular o uso de moedas virtuais, emitiu o Comunicado nº. 25.306,
de 19 de fevereiro de 2014, através do qual afirma categoricamente que as mo-
edas virtuais não se confundem com a moeda eletrônica de que trata a Lei nº.
12.865/2013, e que a utilização das criptomoedas não é garantida pela autorida-
de monetária nacional. (BANCO CENTRAL, 2017).
Por outro lado, Roma e Silva, afirmam que as corretoras que operam no
mercado de bitcoin prestam serviços que se enquadram no conceito dos serviços
prestados por “instituições de pagamento”, conforme definido no inciso III do
mesmo artigo 6º, de modo que se submeteriam às obrigações instituídas naquela
lei. (ROMA; SILVA; 2016).
Este debate, que é extremamente interessante e útil para o direito tributá-
rio, foge ao escopo do presente artigo. O que se pretende, na segunda parte do
trabalho, é – uma vez conceituado o blockchain – identificar possíveis utilidades
deste sistema para a administração tributária. Ao que parece, a utilidade está não
no blockchain 1.0, que engloba as bitcoins, mas no blockchain 2.0, com seus smart
contracts.
CAPÍTULO 8 - 119

3 O BLOCKCHAIN 2.0 E A ARRECADAÇÃO TRIBUTÁRIA

Conforme mencionado na introdução, o blockchain está despertando receio


nos Estados, que usualmente se apoiam nos intermediários para bem exercer as
suas competências fiscalizatórias. Por outro lado, a administração pública já vem
estudando os possíveis usos do blockchain para facilitar as rotinas de aferição e
arrecadação de tributos, e o Fórum Econômico Mundial estima que a primei-
ra arrecadação de tributos em blockchain ocorrerá em 2023. (AINSWORTH;
SHACT, 2016). Nesta parte do artigo serão debatidas três situações hipotéticas
de uso do blockchain, demonstrando como o Estado poderia se beneficiar com
este uso.
O primeiro exemplo pode ser apresentado da seguinte forma: atualmen-
te, os oficiais registradores de imóveis informam à Receita Federal do Brasil a
ocorrência de transações imobiliárias, nos termos do Decreto nº. 8.764, de 10 de
maio de 2016. Com base nessas informações, prestadas por um intermediário,
a Receita pode fiscalizar se os tributos decorrentes das operações imobiliárias
estão sendo declarados e pagos de forma correta. Suponha-se, como supôs Her-
nando De Soto, que os registros de imóveis sejam substituídos por um sistema
registral em blockchain, no qual comprador e vendedor anotem a transferência do
imóvel, sem a participação do intermediário. (DE SOTO apud TAPSCOTT e
TAPSCOTT, 2016, p. 19). Como esta transação chegaria ao conhecimento do
Estado?
Esse exemplo, que claramente justifica o medo com que os Estados estão
considerando o blockchain, demonstra a potencial utilidade deste para a admi-
nistração pública: a segurança do sistema registral proposto por De Soto de-
corre de sua publicidade. Todos os dados do “sistema de registros de imóveis
do blockchain” estariam pulverizados na rede, podendo ser localizados por todos
os possíveis interessados, inclusive pelo Estado. Segundo De Soto, esse sistema
registral asseguraria que o registro da propriedade fosse efetivamente imutável,
na medida em que, uma vez registrada no blockchain, a propriedade só poderia
ser transferida com a anuência do proprietário, ficando protegida contra os des-
120 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

mandos de eventuais governos autoritários, de modo que o sistema seria muito


mais seguro do que o atual modelo registral.
Ou seja, a própria estrutura do blockchain enquanto protocolo de confian-
ça, que pressupõe a publicidade dos atos como forma de assegurar a segurança
do sistema, permitiria o exercício da competência fiscalizatória do Estado. De
fato, existindo um “sistema de registros de imóveis do blockchain”, este sistema
naturalmente centralizaria todas as operações imobiliárias, e bastaria ao Estado
consultar este sistema para verificar as transações. De certa forma, é um proce-
dimento mais seguro do que o modelo instituído pelo Decreto nº. 8.764/2016,
que pressupõe que o oficial registrador de imóveis efetivamente informe acerca
da operação imobiliária à Receita Federal do Brasil. O Estado não precisaria
confiar na informação prestada pelo intermediário, pois teria acesso à própria
operação, que passaria a ser pública no blockchain.
O “sistema de registros de imóveis do blockchain” já é uma realidade na Su-
écia, que, após um período de cerca de três meses de testes, começou, em julho
de 2017, a registrar as propriedades no blockchain ChromaWay. Com a utilização
do blockchain, o governo sueco espera reduzir os gastos públicos em centenas de
milhões de dólares. (SÁ, 2017).
Imaginando um exemplo um pouco mais complexo, o que ocorreria no
caso de uma operação de compra e venda de bem móvel (não sujeito a registro,
portanto), paga em bitcoin? O vendedor “A” entrega o bem – uma caneta, por
exemplo – e recebe o pagamento em bitcoin. Como bitcoin não se considera mo-
eda (na linha do exposto na primeira parte deste trabalho), e muito menos mo-
eda corrente nacional, o vendedor “A” não teria obrigação de declarar a compra
e venda, para fins de apuração dos tributos incidentes sobre consumo. Seguindo
a orientação da Receita Federal do Brasil de que bitcoins sejam declaradas como
“bens e direitos” para apuração de Imposto de Renda76, o vendedor “A” teria uma
substituição de ativos em seu patrimônio, pois deixaria de ter uma caneta na sua
relação de bens e direitos, passando a ter bitcoin. Se e quando o vendedor “A”
vendesse as bitcoins, a Receita Federal poderia apurar eventual ganho de capital.

76  Vide nota de rodapé nº 5.


CAPÍTULO 8 - 121

Contudo, se o vendedor “A” simplesmente comprasse outro bem – um compu-


tador – pagando por este em bitcoin para o vendedor “B”, o vendedor “A” não
pagaria qualquer tributo.
A operação apresentada acima deixa claro um dos motivos pelos quais os
autores brasileiros vêm estudando a adequada classificação jurídica das bitcoins,
e evidencia a necessidade de regulamentação da matéria, para que operações
comerciais realizadas com pagamento em criptomoedas recebam o tratamento
tributário pertinente.
Contudo, esta operação também evidencia um aspecto favorável ao contro-
le estatal: devido à natureza do blockchain, que constrói um livro-razão de todas
as operações ocorridas, a autoridade fiscal tem como saber quando o vendedor
“A” recebeu bitcoin em pagamento por sua caneta, bem como quantas bitcoins re-
cebeu; também fica sabendo quando “A” usou bitcoin para pagar ao vendedor “B”
pelo computador. Considerando que há sites especializados em apurar o valor
cambial de bitcoin77, é possível saber exatamente qual foi o ganho com estas ope-
rações, e quantificar os tributos devidos a partir deste exercício de fiscalização.
Em síntese, este exemplo apresenta os problemas da operação, sob o ponto
de vista da incidência tributária – na medida em que atualmente é considerada
uma operação de permuta, e, como tal, foge ao padrão da tributação incidente
sobre operações de compra e venda – mas também indica uma possibilidade de
exercício de fiscalização muito maior do que a que existe atualmente. Hoje, os
registros contábeis são elaborados unilateralmente pelos vendedores, e são de
pouca confiabilidade, especialmente quando envolvem valores reduzidos, tais
como os decorrentes da compra de uma caneta. Nas transações no blockchain,
por outro lado, tudo é registrado, e é registrado em mútuo acordo entre as partes
envolvidas. O vendedor “A” não tem como se esquecer de registrar a venda da ca-
neta, pois, caso contrário, não receberia a quantidade correspondente em bitcoin.
Um terceiro exemplo, que seria muito mais sofisticado, ocorreria caso o
Estado começasse a efetivamente utilizar o blockchain, não mais como terceiro
interessado, mas como facilitador do cumprimento de obrigações tributárias por

77  Vide, dentre outros, <https://www.mataf.net/pt/moeda/conversor-BTC-BRL?m2=> e <ht-


tps://pt.coinmill.com/BRL_BTC.html>, ambos com acesso em 22 jun. 2017.
122 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

parte dos contribuintes. Esta utilização passaria pela criação de smart contracts
como ferramenta para fiscalizar os contribuintes.
Segundo Tapscott, smart contracts são um método sem precedentes de
assegurar o cumprimento dos contratos (TAPSCOTT e TAPSCOTT, 2016, p.
47). Esta nova técnica contratual consiste em uma programação autoexecutável,
que dispara comandos automáticos, se e quando alguns eventos acontecem. Um
exemplo simples seria a pré-autorização para que o valor de determinado servi-
ço fosse automaticamente debitado no cartão de crédito, se e quando o serviço
fosse prestado. Um smart contract em blockchain permite esta automatização, e
dá às duas partes envolvidas na operação a segurança de que os comandos pré-
-autorizados não serão modificados, exceto se houver a mútua anuência para
repactuar o acordado, pois o conteúdo registrado no blockchain é imutável, como
já exposto. Além disso, os smart contracts podem ser validados de forma instan-
tânea, por todos os interessados, sem a necessidade de um intermediário nesta
operação. (BLOCKCHAIN, 2017, p. 9).
As autoridades tributárias podem utilizar smart contracts criando um sistema
em blockchain, programado para, toda vez que ocorrer determinado pagamento,
redistribuir os valores, de acordo com percentuais previamente estipulados, alo-
cando para o destinatário final o que lhe compete, e para o Estado o montante
do tributo a ser pago. (KAKAVAND; DE SEVRES; CHILTON, 2017, p. 19).
Essa programação pode ser especialmente útil nos casos de retenção na fonte:
imagine-se que o empregador ordene o pagamento do salário bruto para o em-
pregado, mas que o smart contract já dispõe de todas as informações necessárias
para calcular e pagar o imposto de renda retido na fonte, a contribuição
previdenciária devida pelo empregado, bem como todos os outros descontos
legais pertinentes. No momento em que o empregador autoriza o pagamento, o
valor é distribuído entre todos os envolvidos no processo, e o empregado recebe
seu salário líquido. (BLOCKCHAIN, 2017, p. 7).
Os custos operacionais para “rodar a folha de pagamentos” cairiam drasti-
camente, devido à eliminação de todo o trabalho que o empregador tem todos
os meses, para calcular e arrecadar todos os tributos devidos pelo empregado, pa-
CAPÍTULO 8 - 123

gando ao último somente o salário líquido.78 Dessa forma, o blockchain assegura-


ria um sistema em que os recursos tributários efetivamente verteriam aos cofres
públicos, mas que também seria cômodo para os contribuintes. Esse sistema se
alinha com o modelo de capacidade colaborativa proposto por Leandro Paulsen,
segundo o qual a administração tributária deve simplificar as obrigações acessó-
rias, especialmente quando elas recaem sobre terceiros, como no exemplo dado.
(PAULSEN, 2015, p. 41-42).
Idêntica utilização do blockchain poderia ser imaginada para outras modali-
dades tributárias, tais como os tributos incidentes sobre o consumo. No momen-
to da compra, o smart contract já poderia calcular o ICMS devido, e depositá-lo
na conta bancária do Estado, e não do vendedor (BLOCKCHAIN, 2017, p. 8).
Os três exemplos citados têm um núcleo comum: só é possível imaginar
esse nível de automatização devido ao fato de que o blockchain consiste em um
protocolo de confiança. Os proprietários de imóveis só teriam confiança em
registrar suas propriedades no blockchain se tivessem a convicção de que o re-
gistro não poderia ser modificado. A autoridade tributária só poderia utilizar
os registros de transferência de bitcoin para fins de cobrança de tributos por que
os registros não podem ser alterados. E, da mesma forma, os contribuintes só
estariam dispostos a participar de um sistema em que o dinheiro devido a título
de tributos é automaticamente transferido para o Estado se tivessem absoluta
confiança que os dados não poderiam ser manipulados ou modificados unilate-
ralmente pela administração pública. Portanto, o sistema de criptografia e arma-
zenamento pulverizado do blockchain é essencial para viabilizar esses exemplos,
em especial o terceiro.
Em síntese, ainda que seja compreensível que os Estados tenham receio do
impacto que o blockchain terá em suas atividades, parece certo que o potencial de
ganho para a capacidade arrecadatória dos Estados, decorrente da automatiza-
ção e da transparência das operações em blockchain, se sobrepõe aos riscos oriun-
dos da evasão fiscal. A utilização dessa nova tecnologia traria ganhos para todos

78  Nesses casos, o empregador acaba agindo como um verdadeiro agente do governo, ao calcular
e arrecadar todos os tributos devidos pelo empregado, como bem indicam os autores do texto
BLOCKCHAIN (2017, p. 7).
124 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

os envolvidos no processo de arrecadação de tributos, devido à simplificação dos


procedimentos necessários para aferir a correta carga tributária.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho buscou demonstrar que o sistema blockchain pode ser


utilizado pelos Estados como forma de aprimorar a capacidade de fiscalização
e arrecadação tributária. O texto parte da premissa de que o blockchain é um
protocolo de confiança, centrado nos princípios da publicidade e da segurança
das chaves criptográficas, e que, como tal, propicia a ocorrência de operações
transparentes e confiáveis entre as partes envolvidas. As operações são públi-
cas, pois estão registradas de forma pulverizada, nos computadores de diversos
voluntários, de modo que as informações não ficam todas concentradas em um
provedor de acesso privado. Por outro lado, as informações são seguras, pois
todas as etapas são registradas (na forma de uma “planilha de dados gigante”),
usando um sistema de criptografia extremamente seguro.
Hoje é possível identificar três categorias de blockchain, sendo que a block-
chain 1.0, que se refere ao uso da tecnologia para viabilizar pagamentos, é a mais
desenvolvida. Partindo de um exemplo hipotético, o trabalho demonstra que
esta categoria pode ser útil ao exercício da competência arrecadatória da admi-
nistração pública, exatamente porque todas as operações pagas em criptomoedas
são registradas no blockchain, havendo provas de suas ocorrências e valores.
Na categoria blockchain 2.0, que engloba os smart contracts, se vislumbrou
dois exemplos hipotéticos de uso desta tecnologia pelo Estado. O primeiro
exemplo apresentado diz respeito à criação de um “sistema de registros de imó-
veis do blockchain”, que substituiria o atual modelo de registro de propriedade
imobiliária. Esse novo modelo seria acessível à administração pública, assim
como o atual modelo já é, mas seria possivelmente mais seguro do que o modelo
existente, na medida em que eliminaria o intermediário, e, desta forma, minimi-
zaria o espaço para erros e registros equivocados.
CAPÍTULO 8 - 125

O terceiro exemplo apresentado imagina a administração tributária como


propulsora do uso do blockchain, e não como mera interessada em fiscalizar a tri-
butação decorrente do uso do sistema por particulares. Neste terceiro exemplo,
se vislumbrou a criação de um sistema de pagamentos automatizado em block-
chain, através do qual um smart contract, a partir de uma ordem de pagamento
efetuada pelo particular, distribuiria os valores devidos entre o destinatário da
ordem de pagamento e o Estado, arrecadando os tributos devidos de forma au-
tomática. Esse modelo pode ser especialmente útil para a retenção na fonte dos
tributos decorrentes do pagamento de empregados, bem como para a arrecada-
ção de tributos indiretos, incidentes sobre o consumo.
Apresentado dessa forma, o blockchain parece claramente ser um bônus
para a capacidade arrecadatória dos Estados, na medida em que gera informa-
ções seguras e imutáveis, sobre as quais a administração pública pode se debru-
çar, para bem fiscalizar os tributos declarados e pagos pelos contribuintes.

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128 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE
CAPÍTULO 9 - 129

9
HOME SHARING E SUA APLICAÇÃO NO
BRASIL: UMA ANÁLISE LEGISLATIVA E
FUNDAMENTALISTA DO INSTITUTO
NAS RELAÇÕES LOCATÍCIAS
Marcelo Marques Forni79

1 INTRODUÇÃO

Ao tempo que a sociedade evolui e a tecnologia vai se inserindo no cotidia-


no, tem-se que o direito também se movimenta para dirimir disputas e/ou regu-
lar situações para que o dia-a-dia mantenha a sua “ordem”. De fato, em tempos
de pós-modernidade, facilmente vêm à tona os institutos da sharing economy, ou,
em tradução literal, economia compartilhada. Dentre essa “economia compar-
tilhada”, destacam-se empresas famosas, como Uber, Cabify, Lyft. (exemplos de
ride sharing) e, com relação ao presente estudo, a AirBnB (home sharing).
Curiosamente, o próprio nome do aplicativo AirBnB (Airbed and Break-
fast), já descreve a intenção da relação comercial ali tomada. Em tradução literal,
“colchão de ar e café da manhã” já demonstra que a locação celebrada é veloz e

79  Advogado, formado em Direito pela Universidade de Caixas do Sul – UCS, Advogado, Pós-
-graduando em Direitos dos Negócios pela UNISINOS. E-mail: forni.marcelo@gmail.com
130 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

sem um vínculo profundo, criando assim o instituto do home sharing, esta por
sua vez, estabelecida dentro da economia compartilhada.
A “economia colaborativa”, como também é chamada a sharing economy,
visa utilizar os espaços ociosos da sociedade em prol da própria sociedade, trans-
ferindo a confiança (trust) que antes era provida pelo Estado para uma aplicação
tecnológica ou aos próprios usuários. Neste ponto não se insere a intenção de
lucro da empresa intermediadora e tampouco a solidez dos institutos legislativos
dos países, apenas o objetivo da sharing economy.
Em contraponto a esta liquidez e aparente facilidade trazida ao merca-
do, surgem problemas e preocupações das autoridades. Estas transitam entre
preocupações meramente comerciais, por interesse, por segurança e equilíbrio
comercial, padrão de prestação de serviço ou outros diversos motivos que
aparecem na prática cotidiana. Nesta senda, iniciam-se os questionamentos de
se a regulamentação destes institutos tecnológicos é necessária ou apenas opor-
tuna.
Percebe-se que o home sharing, em especial pelo AirBnB, aplicativo mais
popular neste ramo, aparece para mudar o paradigma de locações no cenário
brasileiro, levando ao direito uma necessidade de adaptação, seja para equalizar
as relações ou para determinar medidas de segurança ao consumidor e ao mer-
cado.

2 SHARING ECONOMY E HOME SHARING

A sharing economy, em tradução literal, economia compartilhada, foi um


instituto criado com o advento de plataformas digitais que surgiram para diluir
paradigmas de mercado baseados na confiança passada pelo Estado quando este
pratica os mesmos atos. Também conhecida como collaborative economy, esta
expressão ganha mais sentido quando exemplificada.
No mercado de transportes, o Uber, por exemplo, apareceu para que cada
pessoa pudesse “pegar carona” com estranhos, sem que estes apresentassem uma
CAPÍTULO 9 - 131

licença dada pelo Estado dizendo que aqueles estranhos são confiáveis (táxis),
por meio de uma plataforma digital que unifica os interesses dos usuários. Ou
seja, a trust que era dada pelo Estado foi transferida para o usuário, para a tecno-
logia aplicada e pelo filtro usado pela empresa nas relações comerciais.
Este implemento, ao chegar no mercado, foi saudado fortemente pela so-
ciedade em razão da facilidade de utilizar o produto e por colocar no mercado
uma competitividade antes quase inexistente ou inadaptada aos parâmetros de
preços confortáveis à sociedade. Nas palavras de Ranchordás, a economia cola-
borativa foi a digitalização de emprestar uma xícara de café.
O Home sharing, apresenta a mesma intenção do aplicativo Uber. Ele per-
mite que estranhos aluguem suas casas, quartos, apartamentos para outros estra-
nhos, sem que exista um prévio contato pessoal ou de avaliação do inquilino. Em
resumo, qualquer imóvel que possua uma finalidade de “hospedagem” pode ser
“locado”80 por um curto espaço de tempo, ou não, sem que este estabelecimento
esteja regulado e assentado nas estruturas tradicionais de confiança ou na prévia
formalidade entre inquilino e locador com análise de crédito, pagamento anteci-
pado da reserva, requerimento de fiador, entre outros requisitos legais.
Em suma, nas palavras de Lima (2017):

A “locação instantânea”, como denominamos essa nova modalidade de


locação, se aperfeiçoa pela intermediação de uma plataforma digital que
disponibiliza imóveis para locação, conforme as características procuradas
pelo usuário, e promove a intermediação, aproximando locador e locatário
e viabilizando na própria plataforma a conclusão do contrato. Não há, na
locação instantânea, a pessoalidade entre locador e locatário, uma pesqui-
sa sobre os antecedentes do potencial locatário, um contrato escrito ou
garantidores. É um modelo de negócios totalmente diferente da locação
convencional.

Assim sendo, percebe-se que estas plataformas funcionam como inter-


mediárias, ligando o interesse daqueles que tem espaço ou tempo ocioso com

80  Utilizei aspas, pois não há definição correta ainda para estes institutos, ao tempo que não se
define como locação por temporada, uma locação comercial ou de qualquer outro gênero, visto
que tal instituto não está regulado, como será demonstrado no decorrer do estudo.
132 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

aquele que precisa daquele espaço ou tempo e que se interesse por aquele espaço
oferecido, basicamente como um Tinder nas relações afetivas, porém no âmbito
da locação. Segundo Ranchordás (2017, p. 5 e 11, grifo original):
Home sharing platforms are primarily “matchmakers” or digital interme-
diaries: They do not provide accommodation, they match supply and demand
by allowing third-parties to post advertisements and peer-review comments on
their websites or mobile applications.
[...]
First, digital platforms that promote home-sharing do note provide ac-
commodation. Rather, they allow individuals to rent their spare rooms or entire
apartments to tourists by providing user-friendly websites, mobile applications,
and relying on social media for additional information about the users.
Assim, percebe-se que o funcionamento do home sharing, de modo co-
mercial, se baseia na confiança entre os usuários, nos feedbacks que cada locador
ganha ao receber um inquilino e que o inquilino recebe do locador, além da con-
fiança que aquela passa para este por meio de fotos do imóvel, contatos breves e
reviews de outros usuários.
Entretanto, este mercado se situa em uma espécie de mundo à parte dos
demais negócios, o que gera transtornos legais, como disputas de competitivi-
dade de mercado, problemas com condomínios residenciais, utilização do bem
locado temporariamente para produtos do crime, entre diversas outras situações
sociais.
Portanto, tem-se que o home sharing introduz à sociedade um novo modo
de se relacionar comercialmente e, principalmente, traz ao direito a necessidade
de um olhar crítico no tocante ao futuro destas plataformas. Crítico no sentido
de adaptar-se a ele e não excluí-lo.
CAPÍTULO 9 - 133

3 DOS ASPECTOS MERCADOLÓGICOS

Diante das informações acima, é inevitável pensar nos efeitos econômicos


que o home sharing gerou. Ao fornecer um serviço mais barato e que, não neces-
sariamente de maior qualidade, mas talvez com maior afeição aos interesses do
inquilino temporário, os aplicativos de home sharing fomentam a economia local,
fazendo girar a verba para um maior número de pessoas e incentivando turismo
nas regiões afetadas.
Em um estudo promovido pelo portal “La Vanguardia” (2017) estima-se
que o uso do AirBnB, no ano de 2015, gerou um impacto econômico na cidade
de Barcelona de 740 milhões de euros, dando aos anfitriões do aplicativo, uma
renda média anual de € 5.100,00 (cinco mil e cem euros).
Na mesma senda, em artigo feito pelo portal “AirBnBCitizen”(2017), tem-
-se que o impacto gerado pelo aplicativo no Brasil inteiro foi de 554,1 milhões
de dólares no ano de 2016.
Portanto, estes dados demonstram no mínimo algo interessante, que é o
impacto social, positivo, trazido por estes meios tecnológicos, abrindo margem
para movimentar a economia de forma significativa.
Por óbvio, este impacto econômico relevante foi noticiado pelas autorida-
des, que, motivadas pela possibilidade de obter renda ante a regulamentação e
taxação de tal atividade, por reclames de problemas de vizinhança em condomí-
nios residenciais, já se movimenta no sentido de promover a regulamentação de
tais medidas.81
Inevitável concluir que o impacto econômico é relevante, que a movimen-
tação mercadológica é favorável, especialmente pela distribuição dos valores dis-
tribuídos com as locações e que a aplicação exemplar desta “tecnologia disrupti-
va” mudou paradigmas locatícios.

81  Como exemplo destas medidas, foi proposto o Projeto de Lei nº. 01-0232/2017 pelo Ve-
reador Paulo Frange (PTB). Pode ser acessado em <http://documentacao.camara.sp.gov.br/iah/
fulltext/projeto/PL0232-2017.pdf.>. Acesso em: 23 nov. 2017.
134 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

4 DOS INSTITUTOS BRASILEIROS


DA LEI DO INQUILINATO

Ao analisar o home sharing é imperioso compará-lo com os institutos bra-


sileiros de locação para que se tenha uma base interessante de estudo visando
talvez uma aplicação da legislação brasileira aos casos concretos ou até mesmo
uma criação de um novo instituto para a Lei do Inquilinato.
Inicia-se, portanto, analisando a locação de imóvel urbano, que como regra
geral aplica o filtro sobre as locações. Quanto à sua constituição, os imóveis
do home sharing são urbanos, visto que a sua destinação não é rural. Portanto,
ao analisar as características gerais para a configuração da locação do imóvel
urbano (cessão de uso, remuneração, contratualidade – dentro deste, diversos
requisitos básicos – e presença de partes intervenientes) vê-se que de certa forma
o contrato do home sharing reger-se-ia pela lei do Inquilinato, e não pelo Código
Civil, apesar das nuances que serão apresentadas a seguir.
O Artigo 1º, parágrafo único, “a”, alínea 4 da Lei nº. 8.245/1991, exclui
da abrangência da Lei, enviando para a responsabilidade do Código Civil, os
serviços de apart-hotéis e semelhantes. Eventualmente, pode-se considerar, em
alguns aspectos, o home sharing como semelhante de uma destas prestações.
Este serviço não tem o cunho de fixação de residência, aproximando-se
muito de um serviço de hotelaria. Nesse sentido se dá ao home sharing, em sua
essência, a sensação de serviço de hotelaria com um quê de locação por tempora-
da, ao tempo que o inquilino goza de determinado bem temporariamente, com
aspectos de hospedagem, com todos os bens que guarnecem o imóvel, mas nem
sempre com serviços que caracterizam este tipo de locação. Tem-se, portanto,
que a intenção do uso destes aplicativos se assemelha muito com a de ir para um
hotel, comparando-se até, mas limitando-se a esse sentido, aos demais aplicati-
vos de aluguel de quartos online, como Booking e Trivago.
Porém, na falta destes serviços de hotelaria e a pretensão de uma estadia
mais longa, o home sharing transita para o aluguel por temporada. Neste, a con-
CAPÍTULO 9 - 135

ceituação da própria norma legal82 é quase feita sob medida. No entanto, quando
analisada em seus detalhes, percebe-se que, apesar da semelhança, o home sha-
ring não pode ser assim enquadrado.
Primeiramente, pelo fato de que, conforme ensina Sílvio de Salvo Venosa
(2013, p. 227), em razão do prazo determinado, a locação exige contrato escri-
to, por ser excepcional e com prazo certo. Além disso, o artigo de lei exige um
rol dos bens móveis que guarnecem o imóvel locado, portanto, não se adapta à
liquidez e rapidez do home sharing, que nem sempre apresenta esses requisitos
mínimos. Apesar de esta última exigência não ser essencial para a formação do
contrato, já descaracteriza aquela do home sharing, que vem para quebrar esta
formalidade e basear-se apenas na ocasião e encontro de vontades.
Portanto, em razão dos breves aspectos acima demonstrados, pode-se ex-
trair que, os aluguéis promovidos pelo home sharing, especialmente pelo apli-
cativo AirBnB, enquadram-se na lei do inquilinato, gozando de seus freios e
contrapesos, sendo, no entanto, necessária a ideal adequação deste instituto na
própria lei, para que não haja problemáticas de definição e aplicação destas be-
nesses, visto que a apreciação de casos sob este prisma se tornaria uma colcha de
retalhos, ao tempo que não há encaixe perfeito dentro da lei.

5 DO FUNCIONAMENTO DO APLICATIVO
COMO INTERMEDIÁRIO

Curiosamente, para a ideal regularização destas locações, é necessário


um entendimento do funcionamento destes facilitadores tecnológicos. Como
um serviço de imobiliária, os aplicativos de home sharing vêm para atuar como

82  Art. 48. Considera-se locação por temporada aquela destinada à residência temporária do
locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu
imóvel e outros fatos que decorram tão somente de determinado tempo, e contada por prazo não
superior a noventa dias, esteja ou não mobiliado o imóvel. Parágrafo único. No caso de alocação
envolver imóvel mobiliado, constará do contrato, obrigatoriamente, a descrição dos móveis e uten-
sílios que o guarnecem, bem como o estado em que se encontram. - Lei nº 8.245/1991. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8245.html>. Acesso em: 13 dez. 2017.
136 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

intermediário de relações. Em seu cerne, traz ao encontro a vontade do locador


com a do locatário, retirando a formalidade e burocracia do mundo imobiliário.
Portanto, neste momento da locação, tem-se que as relações de interação
entre locador, locatário e intermediário são além de imobiliárias, consumeristas.
Ao prever e dar garantias ao locador e ao locatário, percebe-se que o aplicativo
facilitador atua também como prestador de serviços.
Em uma triangulação de relações, tem-se que, por questões atinentes à
locação em si (temporalidade da relação, despejo, ocupação do imóvel, enfim,
questões específicas ao inquilinato, mesmo que breve) regem-se pelas disposi-
ções da Lei nº 8.245/1991. Porém, em relação às prestações de serviço, (prazos
de funcionamento, repasse das verbas, uso do aplicativo), a aplicação da legisla-
ção sobre o caso é estritamente consumerista, seja entre inquilino e plataforma
ou locador e plataforma.
A questão é, a plataforma facilitadora tem sim uma influência enorme so-
bre a relação de confiança ali gerada, ao tempo que promove toda a sistemática
de intermédio e pagamento, não havendo interações externas para promover a
sistemática básica da locação. Ponto este não deve ser excluído da avaliação crí-
tica a ser feita em momento regulatório, mas deve ser devidamente ponderado
para que não seja afastada a iniciativa trazida pela plataforma de atuar no país
regulador.

6 PARADIGMAS ENTRE O DIREITO


COMPARADO E O BRASILEIRO

Em razão da maior utilização, bem como do impacto que os aplicativos


de home sharing, em especial o AirBnB apresentaram na sociedade, os países do
Hemisfério Norte evoluíram mais nas questões legislativas e regulatórias deste
instituto se comparados aos do Hemisfério Sul. O movimento de regulação na
Europa apareceu muito fortemente nas capitais dos principais destinos turísti-
cos da Europa, como Barcelona, Madrid, Paris, Bruxelas e Budapeste, sendo a
CAPÍTULO 9 - 137

legislação criada normalmente municipal. Em alguns casos, como de Portugal,


a legislação aparece em âmbito nacional (Decreto-Lei nº 128/2014, que versa
sobre alojamento local – como é nomeado o home sharing naquele país).
A principal motivação para as cidades que iniciaram essa regulamentação
era preservação da qualidade de serviços aos turistas, visto que são grandes polos
exploradores do turismo. Basicamente, as regulamentações buscaram aproximar
as acomodações fornecidas pelos aplicativos de compartilhamento de residência
(normalmente sem grandes instalações de segurança comercial e serviços) às
acomodações tradicionais. Por outro lado, a regulamentação apareceu para sanar
alguns problemas que alguns países, como a Suécia, encontravam no seu coti-
diano, conforme explica Ranchordás (2017, p. 46), “Housing shortage in Swedish
citites has been a problem for many decades and it continues to remain a very impor-
tant challenge in Stockholm”.
Em Bruxelas, por exemplo, os locatários que utilizam o home sharing foram
obrigados a adaptar-se a alguns regramentos do Ordonnancerelative à l’héber-
gementtouristique (legislação nacional referente a locações), que exigiu algumas
medidas como impor a toda acomodação de home sharing ter água quente e fria,
sistema de aquecimento funcionando, ventilação, tratamento de esgoto, entre
outros. Nesse sentido explicou Ranchordás (2017, p. 36 e 37, grifo original):
At the moment, Airbnb and other home-sharing platforms hosts must
take the following legal framework into account:
a) Articles 23 and 39 of the Belgian Constitution: basis for the right to
salubrious and “decent” accommodation and the regional regulation of accom-
modation;
b) Code du logement de Bruxelles: general dispositions on accommoda-
tion, including the definition of “logement” (accommodation) (article 2), the
imposition of minimal requirements of safety, salubrity, and equipment, nota-
bly that the accommodation must have hot and cold water, a working heating
system, ventilation, and sewage (article 4), as well as the prohibition to lease
accommodation that does not comply with these minimal requirements (article
5);
138 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

c) Ordonnance relative à l’ hébergementtouristique du 8 mai 2014 as mo-


dified by the Ordonnance du 10 juin 2015: regulates tourist accommodation
by distinguishing the rules applicable to each category (see below for further
details);
d) Arrêté du Gouvernment de la Région de Bruxelles-Capitale du 24 mars
2016 portant execution de l’ ordonnance du 8 mai 2014 relative à l’ héberge-
menttouristique: this implementation decree establishes a number of specific
rules for the authorization procedure, fire safety certification, quality of the unit
and even type and number of furniture and amenities required.
Em contrapartida, ao analisar a legislação portuguesa, percebe-se que esta
aproxima os estabelecimentos utilizados pelo home sharing àqueles regramentos
já existentes, aproximando-o de sistemas de hotelaria e elencando-os em um
mesmo rol de categoria denominada “alojamento local”. Este, por sua vez, deter-
mina três possíveis formas de alojamento, sendo elas a Moradia, Apartamento
e Estabelecimento de hospedagem apontando pequenas diferenças entre cada
um deles.
Ao apresentar uma classificação “autônoma” e nacional, a legislação portu-
guesa inova, mas não necessariamente traz segurança. Isso pois tipifica as moda-
lidades de locação que se inserem nesse meio buscando aproximar a tecnologia à
segurança jurídica. No entanto, tipificações legislativas hão de ser bem redigidas
e ponderadas para que na sua vigência não tragam mais problemas do que bene-
fícios. Pode-se citar como exemplo o primeiro artigo do referido decreto:
1) Consideram -se «estabelecimentos de alojamento local» aqueles que
prestem serviços de alojamento temporário a turistas, mediante remuneração, e
que reúnam os requisitos previstos no presente decreto -lei.
Ao ler rapidamente o artigo, pode-se crer que tudo está nos conformes. No
entanto, o referido texto impõe uma limitação do alojamento local para que este
seja utilizado apenas por “turistas”. Nesse sentido, em eventual projeto de legis-
lação brasileira para a regulamentação do home sharing seria prudente olhar para
nossos institutos, como o da locação por temporada83, que prevê a destinação do

83  Interessante observar novamente o artigo 48 da lei de locações (Lei 8.245/1991) anterior-
mente citada.
CAPÍTULO 9 - 139

imóvel para aquele que “pratica lazer, realização de cursos, tratamento de saúde,
feitura de obras em seu imóvel e outros fatos que decorrem tão-somente de de-
terminado tempo, tornando mais flexível a atuação do aplicativo, por exemplo.
Em contrapartida, a cidade de Estocolmo, por exemplo, não possui um uso
disseminado deste tipo de tecnologia. Apesar da sua alta capacidade financeira
e falta de estabelecimentos de hospedagem a sua preocupação no uso dos apli-
cativos é a segurança pública (ao tempo que poderia ser utilizado para facilitar o
tráfico humano), a insatisfação das “associações de condomínio” (em virtude do
trânsito de pessoas estranhas em áreas comuns de prédios) e por fim, a evasão
fiscal em face da não regularização. (RANCHORDÁS, p. 45, 46).
Ações semelhantes estouram no Brasil. Em especial as disputas entre con-
domínios e locadores de AirBnB, a exemplo da decisão proferida no processo nº
0002073-28.2017.8.16.0001, da 1ª Vara Cível de Curitiba, contrapondo direi-
tos de vizinhança e sossego com os direitos de uso do bem, dando prevalência a
este, priorizando o direito de propriedade.
E assim, por todo o globo o AirBnB e os aplicativos de home sharing vem
trazendo impactos em diversas sociedades. Barcelona como já citado, Paris re-
centemente promovendo ameaças ao aplicativo para que retirasse da lista de
imóveis disponíveis para aluguel diversos apartamentos que não se enquadram
na legislação municipal regulatória (que no caso de Paris se trata apenas de um
registro municipal do imóvel para fins de controle tributário) (AFP, 2017), e
Londres são só alguns exemplos.
Portanto, brevemente aqui exposto que em diversos países, mas principal-
mente cidades, o AirBnB já atua com força, bem como as autoridades para
regulamentar tal aplicação. A regulamentação, em países colaborativos com o
aplicativo e a tecnologia aplicada (LA VANGUARDIA, 2017) se limita a uma
inscrição ou registro municipal para controle, com algumas determinações de
segurança e sem outras imposições limitantes. Por outro lado, em países em que
o lobby do turismo ou é forte, as limitações são maiores, desmotivando o cresci-
mento deste instituto de locações voláteis.
140 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste breve estudo, nota-se que a economia compartilhada, o home sharing


(aqui figurado pelo AirBnB) são institutos que chegam para ficar. Talvez não
da mesma forma em que se encontram hoje, graças à sua volatilidade e liquidez,
mas de fato, pela maneira em que alteram o funcionamento de mercados tradi-
cionais.
Nesse viés, tem-se que um regulamento seja interessante, no sentido de
que estas tecnologias não se tornem institutos em descontrole e sem proteção
legal, em especial para o consumidor. O Brasil, por ter em sua cartilha uma le-
gislação contundente e concreta no tocante às locações (Lei do Inquilinato – nº.
8.245/91), deve atentar-se a estes novos parâmetros de atuação mercadológica
para conseguir uma alteração legislativa equivalente ao resto da lei e que não
prejudique a iniciativa tecnológica e nem o consumidor final.
Os exemplos práticos e esboços para a análise estão em peso no direi-
to comparado, bastando apenas um estudo intenso para a criação de um novo
instituto que regule as locações voláteis. Basta aos legisladores e estudiosos um
estudo de observação, aplicação direta e que afete o mínimo possível a operação
destes aplicativos.

REFERÊNCIAS

AFP. Paris threatens Airbnb with court case. Disponível em: <https://www.afp.com/
en/news/2266/paris-threatens-airbnb-court-case-doc-v25nt1.>. Acesso em: 13 dez.
2017.

AIRBNB CITIZEN. Airbnb no Brasil: Atividade econômica e comunidade. Disponí-


vel em: <https://www.airbnbcitizen.com/pt-br/airbnb-in-brazil/>. Acesso em: 23 nov.
2017.

BRASIL. Poder Judiciário do Estado do Paraná. Processo nº 0002073-


28.2017.8.16.0001. Magistrada Débora Demarchi Mendes de Melo. Decisão proferida
CAPÍTULO 9 - 141

em 1º de Novembro de 2017. Acesso em: 13 dez. 2017.

CONJUR. Condomínio pode definir regras para locação por meio de aplicativo. Dis-
ponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-nov-11/flavio-lima-condominio-defi-
nir-regras-locacao-via-app.>. Acesso em: 22 nov. 2017.

LAVANGUARDIA. Europa adelanta a Españaen la regularización del ‘home sharing’.


Disponível em: <http://www.lavanguardia.com/economia/20160429/401450038345/
airbnb-avanza-regulacion-home-sharing-europa.html.>. Acesso em: 23 nov. 2017.

RANCHORDÁS, Sofia (Org.). Home-Sharing in the Digital Economy: The cases of


Brussels, Stockholm and Budapest. 2017. 116 p. Disponível em: < https://ec.europa.
eu/docsroom/documents/16950/attachments/1/translations/en/renditions/native>.
Acesso em: 10 dez. 2017.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Lei do Inquilinato Comentada: Doutrina e Prática. 12ª ed.
São Paulo: Editora Atlas, 2013, p. 227.
142 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE
CAPÍTULO 10 - 143

10
PROTEÇÃO DE SOFTWARES NO
BRASIL: ASPECTOS PRÁTICOS EM
TEMPOS DE CLOUD COMPUTING
Marcílio Henrique Guedes Drummond84

1 INTRODUÇÃO

O mundo passa pelo fenômeno chamado de Transformação Digital, que


é o uso da tecnologia para aumentar de forma significativa a performance e o
alcance das empresas por meio da mudança como os negócios são feitos.
Como elementos da transformação digital pode-se mencionar a transfor-
mação da experiência do cliente, a transformação dos processos operacionais e
a transformação dos modelos de negócio. (TRANSFORMAÇÃO DIGITAL,
2018).
Na transformação da experiência do cliente deve-se atentar a tópicos como
o atendimento ao cliente, novas formas de engajamento com ele, bem como
maior atenção aos pontos de contato dele com a empresa. No campo da trans-
formação dos processos operacionais, tem-se digitalização de processos, mudan-

84  Advogado Sócio do Guedes Drummond Advogados. Co-fundador do Legal Hackers Sete
Lagoas-MG. Pós-Graduado em Direito Público pela Universidade de Coimbra (Uruguai). Mes-
trando em Direito das Relações Internacionais pela Universidad de La Empresa (Uruguai). Head
Jurídico do ecossistema Santa Helena Valley (Sete Lagoas-MG). Criador e professor do curso
“Advogado de Startups”. E-mail: mhgd.ufmg@gmail.com
144 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

ças na capacitação do colaborador e gerenciamento de performance. Por sua vez,


na transformação dos modelos de negócios, tem-se a consolidação dos modelos
de negócios digitais, a criação de novos negócios digitais e a globalização digital.
(TRANSFORMAÇÃO DIGITAL, 2018).
A modernização e ampliação funcional de projetos de transformação digi-
tal tem expandido muito o mercado de softwares por todo o mundo, gerando bi-
lhões de dólares. Ocorre que, apesar de não serem os únicos, os softwares relacio-
nados aos serviços de Cloud Computing – computação na nuvem, em português
– têm tido um crescimento ainda maior, revelando uma tendência de mercado
para softwares que não são remunerados por licenças e sim por assinaturas para
utilização.
É nesse contexto que algumas questões práticas da proteção da criação
dos softwares devem ser tratadas com uma visão multidisciplinar, levando-se em
consideração elementos jurídicos, tecnológicos e mercadológicos.

2 SOFTWARE NO BRASIL: DIREITO AUTORAL

Quando um livro é escrito, as ideias do autor são externalizadas por meio


de suas linhas. De igual maneira, o software é escrito por linhas de códigos de
computador. Essas linhas serão lidas também, mas, neste caso, pela máquina que
reproduzirá os comandos definidos nos algoritmos do software.
A definição do que se entende como software, ou Programa de Computa-
dor está estabelecida no artigo 1º da Lei nº. 9.609/98, a Lei do Software, sendo:

Art. 1º - Programa de computador é a expressão de um conjunto or-


ganizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em
suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas
automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou
equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para
fazê-los funcionar de modo e para fins determinados.
CAPÍTULO 10 - 145

No Brasil, o software é protegido por Direito Autoral e não pela Proprie-


dade Industrial. Isso significa que o titular do Direito Autoral tem seu direito
protegido desde o momento em que o software é criado, não dependendo de
qualquer registro para que seja constituído.
Inclusive, o § 3º, do art. 2º da Lei 9.609/98, a chamada Lei do Software,
estabelece, claramente que “[...] § 3º A proteção aos direitos de que trata esta
Lei independe de registro”. Esse ponto é importante porque, se o software fosse
protegido como Patente (Propriedade Industrial), como ocorre nos EUA e no
Japão – e, atualmente, apenas nesses dois países, com tendência a reduzir essa
proteção nos EUA –, a proteção se daria apenas a partir do momento em que
o INPI deferisse esse direito a seu titular, em um ato constitutivo desse direito.
Outra consequência da proteção do software como Direito Autoral é que o
conteúdo protegido abrange o software em si, na sua expressão e principalmente
na literalidade do código-fonte, mas não se estabelecem condições de exclusivi-
dade com relação às funcionalidades.
Veja que não é necessário registrar o software junto ao INPI (Instituto
Nacional de Propriedade Intelectual), mas é possível, ou seja, esse registro é uma
faculdade (art. 3º, da Lei nº. 9.609/98) do titular do software, sendo um registro
meramente declaratório, mas muito importante como prova inequívoca da an-
terioridade da criação.
É interessante notar que apesar de não ser necessário efetuar o registro do
Direito Autoral do software junto ao INPI para que ele seja protegido, existem
algumas vantagens de se fazer isso: (i) o registro é uma exigência recorrente
em editais públicos para contratação com o Poder Público; (ii) com o registro
o empreendedor tem a definição inequívoca de quem são os desenvolvedores
envolvidos no projeto e de quem é a titularidade do software; (iii) com o registro
o empreendedor tem a facilitação do exercício e reconhecimento de direitos ju-
dicialmente, uma vez que esse registro é considerado meio oficial de prova; (iv),
além disso o empreendedor tem maior segurança para celebração de contratos
de cessão e licenças de software e (v) o registro junto ao INPI é em instrumento
importante de demonstração de profissionalismo na gestão dos ativos intangí-
146 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

veis de uma empresa, o que transmite uma mensagem de boa governança para o
mercado e possíveis investidores.
Sobre o prazo de proteção aplicado ao direito autoral de software, no Brasil,
ele é de 50 anos, após 1º de janeiro do ano subsequente à sua publicação, con-
forme o § 2º, do art. 2º da Lei de Software. Na ausência da data de publicação,
o prazo será contado a partir da data de criação. Portanto, a título de exemplo,
se o software for publicado em 2018, a proteção sobre ele vale 50 anos a partir
de 2019.

3 SOFTWARE EMBARCADO: TRATAMENTO


DO SOFTWARE COMO PATENTE

Apesar da proteção do software como Direito Autoral, o que temos visto


no mercado é que cada vez mais, a indústria da tecnologia buscando a proteção
via propriedade industrial, por meio do pedido de registro de patentes para in-
venções baseadas em programas de computadores.
No entanto, o programa de computador, em si, não pode ser registrado
como patente, segundo vedações estabelecidas pelo art. 2º da Lei de Software c/c
art. 10, V, da LPI - A Lei de Propriedade Industrial (Lei nº. 9.279/96).
Porém, pode ser protegido como patente o chamado software embarcado,
também chamado de sistema embarcado ou sistema embutido, que é a união
entre hardware – ou seja, a eletrônica, a parte física –, com o software - que são
as instruções por meio de linguagem de programação, ou seja, é o programa de
computador.
O Software Embarcado é um sistema microprocessado no qual o compu-
tador é completamente encapsulado ou dedicado ao dispositivo ou sistema que
ele controla. Diferentemente dos chamados computadores de propósito geral,
como os computadores pessoais/notebook, um sistema embarcado realiza um
conjunto de tarefas predefinidas, geralmente com requisitos específicos.  Como
exemplo de softwares embarcados menciona-se: computador de bordo de carro,
CAPÍTULO 10 - 147

smartphones, urna eletrônica, sistemas de controle de acesso biométrico, equipa-


mentos de rede e sistemas de monitoramento médico.
Assim, uma invenção que necessite de um software próprio para seu fun-
cionamento pode ser registrada como patente por meio do software embarcado.
Nesse caso, o software é um acessório da invenção, ou seja, não pode ser registra-
do individualmente, sem o hardware, como patente.
Sobre o tema das Patentes, a Lei nº. 9.279/96 estabelece que podem ser
dos tipos de invenção e de modelo de utilidade (art. 2º, I).
O motivo pelo qual se almeja proteger o software como patente se deve ao
fato desta ser mais ampla. Isso porque, enquanto o direito autoral protege apenas
a obra em si, e não as meras “ideias”, ou funcionalidades, a patente confere ao seu
titular exclusividade sobre a exploração do método e de todas as funcionalidades
do produto. É uma proteção mais ampla, se aproximando da proteção da ideia
inicial do criador.

4 DIREITO AUTORAL VERSUS PATENTE:


ASPECTOS PRÁTICOS

Apesar de possível o registro como patente nos casos de software embarca-


do, é necessário avaliar o aspecto prático desses registros.
O primeiro ponto a considerar é que as patentes no Brasil têm levado entre
10 (G1, 2017) a 11 anos (ESTADÃO, 2015) para serem concedidas, em média.
Considerando que tecnologias mudam rapidamente no mercado de tecnologia,
10 anos é um longo tempo para se esperar por uma patente.
Além disso, num pedido de patente, é preciso descrever a invenção de uma
forma extremamente detalhada, com todas as etapas e características que se de-
seja proteger. Ou seja, o desenvolvedor do software acabaria divulgando impor-
tantes detalhes da solução para possíveis concorrentes. Outro problema é que
novas versões do conjunto hardware & softwares, com atualizações de processos
148 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

e funcionalidades, não estariam protegidas pela patente original e demandariam


novas solicitações junto ao INPI, o que acarretariam mais gastos.
A questão dos custos envolvidos, inclusive, é um importante ponto a ser
considerado. Isso porque os custos de uma patente são elevados, principalmente
quando é necessário contratar profissionais especializados para auxiliar no re-
gistro da patente, ou quando a proteção desejada envolve países além do Brasil.
Inclusive, nesse ponto, é importante lembrar que a patente é uma proteção
territorial. Assim, para proteger sua patente em diversos países, é necessário fa-
zer o registro em cada um desses países, o que pode gerar custos elevadíssimos.
Outro ponto que se deve atentar é que, enquanto a proteção do software
pelo Direito Autoral é pelo prazo de 50 anos (art. 2º, § 2º, da Lei nº. 9.606/98)
– período no qual o titular do software tem o direito exclusivo de fazer cópias da
obra, distribuir ou vender cópias para terceiros e criar outros softwares derivados
da primeira obra – o prazo máximo de proteção concedido às patentes de inven-
ção é menor, de 20 anos (art. 40, da Lei nº. 9.279/96). Esse prazo é bem maior
do que os 20 anos concedidos às patentes. Ademais, é necessário lembrar que
o processo de registro de programas de computador por meio da lei de Direito
Autoral é bem mais simples e barato do que o processo de patenteamento.
Portanto, a conclusão que se chega, diante dos argumentos expostos, é que
na grande maioria das vezes o mais interessante é que a proteção dos softwares
permaneça focada no âmbito do Direito Autoral, que é a sistemática jurídica
escolhida pelo legislador.
Inclusive, se a sistemática de proteção brasileira fosse focada em conces-
são de patentes para softwares, seria muito prejudicial ao mercado, pois geraria
restrição do número de competidores e a diminuição da oferta de softwares com
funcionalidades semelhantes, mas elaborados por meio de distintos códigos-
-fonte – o que é permitido em nossa sistemática protetiva pelo Direito Autoral.
Assim, o mercado seria mais concentrado, com menor concorrência entre
empresas de software. A consequência seria que os desenvolvedores não disputa-
riam mais o mercado em termos qualitativos e sim de anterioridade do pedido
de patente, ou seja, independentemente da qualidade do produto.
CAPÍTULO 10 - 149

5 SOFTWARES EM CLOUD COMPUTING: A


ESSENCIALIDADE DA PROTEÇÃO DO CÓDIGO FONTE

A proteção do software por meio do Direito Autoral pode proteger o titular


desse direito de duas formas principais: 1) Contra a pirataria, o que faz sentido
em softwares que são vendidos no formato de licenças, seja utilizando downlo-
ads web ou mesmo mídias físicas; e 2) Contra o uso indevido do código fonte:
situações em que alguém teve acesso ao código fonte (um ex-funcionário, por
exemplo) e passou a utilizá-lo em parte (ou na sua totalidade) para o desenvol-
vimento e/ou comercialização de uma outra solução.
Ocorre que, no cenário atual, em que muitos softwares são oferecidos em
Cloud Computing (computação na nuvem), é muito incomum que ocorram
problemas de pirataria, mas podem sim ocorrer situações de uso indevido de
trechos de códigos fonte por pessoas que deixam empresas – o que justificaria a
proteção por meio de registro de software – como Direito Autora.
O aumento da utilização de softwares oferecidos em Cloud Computing é
tendência mundial dentro do fenômeno da Transformação Digital, como apon-
tam diversos relatórios da Gartner – umas das principais empresas mundiais de
pesquisa e consultoria sobre tecnologia. (GARTNER, 2018).
Esse cenário é composto por SaaS – Software as a Service (Software como
Serviço), IaaS – Infrastructure as a Service (Infraestrutura como Serviço) e PaaS
– Platform as a Service (Plataforma como Serviço).
O SaaS – Software as a Service – é um modelo onde a aquisição e/ou utili-
zação de um software não está relacionado a compra de licenças, ou seja, o usuá-
rio utiliza algum software e paga por sua utilização. Veja como exemplo, o Skype
da Microsoft. O Skype é um software de comunicação que permite vários tipos
de utilização, que pode ser a simples troca de mensagens até uma videoconferên-
cia em grupo. Para utilizar o Skype o usuário não paga nenhum tipo de licença,
e é cobrado de acordo com os serviços que utiliza. No caso deste exemplo, se o
usuário utiliza apenas o recurso de videoconferência em grupo, pode contratar
apenas este recurso, no entanto, é possível combinar vários outros recursos, de
150 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

acordo com a necessidade. Outro exemplo de SaaS muito conhecido é o Spotify,


para ouvir músicas e podcasts.
Por sua vez, no IaaS – Infrastructure as a Service –, de maneira semelhante
à anterior, o usuário contrata a infraestrutura como serviço, com uma vanta-
gem muito interessante ao modelo tradicional, que é a contratação de servidores
virtuais (e outros dispositivos de infraestrutura) ao invés de comprar servido-
res, roteadores, racks e outros hardwares. Esse serviço também é organizado por
meio de softwares e o usuário é tarifado por alguns fatores, como o número de
servidores virtuais, quantidade de dados trafegados, dados armazenados e outros
itens, dependendo de como e quem (fornecedor IaaS) o usuário contrata.
Utiliza-se normalmente o modelo pay-per-use, no qual a cobrança é base-
ada no serviço e não em produto, ou seja, se o usuário precisa de 10 servidores
para o próximo mês, ele contrata a utilização destes servidores por este período
determinado e depois, quando não forem mais necessários, cancela a utilização.
Pode ser utilizado para testes e desenvolvimento de softwares, hospedagem de
sites, armazenamento, backup e recuperação, aplicativos web, computação de alto
desempenho e análises de Big Data, por exemplo. (MICROSOFT, 2018).
Temos ainda o PaaS – Plataform as a Service, um modelo que fica entre
o SaaS e IaaS, proporcionando uma plataforma mais robusta e flexível para a
utilização de muitos recursos de tecnologia, onde é possível a utilização de sof-
twares de maneira mais flexível, sendo possível desenvolver suas próprias apli-
cações baseadas em alguma tecnologia (framework, linguagem etc.) e utilizar a
infraestrutura necessária, adequada à aplicação desenvolvida. No modelo PaaS o
usuário pode utilizar um conjunto de estruturas de desenvolvimento completas,
porém, utilizando o modelo “as a service”, livrando-se da aquisição de hardware,
licenças de software, ferramentas de desenvolvimento, etc. Um exemplo desse
serviço é o prestado pela Microsoft Azure, que, inclusive, disponibiliza também
os modelos SaaS e IaaS.
Veja então, que nesse cenário de computação na nuvem, no qual não há a
possibilidade de pirataria dos softwares a proteção mais importante é a do código
fonte desenvolvido.
CAPÍTULO 10 - 151

Nesse contexto, é importante ressaltar que no Registro de Software como


Direito Autoral o depositante do pedido pode requerer que o código fonte seja
mantido em sigilo (art. 3º, § 2º, da Lei do Software). Nesse caso, o código fonte
não é publicado pelo INPI e é mantida a confidencialidade deste código por 50
anos (prazo de duração do registro) ou até que sua abertura seja solicitada em
situações de litígio ou por requerimento do próprio titular do direito. Assim, ao
contrário da patente em que é necessário compartilhar informações para a ob-
tenção da exclusividade de exploração, nesse caso não é necessário compartilhar
as informações técnicas com o mercado até que a proteção expire.
Outra opção para a proteção dos softwares, seja em nuvem, seja em har-
dwares é mantê-los como um segredo comercial (também chamado de segredo
industrial). Esse tipo de proteção é uma alternativa à proteção por patente ou
pelo direito autoral.
Um exemplo marcante de segredo comercial no universo de softwares é
do algoritmo motor de buscas do Google. É verdade que muitas pessoas sabem
como funciona – e, assim, desenvolvem estratégias de SEO (Search Engine Opti-
mization) em cima do que é de conhecimento público. No entanto, elas não pos-
suem acesso ao código/algoritmo completo – de provável conhecimento apenas
dos fundadores e funcionários de extrema confiança deles.
O Direito possui uma série de instrumentos para proteger os segredos co-
merciais e prevenir a chamada concorrência desleal. O artigo 195 da Lei de
Propriedade Industrial – LPI – estabelece como crime a espionagem industrial,
punível com multas ou detenção de 3 meses a um ano. A legislação impede, por-
tanto, de forma ampla, o uso de dados de natureza confidencial que tenham sido
obtidos durante relação contratual ou empregatícia, ou que tenham sido obtidos
de forma ilícita ou fraudulenta (artigo 195, incisos XI e XII).
Veja então, que se pode utilizar de contratos e atos internos em uma em-
presa para se criar o segredo comercial/industrial dos códigos fonte. A vantagem
mais clara de se utilizar o segredo é que esse não tem uma duração pré-estabe-
lecida por lei, como ocorre com a proteção por Direito Autoral e pela Patente
– portanto, o segredo pode ser mantido durante todo o período que não for
152 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

revelado, por óbvio. Ademais, as criações protegidas por segredo comercial per-
manecem confidenciais, ao passo que na Patente e no Direito Autoral são reve-
ladas – aquela desde seu depósito e este quando finalizado o prazo de 50 anos.
Ocorre que, para se manter o segredo, é extremamente importante que
medidas de proteção no desenvolvimento e comercialização do software sejam
tomadas. Tais medidas dizem respeito à acordos de confidencialidade com fun-
cionários, fornecedores e qualquer um que tenha acesso ao código fonte, além de
restrição do acesso a informações cruciais e a proteção por meio de criptografia,
senhas, entre outras medidas.
Por óbvio, como ponto negativo do uso do segredo comercial como forma
de proteção do código fonte, é que há sempre o risco dele ser descoberto e reve-
lado, acabando com o diferencial competitivo da empresa.
Portanto o ideal para a proteção do código fonte dos softwares é a utiliza-
ção de uma estratégia mista, que combine boas práticas de segredo industrial
– como os acordos de confidencialidade com os funcionários e parceiros, limi-
tação de acesso à determinadas informações, criptografia, dentre outros – com
a estratégia de registrar o software no INPI como Direito Autoral, mantendo-o
em sigilo, pois como já dito, o registro de programas de computador mantém o
sigilo do código fonte por 50 anos, em regra, sendo que a exceção seria eventual
litígio judicial no qual fosse determinada a quebra do sigilo.
Dessa forma, cria-se a barreira inicial do segredo inicial, seguida de uma
barreira auxiliar de Registro do Software, em sigilo, caso o segredo industrial seja
quebrado e seja necessária uma prova inequívoca da anterioridade da criação do
código fonte.
CAPÍTULO 10 - 153

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estamos diante de um momento de acelerada transformação digital, na


qual ocorre a transformação da experiência do cliente, a transformação dos pro-
cessos operacionais e a transformação dos modelos de negócio, em grande parte
por meio das soluções criadas por diversos softwares.
Esse cenário significa maior atenção ao mundo digital e, consequentemen-
te, maior remuneração ao mercado de softwares. Dessa forma, proteger a pro-
priedade intelectual dos softwares criados significa proteger elevadas quantias de
dinheiro e postos de trabalho.
Ainda, há que se considerar que o mercado de softwares derivados da com-
putação em nuvem está em grande crescente e assim permanecerá nos próximos
anos, como demonstram as análises do consagrado instituto de pesquisa Gart-
ner, por exemplo.
Nesse contexto, é necessário utilizar um modelo misto de proteção dos có-
digos fontes destes softwares, por meio da implementação do segredo comercial
e do registro do direito autoral, em sigilo, junto ao INPI.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº. 9.609, de 19 de fev. de 1998. Dispõe sobre a proteção da proprieda-
de intelectual de programa de computador, sua comercialização no País, e dá outras
providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9609.htm>.
Acesso em: 17 nov. 2018.

BRASIL. Lei nº. 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações relativos
à propriedade industrial. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/
L9279.htm>. Acesso em: 17 nov. 2018.

ESTADÃO. Economia: país demora 11 anos para aprovar patentes. 2015. Disponível
em <https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,pais-demora-11-anos-para-apro-
var patentes,1693427>. Acesso em: 18 nov. 2018.
154 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

Gartner. Explore Gartner Insights. 2018. Disponível em: <https://www.gartner.com/


en>. Acesso em: 18 nov. 2018.

Microsoft Azure. O que é IaaS. 2018. Disponível em: <https://azure.microsoft.com/


pt-br/overview/what-is-iaas/>. Acesso em: 18 nov. 2018.

Portal G1.com. Com demora de 10 anos para registrar patentes, pesquisadores de


Campinas procuram alternativas fora do Brasil. 2015. Disponível em: <https://g1.glo-
bo.com/sp/campinas-regiao/noticia/com-demora-de-10-anos-para-registrar-patentes-
-pesquisadores-de-campinas-procuram-alternativas-fora-do-brasil.ghtml>. Acesso em:
18 nov. 2018.

Transformação Digital. Página Inicial. 2018. Disponível em: <http://transformacao.


digital/>. Acesso em: 17 nov. 2018.
CAPÍTULO 11 - 155

11
ALGORITMOS E DEMOCRACIA:
REFLEXÕES SOBRE A INFLUÊNCIA DA
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NOS PROCESSOS
DEMOCRÁTICOS CONTEMPORÂNEOS85
Leonardo Abido86

1 INTRODUÇÃO

Notadamente, ao se analisar a sociedade contemporânea, percebe-se uma


necessidade e uma tendência cada vez maior de expansão da chamada sociedade
em rede. Essa expansão da internet, das redes sociais e, principalmente, a facili-
tação ao acesso a todas essas novas tecnologias de comunicação, traz inúmeros
benefícios.
Contudo, existem aspectos dessa expansão das tecnologias que ainda per-
manecem, de certo modo, obscuros à maior parte de seus usuários, como é o
caso dos algoritmos, presentes em uma infinidade de aspectos cotidianos da vida
de cada pessoa, e que atuam sem sequer serem percebidos por estas. A atuação

85  Artigo produzido para composição da avaliação da disciplina de Democracia Contemporânea,


conhecimento e informação, ministrada pelo prof. Dr. José Renato Gazziero Cella, no programa
de pós-graduação stricto sensu da Faculdade Meridional - IMED.
86  Mestrando em Direito pela Faculdade Meridional - IMED, na linha de pesquisa Fundamen-
tos do Direito, da Democracia e da Sustentabilidade com bolsa CAPES/PROSUP. Bacharel em
Direito pela Faculdade Meridional – IMED. Advogado. E-mail: leoabido1@gmail.com.
156 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

destes passa de tal modo despercebida, que não se pensam nas eventuais conse-
quências e influências que os mesmos podem ter em diversos aspectos da vida.
É neste ínterim que o presente trabalho visa abordar, qual a real influência
que os algoritmos possuem em um aspecto fundamental da sociedade como um
todo: a democracia. Para o desenvolvimento do presente, averígua-se, a partir
do método de pesquisa hipotético dedutivo e se utilizando primordialmente
da pesquisa bibliográfica, sobre o problema de pesquisa: Há ou não, e em que
aspectos, influência dos algoritmos de inteligência artificial nos processos de-
mocráticos contemporâneos.
O trabalho busca fazer algumas considerações acerca da democracia na
contemporaneidade, debruçando-se, principalmente, nos desafios que essa de-
mocracia encontra atualmente. Após, se fará uma abordagem preliminar ao tema
da Inteligência artificial, focando-se a pesquisa, especialmente, nos algoritmos
utilizados diariamente na internet, como redes sociais e ferramentas de busca.
Por fim, será analisado conjuntamente os dois temas anteriormente expostos,
visando-se analisar mais diretamente em quais aspectos dos processos democrá-
ticos, os algoritmos visualizados poderiam, eventualmente, exercer influência, de
maneira direta ou indireta.

2 OS DESAFIOS DA DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

Preliminarmente à análise de como os algoritmos presentes nas redes so-


ciais podem afetar os processos democráticos, fazem-se necessárias algumas
considerações de caráter introdutório acerca da Democracia. Tal ponto se faz
mister para que se aponte alguns conceitos fundamentais sobre o tema, mas
principalmente para que se aponte quais seriam os principais problemas e difi-
culdades que a Democracia encontra na contemporaneidade.
Conforme expõe Dahl (2012, p. 46), cabe inicialmente compreender que
os governos democráticos modernos não foram criados por historiadores e/ou
filósofos familiarizados com aquela democracia tradicional grega, bem como sua
CAPÍTULO 11 - 157

tradição republicana e seu conceito de representatividade. Pode-se atribuir como


principal causa de verificação dessa divergência entre os conceitos modernos e
clássicos de Democracia a união dessa com a representação. Tal fato ocasionou,
entre outras consequências, uma proliferação de novas instituições políticas, o
que acabou por afastar o governo de seu demos, a qual seria uma das maiores
características de um sistema democrático.
Além disso, nota-se claramente que, em seu viés clássico, a Democracia
era tida como um sistema absolutamente monista, onde associações políticas
dotadas de autonomia eram consideradas desnecessárias. Atualmente, contudo,
a existência dessas unidades políticas autônomas não só é perceptível, como por
muitos é considerado como uma necessidade do atual modelo político-demo-
crático, praticado em grande escala. (DAHL, 2012, p. 45).
Ainda sobre esse pluralismo político, pode-se considerar como uma das
principais marcas da Democracia contemporânea justamente essa dicotomia,
esse antagonismo entre grupos opostos, transformando quase que em um jogo
bilateral qualquer processo democrático. Essa relação, segundo Mouffe (1996, p.
13), seria oriunda das chamadas identificações coletivas, aonde cria-se um “nós”
justamente pela delimitação de um “eles”, tendendo essa relação a cada dia mais
transformar-se numa relação amigo/inimigo.
Um exemplo clássico dessa dicotomia seria a relação capitalismo/comunis-
mo vivenciada pelo mundo na segunda metade do século XX. Com o colapso do
bloco comunista, coloca-se em jogo a própria identidade da democracia do ca-
pitalismo, que necessitava do “outro” para que se afirmasse. Essa “crise de iden-
tidade capitalista” gera uma necessidade de redefinição da democracia, mediante
a criação de uma nova fronteira, de um novo “outro” (MOUFFE, 1996, p. 14).
A democracia representativa enfrenta assim, diversas críticas por, além de
não ser um regime que guarda as principais características de uma Democracia
clássica (ou seja, a expressão maior do poder do demos), ser um sistema incapaz
de preservar os direitos individuais, representando uma forma de dominação.
Contudo, em que pese um certo caráter de validade presente nestas afirmações,
as alternativas expostas pelos críticos demonstram-se como alternativas ainda
158 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

piores, como a mera transferência de poder para um intelectual ou governante


“esclarecido”, ou a negação a sujeição a qualquer tipo de autoridade, através da
crença da espontaneidade de ações individuais. (TORRANO, 2015, p. 188).
Tomando-se, então, que em certo aspecto as críticas acima expostas guar-
dam para si um aspecto de validade, uma das possíveis formas de “contorno”
desses eventuais problemas que se denotam na Democracia, seria o que Mou-
ffe denomina de Democracia pluralista e radical. Essa forma de Democracia
seria notadamente marcada por unir uma diversidade de lutas democráticas e
interesses de minorias por vezes esquecidas. Tal união, contudo, dependeria de
uma reorientação do sujeito, que passaria a entender todas essas lutas como
equivalentes.
Nas palavras de Mouffe (1996, p. 34),

Para que a defesa dos interesses dos trabalhadores não seja conseguida à
custa dos direitos das mulheres, dos emigrantes ou dos consumidores é
necessário estabelecer uma equivalência entre estas várias lutas. Só nessas
circunstâncias é que as lutas contra o poder se tomam verdadeiramente
democráticas. (MOUFFE, 1996, p. 34).

Essa inclusão das minorias, possivelmente seja um dos principais obstá-


culos que os processos democráticos enfrentam. Como conciliar os interesses
minoritários em um sistema que, na imensa maioria dos casos, se baseia justa-
mente no princípio da maioria? Conforme Dahl (2012, p. 240), a Democracia
baseada no domínio da maioria teria inúmeras falhas, como, por exemplo, a in-
fluência que essa maioria dominante poderia exercer sobre os demais. Contudo,
as eventuais alternativas para esse princípio da maioria demonstram-se como
ainda mais frágeis.
Uma das eventuais alternativas citadas a este domínio da maioria seria, por
exemplo, a exigência de uma “supermaioria” ou maioria qualificada. Neste caso,
ao invés de uma maioria simples (de 50% mais um dos votos, por exemplo), seria
exigida uma maior aceitação, mas menos que uma unanimidade (algo como 2/3
ou 3/4) dos votos. A grande objeção a este sistema reside, contudo, no fato que,
CAPÍTULO 11 - 159

do modo como está posto, se atribuiria o poder a esta minoria, de vetar uma de-
cisão tomada pela maioria, o que, de certo modo, poderia se considerar contrário
aos ideais clássicos de democracia e gerar um privilégio injusto a essa minoria: o
de suplantar uma decisão majoritária. (DAHL, 2012, p. 242).
A resposta mais plausível para este dilema democrático residiria, na con-
cepção de Dahl, em dois caracteres fundamentais: primeiramente, assegurar a
essa minoria que, de modo algum, as decisões da maioria poderão levar a ame-
aças a elementos considerados básicos, como direitos fundamentais ou ques-
tões de cultura e/ou costumes. Posteriormente, que sejam geradas nessa minoria
constantes expectativas que, futuramente, ela possa a ser maioria neste processo
democrático, o que a levaria a melhor defender aqueles interesses que conside-
ra primordiais, respeitando sempre o grupo que futuramente será minoritário.
(DAHL, 2012, p. 254).
Para findar essa análise inicial acerca da Democracia contemporânea, im-
portante ressaltar o papel que a informação tem para os processos democráticos.
A relação entre informação e democracia, por si só, não é uma marca da De-
mocracia contemporânea, mas sim a quantidade de informações disponíveis e
o massivo acesso dos cidadãos a informações, frutos majoritários do acelerado
desenvolvimento das TIC’s (Tecnologias da informação e comunicação), como
telefones e a internet, especialmente.
Pode-se questionar, contudo, até que ponto essa quantidade massiva de
informações é algo deveras benéfico para a Democracia. Neste aspecto, Dahl
(2012, p. 542) cita que a compreensão política dos cidadãos não é necessaria-
mente aprofundada por possuírem estes uma quantidade maior de informações.
O grande fato a ser levantado é que as tecnologias de informação são mas-
sivamente utilizadas, podendo tal uso se dar tanto para algo positivo à demo-
cracia quanto para algo negativo. Pode-se utilizar essas tecnologias para se dar
acesso ao maior número possível de pessoas a um debate por exemplo, como
também podem ser utilizadas para a difusão de fake news87 sobre outros candi-
datos, entre outros.

87  Fake news são informações deliberadamente fabricadas e publicizadas com a intenção de en-
ganar e induzir os outros a acreditar em falsidades ou a duvidar de fatos verificáveis. Definição
160 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

Neste contexto, um questionamento extremamente oportuno a ser levan-


tado é como garantir que tais informações tenham tão somente o condão de in-
formar a um público e não influenciá-lo em uma direção ou outra? Dahl (2002,
p. 543) vai além desse questionamento e fala sobre como garantir que uma elite
política não detenha uma espécie de monopólio das informações, a fim de ser-
vir aos interesses deste grupo. Neste aspecto relacional entre a democracia e os
novos meios tecnológicos de informação é que, faz-se pertinente compreender
como os algoritmos direcionariam (ou seriam direcionados) a exercer uma influ-
ência nos processos democráticos, como será analisado na sequência.

3 UMA BREVE INTRODUÇÃO À INTELIGÊNCIA


ARTIFICIAL E AOS ALGORITMOS
UTILIZADOS NA INTERNET

Superadas as considerações acerca da Democracia e de alguns de seus de-


safios na contemporaneidade, é necessário elaborar um aporte conceitual seme-
lhante no que tange à inteligência artificial e seus desdobramentos. Percebe-se,
em relação à Inteligência artificial, uma certa dificuldade em se criar um concei-
to definitivo, em virtude da complexidade do tema. Contudo, essa pesquisa se
utilizará do conceito cunhado por Coppin (2010, p. 4), que atribui à inteligência
artificial “métodos baseados no comportamento inteligente de humanos e ou-
tros animais para solucionar problemas complexos”.
Uma distinção necessária, e muito discutida em relação à inteligência arti-
ficial é entre Inteligência artificial forte e fraca. Diz-se que uma máquina pos-
suiria uma inteligência artificial fraca, quando se identificasse que ela estaria
agindo de uma forma inteligente, ao passo que, se esta máquina, ao agir de um
modo inteligente, estaria, realmente, pensando (e não tão somente simulando
um pensamento), estar-se-ia diante de uma Inteligência artificial forte (RUS-

trazida por White (2017) e originalmente cunhada pelo Ethical Journalism Network. Disponí-
vel em https://ethicaljournalismnetwork.org/fake-news-bad-journalism-digital-age. Acesso em
28/08/2018.
CAPÍTULO 11 - 161

SELL; NORVIG, 2013, p. 1173). Coppin (2010, p. 5) ressalta que a visão de


uma inteligência artificial forte é muitas vezes tratada como infundada, sendo
muito mais útil para obras de ficção científica do que para fins científicos reais.
Esta distinção é baseada essencialmente no chamado Teste de Touring,
que, em síntese, testaria a capacidade a capacidade de uma determinada má-
quina de exibir um comportamento semelhante ao de um ser humano, a partir
de uma espécie de jogo, ao qual Turing denominou de “Jogo da Imitação” (TU-
RING, 1950, p. 433). Para fins metodológicos, a presente pesquisa se concen-
trará na chamada inteligência fraca, por ser essa a verificada na utilização dos
algoritmos de redes sociais.
Em relação aos algoritmos, insta tecer uma breve descrição de como se
operacionalizam suas funções. Groendijk e Oskamp (1993, p. 125) sintetiza a
atuação deste processo de raciocínio automatizado em quatro componentes bá-
sicos: a situação atual, uma meta, o conteúdo da base de conhecimento e conhe-
cimento de controle. Em outras palavras, tomando-se por base um computador,
nota-se que, para fins de processamento de dados, o computador reparte uma
tarefa maior em várias tarefas menores, as quais são devidamente executadas
uma após a outra.
Não há, contudo, por parte do computador uma compreensão (pensando-
-se no conceito humano de compreensão, no sentido de consciência) das tarefas
as quais está executando. Findando-se todas as tarefas menores, os resultados
obtidos são agrupados, resultando-se no resultado final, inicialmente desejado,
nominando-se todo este procedimento de algoritmo. (VALENTINI, 2017, p.
41).
O que pareceria inicialmente como um procedimento bastante comple-
xo (para um ser humano talvez), é realizado de maneira quase que instantânea
por um computador corretamente programado e dotado de uma capacidade de
processamento adequada. Nesse aspecto, faz-se importante que, para que o re-
sultado final almejado seja alcançado, cada passo da operação acima descrita seja
criteriosamente definido.
162 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

O algoritmo funcionaria então sob uma perspectiva de entrada e saída de


dados e informações, ou, utilizando-se a linguagem mais adequada, inputs e ou-
tputs. Os inputs seriam os responsáveis pela recepção dos dados para serem pro-
cessados pelo algoritmo. Os outputs seriam responsáveis pelo retorno dos dados
já processados, se relacionando diretamente com os inputs, estando, portanto, o
resultado diretamente vinculado com os dados inseridos. Este funcionamento
poderia ser plenamente comparado ao de uma pessoa, mais especificamente ao
trabalho realizado pelos neurônios de um ser humano. Ou seja, os neurônios se-
riam ativados por impulsos (que seriam semelhantes aos inputs), reagindo a estes
impulsos e gerando uma determinada ação (outputs). Por esta razão, os algorit-
mos são também denominados de redes neurais. (PHILLIPS, 1991, p. 992).
Neste aspecto, ressalta-se a importância de que cada passo da programação
seja correta e cuidadosamente definido, para que, ao fim da computação dos da-
dos, seja atingido o resultado correto. Possivelmente, o exemplo mais ilustrativo
deste funcionamento seja o de uma calculadora. Ao se inserir os dados (input)
na calculadora, referentes a equação 2 + 2, espera-se atingir o resultado correto
(output) dessa equação, ou seja, 4. (VALENTINI, 2017, p. 42).
Compreendido este funcionamento mais básico dos algoritmos, pode-se
analisar como estes funcionam na internet e nas redes sociais atualmente. Todas
as redes e mecanismos de buscas são dotados de algoritmos, responsáveis por
definir, por exemplo, quais anúncios de publicidade serão exibidos para uma
determinada pessoa, ou que publicação aparecerá no topo de seu feed de notícias.
(PARISER, 2011).
Tome-se por primeiro exemplo, o Facebook. O algoritmo da rede social
é capaz de analisar todas as ações que seu utilizador realiza, como com quais
pessoas ele mais interage (curte, comenta ou compartilha suas postagens), com
que tipo de informação ele mais interage quais páginas ele mais frequenta e até
mesmo em quais vídeos fica por mais tempo. O algoritmo, então, utiliza todas
essas informações como inputs, processando-as e gerando como outputs, um co-
mando para que as pessoas ou páginas com as quais os usuários mais interage
apareçam, sempre, no topo de seu feed de notícias.
CAPÍTULO 11 - 163

A utilização dessas informações para um uso tão somente pessoal, talvez


seja considerada inofensiva e “parte do jogo”, contudo a utilização destes dados
vai muito além da definição do que é mais importante para o utilizador ou de
uma mera personalização do feed. Já se utilizam, por exemplo, para fins comer-
ciais, gerando para o usuário, anúncios relacionados diretamente com os interes-
ses manifestado nas redes sociais, o que elevaria a probabilidade do usuário de
se interessar pelo produto anunciado. Exemplificando, se este utilizador interage
com páginas relacionadas a notícias esportivas e times de futebol, é muito mais
provável que ele se interesse por produtos relacionados a futebol do que por
produtos que guardem relação com quaisquer outros temas.
Outro exemplo claro de um algoritmo de utilização extremamente comum,
e cujo funcionamento poderia passar despercebido é aquele utilizado no sistema
de buscas Google Search. Os detalhes mais específicos do algoritmo são tratados
como um segredo industrial, contudo, estima-se que o buscador seja capaz de
aplicar inúmeras variáveis à busca realizada, visando a maior personalização pos-
sível. Um dos exemplos de variável é o próprio histórico das páginas visitadas
por aquele usuário ou computador ou o local onde a pessoa está, construindo-se
um perfil daquele utilizador e gerando-se no topo dos resultados das buscas
realizadas, páginas com as quais o usuário tende a ter uma maior afinidade .(PA-
RISER, 2011).
Até o presente momento, foram elencados exemplos da utilização dos al-
goritmos presentes na internet em variadas áreas, desde a utilização para fins
comerciais, gerando-se anúncios mais passíveis de chamar atenção do usuário
alvo, até a personalização dos mecanismos de busca. Contudo, a utilização e a
influência podem ir muito além destes aspectos meramente formadores da vida
pessoal e particular de seu utilizador, podendo-se estender também, de uma
maneira voluntária ou involuntária, aos processos democráticos, como será ana-
lisado no ponto seguinte.
164 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

4 OS ALGORITMOS E SUA INFLUÊNCIA NA


DEMOCRACIA CONTEMPORÂNEA

Superadas as necessárias conceituações iniciais, pode-se analisar com


maior profundidade as relações entre os algoritmos utilizados na internet e os
processos democráticos e, mais especificamente, a influência dos primeiros so-
bre os segundos. Pode-se analisar essa influência, dividindo-a em dois aspectos
fundamentais, mas que são inter-relacionados: A diversidade de pontos de vista
e a possibilidade de manipulação de informações.
Primeiramente, pode-se analisar a atuação dos algoritmos no que tange à
diversidade (ou a restrição dessa diversidade) dos pontos de vista. Como ante-
riormente exposto, uma das características dos processos democráticos é justa-
mente o pluralismo de ideias, a contraposição de ideais diferentes, para que se
escolha aquele que melhor se adeque com os interesses e ideais de quem o esco-
lhe. Indo além, pode-se afirmar que o ponto nodal da Democracia é, justamente,
a aceitação do diferente.
É nesse âmbito que os algoritmos possuem uma atuação que tenderia a
influenciar, direta ou indiretamente os processos democráticos. Como anterior-
mente citado, o algoritmo do Facebook, seguindo o exemplo, tende a reproduzir
no topo do feed de notícias, conteúdos e páginas que se relacionam com o que o
usuário tenha anteriormente interagido.
Por lógica, então, se um usuário é adepto de uma determinada posição,
ideologia ou partido político, a tendência dele interagir com notícias ou publi-
cações que se relacionam e concordam com essa ideologia é maior. Ao interagir
com tais publicações, o algoritmo gera para esse usuário cada dia mais conteúdo
semelhante, em um círculo vicioso. Entretanto, este não é o ponto de maior
preocupação, mas sim o fato de que, o algoritmo irá ocultar deste usuário, as
publicações contrárias a essa posição ou ideologia, passando-se a impressão ao
utilizador de que toda a rede social (ou sua imensa maioria) apresenta uma po-
sição de concordância com a sua visão ideológica.
CAPÍTULO 11 - 165

Essa filtragem de publicações é denominada de filtro bolha, justamente por


colocar o usuário em uma “bolha de concordância”. Ou seja, são apresentadas
ao usuário publicações de páginas ou de amigos que sejam concordantes com a
visão política do usuário.
Essa filtragem visava, inicialmente, tornar a experiência na rede social algo
cada vez mais personalizado e agradável ao usuário, gerando para este conteúdo
com o qual ele teria uma maior afinidade e maior interesse de interação. Con-
tudo, ao se analisar mais friamente as consequências dessa utilização, especial-
mente sob o viés da Democracia, percebe-se uma forte tendência dessa atuação
de criar uma espécie de barreira entre os usuários e a totalidade das informações.
Pode-se, inclusive, ir além dessa simples questão da impressão de total con-
cordância da rede com as opiniões pessoais do utilizador. Poderia se analisar essa
atuação dos algoritmos sob o prisma da igualdade de informações. Notadamen-
te, vive-se em uma sociedade que depende cada dia mais dos processos infor-
macionais. Contudo, a atuação dos algoritmos desta forma, tende a produzir (ou
pelo menos, a divulgar) uma maior quantidade de informações para um lado em
detrimento dos demais. Por certo se argumenta que este processo de divulga-
ção de uma maior quantidade de informações é um fruto da própria atividade
pessoal do usuário, mas, ainda sim, cabe ser analisada sob a ótica da igualdade
informacional nos processos democráticos.
Ainda, poderia se analisar a eventual influência dos algoritmos (aqui de
uma maneira indireta, talvez) na atuação destes através da produção de conteú-
do com informações manipuladas. Importante ressaltar que, neste aspecto, no-
taram-se atualmente importantes avanços no que tange o combate às chamadas
fake news, contudo, ainda se revelam um aspecto cuja importância se demonstra
notável em relação à democracia.
A atuação dos algoritmos, neste âmbito, se daria especialmente na não
diferenciação entre notícias e conteúdos verdadeiros e falsos. Isto é, o foco do
algoritmo é, tão somente, gerar para o usuário a maior quantidade possível de
conteúdo relacionado com suas preferências verificadas anteriormente pelo
algoritmo, indistintamente da qualidade de sua fonte informativa ou de uma
166 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

checagem na veracidade das informações. Essa “falha” dos algoritmos é, indubi-


tavelmente, majorada pela ausência de preocupação dos próprios usuários tam-
bém em efetuar uma mínima checagem das fontes de uma informação antes de
compartilhá-la.
Entretanto, independentemente de uma análise de quem seria a culpa pela
propagação destas informações falsas, o grande fato a ser ressaltado é que estas
geram sim, uma grande influência na democracia contemporânea. Essa influên-
cia se denota muito por vivenciar-se atualmente uma sociedade em que o acesso
a informações é extremamente facilitado, se comparado há um século atrás, por
exemplo. Sendo a informação um dos valores de um processo democrático, as
informações cuja veracidade é, no mínimo, dúbia, podem gerar sim um conside-
rável impacto nas democracias atuais.
Por fim, poderia se analisar a influência que não os algoritmos puramen-
te, mas sim a manipulação destes por pessoas interessadas, poderia gerar nos
processos democráticos. Pense-se, para esta análise, no exemplo anteriormente
citado, do Google Search e de como este seleciona quais páginas se sobrepõem às
demais quando da realização de uma simples busca. Através dessa manipulação,
poder-se-ia, por exemplo, atribuir certa vantagem a algumas páginas em detri-
mento de outras, colocando-as no topo da lista, tendo em vista que, na imensa
maioria dos casos, tão somente os primeiros resultados obtidos quando efetuada
uma busca no sistema são efetivamente analisados pelo usuário.
Observa-se, então que, direta ou indiretamente, os algoritmos, e quem pode
os manipular, podem sim exercer uma influência bastante importante nos pro-
cessos democráticos. Tal constatação leva a necessidade de uma maior cautela
quando da análise de informações que interferem de algum modo nas escolhas
democráticas tomadas, tanto em relação à veracidade das informações apresen-
tadas, quanto ao que tange uma busca mais completa acerca de informações re-
levantes, não se restringindo tão somente ao que é mais facilmente apresentado.
CAPÍTULO 11 - 167

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se então que, frente ao problema de pesquisa exposto, há sim uma


influência da inteligência artificial, especialmente através dos algoritmos presen-
tes nas redes sociais e ferramentas de busca (pontos que foram o foco primordial
da pesquisa), sobre os processos democráticos contemporâneos. Tal influência
se daria, principalmente, em relação à formação das chamadas bolhas políticas
pela atuação dos algoritmos na produção de conteúdo considerado mais atraente
pelo usuário, bem como pela veiculação de notícias e informações cujo conteúdo
carece de confiabilidade nas fontes, sendo muitas vezes, uma informação com-
pletamente inverídica, utilizada para denegrir a imagem de um oponente ou
ideologia diversa, ou criar uma melhor imagem do interessado.
Ainda, poderia se analisar a atuação dos algoritmos em relação à demo-
cracia, no que tangencia ao princípio da igualdade de informações, tendo em
vista que, ainda que a atuação do algoritmo seja majoritariamente influenciada
pelos interesses do usuário, este algoritmo tem uma real tendência a produzir
maior conteúdo acerca de determinados temas do que em relação a outros. Essa
tendência, enquanto relacionada tão somente à produção de conteúdo pessoal
para o usuário, é algo quase que natural, contudo, ao se relacionar com eventuais
conteúdos relativos à democracia, tem sim o condão de gerar certa influência no
processo e liberdade de escolha por parte do usuário.
Como forma de proposição acerca dessa influência, ressalta-se a importân-
cia por parte dos utilizadores da internet e redes sociais em geral de, primeira-
mente, buscarem informações sobre todas as opções possíveis apresentadas em
um processo democrático, indo-se além daquelas informações mais facilmente
apresentadas pelo próprio algoritmo. Tal atuação pessoal, além de maximizar a
possibilidade de uma igualdade informacional, evitaria a formação das já men-
cionadas bolhas políticas, o que conferiria uma maior legitimidade ao processo
democrático em pauta.
168 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

REFERÊNCIAS

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usuários. Disponível em: <https://canaltech.com.br/redes-sociais/algoritmos-de-redes-
-sociais-formam-bolha-politica-em-torno-dos-usuarios-60755/>. Acesso em: 10 ago.
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Valério. Rio de Janeiro: LTC, 2010.

DAHL, Robert A. A democracia e seus críticos. Tradução: Patrícia de Freitas Ribeiro.


Revisão: Aníbal Mari. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.

GROENDIJK, C; OSKAMP, A. Case recognition and strategy classification.


In Proceedings of the Fourth International Conference on Artificial Intelligence and
Law, Amsterdam; 1993: ACM Press, pp. 125–132

MOUFFE, Chantal. O regresso do político. Coimbra: Ed. Gradiva, 1996.

PARISER, Eli. The Filter Bubble: what the internet is hiding from you. Penguin
Press, 2011.

PHILIPPS, L. Distribution of damages in car accidents through the use of neural


networks. Cardozo Law Review, 13, 987–1000.

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TORRANO, Bruno. Democracia e respeito à lei. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015

TURING, Alan M. (1950). Computing machinery and intelligence. Mind, 59, 433-
460. Disponível em: <http://phil415.pbworks.com/f/TuringComputing.pdf>. Acesso
em: 19 nov. 2018.

VALENTINI, Rômulo Soares. Julgamento por computadores? As novas possibilida-


des da juscibernética no século XXI e suas implicações para o futuro do direito e do
trabalho dos juristas – 2017. Orientador: Antônio Álvares da Silva. Tese (doutorado)
– Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito.
CAPÍTULO 12 - 169

12
FRANK E O ROBÔ: A ROBÓTICA E A
HIPERVULNERABILIDADE DO IDOSO
Cristina Stringari Pasqual88

1 INTRODUÇÃO

O filme Frank e o robô se desenvolve em um futuro próximo para sua épo-


ca, descrevendo a relação que se forma entre um idoso e um robô.89 Talvez hoje,
passados aproximadamente seis anos de seu lançamento, possa-se dizer que o
filme é capaz de retratar uma realidade, pois não é mais ficção a utilização de
robôs como cuidadores.90

88  Doutora e Mestre em Direito pela UFRGS. Especialista em Processo Civil pela PUCRS.
Professora da Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior
do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Advogada.
89  Filme norte americano, dirigido por Jake Schreier, lançado em 12 de agosto de 2012.
90  A empresa Soft Banck Robotics criou um robô humanoide que já é utilizado em casas de
repouso. O robô se chama Pepper e consegue reagir e conversar segundo a interpretação que faz
sobre o paciente. Como mostra a reportagem publicada em https://institutomongeralaegon.org/
tecnologia/robo-cuidador-de-idosos. Também há na Holanda a robô Tessa criada pela empresa
Tinybots que usa tecnologia de voz e estímulos musicais para ajudar idosos com deficiência. Veja
em https://revistapegn.globo.com/Startups/noticia/2018/01/empresa-da-vida-um-robo-cuida-
dor-que-ajuda-idosos.html. Sobre as tecnologias de assistência para idosos, com informações
sobre diversos robôs já desenvolvidos e utilizados como cuidadores ver por todos CARMO, Eli-
sangela Gisele do; ZAZZETTA, Maria Silvana; COSTA, José Luiz Riani. Robótica na assis-
tência ao idoso com doença de Alzheimer: as vantagens e os desafios dessa intervenção. Estudo
Interdisciplinar do envelhecimento vol. 21, n.2. Porto Alegre, 2016, p. 59-66.
170 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

O filme relata a vida de Frank, um aposentado, divorciado, pai de dois


filhos adultos, que vive só, e que manifesta sinais de demência, atrapalhando-se
com pequenas tarefas do dia a dia e esquecendo-se de fatos ocorridos.
A fragilidade de Frank preocupa seu filho, que acredita que não tem o pai
condições de ficar sem companhia. Assim, a fim de evitar a internação de Frank
em uma clínica geriátrica, opta por comprar um robô que, apesar de não ter
características humanoides, anda, fala e é programado para cuidar da casa e da
saúde física e mental de seu dono.
Frank em um primeiro momento rejeita a nova companhia, mas com o
tempo acaba se apegando ao robô-cuidador, desenvolvendo-se uma relação de
“amizade” e “cumplicidade” entre ambos. Surge uma impensada relação entre
homem e máquina, e com ela o personagem principal revive seu passado trans-
gressor, trazendo-lhe novo ânimo, planejando um furto, o que para o robô não
é recebido como uma ideia inviável, afinal não tem como avaliar a existência de
uma conduta contrária à lei, pois isso não faz parte de sua programação, a qual
foi composta pelos dados necessário para manter seu dono ocupado e saudável.
O pano de fundo do filme, e que o torna instigante, é a repercussão que
pode surgir da relação entre um idoso e um robô, o qual mesmo não tendo uma
aparência de humano, ao falar e se deslocar facilmente, acaba por criar em Frank
uma sensação de cuidado, proximidade, fazendo surgir um vínculo forte entre
ele e o robô, emoções consideradas comuns entre pessoas humanas, pois têm
sentimentos, mas evidentemente sem reciprocidade.
A fragilidade resultante da debilidade física e emocional de Frank, faz com
que ele, a partir de um certo momento, em virtude da empatia que sente pela
máquina, não seja capaz de identificar que um robô não sente, não cria afetos,
mas simplesmente segue sua programação, podendo atualmente, ao máximo,
em virtude dos mecanismos que compõem a inteligência artificial, ter respostas
e atitudes inesperadas, pois são capazes de reagir de acordo com o ambiente.
O filme traz à tona questões que merecem ser debatidas nas mais diversas
áreas, inclusive, no âmbito jurídico, pois não pode o Direito afastar-se da reali-
dade social, mas deve sim proporcionar respostas as novas situações postas em
CAPÍTULO 12 - 171

sociedade. Como a utilização de robôs cuidadores de idosos não é mais uma


ficção futurista, mas uma realidade que traz questionamentos valorativos, não
pode o Direito deixar de intervir. A questão é identificar como isso dever ocor-
rer e se no Brasil o arcabouço legislativo é suficiente para a proteção do idoso
frente as inovações tecnológicas e em especial a robótica e a inteligência artifical.
Esta é a reflexão que pretendemos aqui desenvolver.

2 A HIPERVULNERABILIDADE DO IDOSO

A finitude humana é algo inevitável. O homem nasce, se desenvolve e


morre. O que claramente hoje tem se identificado, todavia, é que apesar das
desigualdades sociais continuarem existindo, a expectativa de vida humana tem
aumentado. O meio social em que a pessoa vive, a situação econômica, assim
como dos avanços da medicina, são a consequência deste aumento gradativo
da população idosa.91 E a maior longevidade faz com que cresça ainda mais a
visibilidade dos idosos e legitimem-se suas demandas.
Como consequência de tal realidade foi sendo observado mundialmente
uma crescente preocupação com a tutela do idoso, reconhecendo-se a necessi-
dade de uma tutela especial em face da fragilidade inerente ao avanço da idade,
resultante dos efeitos biológicos e psíquicos do gradativo envelhecimento.
O marco mundial ocorreu em 1978 quando por meio da Resolução 33/52
da Assembleia Geral da ONU, de 14 de dezembro de 1978, decidiu-se pela
convocação, para 1982, de uma assembleia mundial sobre o envelhecimento,
objetivando dar início a um plano internacional para garantir a segurança eco-
nômica e social das pessoas de idade avançada, sendo então aprovado o texto da

91  Segundo a OMS entre os anos de 2000 e 2015 a expectativa de vida aumentou cinco anos
globalmente, sendo tal evolução a mais rápida desde a década de 1960. Sobre o tema ver: https://
nacoesunidas.org. A previsão para 2050 é de que haverá dois bilhões de pessoas no mundo com
60 anos, sendo que o Brasil será o sexto país do mundo em idosos até 2025. Sobre o tema ver
CARMO, Elisangela Gisele do; ZAZZETTA, Maria Silvana; COSTA, José Luiz Riani. Robóti-
ca na assistência ao idoso com doença de Alzheimer: as vantagens e os desafios dessa intervenção.
Estudo Interdisciplinar do envelhecimento vol. 21, n.2. Porto Alegre, 2016, p. 48.
172 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

Recomendação nº 18, do Plano de Ação de Viena sobre Envelhecimento, no


qual constaram diversas garantias, incentivos, facilitações que os países deveriam
promover aos idosos.92
No Brasil, nem sempre foi reconhecida a necessária proteção especial aos
idosos. Foi com a Constituição Federal de 1988 que se identificou uma efetiva
preocupação em tutelar este grupo, estabelecendo o artigo 230 da Carta Mag-
na que “o Estado tem o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua
participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garan-
tindo-lhes à vida”. Foi com o reconhecimento constitucional da fragilidade do
idoso, de sua vulnerabilidade93, que se materializou a imposição de uma proteção
especial a este ser humano portador de uma debilidade física e mental que vai
surgindo em decorrência do tempo.
A partir da previsão constitucional brasileira foram surgindo leis no âmbi-
to federal94 estabelecendo direitos especiais ao idoso no intuito de proporcionar-
-lhe um efetivo tratamento isonômico. Mas foi em 2003 que se aprovou no Bra-
sil a legislação que consagrou ao idoso o status de hipervulnerável95, viabilizando
plenamente o já instituído constitucionalmente, ou seja, uma proteção especial
da intrínseca debilidade fundada na faixa etária do sujeito considerado idoso.96
O Estatuto do Idoso, Lei 10.741/2003, fixou o critério etário para o reco-
nhecimento do que juridicamente seria reconhecido como idoso, consideran-
do-o aquele com idade igual ou superior a sessenta anos (art. 1º). Destacou

92  Ver por todos SCHMITT, Cristiano Heineck. Consumidores Hipervulneráveis: a proteção
do idoso no mercado de consumo. São Paulo: Atlas, 2014, p. 218.
93  VASCONCELOS, Fernando; MAIA, Maurilio Casas. A tutela do melhor interesse do vul-
nerável: uma visão a partir dos julgados relatados pelo Min. Herman Benjamin (STJ). Revista de
Direito do Consumidor vol. 103, jan.- fev. 2016, p. 243-271.
94  Como a Lei nº 8.742/1993, Lei Orgânica da Assistência Social, a Lei nº 8.842/1994, que
estabeleceu uma política nacional para a tutela do idoso, objetivando assegurar seus direitos sociais
no intuito de promover-lhes “autonomia, integração e efetiva participação na sociedade”; a Lei
nº 10.048/2000, que estabeleceu a prioridade de atendimento de idosos em repartições públicas
e concessionárias de serviços públicos; e, a Lei nº 10.173/2001, impondo a preferência na trami-
tação de processos judiciais.
95  Expressão consolidada na doutrina e na jurisprudência. No ano de 2009 foi proferida no STJ
a primeira decisão referindo a expressão hipervulnerabilidade. A discussão estabelecida em juízo
dizia respeito a interpretação a ser dada a norma na tutela dos indígenas. REsp n. 1.064.009 – SC.
Segunda Turma, Relator Ministro Herman Benjamin, DJ 27.04.2011.
96  Assim, BARLETTA, Fabiana Rodrigues. O direito à saúde da pessoa idosa. São Paulo: Sa-
raiva, 2010, p. 118.
CAPÍTULO 12 - 173

que além de ser titular de todos os direitos fundamentais constitucionalmente


reconhecidos, deve ter assegurado “todas as oportunidades e facilidades, para
preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectu-
al, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade” (art. 2º). Também
determinou que se garanta com total prioridade “a efetivação do direito à vida,
à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à
cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comu-
nitária” (art. 3º).
A Lei nº 10.741/2003 instituiu um microssistema legislativo o qual trouxe
não só normas de cunho geral, enumerando seus direitos fundamentais e espe-
ciais, mas também medidas de proteção, fiscalização com previsão de punições,
assim como também regras de acesso à justiça, de tutela de interesses coletivos e
tipificação de crimes com suas respectivas sanções.
Reconheceu o Estatuto a vulnerabilidade agravada97 do idoso com base
em critérios biológicos98, considerando que a idade lhe coloca em uma posição
deficitária, sendo por isso merecedor de uma proteção especial. A disciplina le-
gislativa trazida pelo microssistema visa equilibrar as relações jurídicas estabele-
cidas com idosos, a fim de garantir-lhes dignidade, solidariedade, igualdade real,
justiça e liberdade.99 Assim, em toda e qualquer relação jurídica que tenha por
partícipe um idoso, necessário se faz um olhar jurídico a partir não só da Consti-
tuição Federal, mas também da legislação protetiva deste grupo vulnerável (Es-

97  Segundo Adalberto Pasqualotto e Flaviana Rampazzo Soares, “a hipervulnerabilidade


representa a vulnerabilidade agravada e essa intensificação da suscetibilidade ao dano pode
provir de distintas fontes, decorrentes de fatores de duração permanente ou temporária, a
considerar condições individuais ou coletivas, com potencialidade de gerar a hipervulnerabilidade”.
Consumidor Hipervulnerável: análise crítica, substrato axiológico, contornos e abrangência.
Revista de Direito do Consumidor vol.113, set.- out. 2017, p. 81-10.
98  Importa entretanto ressaltar o referido por Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas e Ma-
rília Ferreira de Barros ao afirmarem ser difícil determinar ao certo o idoso por um critério etário
exclusivamente, pois o envelhecer é uma característica individual de cada pessoal, estando suas
condições não só ligadas à idade cronológica, notando-se na sociedade diferenças significativas
relacionadas à saúde e fatores sociais e econômicos. VIEGAS, Cláudia Mara de Almeida Rabelo.
Abandono Afetivo inverso: o abandono do idoso e a violação do dever de cuidado por parte da
prole. Cadernos do Programa de Pós-Graduação de Direito da UFGRS, edição digital, n. 03, 2016.
Porto Alegre, p. 168 – 201.
99  VASCONCELOS, Fernando; MAIA, Maurilio Casas. A tutela do melhor interesse do vul-
nerável: uma visão a partir dos julgados relatados pelo Min. Herman Benjamin (STJ). Revista de
Direito do Consumidor vol. 103, jan.- fev. 2016, p. 172.
174 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

tatuto do Idoso), em conjunto com outras leis que tenham também aplicação ao
objeto da relação in concreto (v.g. o Código de Defesa do Consumidor)100.
Podemos dizer que o idoso pode ter uma vulnerabilidade biológica, a qual
pode ser agravada por seu “ciclo vital”101, mas que também pode ser intensificada
por questões psicológicas, culturais, sociais, ambientais e até mesmo afetivas,
sendo possível assim falar-se na hipervulnerabilidade decorrente de um processo
“biopsicossocial”102.
Frente a tal realidade, imprescindível um olhar cauteloso a toda e qualquer
relação jurídica entabulada por um idoso, e por isso o uso das novas tecnologias
postas em sociedade traz à tona o questionamento de se o que hoje há no Brasil
em matéria legislativa é suficiente para garantir a proteção efetiva da hipervul-
nerabilidade decorrente do envelhecimento, e em especial em face da utilização
de robôs como instrumentos ou ferramentas para o acompanhamento ou trata-
mento de necessidades especiais demandadas pelos idosos.

3 A ROBÓTICA E A TUTELA JURÍDICA DO


IDOSO: PRIMEIRAS REFLEXÕES

O desenvolvimento da tecnologia trouxe consigo uma revolução social in-


questionável. Permitiu o acesso a novos conhecimentos, a agilidade na produção
e um maior crescimento econômico.
Durante muito tempo a internet foi considerada um grande marco no de-
senvolvimento tecnológico, afinal ela proporcionou a redução das distâncias, a
comunicação instantânea e a obtenção de dados e informações a um custo me-
nor e em menos tempo. Atualmente, em matéria de inovação tecnológica, o

100  Como destaca SCHMITT, Cristiano Heineck. Consumidores Hipervulneráveis: a proteção


do idoso no mercado de consumo. São Paulo: Atlas, 2014.
101  Expressão utilizada por RINCO, Michelle; LOPES, Andrea; DOMINGUES, Marisa Ac-
cioly. Envelhecimento e Vulnerabilidade Social: discussão conceitual à luz das políticas públicas e
suporte social. Revista Temática Kairós Gerontologia n. 15, online, p.87.
102  RINCO, Michelle; LOPES, Andrea; DOMINGUES, Marisa Accioly. Envelhecimento e
Vulnerabilidade Social: discussão conceitual à luz das políticas públicas e suporte social. Revista
Temática Kairós Gerontologia n. 15, online, p. 95.
CAPÍTULO 12 - 175

tema de destaque diz respeito às tecnologias emergentes, estando entre elas a


robótica e a chamada inteligência artificial.
Os robôs já há muito tempo vem ocupando os mais diversos setores da
economia. A Coréia do Sul, Singapura e Japão ocupam as primeiras posições
em número de robôs por habitante, mas países da Europa e os Estados Unidos
também apresentam um número significativo.103 Foram os robôs inicialmente
concebidos para serem máquinas industriais, visando auxiliar o trabalho huma-
no, proporcionando maior produtividade com redução de custos, executando
tarefas absolutamente mecanizadas. Atualmente, entretanto, já estão chegando
no setor de serviços104 e comércio, como caso do xrobô105, e até mesmo na vida
doméstica das pessoas.
Com o desenvolvimento da inteligência artificial para a robótica, a execu-
ção de atividades que outrora eram impensáveis, vistas como passíveis de serem
executadas somente por humanos, tornaram-se realidade.106 No caso de robôs
criados para cuidados pessoais, há até mesmo aqueles que exercem a função de
“companheiro emocional do proprietário”, podendo falar com ele, como tam-
bém entender e expressar as emoções humanas.107
O desenvolvimento da robótica tem atingido tamanha velocidade que hoje
em dia muitos robôs apresentam aparência semelhante a de um humano, como
o caso da Sophia, criado pela Hanson Robotics108, com comportamento flexível,
capazes de manter um diálogo, de apresentar opiniões e decisões.109 Dotados de

103  Veja reportagem publicada na revista Veja publicou reportagem acerca dos dez países mais
robotizados do mundo. https://veja.abril.com.br/tecnologia/conheca-os-10-paises-mais-roboti-
zados-do-mundo/.
104  BORGE, Iván Mateo. La robótica y la inteligencia artificial en prestación de servicios ju-
rídicos. Inteligencia artificial, Tecnología, Derecho. NAVARRO, Susana Navas (Dir.). Valencia: Ti-
rant lo Blanch, 2017, p. 123.
105  Ver sobre o tem, http://xrobo.com.br/
106  PALMERINI, Erica. Robótica y derecho: sugerencias, confluencias, evoluciones en el mar-
co de una investigación europea. Revista de Derecho Privado n. 32, enero - junio de 2017. Colom-
bia: Bogotá, p. 02.
107  Nesse sentido ANDRÉS, Moisés Barrio. Robótica, inteligencia artificial y Derecho. Cyber
Elcano n. 36, set. 2018. Real Instituto Elcano, p. 2.
108  A cerca do robô Sophia ver https://www.hansonrobotics.com/wp-content/uploads/2018/09/
gds_Sophia_D058.jpg.
109  ASIS, Rafael de. Sobre ética y tecnologías emergentes. Papeles el tiempo de los derechos n. 7,
2013, p. 8.
176 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

inteligência artificial tornam-se autômatos, executam atividades que vão além o


programado por um computador, tendo capacidade de escolhas e de aplica-las
independentemente de controle ou influência externa, mas a partir dos dados
que capta.110 Estão os robôs superando os seres humanos em muitas dimensões
e aspectos.111
Estas máquinas dotadas de uma tecnologia crescente, saíram da ficção,
dos filmes, dos livros, e passaram a ocupar um espaço na vida real das pessoas, e
esta nova realidade traz uma série de questionamentos e nas mais diversas áreas
da ciência, como a economia, filosofia, psicologia, ética e o direito, cada qual
destacando a complexidade dos efeitos que podem surgir em cada um dos seus
setores. Fala-se agora em “segunda era das máquinas” ou em “indústria 4.0” para
descrever esta nova fase mundial.112
No que diz respeito à assistência as pessoas, como se dá no caso dos robôs
para cuidados domésticos e pessoais, a análise ético-jurídica é fundamental, em
especial quando o sujeito da relação é um hipervulnerável como se identifica no
caso do idoso, impondo-se uma cautela redobrada para que não sejam lesados
direitos de personalidade do mesmo, para que sua dignidade seja preservada.
Não se pode admitir que o idoso seja excluído na vida social e familiar,
afastando-o do convício humano, sob o pretexto de que existem tecnologias que
permitem um cuidado mais qualificado para a saúde do idoso.113 Mais, a impo-
sição de um convívio contínuo entre máquina e idoso pode indiscutivelmente
ensejar a criação de uma relação afetiva entre homem e máquina, como clara-
mente demonstrado na ficção Frank e o Robô, mas é indiscutível que mesmo
110  Assim, COSTA FELIPE, Bruno Farage da. Direitos dos robôs, tomadas de decisões e es-
colhas morais: algumas considerações acerca da necessidade de regulamentação ética e jurídica da
inteligência artificial. Revista Juris Poiesis n. 22, abr. 2017, Rio de Janeiro, p. 155.
111  CROVI, Luis Daniel. Los animales y los robots frente al Derecho. Revista Venezolana de
Legislación y Jurisprudencia n. 10, 2018. Caracas, p. 139.
112  Assim, CROVI, Luis Daniel. Los animales y los robots frente al Derecho. Revista Venezola-
na de Legislación y Jurisprudencia n. 10, 2018. Caracas, p. 139.
113  Em pesquisa realizada envolvendo idosos, gerontologistas e cuidadores, concluiu-se que os
robôs cuidadores poderiam ter um papel positivo em três setores: segurança (auxiliar a andar, a
evitar e detectar quedas, monitorar aspectos incomuns de comportamentos e lembrar de tomar
medicamentos), socialização (lembrando de compromissos médios e familiares, sinalizando se a
pessoa ficou muitos dias sem falar com ninguém, propondo chamadas, estimulando a realização
de atividades cognitivas) e tarefas diárias. Em: https://institutomongeralaegon.org/saude-e-bem-
-estar/autonomia/o-papel-da-robotica-na-sociedade-em envelhecimento.
CAPÍTULO 12 - 177

que dotados de inteligência artificial, jamais serão os robôs capazes de desen-


volver sensibilidade ou afeto, pois só o ser humano é detentor de tal capacidade.
Reflexões e debates importantes sobre a robótica e direito já tem sido iden-
tificadas nos países mais desenvolvidos. Um grande exemplos disso é o Robo-
Law114, projeto europeu de pesquisa sobre robótica e suas repercussões legais,
éticas, sociais e técnicas, o qual objetivou discutir se os marcos jurídicos exis-
tentes e vigentes são adequados para atender a acelerada evolução tecnológica,
criando como resultado recomendações que foram remetidas à Comissão Eu-
ropeia.115 Outro exemplo de grande importância é a Resolução do Parlamento
Europeu de 16 de fevereiro de 2017, que contém recomendações à comissão
sobre disposições de Direito Civil sobre Robótica.116
Da referida Resolução identifica-se claramente a preocupação com os re-
flexos da robótica perante os idosos, sendo destacado o crescimento considera-
velmente rápido da população de idade superior a 80 anos e que a robótica e a
inteligência artificial devem ser concebidas de forma a preservar a dignidade, a
autonomia e a autodeterminação do indivíduo, especialmente na seara dos cui-
dados e da companhia dos humanos.117
No que diz respeito à reflexão ética, em específico, muitos discussões já
foram entabuladas, chegando-se até mesmo a criar-se o termo roboética, a partir
da reflexão de filósofos, juristas, cientistas da robótica, antropólogos e sociólo-

114  RoboLaw-Regulating emerging robotic Technologies: Robotics facing law and ethics, dis-
ponivel em www.robolaw.eu.
115  MELO, Verónica E. El derecho ante la inteligência artificial y la robótica. El Derecho: Diario
de doctrina y jurisprudencia n. 14.343, feb. 2018.
116  Em http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//TEXT+TA+P-
8-TA-2017 0051+0+DOC+XML+V0//PT.
117  Na introdução da Resolução (letra F) consta expressamente: “Considerando que o envelhe-
cimento da população se deve a um aumento da esperança de vida em consequência da melhoria
das condições de vida e do progresso na medicina moderna, constituindo um dos principais de-
safios políticos, sociais e económicos do século XXI com que as sociedades europeias se deparam;
que, em 2025, mais de 20% dos europeus terão uma idade igual ou superior a 65 anos, assistin-
do-se a um aumento particularmente rápido do número de pessoas de 80 anos ou mais, pelo que
o equilíbrio entre gerações nas nossas sociedades será fundamentalmente diferente, e que é do
interesse da sociedade que os idosos gozem de boa saúde e permaneçam ativos o máximo de tem-
po possível”. Da mesma forma na letra O: “Considerando que os desenvolvimentos na robótica
e inteligência artificial podem e devem ser concebidos de tal forma que preservem a dignidade,
a autonomia e a autodeterminação do indivíduo, especialmente nos domínios dos cuidados e da
companhia dos humanos, e no contexto dos dispositivos médicos, da «reparação» ou melhoria dos
seres humanos.”
178 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

gos, na busca de fixar bases éticas no desenho, desenvolvimento e emprego dos


robôs. Considera-se roboética “um conjunto de critérios ou teorias com as quais
se pretende das respostas a todos os problemas éticos que surgem na criação e
no uso de robôs, e que se projetam em seus fabricantes e usuários, e inclusive
nos próprios robôs”118.
Frente a esta realidade identifica-se claramente a necessidade de um marco
jurídico capaz de trazer as respostas necessárias, a segurança possível às relações
que passam a surgir no âmbito da robótica e da inteligência artificial e este cui-
dado deve ser tomado no Brasil.
Em nosso país o desenvolvimento da robótica não se apresenta tão célere
como nos países desenvolvidos, mas já se tem observar um crescimento no setor,
o que deve despertar nos operadores do Direito uma atenção especial, pois há
que se verificar se o manancial legislativo hoje existente é capaz de proporcionar
segurança à este grupo social.
E a discussão não pode tardar, pois não demorará para no Brasil surgir a
necessidade real de respostas. Prova disso é que está sendo desenvolvido, desde
2013, no Centro Universitário um robô 100% brasileiro, o qual foi batizado de
Judith, e que foi concebido para ser aplicado no auxílio de idosos ou pessoas com
dificuldade de locomoção em atividades domésticas. Trata-se de um protótipo
autômato que consegue se locomover pela casa, reconhecer pessoas caídas no
chão e também identificar o estado de espírito delas por meio das expressões
faciais. Segundo os criadores de Judith, espera-se que ela tenha um bom desen-

118  ASIS, Rafael de. Sobre ética y tecnologías emergentes. Papeles el tiempo de los derechos, n. 7,
2013, p. 9. Destaca o autor que o termo roboética foi proposto oficialmente durante o Primeiro
Simposio Internacional de roboética em San Remo, no ano de 2004. Ressalta também que no
mesmo ano no Japão, foi firmado por cientistas e representantes da indústria robótica japonesa, na
International Robot Fair de Fukuoka, A World Robot Declaration, que equivale a uma versão ro-
bótica de juramento hipocrático, sendo nela afirmado que “a próxima geração de robôs coexistirão
com os humanos. Assistirão o humanos física e psicologicamente. Contribuirão para a realização
de uma sociedade segura y pacífica. Com o objetivo de que a sociedade aceite a acolha os robôs,
será necessário definir e aplicar determinados standards, modificar os ambientes de vida e traba-
lho, y as instituições púbica promoverão a introdução de robôs. Importa também destacar que
da Resolução do Parlamento Europeu sobre Robótica antes referida, também surgiu um Código
de Ética para engenheiros de robótica, o que mais uma vez destaca a preocupação com o tema.
CAPÍTULO 12 - 179

volvimento de interação com os humanos e a inteligência artificial, para que não


configure um modelo invasivo e autoritário.119
Verifica-se assim que apesar de no Brasil existirem legislações bastante
avançadas que visam proteger os idosos em suas relações sociais, elas indiscuti-
velmente não foram construídas pensando na realidade da robótica e da inteli-
gência artificial e por isso uma cautelosa reflexão sobre o tema é fundamental
para a segurança da população.

CONCLUSÃO

Como demonstra a cena final do filme Frank e o Robô, quando Frank, já


residindo em um lar para idosos identifica ao seu redor, acompanhando outros
idosos, um número significativo de robôs idênticos aquele com quem ele con-
viveu em sua casa por um período, o crescimento da utilização de robôs tem se
demonstrado uma realidade.
A robótica ocupa um mercado em célere expansão, um mercado estratégi-
co economicamente e de grande impacto social, e que por isso exige uma indis-
cutível intervenção por parte do Direito, a fim de garantir uma maior segurança
às relações, fixando bases éticas claras, direitos e deveres capazes de garantir a
necessária tutela aos envolvidos nas relações jurídicas que se constituírem. Um
marco regulatório capaz de proteger a parte mais débil na relação parece viável,
mas ao mesmo tempo há que se ter a cautela para que não surja uma disciplina
que impeça o desenvolvimento tecnológico necessário para o crescimento do
setor.
Não pode o Direito fechar os olhos à tutela de direitos de personalidade
inerentes ao ser humano, mas não pode ele servir de entrave às novas criações
tecnológicas. A difícil tarefa que surge, portanto, é buscar um equilíbrio. Não se
pode permitir que valores fundamentais, como a proteção da dignidade humana
venha a ser desrespeitada.

119  Em https://startse.com/noticia/conheca-judith-o-primeiro-robo-100-brasileiro.
180 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

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182 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE
CAPÍTULO 12 - 183

ESPECIAIS
184 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE
CAPÍTULO 13 - 185

13
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E
DIREITOS DE IMAGEM*
Vítor Palmela Fidalgo120

1. INTRODUÇÃO

I. O real impacto da inteligência artificial nos diversos ramos do direito


ainda é, em grande parte, desconhecido. As dificuldades derivam de diversos fa-
tores. Desde logo, do jargão técnico utilizado, estranho à linguagem jurídica e à
grande maioria dos juristas. Depois, dos novos e complexos desafios que coloca,
nomeadamente a institutos civis que, pelo seu percurso dogmático e histórico,
atingiram uma maturidade que agora é colocada em causa pela 4.ª Revolução
Industrial121, de onde se destaca a inteligência artificial.

120  Docente na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Diretor Jurídico na Inventa


International. Investigador no Centro de Investigação de Direito Privado. Mestre em Direito
121  * O presente texto corresponde, com algum desenvolvimento, à conferência apresentada no
âmbito do Curso Avançado - Inteligência Artificial & Direito, organizado pela PLMJ, sob a coor-
denação do Dr. Manuel Lopes Rocha, Dr. Pedro Lomba, Professor Doutor Rui Soares Pereira, Dr.
Rui Barrosa de Moura, Dr. Lourenço Noronha dos Santos e Dr. Ricardo Negrão.
A 4.ª Revolução Industrial ou, igualmente denominada, Revolução 4.0 diz respeito ao avanço
tecnológico das últimas décadas que tem alterado, por completo, a nossa forma de viver em Socie-
dade. Esta revolução é impulsionada, substancialmente, pela inteligência artificial e pela robótica,
onde se destacam diversas tecnologias, como é o caso da Big Data, Advanced Analytics, Clould
Computing, blockchain e internet das coisas (Internet of Things – IoT). Contudo, a 4.ª Revolução
Industrial não é apenas digital num sentido restrito do termo, é também biológica, de onde se
destacam a engenharia genética e, igualmente, a física, seja pela nova tecnológica robótica, onde
186 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

II. Tratando-se ainda de uma análise fenomenológica122, onde não existe uma
autonomia dogmática, a abordagem deverá ser segmentada, discorrendo-se sobre o
impacto da inteligência artificial em cada área do direito. É o que iremos fazer no
presente opúsculo. Partindo das normas que regem os direitos de personalidade,
mais concretamente da proteção civil auferida pelo direito à imagem123 e da ma-
turidade hermenêutica que este direito especial de personalidade atingiu ao longo
dos tempos, iremos examinar quais os problemas que a inteligência artificial coloca
neste âmbito.
III. Antes de partirmos para a análise, duas notas parecem-nos importantes
de referir: não obstante os problemas éticos124 que se colocam com a inteligência
artificial, a nossa análise será, primordialmente, juscientífica. Para além de não nos
atermos a considerações estereotipadas e alarmistas quanto ao advento da inteli-
gência artificial125, enquanto juristas, - peticionando-nos por alguma deriva ide-
ológica que possamos ter - a nossa análise deve ser e será virada para soluções de
casos concretos, tendo em conta os princípios e as normas existentes. Esta questão
está relacionada com a segunda nota que queremos deixar. O presente estudo, ain-
da que singelo, tentará não se fixar, unicamente, numa seriação de problemas ou
factos, como se de um estudo historicista se tratasse. Ainda que conscientes das
dificuldades que se anteveem, estamos com os autores que referem que o Direito
nunca estará completamente indefeso “ao ponto de ser surpreendido em inapelá-
vel contra-pé pela vertiginosa sucessão de avanços tecnológicos”126. Não existe, de
facto, um “espaço livre de Direito”, mas sim um esforço hermenêutico na busca de

o hardware interage, de forma cada mais complexa, com o ambiente, seja pelo desenvolvimento de
veículos autónomos e de impressoras 3D.
122  Nuno Sousa e Silva, «Direito e Robótica: uma Primeira Aproximação, ROA, Ano 77,
jan./jun., 2017, p. 487 e ss., p. 491.
123  Em termos terminológicos, ainda que tenhamos preferência pela expressão “direito à imagem”,
seguimos o título que foi dado à conferência que estabelece o termo “direitos de imagem”, sendo que,
no presente estudo, as duas expressões serão utilizadas como sinónimos.
124  Cf., por exemplo, Sánchez García, «Robótica y Ética», Derecho de los Robots, Madrid,
Wolters Kluwer, 2018, p. 229 e ss.
125  Sobre o mito da singularidade tecnológica ou o transhumanismo existem múltiplas obras com
interesse que podem ser consultadas, a maior parte delas com um cariz filosófico. Para uma leitura
acessível sobre esta matéria, vide, entre outras, Jean-Gabriel Ganascia, Le Mythe de la Singula-
rité: Faut-il craindre l’intelligence artificielle, Paris, Seuil, 2017.
126  Carneiro da Frada, «Vinho Novo em Odres Velhos? – A responsabilidade civil das
“operadoras de internet” e a doutrina comum da imputação de danos», Direito da Socieda-
de da Informação, vol. II, 2001, p. 7 e ss., p. 8.
CAPÍTULO 13 - 187

soluções adequadas, que deverá ser levado a cabo pelo jurista. Será esse desidrato
a que nos propomos.

2. A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E O
DIREITO: PANORÂMICA GERAL

I. Ao debruçarmo-nos sobre o fenómeno da inteligência artificial integra-


da na Revolução 4.0, somos obrigados a deixar alguns reparos, ainda que gené-
ricos, sobre como é que o Direito poderá ser afetado por esta.
Como dissemos anteriormente, ainda que a extensão da influência seja ain-
da desconhecida, podemos, não obstante, enumerar quais são as áreas onde se
preconiza uma maior influência da inteligência artificial no Direito, bem como
indicar quais são, em termos gerais, as principais respostas da ciência jurídica,
seja a nível legal, seja a nível doutrinal, para este fenómeno.
II. Como ideia principal a reter, diríamos que a Revolução Industrial em
que nos encontramos promete não deixar nenhuma área do Direito incólume.
Isto mesmo demonstra a recente Resolução do Parlamento Europeu de 16 de
fevereiro de 2017 (doravante Resolução), que contém recomendações à Comis-
são sobre disposições de Direito Civil sobre Robótica127. Tendo como objetivo

127  Apesar de este instrumento legislativo poder ser considerado pioneiro, na medida em que
foi o primeiro com devida extensão e de uma forma genérica a tocar nas problemáticas sobre a
inteligência artificial e a tecnologia robótica, o mesmo tem alguns antecedentes que devem ser
mencionados.
A nível europeu, devemos fazer referência ao Projeto RoboLaw, financiado pela Comissão Euro-
peia, que teve como objetivo elaborar um relatório sobre todas as questões éticas e jurídicas que
se colocam com a tecnologia robótica, oferecendo ainda orientações e princípios aos reguladores
europeus e a cada Estado-membro. Este relatório foi finalizado em setembro de 2014, encon-
trando-se o mesmo disponível para o público. Em alguns Estados-membros também já existiram
discussões públicas sobre robótica e inteligência artificial. Tal foi o caso da Alemanha, na Sessão
do Comité da Agenda Digital do Parlamento Alemão, em 22 de junho de 2016, que teve como
tema os efeitos da robótica na economia, no trabalho e na sociedade; ou do Reino Unido, onde
teve lugar uma Consulta pública do Parlamento britânico, que deu lugar ao Relatório Robotics
and artificial intelligence, publicado a 12 de outubro de 2016 (vide www.publications.parliament.
uk/pa/cm201617/cmselect/cmsctech/145/145.pdf ), onde se aborda as implicações da tecnologia
robótica e inteligência artificial no mercado de trabalho, bem como as questões éticas e legais
envolvidas e as medidas que devem ser tomadas pelo Governo para promover a investigação e
inovação nestas áreas.
188 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

levar a Comissão Europeia a apresentar uma proposta legislativa128 sobre o de-


senvolvimento e a utilização da inteligência artificial e da robótica129, a Resolução
debruça-se sobre temáticas que cobrem diversas disciplinas jurídicas, como a Res-
ponsabilidade Civil derivada das ações ou omissões dos robôs e a eventual Persona-
lidade Jurídica atribuída a estes; sobre questões que envolvem o Direito da Família
(mais concretamente, proteção das crianças e dos idosos), o Direito da Propriedade
Intelectual, o Direito à Proteção de Dados e Privacidade, o Direito do Trabalho e da
Segurança Social ou o Direito Fiscal. A inteligência artificial e a robótica têm ainda

Fora do contexto europeu, a relação entre o Direito e a inteligência artificial e a tecnologia robótica
também não tem sido esquecida. A 27 de junho de 2016, o Governo norte-americano, à semelhan-
ça do que foi feito no Reino Unido, promoveu uma consulta pública para saber o ponto de vista
dos consumidores, dos académicos, das empresas privadas e das ONGs, tendo como tópicos, entre
outros, as implicações legais da inteligência artificial (vide https://www.federalregister.gov/documen-
ts/2016/06/27/2016-15082/request-for-information-on-artificial-intelligence). Adicionalmente, em
2007, na Coreia do Sul, o Ministro do Comércio, da Indústria e da Energia apresentou um Código
de Ética para a Tecnologia Robótica com conteúdo semelhante ao que é agora apresentado pelo Par-
lamento Europeu na sua Resolução.
128  Tendo como base o art. 225.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
129  Apesar de, por vezes, surgirem quase como sinónimos, inteligência artificial e robôs ou tecnolo-
gia robótica são realidades distintas. A inteligência artificial é um campo da ciência e da engenharia
que se ocupa da compreensão, desde o ponto de vista informático, do que se denomina, correntemente,
comportamento inteligente. Adicionalmente, também se ocupa da criação de artefactos que exibem
esse comportamento. Trata-se de igualar ou copiar as diversas capacidades do cérebro humano de for-
ma a manifestar comportamentos inteligentes, sintetizando e automatizando tarefas. Poderá ser apli-
cável a qualquer âmbito de atividade intelectual humana, pelo que utiliza técnicas e conhecimentos
de outras disciplinas, tais como a filosofia, a estatística, a engenharia mecânica, a neurociência, a
psicologia e as matemáticas.
A tecnologia robótica, por seu turno, de forma clássica, consiste numa subdisciplina da Engenha-
ria Industrial, correspondendo ao engenho eletrónico capaz de realizar operações no meio ambiente
através de programação. A circunstância de, na tecnologia robótica, ser implementada inteligência
artificial e outras técnicas inovadoras de hardware e software, faz com que o robô enriqueça os seus
comportamentos, mas também a sua complexidade, o que irá influir na sua relação com o meio am-
biente, seja com objetos, seja com pessoas.
Neste âmbito, também o algoritmo deve ser diferenciado. O algoritmo consiste na sequência de ins-
truções que é utilizada na inteligência artificial. De facto, um sistema de inteligência artificial necessita
de uma sequência de instruções que especifique as diferentes ações que o computador deve executar
para resolver um determinado problema. O algoritmo é, assim, o procedimento para encontrar a solu-
ção de um problema mediante a redução do mesmo a um conjunto de regras (vide, entre outros, Gar-
cía-Prieto Cuesta, «Qué es un Robot?», Derecho de los Robots, Madrid, Wolters Kluwer,
2018, p. 25 e ss.; Susana Navas Navarro, Inteligencia Artificial. Tecnología. Derecho, coord.
Susana Navas Navarro, Valencia, Tirant lo Blanch, 2017, p. 23 e ss.).
CAPÍTULO 13 - 189

gerado bastante discussão em áreas como o Direito dos Contratos130 e, fora do


âmbito jusprivatístico, no Direito Constitucional131 ou Penal132.
III. Para além de a Resolução ter como objetivo levar a Comissão Euro-
peia, através de Diretiva, a legislar sobre a matéria da tecnologia robótica com
a maior brevidade possível, podemos identificar ainda outros três objetivos pri-
mordiais da mesma, a saber: i) tutelar as implicações, potencialmente nocivas,
que a tecnologia robótica possa ter133; ii) assegurar uma abordagem cautelosa,
pragmática e gradual, que não afete a inovação no âmbito da tecnologia ligada
à inteligência artificial e robótica134; e iii) colocar a União Europeia e os seus
Estados-membros na linha da frente nesta matéria, levando a União Europeia a
estabelecer standards que influenciarão outras ordens jurídicas135.
Podemos ainda destacar algumas propostas genéricas da Resolução que
nos parecem relevantes, mais concretamente no que diz respeito à tecnologia
robótica. Estas referem-se à categorização de robôs de acordo com a sua auto-
nomia136, sendo que, para os robôs mais avançados, deverá ser estabelecido um
sistema global de registo gerido por uma Agência Europeia de Robô137; bem
como ao estabelecimento de um código de conduta a aplicar aos investigadores
e fabricantes de tecnologia robótica, tanto de hardware como de software138.
IV. Parece-nos ainda importante mencionar o Princípio da Precaução139,
que é referido em várias ocasiões pela Resolução. Tendo nascido no âmbito do
Direito do Ambiente, o Princípio da Precaução obriga a que os vários agentes,

130  Cf., por exemplo, Louisa Specht / Sophie Herold, «Roboter als Vertragspartner?
Gedanken zu Vertragsabschlüssen unter Einbeziehung automatisiert und autonom
agierender Systeme», Multimedia und Recht, 2018, p. 40 e ss.
131  Cf., entre outros, Nuno Sousa e Silva, ob. cit., p. 508 e ss.; Toni M. Massaro / Helen
Norton, «Siri-ously? Free Speech Rights and Artificial Intelligence», Northwestern
University Law Review, vol. 110, n.º 5, 2016, p. 1169 e ss., disponível em «www.scholarly-
commons.law.northwestern.edu» (visitado em 25.08.2018).
132  Ugo Pagallo, The Laws of Robots: Crimes, Contracts, and Torts, Heidelberg, Spring-
er, 2013, p. 45 e ss.
133  Cf. p. 3, B e C e passim, da Resolução.
134  Cf. p. 368, C. e § 51, da Resolução.
135  Cf. pp. 6 e 7, T., V. e W., da Resolução.
136  Cf. § 1, da Resolução.
137  Cf. § 2 e § 16, da Resolução.
138  Cf. § 11 e p. 23 e ss., da Resolução.
139  Cf. § 7 e § 23, da Resolução.
190 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

face a um evento desconhecido com um potencial danoso irreversível, procurem


antecipar-se e tomar as medidas adequadas, tendo como objetivo evitar a ocor-
rências desses danos. Certamente que constituirá, neste âmbito, uma forma de se
imporem deveres especiais de cuidado, quer a respeito dos fabricantes, quer a respeito
dos utilizadores140.
V. A inteligência artificial está ainda a afetar o Direito de outra forma, ain-
da que externa à ciência per se. Falamos das profissões jurídicas que já estão a ser
substituídas por bots disponibilizados por empresas legaltech, que elaboram e pre-
enchem minutas, esclarecem dúvidas legais, geram os prazos do escritório ou resol-
vem conflitos extrajudiciais141. Adicionalmente, prevê-se que, num futuro próximo,
a combinação entre o Direito e a inteligência artificial possa tornar possível que
programas informáticos desenvolvam raciocínio legal, argumentando diretamente
contra determinados resultados jurídicos142.
Em termos de substituibilidade, ainda que os estudos variem no que diz res-
peito à percentagem de cada profissão jurídica, quase todos demonstram que a pro-
fissão de advogado será a menos afetada pela inteligência artificial, especialmente
se valorizarmos a criatividade técnico-jurídica e os elementos subjetivos inerentes à
profissão, que não poderão ser replicados pela tecnologia robótica. O cenário muda
se nos debruçarmos sobre a situação dos juristas que fazem trabalho mais ou menos
mecanizado, repetitivo e/ou administrativo, sejam estes qualificados como advoga-
dos ou paralegals, onde a probabilidade de substituição é bastante elevada143.

140  Nuno Sousa e Silva, ob. cit., p. 518.


141  A título de exemplo, a aplicação informática DoNotPay, de origem americana, ficou conhecida
por ter uma taxa de êxito de mais de 60% em litígios administrativos relacionados com tráfego rodo-
viário.
142  Para uma leitura bastante atualizada e detalhada sobre a interseção entre a prática jurídica e a
inteligência artificial recomenda-se a obra de Kevin Ashley, Artificial Intelligence and Legal
Analytics, Cambridge, Cambridge University Press, 2017, em especial a p. 3 e ss. e a p. 171 e
ss.
143  A título de exemplo, o conhecido website NPR (www.npr.org), apresenta o seguinte quadro de
substituibilidade das profissões jurídicas: Assistentes jurídicos (Paralegals): 94,5 %; Oficiais de justiça:
40,9 %; Juízes e Magistrados: 40,1% Advogados: 3,5%. Naturalmente estes resultados apenas com cum
grano salis poderão ser transpostos para a realidade jurídica do Direito Continental.
CAPÍTULO 13 - 191

3. OS “VELHOS” NOVOS PROBLEMAS NO


ÂMBITO DO DIREITO À IMAGEM

I. Não obstante tocar em várias matérias, no âmbito do objeto do estudo


que nos ocupa, a Resolução do Parlamento Europeu pouco acrescentou. Apesar
da referência à privacidade em vários pontos do texto legal, os enunciados são
genéricos, não se apresentando propostas concretas neste domínio. Com alguma
dificuldade encontramos um trecho que se relaciona com o direito à imagem – e
com o direito à reserva da intimidade da vida privada -, nomeadamente na pro-
posta para a Carta da Robótica, referindo-se que, tendo em conta a “privacidade
das pessoas”, a conceção dos robôs poderá incluir “a desativação de controlos de
vídeo durante procedimentos íntimos”144.
II. Teremos então de partir do regime previsto no Código Civil (doravante
CC). A tutela civil do direito à imagem vem previsto no art. 79.º. Refere o seu
n.º 1 que “o retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado
no comércio sem o consentimento dela”. No seguimento do art. 71.º, a segunda
parte da norma mencionada dirige-se à tutela post mortem. Aqui já não se trata
de proteger a personalidade da pessoa falecida, pois esta termina com a sua mor-
te. Existe sim, uma tutela dos interesses e direitos próprios dos familiares, que
podem exigir o respeito pela memória do falecido145.
O n.º 2 do art. 79.º do CC estabelece alguns desvios à necessidade de
consentimento. De acordo com a norma, “não é necessário o consentimento
da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo
que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas,
didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na
de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido

144  Cf. Resolução, p. 28.


145  Seguimos de perto Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, IV (com a colabora-
ção de A. Barreto Menezes Cordeiro), 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2017, p. 545; Pedro
Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, reimp., Coimbra, Almedina, 2017, pp. 120
e 121; Paulo Mota Pinto, «O Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada»,
Direitos de Personalidade e Direitos Fundamentais: Estudos, Coimbra, Almedina, 2018, p.
475 e ss., pp. 557 e 558, nota 184.
192 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

publicamente”. Estabelecem-se assim dois tipos de motivos que dispensam o con-


sentimento do titular do direito à imagem: i) por razões de notoriedade do retrata-
do; ou ii) tendo em conta as circunstâncias ou a finalidade da imagem utilizada146.
Sem embargo, nos termos do n.º 3 do art. 79.º, a imagem nunca poderá ser
reproduzida “se do facto resultar prejuízo para a honra, reputação ou simples decoro
da pessoa retratada”. Determinam-se assim limites às dispensas previstas no n.º 2,
limites esses que se baseiam no direito à honra e reputação da pessoa retratada.
III. Questiona-se qual o conceito de imagem a adotar. Este esclarecimento
permitirá categorizar, em termos gerais, as formas de afetação - previsíveis - da
inteligência artificial quanto a este direito especial de personalidade.
De facto, não podemos olvidar que a inteligência artificial impactará com ou-
tras realidades, como a personalidade, identidade ou história da pessoa humana.
Contudo, apesar de, em termos prosaicos, se referir, muitas vezes, à imagem moral da
pessoa, o direito à imagem não tutela estas características do ser humano. A tutela
destas realidades será encontrada noutros domínios, nomeadamente no direito à
honra, ao bom nome ou à reputação.
Da mesma forma, ficará de fora do art. 79.º a imagem falada. Tendo em conta
o art. 70.º, que obsta a que haja uma tipicidade dos direitos de personalidade147,
nem será necessária uma interpretação extensiva do conceito de imagem, apesar de
a tutela penal, no seu art. 199.º do Código Penal, juntar estas duas realidades na
mesma disposição, prevendo-se a mesma estatuição.
IV. Os desafios que se colocam aos direitos de imagem não encontram este
instituto virgem. As várias revoluções industriais já vêm afetando, de forma subs-
tancial, a imagem do indivíduo. Se, na Idade Média, a imagem só era reproduzí-
vel com a pintura, acessível apenas a especialistas altamente qualificados148, com o
surgimento da fotografia no âmbito da 1.ª Revolução Industrial, o problema da
reprodução começou a colocar-se. A 2.ª Revolução Industrial agravou os incon-
venientes: o aparecimento do cinema, da televisão e do vídeo criou novos meios
de reprodução, mais intrusivos e acessíveis a mais pessoas. Com a 3.ª Revolução
Industrial, o problema exponenciou-se. A difusão da internet veio massificar a pos-

146  Ana Morais Antunes, Comentário aos artigos 70.º a 81.º do Código Civil (Direitos de Per-
sonalidade), Lisboa, Universidade Católica Editora, 2012, p. 186.
147  Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 108.
148  Idem, p. 254.
CAPÍTULO 13 - 193

sibilidade de reprodução de imagens, além de permitir a disponibilização das


mesmas de forma instantânea a qualquer pessoa. Nesta evolução faz ainda sen-
tido mencionarmos o vincado perfil mercantilista que o direito à imagem tem
vindo a atingir. Na senda do art. 81.º do CC, que permite a sua comercialização,
o direito à imagem tem sido analisado, na maior parte das vezes, mais como um
bem económico do que como um bem de personalidade149.
V. Chegados à 4.ª Revolução Industrial, em que nos encontramos, dir-se-
-á, com razão, que nem todos os problemas constituem novidade. A captação,
reprodução e alteração de imagens de terceiros são problemas que já existiam.
Não obstante, aqueles que são considerados “velhos” problemas, agudizam-se de
uma forma extrema. Agudizam-se tanto pelas técnicas que são utilizadas, onde
a fronteira entre o real e o virtual se torna difícil de distinguir aos olhos do ser
humano, como pelo facto de muitas das inovações de ponta existentes serem de
fácil acesso ao utilizador comum.
VI. De facto, a Inteligência artificial permite agora a criação de software
capaz de reconhecer objetos nas imagens. A título de exemplo, a Google, com
o projeto Deep Dream, conseguiu criar uma rede neuronal capaz de projetar
imagens que percecionou e incluir nas mesmas várias emoções, aumentando os
seus detalhes ou criando cenários fantasiosos. Por sua vez, a Universidade de
Stanford conseguiu criar um algoritmo que consegue descrever uma imagem.
Para que atinja um determinado grau de fiabilidade, os projetos baseados
em inteligência artificial necessitam de obter milhares de dados, onde se in-
cluem, de forma decisiva, imagens de pessoas150. Neste âmbito surge, desde logo,
uma questão: será a captação da imagem, por si só, proibida? A fazer fé da letra

149  Como refere Adalberto Costa, «O Direito à Imagem», Revista da Ordem


dos Advogados, ano 72, n.º 4, 2012, p. 1323 e ss., p. 1350, “A  tutela  da  ima-
gem ganha cada vez mais relevo em virtude da acção combina-
da de duas circunstâncias: uma pelo desenvolvimento incessan-
te de meios técnicos que põem em causa a privacidade e levam a um
empolamento de tudo o  que a esta estiver ligado;  outra,  a  patrimonializa-
ção da imagem, não obstante continue a qualificar-se como um di-
reito de personalidade que a transforma em causa de grandes lu-
cros em relação a futebolistas, estrelas de cinema, etc.”.
150  Já o dizia Diogo Leite de Campos, Nós: Estudos sobre o Direito das Pessoas, Coimbra,
Almedina, 2004, p. 100, referindo-se à possibilidade de os meios informáticos poderem
“armazenar e utilizar grandes massas de dados sobre múltiplas pessoas”.
194 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

da lei e, já agora, em alguma doutrina estrangeira151, poderemos ser levados a


pensar que a captação de imagens não estará coberta pela disposição. O art. 79.º,
n.º 1, do CC refere apenas que “o retrato de uma pessoa não pode ser exposto,
reproduzido ou lançado no comércio sem o consentimento dela”. Com efeito,
a mera recolha de imagens realizada por tecnologia embutida por inteligência
artificial, ao menos ao nível da tutela civilística, não levará a qualquer tipo de
ilicitude, desde que não se proceda à exposição, reprodução ou comercialização do
retrato da pessoa.
Não obstante, convém recordar nesta questão o que a doutrina portugue-
sa152
tem, de forma quase unânime, defendido. De acordo com a mesma, a cap-
tação será igualmente vedada a terceiros, a não ser que exista consentimento do
titular do direito à imagem.
Sem prejuízo de concordarmos com o resultado da formulação defendida,
que nos parece correta, acrescentamos que, ainda que não se concorde com a
mesma, a proibição da captação da imagem per se encontrará sempre funda-
mento no espírito do art. 80.º, referente ao direito à reserva sobre a intimidade da
vida privada. De facto, as fronteiras entre e os arts. 79.º e 80.º nem sempre são
claras153, dado que a proteção da intimidade da vida privada é um valor que co-
mungam em conjunto154. Em suma, dir-se-á que a tutela jurídica dos direitos de

151  Cf., entre outros, Carnelutti, «Diritto alla vita privata. Contributo alla teoria
della libertà di stampa», RTDP, 1995, p. 3 e ss., p. 4.
152  Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra, Coimbra Editora,
1995, p. 246 (nota 560); Menezes Cordeiro, ob. cit. p. 258; Cláudia Trabuco, «Dos Con-
tratos Relativo ao Direito de Imagem», O Direito, ano 133, n.º 2, 2001, p. 389 e ss., pp. 406
e 407. Ana Morais Antunes, ob. cit., pp. 179 e 180; David de Oliveira Festas, Do conteúdo
patrimonial do Direito à Imagem - Contributo para um Estudo do seu Aproveitamento Con-
sentido e Inter Vivos, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pp. 272 e 273. Como refere este
último autor, “deve ser considerada retrato e sujeita a consentimento do titular
toda a representação ou fixação da imagem, isto é, a atribuição de suporte, indepen-
dentemente da técnica utilizada”.
153  Em sentido próximo, Paulo Mota Pinto, «O Direito à Reserva sobre a Intimidade
da Vida Privada», ob. cit., p. 551 e ss. Alguns autores, como Luísa Neto, Código Civil
Anotado, vol. I, coord. Ana Prata, Coimbra, Almedina, 2017, p. 116, referem mesmo que
o direito à imagem “é um direito decomposto face ao direito à reserva da intimidade
da vida privada”.
154  Como afirma Oliveira Ascensão, Direito Civil. Teoria Geral, 2.ª ed., vol. I, Coimbra,
Coimbra Editora, 2000, p. 119, o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada
não deixa de ser um direito “residual”, onde o conteúdo é sistematicamente preen-
chido pelos demais direitos de personalidade, como é o caso do direito à imagem.
CAPÍTULO 13 - 195

personalidade obsta à captação da imagem per se, seja convocando o art. 79.º, seja
chamando à colação a disposição seguinte que refere que “todos devem guardar
reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem”155.
VII. Adicionalmente, a inteligência artificial permite hoje um grau de so-
fisticação na edição de imagem superior às técnicas anteriormente utilizadas. A
título de exemplo, num processo de edição de características faciais, era extre-
mamente difícil atingir-se um elevado grau de realidade, circunstância que está
rapidamente a alterar-se com a utilização de software baseado em inteligência
artificial, sendo que os efeitos nefastos já se fazem sentir. Recentemente, o web-
site Reddit bloqueou vários tópicos de discussão acerca de técnicas de edição de
vídeo baseadas em ferramentas de inteligência artificial que conseguiam sobre-
por rostos de figuras públicas em cenas pornográficas, denominadas deepfakes156.
As deepfakes são imagens ou vídeos falsos, onde as imagens de pessoas são so-
brepostas através de técnicas baseadas na inteligência artificial, que permitem
uma autenticidade aparente muito genuína. A visualização desses vídeos, para
além de prejudicar a imagem do visado, é uma fonte de lucro fácil para quem os
coloca na rede.
Com efeito, a inteligência artificial leva-nos ainda para um nível superior
de exposição e manipulação de imagens. Já não se trata unicamente da possibi-
lidade de visualização em massa de imagens, mas sim da sua alteração de forma
complexa. Contudo, como já tem sido defendido, o art. 79.º não limita as for-
mas de exposição ou reprodução157. Qualquer forma de exposição ou reprodu-
ção, digital ou não, que seja tecnicamente possível, estará abrangida pela norma,
onde se incluem, naturalmente, as fotomontagens. O limite será apenas que a

155  E isto não obstará ao facto de se considerar o direito à reserva sobre a intimidade da vida pri-
vada como um direito “em função do indivíduo”, tendo um objeto que se modula de acordo com a
atuação do indivíduo, ao contrário do que sucede no direito à imagem, que se tutela independen-
temente da atuação do titular. Como referiu Paulo Mota Pinto, «A Limitação Voluntária
do Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada», Direitos de Personalidade e
Direitos Fundamentais: Estudos, Coimbra, Almedina, 2018, p. 679 e ss., p. 684, nota 9, exis-
tem casos no direito à reserva da intimidade da vida, como o direito à honra, se se
considerar que o mesmo ainda integra este direito, onde a sua tutela não se adequa
em função do indivíduo, o que será o caso da captação da imagem de outrem.
156  Vide «www.reddit.com/r/deepfakes».
157  Ana Morais Antunes, ob. cit., p. 180.
196 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

exposição ou reprodução permita a identificação da pessoa retratada, ainda que seja


apenas pelas pessoas do seu círculo íntimo158.
Da mesma forma, no seguimento do defendido por alguns autores159, pensa-
mos que a captação e divulgação da voz - a “voz falada” - fará ainda parte do con-
teúdo do art. 79.º, na medida em que está diretamente ligada à imagem da própria
pessoa e, por esse motivo, a sua captação, por qualquer meio, terá de ser alvo de
consentimento.
VIII. A Revolução Industrial 4.0 traz ainda para o campo da realidade ôntica
algumas coisas que só pareciam ter lugar na ficção científica. Uma dessas coisas diz
respeito ao Cyborg. O termo Cyborg, cuja expressão resulta da contração e junção
das palavras inglesas “cybernetic” e “organism”, é atualmente referido para identi-
ficar um indivíduo que tem incorporado no seu corpo determinados dispositivos
tecnológicos, tendo como objetivo melhorar a sua performance humana, ainda que
a incorporação possa não se dever, necessariamente, a qualquer patologia ou com
vista a recuperar qualquer função perdida160.
O problema da existência de Cyborgs ou, diríamos melhor, da prática de incor-
porar dispositivos tecnológicos com vista a melhorar a condição humana, convoca,
de fundo, muitas outras questões que não cabem discutir no presente estudo161.
Cuidaremos apenas de um aspeto específico, que tem que ver com o objeto da nossa
discussão, nomeadamente a questão de saber se esses elementos que fazem parte da
pessoa poderão ser protegidos. Salvo melhor opinião, parece-nos que este problema
poderá ser reconduzido à discussão de saber que proteção auferem os elementos ex-
teriores ao corpo da pessoa. Tal como o vestuário, ou outros objetos, os dispositivos
incorporados são suscetíveis de auxiliar no reconhecimento do indivíduo162. Não
obstante, a proteção do direito à imagem nunca recairá sobre os objetos em si, em

158  David Oliveira Festas, ob. cit., p. 249.


159  Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 257. Contra, vide Rita Amaral Cabral, «O direito à
intimidade da vida privada (breve reflexão do artigo 80.º do Código Civil)», Estudos em
memória do Prof. Doutor Paulo Cunha, Lisboa, Universidade de Lisboa, 1989, p. 373 e ss., p. 403.
160  Neste sentido e ainda para uma classificação de Cyborgs, vide Sandra Camacho Clavijo, «La
subjetividad “cyborg”», Inteligencia Artificial. Tecnología. Derecho, coord. Susana Navas
Navarro, Valencia, Tirant lo Blanch, 2017, p. 231 e ss., p. 236.
161  Tal como o livre desenvolvimento da personalidade, o princípio da dignidade humana ou o
direito à integridade física.
162  Neste sentido, David Oliveira Festas, ob. cit., p. 248.
CAPÍTULO 13 - 197

termos isolados. Terão de ser sempre enquadrados com alguma representação da


pessoa humana para que haja proteção.
IX. Não poderemos deixar ainda de referir o facto de que, na Revolução
4.0, a vanguarda da proteção da imagem será muitas vezes assumida pelo direito
à proteção dos dados. Não será a tutela penal, onde têm sido apontados bastan-
tes insuficiências, nem tão-pouco a tutela civil, erigida com base em premis-
sas clássicas, que se acham insatisfatórias perante fenómenos como o Big Data.
Com efeito, bastará para isso que a imagem seja considerada um dado pessoal
como tem sido.
Ainda que o presente estudo seja centrado na tutela civil do direito de ima-
gem, apraz-nos útil realizar uma aproximação, ainda que a título breve, à tutela
da imagem no âmbito do regime da proteção de dados pessoais. É o que iremos
fazer no ponto seguinte.

4. A IMAGEM COMO DADO PESSOAL: A TUTELA


AUFERIDA PELO REGIME DA PROTEÇÃO DE DADOS

I. Cientes de que o presente estudo se debruça sobre o direito à imagem no


âmbito dos direitos de personalidade, parece-nos útil realizar uma menção à tu-
tela que a imagem pode auferir no regime relativo à proteção de dados pessoais,
dada a sua relevância no atual contexto da Revolução 4.0.
Apesar da necessária interdisciplinaridade, o direito da proteção dos dados
pessoais tem, atualmente, plena autonomia dogmática. Ainda que ultrapasse o
objeto do presente estudo, sempre diríamos que a relação entre direitos de per-
sonalidade, mais concretamente o direito à privacidade e o direito à proteção
dos dados pessoais, se estabelece pela independência entre os dois, não obstante
admitirmos a existência de sobreposição em alguns valores tutelados, como a
reserva da intimidade da vida privada163. O direito à proteção dos dados pessoais

163  A relação entre o direito à reserva da intimidade da vida privada e o direito à proteção de da-
dos pessoais pode ser reconduzida a três tipos de abordagens: olhando para o direito à privacidade
e da proteção de dados pessoais como direitos separados, mas que se complementam; estabelecen-
198 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

está juridicamente funcionalizado à proteção dos dados pessoais164 dos seus titula-
res165, proteção esta não referente aos próprios dados per se, mas sim à finalidade e
ação exercidas sobre os mesmos166.
II. Esta será mais uma das formas de tutela da imagem, dado que a inteli-
gência artificial, conforme referimos supra, irá permitir a captação e reprodução de
imagens em massa (big data), cuja principal fonte é a internet. No seu tratamento
são utilizadas tecnologias baseadas em data mining e algoritmos assentes em técni-
cas de machine learning, tendo como objetivo a criação de nova informação167, que
poderá consistir, eventualmente, num perfil de uma determinada pessoa.
Com efeito, constituindo a imagem uma informação relativa a uma pessoa
singular, capaz de a identificar e que, por esse motivo, cabe no conceito de dados
pessoais168 presente no art. 4.º do Regulamento Geral de Proteção de Dados169
(doravante RGDP), esta será protegida enquanto tal.

do a proteção dos dados pessoais como fazendo parte do conteúdo do direito à privacidade; e, por fim,
entendendo, tal como nós propugnamos, que o direito à privacidade e o direito à proteção de dados
são direitos distintivos, embora alguns dos valores em jogo se possam sobrepor (sobre esta questão,
tomando uma posição semelhante à nossa, vide Giusella Finocchiaro, Il nuovo Regolamento eu-
ropeo sulla privacy e sulla protezione dei dati personali, Torino, Zanichelli Editore, 2017, p. 5
e ss.; Orla Lynskey, The Foundation of EU Data Protection Law, Oxford, Oxford University
Press, 2015, p. 89 e ss.). Esta questão não tem apenas uma dimensão teórica, na medida em
que a deficiente qualificação dos bens jurídicos tutelados e dos valores em jogo pode
redundar em decisões contraprocedentes, como, por exemplo, num caso de colisão de
direitos entre o direito à proteção dos dados pessoais e outros direitos ou interesses
de terceiros, como o direito à liberdade de expressão ou o acesso a documentos públicos.
164  Sobre a origem e evolução do direito à proteção dos dados, que tem como base o Princípio da
Dignidade Humana e o Livre Desenvolvimento da Personalidade, vide Ana Garriga Domínguez,
Nuevos Retos para la Protección de Datos Personales en la Era del Big Data y de la Computación
ubicua, Madrid, Dykinson S.L., 2016, p. 89 e ss.; Alexandre Sousa Pinheiro, Privacy e pro-
tecção de dados pessoais: a construção dogmática do direito à identidade informacional, Lisboa,
AAFDL, 2015, p. 425 e ss. e Catarina Sarmento e Castro, Direito da Informática, Privacidade
e Dados Pessoais, Coimbra, Almedina, 2005, p. 22 e ss.
165  Neste sentido, A. Barreto Menezes Cordeiro, «Dados pessoais: conceito, extensão e
limites», Revista de Direito Civil, Ano III, n.º 2, 2018, p. 297 e ss., p. 298.
166  Alexandre Sousa Pinheiro, ob. cit., p. 803.
167  Para uma compreensão, detalhada, dos vários conceitos de big data, vide Ana Alves Leal, «As-
petos jurídicos da análise de dados na internet (big data analytics) nos setores bancá-
rios e financeiro: proteção de dados pessoais e deveres de informação», FinTech: Desafios
da Tecnologia Financeira, coord. António Menezes Cordeiro, Ana Perestrelo de Oliveira,
Diogo Pereira Duarte, Coimbra, Almedina, 2016, p. 75 e ss., p. 79 a 83.
168  Para um estudo sobre o conceito legal de dados pessoais, vide A. Barreto Menezes Cordeiro,
ob. cit., p. 299 e ss.
169  Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016,
relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre
circulação desses dados, e que revoga a Diretiva 95/46/CE.
CAPÍTULO 13 - 199

III. O regime jurídico da proteção de dados pessoais torna-se, assim, mais


um instrumento a ter em conta na proteção do direito à imagem, por vezes, até
um instrumento mais expedito do que aquele estabelecido no Código Civil.
Numa perspetiva prática, a invocação de regras presentes no regime jurídico da
proteção de dados constitui muitas vezes um caminho mais direto para o ob-
jetivo que se pretende obter. Permitirá, por exemplo, o apagamento da imagem
por parte do responsável pelo tratamento dos dados pessoais, nos termos do art.
17.º do RGDP. Estes direitos de salvaguarda ou “secundários”170, juntamente
com a atuação das autoridades públicas de controlo, como a Comissão Nacional
de Proteção de Dados, constituem uma tutela defensiva e repressiva na proteção
dos dados pelo próprio titular, tanto perante entidades públicas como privadas.
Esta forma de tutela é conseguida até contra determinados direitos que são
previstos no próprio Regulamento, como é o caso dos direitos de acesso ou de
portabilidade dos dados pessoais. Nos termos do art. 15.º, n.º 4, e do art. 20.º, n.º
4, do RGDP, estes direitos não poderão prejudicar “os direitos e as liberdades de
terceiros”. A título de exemplo, se o titular dos dados pretender a portabilidade
dos seus dados pessoais contidos na rede social que utiliza para outro prestador
de serviços, essa mesma portabilidade poderá ser restringida se, nos dados a
serem transferidos, surgirem imagens de terceiros.
IV. A imagem da pessoa humana está sujeita ainda a um regime mais exi-
gente, dado que caberá na categoria de dados sensíveis presente no art. 9.º, n.º
1, do RGDP. A leitura biométrica do rosto, igualmente denominada reconheci-
mento fácil, tem-se tornado cada vez mais comum. A disciplina da proteção de
dados proporciona, uma vez mais, vantagens no que diz respeito à tutela civil.
Enquanto nos arts. 79.º, n.º 1, e 82.º do CC, ainda que se exclua o mero con-

O art. 4.º, 1), refere a definição legal de “dados pessoais” como “informação relativa a uma pessoa
singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa
singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um iden-
tificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identi-
ficadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica,
genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular”.
170  Alexandre Sousa Pinheiro, ob. cit., p. 473.
200 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

sentimento tolerante, se admite que o consentimento seja tácito171-172, no caso


do tratamento de dados sensíveis, onde se inclui a imagem da pessoa humana, o
consentimento terá de ser “explícito”173.

5. NOVOS TITULARES DO DIREITO À IMAGEM?

I. Em paralelo com os “velhos” problemas elencados no número anterior,


a inteligência artificial trouxe ainda novas realidades para discutir no plano ju-
rídico. Assiste-se, hoje em dia, à criação de robôs que, devido à sua inteligência
artificial, são cada vez mais sofisticados e autónomos, capazes de tomar decisões.
Se, por um lado, a sua autonomia os torna cada vez mais semelhantes aos seres
humanos, por outro, os seus atos autónomos poderão lesar a esfera jurídica de
outrem, discutindo-se, de imediato, quem deverá ser o responsável pelos factos
cometidos174.
II. Dadas as premissas referidas, no âmbito jurídico e ético, tem sido dis-
cutida a possibilidade de os robôs com maior complexidade e autonomia dete-
rem personalidade jurídica, discutindo-se que tipo de personalidade deverá ser
atribuída.
Para alguns autores175 a solução parece óbvia: havendo um determinado
grau avançado de autonomia, deverá reconhecer-se aos robôs personalidade ju-

171  Paulo Mota Pinto, «A Limitação Voluntária do Direito à Reserva sobre a Inti-
midade da Vida Privada», ob. cit., p. 693; Ana Morais Antunes, ob. cit., p. 182; Cláudia
Trabuco, ob. cit., p. 434; David Festas, ob. cit., p. 299; Guilherme Dray, Direitos de Per-
sonalidade: alterações ao Código Civil e ao Código do Trabalho, Coimbra, Almedina, 2006,
p. 51.
172  Refere o Acórdão do STJ, de 07.06.2011 (processo n.º 1581/07.3TVLSB.L1.S1), dispo-
nível em «www.dgsi.pt», o seguinte: “Para que ocorra uma situação de consentimento tácito,
significação externa de autorização para a captação, reprodução e publicitação da imagem de
quem quer, torna-se necessário que os sinais (significantes ou exteriorizáveis) do titular do direito
se revelem ou evidenciem como inequívocos ou desprovidos de qualquer dúvida”.
173  Cf. art. 9.º, n.º 2, a), do RGDP.
174  Jack B. Balkin, «The Path of Robotics Law», California Law Review Circuit, vol.
6, 2015, p. 45 e ss., disponível em «www.scholarship.law.berkeley.edu» (visitado em
02.08.2018), p. 49 e ss.
175  Samir Chopra / Laurence F. White, A legal theory for autonomous artificial agents,
University of Michigan Press, 2011, p. 153 e ss.
CAPÍTULO 13 - 201

rídica semelhante à que se reconhece aos seres humanos. Um entendimento contrá-


rio será, segundo os autores, uma visão antropocêntrica do Direito.
III. Se olharmos para a Resolução do Parlamento Europeu, já referida supra,
tendo como fito a criação de um centro de imputação de situações jurídicas para
a responsabilidade civil, propõe-se a criação de pessoas jurídicas eletrónicas para os
“robôs autónomos mais sofisticados”176. A atribuição deste estatuto irá responsabi-
lizá-los por “sanar quaisquer danos que possam causar e, eventualmente, aplicar a
personalidade eletrónica a casos em que os robôs tomam decisões autónomas ou em
que interagem por qualquer outro modo com terceiros de forma independente”177.
Adicionalmente, prevê-se ainda a criação de um regime de responsabilidade obje-
tiva com a criação de um seguro obrigatório, bem como o estabelecimento de um
fundo de garantia para a reparação de danos “nos casos não abrangidos por qualquer
seguro”178, id est , destinado a cobrir os danos que não se encontrem cobertos pelo
valor da apólice do seguro, ou onde não se encontrem quaisquer responsáveis179.
Apesar de não estar explícito no texto da Resolução, alguma doutrina tem as-
sociado este tipo de personalidade jurídica àquela que é atribuída às pessoas coleti-
vas, tendo em conta que o objetivo primordial não é o de atribuir quaisquer direitos
de personalidade a robôs, mas sim o de lhes imputar a responsabilidade de atos por
eles cometidos e que não possam ser atribuídos a seres humanos180.
IV. Antes de tomarmos posição sobre a pretensa equiparação da personalida-
de coletiva à “personalidade eletrónica”, prevista na Resolução, temos primeiro de
indagar sobre a possibilidade de, tendo em conta a autonomia decisória dos robôs,
atribuir direitos de personalidade a robôs tale quale se reconhece ao ser humano.
A rejeição deverá ser categórica. Emprestando a ideia veiculada por Pedro Pais
de Vasconcelos181 para a personalidade coletiva, diríamos que, ao contrário do que

176  As reações a esta proposta não se deixaram de fazer sentir: 156 peritos em Inteligência Artificial
já vieram contestá-la, tendo sido submetida uma carta aberta ao Parlamento Europeu, referindo-se
que deverá ser a defesa do ser humano a estar no centro do debate e não a atribuição de direitos a
robôs (vide, Open Letter to the European Commission Artificial Intelligence And Robotics, de 05.04.2018).
177  Cf. § 59, f ), da Resolução.
178  Cf. 58 §, da Resolução.
179  Cf. § 49 a § 59, da Resolução.
180  No mesmo sentido, vide Tabernero de Paz, Los Robots y la Responsabilidad Civil Extracon-
tractual», Derecho de los Robots, Madrid, Wolters Kluwer, p. 107 e ss., p. 115.
181  Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, reimp., Coimbra, Almedina, 2017,
pp. 5 e 6.
202 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

sucede com o ser humano, qualquer personalidade jurídica atribuída a robôs será
sempre legal e não inerente a estes. De facto, se as pessoas são o princípio e o fim
do Direito, o Direito limita-se a constatar a existência de personalidade jurídica
no ser humano. O mesmo já não sucede com as pessoas coletivas ou qualquer
outro tipo de entidades em que o Direito imputa, subjetivamente, situações ju-
rídicas à semelhança das pessoas humanas.
Com efeito, somos da opinião de que, mesmo que haja um nível elevado
de autonomia, nunca poderemos considerar existir um direito de personalida-
de inerente a esses robôs. E os nossos argumentos não se escondem em asser-
ções formais, relacionadas com a nomenclatura ou com o antropocentrismo do
Direito, mas sim no facto de autonomia não ser sinónimo de liberdade182. Ao
contrário dos outros seres, ao ser humano foi dada a possibilidade de conformar
a sua própria natureza, dentro do âmbito da sua liberdade. Um ser a quem foi
dada autonomia, nunca será livre, e, não sendo livre, nunca poderá ser titular de
direitos de personalidade, como o direito à imagem183.
V. Acrescentaríamos ainda que tão-pouco nos atrai qualquer conceção que
funda a personalidade jurídica de entes dotados de inteligência artificial numa
pretensa equiparação com a personalidade coletiva. Não sendo o local indicado
para refletirmos de forma profunda sobre a natureza jurídica da personalidade
coletiva184, sempre diríamos que, sendo a personalidade coletiva uma criação do
Direito, esta está ainda funcionalmente ligada aos interesses do ser humano185; a

182  Nuno Sousa e Silva, ob. cit., p. 501.


183  Como refere Mafalda Miranda Barbosa, «Inteligência Artificial, E-PERSONS
e Direito: Desafios e Perspetivas», RJLB, Ano 3, n.º 6, 2016, p. 1475 e ss., p. 1482, “A au-
tonomia dos robots é uma autonomia tecnológica, fundada nas potencialidades da
combinação algorítmica que é fornecida ao software. Está, portanto, longe do agir
ético dos humanos, em que radica o ser pessoa. Falta-lhes, em cada tomada de decisão,
a pressuposição ética, falha a relação de cuidado com o outro, até porque, em muitos
casos, ela pode mostrar-se incompatível com a eficiência que está na base da progra-
mação computacional”.
184  Sobre este tema, vide, entre outros, Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito
Civil, 8.ª ed., Coimbra, Almedina, 2017, p. 121 e ss.
185  Como refere Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., p. 126,
“Na origem das pessoas coletivas encontram-se sempre pessoas humanas, para a pros-
secução de cujos interesses e fins foram constituídas. Embora possam ser constituí-
das por outras pessoas coletivas, existem sempre na sua génese e no seu fundamento,
direta ou indiretamente, pessoas humanas, interesses e fins humanos. É a prossecu-
CAPÍTULO 13 - 203

não ser que, conforme já foi referido186, desejemos lograr um instrumento que des-
responsabilize o ser humano, solução que, afinal, é um paradoxo para com a própria
ideia de Direito (e de Justiça).

6. CONCRETIZAÇÃO DOS LIMITES


À AUTONOMIA PRIVADA

I. O art. 81.º, n.º 1, do CC permite ao seu titular, de forma convencional, li-


mitar o exercício dos seus direitos de personalidade. Na senda do anteprojeto apre-
sentado por Manuel de Andrade, o limite será a contrariedade aos “princípios de
ordem pública”, que ditará que o negócio seja nulo, algo que se torna redundante
dada a previsão do art. 280.º do CC, que determinaria o mesmo resultado. Nos ter-
mos do art. 81.º, n.º 2, do CC, as limitações convencionais serão sempre revogáveis,
ainda que se estipule um termo, contando, naturalmente, que o titular indemnize a
contraparte pelos danos que decorram dessa cessação do contrato.
Como refere a doutrina187, a limitação dos direitos de personalidade não se
restringe à ordem pública. Deverá ser tido em conta, igualmente, os limites ine-
rentes aos bons costumes e a contrariedade à lei. Com efeito, será, por exemplo,
contrária à lei a convenção pela qual o trabalhador admite a captação por vídeo da
sua imagem para controlo do seu trabalho188.
II. Pela sua vertente económica, os casos mais comuns de limitação voluntária
dos direitos de personalidade dizem respeito aos direitos de imagem. É prática cor-
rente a celebração de contratos de direitos de imagem que envolvem celebridades,
tanto para a exploração do retrato da pessoa humana, como da sua voz, que se inclui
no art. 79.º do CC. Se o titular do direito à imagem tiver falecido, a autorização

ção dos interesses e fins das pessoas humanas que justifica e funda juridicamente a sua
existência”.
186  Mafalda Miranda Barbosa, ob. cit., p. 1488.
187  Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., p. 52; Ana Morais
Antunes, ob. cit., pp. 235 e 236.
188  Cf. art. 20.º, n.º 1, do Código do Trabalho.
204 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

caberá ao cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho


ou herdeiro do falecido189.
Através da conjugação da tecnologia robótica, embutida com inteligência ar-
tificial, com a impressão 3D, têm sido construídos robôs que utilizam a imagens
de seres humanos. Em 2016, um designer de Hong-Kong conseguiu produzir um
robô similar à atriz norte-americana Scarlett Johansson. Recentemente, foi tam-
bém criado um robô denominado Sophia, bem conhecido em Portugal por ter sido
utilizado no Websummit de 2017, que foi construído à imagem da famosa atriz
britânica, já falecida, Audrey Hepburn.
III. À luz do nosso sistema jurídico, a conformação legal dos negócios para
consentir a utilização de imagens em robôs aparenta não levantar quaisquer pro-
blemas. Fazendo um paralelo com a utilização da imagem em cromos ou em jogos
eletrónicos, a limitação surge como perfeitamente lícita, enquadrada no art. 79.º, n.º
1, e no art. 81.º, ambos do CC.
Contudo, a conjugação da tecnologia robótica com a inteligência artificial
pode levantar problemas muito mais complexos. À medida que os robôs se vão
tornando cada mais autónomos, com uma capacidade de interação com ambien-
te ao seu redor mais complexa, o ser humano irá olhar para os robôs como seus
semelhantes. Apesar da desumanização desta prática, é verosímil que os seres hu-
manos procurem na tecnologia robótica suplantar carências emocionais e afetivas,
construindo robôs cada vez semelhantes aos seres humanos, os denominados robôs
humanoides190.
Com efeito, a construção de um robô, altamente complexo em termos de in-
teligência artificial, com a imagem de um ser humano, incluindo, porventura, o seu
modo de agir, poderá ter como resultado, ainda que aparente, a clonagem digital de
um ser humano. Destarte, parece-nos de indagar se, nestes casos, não se poderá
chamar à colação a limitação presente no art. 81.º, n.º 1, invocando o princípio da

189  Cf. art. 79.º, n.º 1, conjugado com o art. 71.º, n.ºs 1 e 2, do CC.
190  Cf. García-Prieto Cuesta, ob. cit. p. 45. Refere o autor o seguinte: “Algunos robots
pueden centrarse solamente en reproducir la cara de una persona, o los brazos, mien-
tras que otros implementan todo el cuerpo”.
CAPÍTULO 13 - 205

dignidade humana como fundamento para ilicitude desta limitação à autonomia


privada.
IV. Os problemas podem inclusive surgir no momento da revogação por parte
do titular que deu autorização para a utilização da sua imagem num robô altamente
complexo. De facto, alguns estudos têm demonstrado que poderá existir um elevado
nível de sensibilidade humana para com a tecnologia robótica. Quanto mais com-
plexo é o robô, e a inteligência artificial que emula o cérebro, mais rapidamente o
ser humano projetará uma forma de vida. Esta questão gera, desde logo, dúvidas de
caráter mais geral, nomeadamente a de saber se deverá ser admissível a utilização
de robôs para substituir o contacto humano, sobretudo em determinadas situações
delicadas, como é o caso da assistência a idosos ou crianças.
De qualquer forma, enquadrando esta questão no âmbito do presente estudo,
aventamos que possam existir problemas na revogação da limitação voluntária da
utilização da imagem de outrem nos termos do art. 81.º, n.º 2, na medida em que
a efetividade desta revogação poderá ditar a destruição do robô ou, pelo menos, a
alteração do seu design, desde logo, a nível de hardware, pela sua dimensão física,
como também a nível de software, se a autorização que tiver sido dada tiver ido mais
longe do que a simples autorização para a utilização do retrato do titular do direito
à imagem.
Vale a pena relembrar que diversos autores já têm discutido a limitação do
poder de revogação. Para uns191, só a defesa dos valores relativos à personalidade po-
derão permitir a livre revogabilidade do consentimento; para outros192, a limitação à
revogabilidade deverá ser enquadrada à luz do regime do abuso de direito. Tendemos
a seguir a primeira via. Aliás, recordando o que fez a fase final do pandectismo,
poderemos enriquecer a dogmática dos direitos de personalidade com algumas so-
luções que são previstas para os direitos imateriais. Em especial, à semelhança do
que sucede no direito de retirada da obra no direito moral de autor, serão sempre
exigidas razões morais atendíveis193.

191  David Oliveira Festas, ob. cit., p. 377 e ss.; Oliveira Ascensão, ob. cit., pp. 79 e 80.
192  Paulo Mota Pinto, «A Limitação Voluntária do Direito à Reserva sobre a Intimi-
dade da Vida Privada», ob. cit., p. 716; Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade,
ob. cit., p. 167.
193  Cf. art. 62.º, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos.
206 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

A livre revogabilidade poderá, assim, mais do que nunca, ser posta em


causa, tendo em conta os interesses da contraparte, gerando-se um conflito de
interesses que terá de ser resolvido no caso concreto. Este raciocínio poderá ser
transportado, com as devidas distâncias, para a tutela do direito subjetivo, onde
se poderão, pelos interesses em jogo, restringir as providências atenuantes dos
efeitos da ofensa já cometida194, optando-se, por exemplo, pela não destruição
do robô.
Diríamos, a título de conclusão, que temos aqui mais uma razão para não
admitir este tipo de negócios jurídicos. Pelas razões aqui referidas, esta possibi-
lidade poderá constituir na prática uma alienação do próprio direito à imagem,
o que seria uma subversão de todo o sistema em que assentam os direitos de
personalidade.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

I. No presente estudo denota-se a fragilidade do direito à imagem perante


o fenómeno da inteligência artificial, circunstância, diga-se, que é transversal a
todos os direitos de personalidade. Tentámos, em primeiro lugar, atestar a elas-
ticidade do presente regime jurídico do Código Civil para alguns problemas
que se irão agudizar com a Revolução Industrial 4.0. Ainda que a dogmática
dos direitos de personalidade, em comparação a outros institutos, possa ser con-
siderada relativamente jovem, algumas das soluções já encontram guarida na
interpretação que é dada ao presente regime. Na verdade, conforme se referiu,
tratam-se de “velhos problemas” que já existem nos direitos de imagem, mas que
se exponenciam com a inteligência artificial.
II. Sem quaisquer reservas mentais, somos da opinião de que a revolução
em que agora nos encontramos, liderada pela inteligência artificial, pode trazer
benefícios para a humanidade. Contudo, a tecnologia não tem ética, e é com-
pletamente neutra neste sentido. Com efeito, deverá ser o homem a impor os

194  Nos termos do art. 70.º, n.º 2, do CC.


CAPÍTULO 13 - 207

limites à tecnologia, sendo que, os sinais que se vão manifestando, alguns deles
referenciados no presente estudo, suscitam preocupação. Será necessário colocar
a pessoa no centro do Direito uma vez mais. De resto, nunca deverá ser possível
um nível elevado de tecnologia com um nível inferior de ética.
III. Com esta nova Revolução Industrial, onde a tecnologia se torna ver-
dadeiramente pessoal, a imagem torna-se ainda mais plástica. A captação, re-
produção e manipulação da imagem sem o devido consentimento poderão tor-
nar-se, assim, uma inevitabilidade, concentrando-se a sua tutela unicamente na
perspetiva economicista, menosprezando-se os seus valores essenciais, como a
autodeterminação da pessoa sobre a sua imagem e a reserva sobre a intimida-
de da vida privada. Poderão ser mesmo resgatadas algumas vozes195 no direito
continental, e, já agora, no right of publicity196-197 norte-americano, que desde há
muito teorizam a separação entre um bem de personalidade e a própria pessoa,
dando azo a que o mesmo possa ser transmitido autonomamente. A eventual
afirmação das teorias dualistas não será tanto pelo lado económico dos bens
de personalidades, que é inegável, mas sim pela desconsideração, paulatina, dos
valores pessoalíssimos ligados à personalidade da pessoa humana. Em suma,
diríamos que, como forma de compensação por esta perda maximiza-se o perfil
economicista do direito.
IV. Esta realidade obriga assim a que intervenha o Direito Objetivo. Uma
vez mais, o princípio da dignidade humana198, preenchendo lacunas valorativas,
terá aqui um papel fulcral. Se olharmos para a génese dos direitos de personali-
dade, especialmente da sua tutela civil, o seu enriquecimento dogmático foi, na
maior parte das vezes, uma resposta aos abusos políticos e legislativos cometidos
à dignidade da pessoa humana. Tendo em conta a multiplicação de meios capa-
zes de pôr em causa a esfera pessoal de cada um, e, em especial, o direito à ima-

195  Vide Horst-Peter Götting, Persönlichkeitsrechte als Vermögensrechte, Tübingen,


Mohr Siebeck, 1995, p. 10.
196  Cf., entre outros, J. Thomas McCarthy, The Rights of Publicity and Privacy, vol. 1, 2.ª
ed., St. Paul, West Group, 2002, p. 1 e ss.
197  Não obstante, a figura do right of publicity tem, dogmaticamente, um conteúdo mais amplo
de proteção, quando comparado com os direitos de personalidade. Por esse motivo, poderá ter um
papel bastante ativo em termos de tutela contra os abusos desta nova Revolução Industrial.
198  Cf. art. 1.º, da Constituição da República Portuguesa.
208 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

gem, o direito objetivo de personalidade terá, certamente, um papel importante


a ter em conta. Já o teve aquando do nascimento do direito à identidade infor-
macional no âmbito da proteção de dados, que constitui igualmente um instru-
mento que tutela a imagem da pessoa humana - ainda que limitada aos valores
em jogo - e terá de continuar a tê-lo na salvaguarda do âmago dos direitos de
personalidade no futuro. O Princípio da Dignidade Humana ditará, salvo melhor
opinião, que os direitos de personalidade são inerentes aos seres humanos, não
podendo ser transportados para pessoas eletrónicas, ainda que a estas tenha sido
dada a possibilidade de terem uma elevada autonomia.

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212 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE
CAPÍTULO 14 - 213

14
A AUTOREGULAÇÃO REGULADA COMO MODELO
DO DIREITO PROCEDURALIZADO: REGULAÇÃO
DE REDES SOCIAIS E PROCEDURALIZAÇÃO

Georges Abboud199
Ricardo Campos200

INTRODUÇÃO

O crescimento do debate em torno das noticias fraudulentas (fake news) e seu


impacto nas estruturas das democracias modernas é atualmente um fenômeno glo-
bal que tem repercutido não somente nas diversas esferas da ciência, mas também
nas instituições governamentais e civis201. Uma das dificuldades centrais em lidar
com o tema decorre especialmente da escolha do acesso metodológico ao tema em

199  Mestre e doutor em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP. Pro-
fessor de processo civil da PUC-SP e do programa de mestrado em direito constitucional do Instituto
Brasiliense de Direito Público – IDP-DF. Advogado e Consultor Jurídico.
200  Professor assistente na cátedra de Teoria do Direito, Direito Público e Direito das Mídias na
Goethe Universität Frankfurt am Main, Alemanha. Advogado e Consultor Jurídico.
201  Ver publicacao representativa da Science sobre o tema, Yochai Benckler, Cass Sunstein, et al The
science of Fake News, em: Science 2018 vol. 359, issue 6380, p. 1094 - 1096. C. Wardle, H. Derakhs-
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214 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

questão, que por vezes, acaba por tornar nebulosa tanto a percepção do problema
em si quanto a resposta sobre uma possível via de solução.
O ponto de partida do presente ensaio terá como foco a relação entre di-
reito e transformação social, especialmente como a normatividade do direito e
a epistemologia social são modificadas pelo surgimento de novas tecnologias
na passagem de uma sociedade antes centrada na impressão e em organizações
para uma sociedade centrada em redes computacionais e plataformas digitais.
Do ponto de vista metodológico, a ancora epistêmica assenta-se no que Bender
e Wallbery chamam de nova retoricidade („rhetoricality“), a qual diagnostica a
partir do século XIX uma transformação da epistemologia social gerando uma
rede a-centríca de discursos dispersos, que se encontram para além da reivin-
dicação de completude que ainda determinava o projeto iluminista, os direitos
humanos e civis. Essa nova retoricidade diagnostica a forma de existência hu-
mana moderna expressa em seu caráter infundado, aberto e incompleto, e assim
cada vez mais experimental e aberto ao novo. Nesse contexto, estabelecem-se
discursos que não mais permitem um metadiscurso exemplificativo, que não seja
ele próprio um discurso retórico202.
Esses processos ou discursos a-centricos dispersos pela sociedade tornam
por exemplo, a concepção de um sujeito do conhecimento, ou melhor, da clássica
dicotomia de um sujeito observador e um objeto observável, obsoleta203. Para o
presente artigo trata-se de compreender como o direito opera numa sociedade
cada vez mais fragmentada e a-centrica, onde a recorrente metáfora, até então
utilizada dentro do direito e da ciência política, onde a política é cabeça da so-
ciedade, cada vez mais perde em plausibilidade204.

202  John Bender, David Wellbery, Rhetoricality: On the Modernist Return of Rhetoric, em: dies
The Ends of Rhetoric. History, Theory, Practice, Standford University Press, Standford 1990, P.
3 - 42. Thomas Vesting, Die Medien des Rechts. Computernetzwerke Velbrück Wissenschaft,
Weilerwist 2015, p. 104.
203  I. Kant, Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik, die als Wissenschaft wir auf-
treten können, in: Werke in 6 Bände, W. Weischedel, tomo 3, Darmstadt 1963, p. 189. A formula
kantiana poderia ser resumida da seguinte forma: o conhecimento prescreve à natureza as leis. Ver
também Karl-Heinz Ladeur, Warum nach den Medien des Rechts fragen? ancila iuris.
204  Niklas Luhmann, Politische Theorie im Wohlfahrtstaat, Günther Olzog: Munique, 1981,
p. 22 - 23.
CAPÍTULO 14 - 215

A consequência da perda de referencia estável do sujeito universal ou da


razão desemboca na incessante e permanente necessidade de busca de sentido
social através da observação da formação de padrões que se desenvolvem para
além dos padrões clássicos e das fronteiras nacionais dentro de processos mais
experimentais, sem necessária derivação de uma ordem racional. Uma das mais
inovadoras abordagens, que facilita a percepção dessa transformação, encontra-
-se no marco dos estudos dos meios do direito e seu impacto na formação da
normatividade jurídica205. Ao focar nos meios do direito, para o presente artigo,
especificamente na ruptura que a passagem da impressão para as redes compu-
tacionais, pretende-se oferecer uma reconstrução dessa transformação da epis-
temologia social para então poder compreender e dar possíveis caminhos para
uma regulação jurídica num cenário de completa mudança da complexidade
social. Nesse contexto de ruptura mediática é que deve-se inserir a discussão em
torno das noticias fraudulentas, ou fake news.

1. O DIGITAL, O CÓDIGO E O DIREITO

Contemporâneamente, uma das maiores dificuldades no que diz respeito


à regulamentação e controle das “fake news” se refere ao fato de elas se propa-
garem principalmente por meio do mundo digital. Daí que a dificuldade de
regulamentação delas passa pelos mesmos percalços do direito e do Estado de
efetuarem o controle de qualquer tema referente à internet ou mundo digital.
Lawrence Lessing foi um dos pioneiros a teorizar a relação do Estado e di-
reito com o mundo digital, designado por ele de Ciberespaço, locus com natureza
própria206. A natureza do mundo virtual é o seu código de constituição, ou seja,

205  Nessa nova escola com foco nos meios do direito tem uma origem interdisciplinar e não
retilínea. Pode-se liga-la ao pensamento de Walter J. Ong sobre oralidade e „literecy“, também ao
alemão Friedrich Kittler. No direito, a ressonância dos estudos dos meios do direito ganhou voz
com os trabalhos de Cornelia Vismann, Thomas Vesting, Fabian Steinhauer, Karl-Heinz Ladeur
entre outros.
206  Antes de Lessing, Ethan Katsh já havia pesquisado a relacao entre midias e o direito espe-
cialmente quais os efeitos da mudanca do meio acarretaria para o direito. Ver Ethan Katsh, The
Eletronic Media and the Transformation of Law, Oxford University Press, Oxford 1989. Ethan
216 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

hardwares e softwares207. De acordo com Lawrence Lessing, há duas maneiras


de se regular a Internet, de acordo com os seus respectivos efeitos. A primeira
consiste em lhe alterar a arquitetura, o código. Modificá-lo implica reconfigurar
a “realidade física” ou a “natureza” da Internet, tornando possível o que antes era
impossível e vice-versa, sem passar por qualquer outra etapa intermediária. A
segunda delas é aprovar leis que, para serem implementadas de maneira eficaz,
levam, por consequência, a alterações no Código.208 Nesse contexto, formas de
conter a arbitrariedade ou restrições fáticas da liberdade dentro do mundo di-
gital, não passariam necessariamente por intermediação de regras jurídicas, mas
por „ativismos“, os quais influenciassem o próprio código. Nesse ponto, Lessing
enxergava no open-source-movement um exemplo prático de uma eficaz me-
dida na contenção da arbitrariedade no mundo digital, ao atuar diretamente no
código de funcionamento da internet209.
O foco no código e não mais como tradicionalmente na regulação de
condutas humanas é a grande inovação de Lessing. Todo controle social e re-
gulamentação governamental do mundo digital passa pela necessidade de assi-
milação do código.210 No mundo real são as regras legais e os costumes sociais
que impõe e reprovam determinados padrões de conduta criando um emaran-
hado de expectativas, sobre as quais são projetadas as ações cotidianas. Já no
Cibersespaço é o código que cria recursos que, por sua vez, são selecionados por
escritores/desenvolvedores de Código para restringir algum comportamento (e.g.,
espionagem eletrônica) ou para tornar outra conduta corriqueira (e.g., uso da
criptografia). O código incorpora certos valores e impossibilita a realização de

Katsh, Law in the Digital World, Oxford University Press, Oxford 1995. Para Katsh nao somente
a forma como o direito é comunicado acaba sendo transformada no mundo digital, mas o conceito
de direito em si.
207  Lawrence Lessing, Code the other laws of cyberspace, p. 61 ss.
208  Lawrence Lessing. The Law of the Horse: What Cyber Law Might Teach, In: Harvard Law
Review, n. 113, Rev. 501, 1999, passim.
209  A segunda edição de seu balado livro com o título „Code: Version 2.0“ fora escrita numa
„wiki“ junto com estudantes das universidade de Stanford e Cardozo Law School e licenciado
mais tarde pelo creative communs licence.
210  Lawrence Lessing. The Law of the Horse: What Cyber Law Might Teach, cit., p. 506.
CAPÍTULO 14 - 217

outros valores atuando como um modelador de expectativas cotidianas, ou seja,


da própria ação do indivíduo.211
Essa diferença crucial entre a gramática do mundo digital e a antiga
gramática do mundo real cria o principal desafio para o Estado em intervir no
mundo digital. Um dos problemas centrais decorre da falta de conhecimento
do Estado para poder intervir de forma eficiente em ambientes digitais muito
dinâmicos e muitas vezes constituídos por efeitos de redes e interação com
inteligência artificial212. Nesse contexto, qual seria a melhor forma de regulação?
Haveria que se falar em regulação ou deveria-se seguir os ideia de John Perry
Barlow em sua declaração de independência do mundo digital? Devido aos úl-
timos acontecimentos das eleições americanas de 2016, o caso Cambridge Ana-
lítica entre outros cada vez mais vem se pensando em como poder diminuir os
impactos negativos de certos seguimentos do mundo digital quanto às restrições
de liberdades fundamentais caras aos regimes democráticos modernos.
Lessing porém possui uma visão bem tradicional da função do constitucio-
nalismo moderno. Para o autor, a tradição constitucional é aquela que limita o
poder governamental, ou seja, os direitos, especialmente os direitos fundamen-
tais, teriam a função exclusiva de limitar o poder estatal para dar mais espaço de
liberdade para a sociedade privada. Entretanto, as maiores ameaças às liberdades
fundamentais no mundo digital atual não advém necessariamente e exclusiva-
mente do Estado. Pelo contrário. Com o crescimentos e a transformação de
empresas em plataformas digitais seja plataformas industriais, de propaganda
e redes sociais, de produtos, de aluguel etc. muda a forma como as firmas mo-
dernas operam e como elas interagem com o resto da economia. O chamado
„capitalismo das plataformas“213 chama a atenção justamente para o aspecto de

211  Lawrence Lessing. The Law of the Horse: What Cyber Law Might Teach, cit., p. 510. Nes-
sa mesma perspectiva, Vilém Flusser vislumbra o futuro como uma sociedade regulada por código
e estruturada em divisão social entre duas classes a dos programadores e as dos programados.
Vilém Flusser. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo:
Cosac Naif, 2007 p. 64.
212  Esse déficit de conhecimento do Estado para intervir em âmbitos sociais já é tema recor-
rente dentro do direito administrativo e constitucional. A discussão se dá em torno do conceito
de prerrogativa de avaliação („Einschätzungsspielraum“), a qual parte da constatação de que o
legislador
213  Nick Srnicek, Platform Capitalism, Polity Press Cambridge 2017.
218 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

que a nova lógica dos „ganhadores“ do mundo digital como Google, Facebook,
Amazon, Microsoft, Siemens, GE, Uber, Airbnb entre outros, agem para ofere-
cer software ou hardware, no qual outras firmas podemos então interagir e criar
produtos para economia.
Tendo esse desenvolvimento como pano de fundo do mundo digital atual,
percebe-se que o problema do constitucionalismo tradicional em limitar a ação
estatal passa, no capitalismo de plataformas, a ser o de concretizar standarts
de direitos fundamentais dentro dessas esferas privadas, nas quais não mais a
relação tradicional Estado/sujeito se coloca em primeiro plano, mas a relação
privado/privado214. Lessing, por sua vez, apesar de se apoiar no paradigma do
constitucionalismo tradicional perdendo de vista a gramática do digital moder-
no, oferece uma importante lição sobre as possíveis formas de regulação estatal
dentro do mundo digital. Para o autor, o futuro da regulação da internet pelo
governo é um futuro em que o governo regula por ação legislativa indireta.215
Uma moderna forma de regulação indireta, a qual cumpre as condições
de possibilidade de regulação de âmbitos complexos como do mundo digital,
pode ser encontrada no instituto da autoregulação regulada. A inerente tensão
que surge da necessidade de regulação - ou ao menos da implementação de
standarts de direitos fundamentais nesses ambientes - e da facticidade inerente
ao código, ou para utilizar um termo weberiano, da própria racionalidade ou lei
do código („Eigengesetzlichkeit“)216. Justamente por levar em contra a própria
racionalidade ou dinâmica do código a autoregulação regulada se coloca como
um modelo de direito proceduralizado, diferindo-se dos paradigmas até então
populares dentro da ciência jurídica.

214  Para uma versao mais detalhada de um constitucionalismo moderno que enfrenta essa te-
mática ver Gunther Teubner, Fragmentos Constitucionais. Constitucionalismo social na Globa-
lizacao, Saraiva 2016, pg. 237 ss.
215  Lawrence Lessing. The Limits in Open Code: Regulatory Standards and the Future of the Net,
In: Berkeley Law Technolgy Journal, n. 759, 1999, p. 763.
216  Max Weber utilizou esse termo especialmente nos estudos sobre religiao para explicar a ca-
racterística central da modernidade de uma tendencial separação de esferas sociais independentes
entre si, tais como a esfera erótica, o direito, a economia etc. Para ele cada uma dessas esferas teria
uma „lei própria“ („Eigengesetzlichkeit“) impossibilitando uma gramática universal. Para tanto
ver Max Weber, Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie I, Mohr Siebeck, Tübingen 1988,
p. 536 ss. Thomas Schwinn, Differenzierung ohne Gesellschaft. Umstellung eines soziologischen
Konzepts, Velbrück Wissenschaft, Weilerwist 2001, p. 154 ss.
CAPÍTULO 14 - 219

2. O LUGAR DO DIREITO E DE SEUS PARADIGMAS

Ao jurista, quando se fala em regulação, a primeira pergunta que surge é:


que tipo de regulação: Regulação civil? Regulação penal? Regulação admini-
strativa? Diante dos mecanismos à disposição de uma possível regulação dentro
do mundo digital, fica clara uma tensão cada vez que o judiciário217 e o sistema
político218 se debruçam sobre o tema. No contexto de transformação da esfera
pública pela internet e redes sociais, o problema central dos primeiros contatos
do judiciário e do sistema político com a questão, resulta, por uma lado, da falta
de um diagnostico mais complexo do tipo de transformação que o direito tem
passado na era da internet e, por outro, da falta de experiência internacional
em lidar com essa transformação da esfera pública. A única saída possível seria
buscar novos modelos experimentais para lidar com problemas que não mais
comportam soluções antigas.
No tocante ao tema sobre a possibilidade de regulação de fake news, do
ponto de vista do direito administrativo, vamos localizar essa crise do direito
administrativo na passagem de uma sociedade centrada em organizações para
uma sociedade centrada em redes típicas da economia de plataformas surgida
nos últimos anos. Com isso ficará mais claro, tanto as transformações atuais que
inserem o direito público, quanto as possibilidades e limites de uma possível
regulação. A inovação de um modelo de regulação para o âmbito dinâmico das
redes sociais deve necessariamente incorporar elementos da autoorganização do
setor privado e, ao mesmo tempo, não abrir mão completa da implementação
ou estruturação interesses públicos mesmo que por via indireta. Nesse ponto, o

217  Em decisão monocrática no TSE, Ministro Sergio Banho aplicou a resolução 23.551/17
do TSE em ação proposta pela Rede Sustentabilidade. Uma página anônima do facebook havia
publicada noticias falsas da pré-candidata à presidência da Republica Marina Silva. O deferi-
mento ressaltou o pedido liminar de remoção de publicação pela plataforma em 48 horas e libe-
ração em 10 dias das informações dos dados pessoais dos criadores do perfil. Poucos dias após
o ocorrido revelou-se que as noticias tidas por fake news eram na verdade noticias baseadas em
artigos dos órgãos de impressa tradições como folha de Sao Paulo, porém escritas de forma não
jornalísticas e sensacionalistas. Sobre o conteúdo da representação ver Representação N 0600546-
70.2018.6.00.0000, classe 11541, Brasilia, Distrito federal.
218  No congresso brasileiro cursam momentaneamente inúmeros projetos para tratar do tema.
220 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

paradigma do direito da proceduralização, exemplificado aqui no instituto da auto-


regulação regulada.

2.1. Direito como expressão das normas postas.

Quod omnes tangit, omnibus tractari et approbari debet. Dessa formula clássica
da máxima romana derivou o instituto redescoberto na idade média no direito das
corporações e está até os dias atuais presente de forma implícita ou explicita no
senso comum teórico do direito. H. Berman, em sua monumental obra sobre a for-
mação do pensamento jurídico moderno, situa o instituto quod omnes tangit como
um dos pilares da progressiva separação entre poder eclesiástico e poder da secular
no decorrer das revoluções papais do século XII e XIII, especialmente com relação
à jurisdição eclesiástica219. Derivado do instituto da tutela do direito romano220, a
máxima em questão criou nos séculos XII e XIII um teoria de limitações legais do
poder eclesiástico e do poder secular, ao estabelecer limites para decisões tomadas
sem uma maior participação dos afetados dessa decisão.
Por sua vez, esse instituto migra no século XIX do direito das organizações
ou corporações para a democracia representativa estatal, criando um vínculo per-
manente entre autores e destinatários das leis através do instituto da representação
democrática. Nos escritos do filósofo alemão Jürgen Habermas, vê-se de forma
clara como esse instituto do quod omnes tangit ganha uma centralidade no pensa-
mento filosófico-político moderno, mesmo que a genealogia do conceito não seja
algo refletido pelo autor221.
Um dos problemas centrais desse paradigma encontra-se no desiderato da di-
mensão organizacional do instituto do quod omnes tangit, antes aplicado no direito

219  Harold Berman, Law and Revolution. The Formation of the Western Legal Tradition. Harvard
University Press, Cambridge 1983 p. 221.
220  Nesse vários guardiões (tutores) possuem uma tutela indivisível, na qual essa administração
coletiva nao poderia ser dissolvida sem o consenso dos demais tutores.
221  Habermas tenta especialmente institucionalizar „discursos“ e ligá-los com procedimentos de-
cisórios igualitários a fim de as pretensões de justificação do discurso possam de alguma forma ser
transferidas para a decisão em si, conferindo-a uma dimensão mais geral e universal frente ao momen-
to voluntarista e particularista da decisão por maioria. Assim tanto a legitimidade quanto a aceitação
do direito. Ver especialmente Jürgen Habermas, Faktizität und Geltung, p. 208 - 237. Ver também
Bernhard Peters, Deliberative Öffentlichkeit, in: Lutz Wingert, Klaus Günther (Org.) Die Vernunft
der Öffentlichkeit und die Öffentlichkeit der Vernunft, Frankfurt am Main 2001, p. 655 - 677.
CAPÍTULO 14 - 221

das corporações e agora nas democracias modernas. A dimensão organizacional


do conceito também repercute implicitamente na teoria do discurso e suas limi-
tações. Nesse paradigma, há uma constante externalizacao dos problema sociais
para a política enquanto organização. Com isso, o Direito passa a ser um produto
centralizado no Estado, especialmente como produto unicamente do parlamen-
to222. Nesse sentido, esse paradigma consegue captar apenas a dimensão social,
na qual há uma tendencial externalizacao para uma unidade decisória política. Já
a dimensão temporal é completamente negligenciada. Numa sociedade de redes,
mediadas por plataformas, as quais transbordam tanto a dimensão organizacio-
nal, quanto a do território nacional, a reflexão através da centralização do direito
no Estado oferece poucas chances de se compreender qual o tipo de transforma-
ção social o direito e a sociedade tem passado dentro do mundo digital.

b) Modelo da ponderação: ponderação

Nesse paradigma a normatividade do direito não se reproduz pela partici-


pação em procedimentos decisórios nos moldes da tradição do quod omnes tan-
git. Pelo contrário, a normatividade jurídica desloca-se da produção de normas
centralizada no Estado (Parlamento) para a articulação de princípios abstratos,
que não necessariamente necessitam de positivação na constituição, especial-
mente dentro do âmbito da jurisdição constitucional. Nesse novo paradigma
ocorre também um deslocamento da reprodução da normatividade jurídica da
tradicional construção acadêmico-conceitual, da racionalidade dos precedentes
e da infra estrutura de leis e tratados para uma (i-)racionalidade do „caso-a-ca-
so“, onde a principal função do direito para a sociedade moderna em estabelecer
padrões de regularidade normativa para orientação de condutas é deixada de
lado. A pratica da ponderação desemboca numa lógica autoreferencial de uma
„vanguarda iluminista“, a qual tende a desprezar o produtivo processo de auto-
-organização da sociedade, especialmente o processo de aprendizagem coletivo
da democracia.

222  Veja que para Habermas a jurisdição constitucional é um grande tema. Jürgen Habermas,
Faktizität und Geltung, Frankfurt am Main 1992.
222 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

c) Proceduralização como paradigma do Direito

O modelo da proceduralização, aqui tratado como terceiro paradigma do


direito, se diferencia no tocante aos pressupostos da produção e reprodução
da normatividade jurídica na sociedade moderna quando comparado com os
dois modelos anteriores. Por um lado, ele se diferencia do legado do quod omnes
tangit, na medida em que não concentra (somente) na unidade de um sistema
politico nacional as estruturas de produção e reprodução da normatividade jurí-
dica223. Por outro lado, perante ao paradigma da ponderação, o modelo da pro-
ceduralização não reduz as condições de reprodução da normatividade jurídica
à colisão de princípios abstratos a ser levado a cabo dentro dos quadros de uma
jurisdição constitucional. Pelo contrário, a proceduzalização parte justamente da
falência, ou melhor, a insuficiência dos dois modelos acima ao tomar os requi-
sitos de ambos os paradigmas, nomeadamente a centralidade do Estado (quod
omnes tangit) e a materialização do direito em princípios abstratos mediatizados
pela jurisdição constitucional (ponderação).
O modelo da proceduralização possui várias vertentes porém comunga,
dentro dessa diversidade, de um diagnóstico único da sociedade moderna: o
da crise do direito regulatório devido ao aumento da complexidade social, seja
na centralidade política, seja da centralidade da jurisdição constitucional dos
modelos anteriores224. Especialmente em âmbitos complexos como os das novas
tecnologias, o conhecimento necessário para a tomada da decisão não se encon-
tra no Estado, tornado assim necessário a criação de novas formas de geração
do conhecimento dentro do direito regulatório estatal que incorpore o conhe-
cimento advindo da sociedade225. Em outras palavras, a constelação clássica do
direito administrativo programado, por um lado, na estrutura de normas com
hipótese de incidência e consequência jurídica, ou por outro lado, num maior
âmbito de ação de agencias reguladoras, devem dar espaço na sociedade das

223  Com isso não quer-se dizer que o direito fica totalmente desacoplado do sistema politico,
pelo contrário esse exerce um papel fundamental em fornecer parâmetros novos de ação do direito.
224  Klaus Eder, Zeitschrift für Rechtssoziologie 1987, P. 193 e p. 200.
225  Karl-Heinz Ladeur, Der Staat gegen die Gesellschaft, Mohr Siebeck, Tübingen 2006.
CAPÍTULO 14 - 223

plataformas226 para uma forma de regulação mais reflexiva, onde a observação e


a incorporação de modelos de auto organização da sociedade ganham prepon-
derância.
Enquanto o modelo da ponderação incorpora em seu modelo um horizon-
te reduzido de formulação de novas distinções e conceitos jurídicos para orientar
novas decisões, ficando à cabo de um situacionismo do caso-a-caso,227 o modelo
da prodeduralização foca na dimensão processual para aquisição de conheci-
mento para decisão em âmbitos complexos da sociedade onde o conhecimento
para decisão não decorre de uma simples ponderação de dois princípios abstra-
tos. Regras procedurais visam incorporar no direito uma dimensão de abertura
para um constante processo de aprendizagem para temas complexos, onde o
conhecimento para decisão não se encontra nem na norma posta legitimamente
pelo parlamento, nem em princípios abstratos, mas no procedimento estalecido
no direito posto228. O conhecimento para decisão, que em âmbitos complexos
das novas tecnologias não se encontram nem na norma posta, nem em princípios
abstratos, passa a ser gerado dentro de um procedimento pré-estabelecido229.
Justamente nesse ponto de interligação da dimensão procedimental, direi-
to estatal e complexidade social é que, como afirma o constitucionalista Dieter
Grimm, um novo instituto do direito administrativo chamado autoregulação
regulada apresenta-se como a forma mais evoluída da proceduralização230. Nessa
forma de regulação foca-se essencialmente na cooperação entre o estado regu-

226  Nick Srnicek, Platform Capitalism. Polity Press, Cambridge 2017.


227  Aqui a metáfora do prima facie é a maior expressão do modelo da ponderação. onde a
metáfora do prima facie é a maior expressão de um direito rompe tanto com a teoria da norma
tradicional, quanto com uma teoria dos precedentes.
228  Ino Augsberg, „Il faut être absolument postmoderne“ em: ders, Lars Viellechner, Tobias
Gostomzzyk (Orgs.) Denken in Netzwerken, Mohr Siebeck, Tübingen 2009, p. 9 ss. Karl-Heinz
Ladeur, Gesetzesinterpretation, „Richterrecht“ und Koventionsbildung in kognitivistischer Per-
spektive, em ARSP 77 (1991), o. 176 ss. Ver também Gralf-Peter Callies, Prozedurales Recht,
Nomos Verlag, Baden-Baden 1999.
229  Burkard Wollenschläger, Wissensgenerierung im Verfahren. Mohr Siebeck, Tübingen 2009.
230  „A regulação auto-regulada parece ser a forma mais avançada da proceduralização, pois
promete ser mais sensível às mudanças das variáveis estruturais e explora melhor as capacidades de
informação dos destinatários e a lógica inerente a cada esfera social.“ (Tradução livre RC) Dieter
Grimm, Regulierte Selbstregulierung in der Tradition des Verfassungsstaates, em: Die Verwal-
tung. Zeitschrift für Verwaltungsrecht und Verwaltungswissenschaften, Caderno 4, Regulierte
Selbstregulierung als Steuerungskonzept des Gewährleistungsstaates, Duncker & Humblot, Ber-
lim 2001, p. 18.
224 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

lador e os atores ou setores sociais a serem regulados. No contexto da sociedade


das plataformas essa seria uma importante forma de regulação mais condizente
com a nova complexidade social.

3. TRANSFORMAÇÃO DO DIREITO (ADMINISTRATIVO)

Um famoso grupo de administrativistas alemãs se reuniu no final da déca-


da de noventa para fazer um balanço dos desafios a ser enfrentados pelo direito
administrativo na sociedade informacional231. O direito administrativo possui
várias facetas - direito administrativo ambiental, direito administrativo da segu-
ridade social, direito administrativo das concessões e assim por diante - e como
no caso do direito civil, que se viu no pós-guerra num processo de criação de
micro sistemas, o direito administrativo também enfrentou uma forte fragmen-
tação que tendencialmente se afasta de uma teoria geral do direito administra-
tivo232. Entretanto, havia algo em comum apesar da fragmentação, conferia à
uma abordagem holística uma coerência metodológica: o advento da sociedade
informacional.
Um dos pontos centrais do grupo foi questionar o papel central da infor-
mação no direito administrativo atual. Em outras palavras, o marco central do
grupo era focar na capacidade de decisão administrativa dado que a informação
para a tomada de decisão nem sempre está disponível para o órgão decisor233. E
por se tratar de um âmbito do direito público, nesse caso o direito administra-
tivo, o grande desafio era debater novas formas de regulação administrativa que
conseguisse lidar com o fato de que com o aumento da complexidade social a
informação necessária para a decisão administrativa se encontrava na sociedade,

231  Os principias administrativas alemães como Wolfgang Hoffmann-Riem, Eberhard


Schmidt-Aßmann, Karl-Heinz Ladeur, o atual presidente da suprema corte Andreas Voßkuhle,
Thomas Vesting entre outros fizeram parte do grupo, que influenciou os estudos administrativis-
tas Tedesco desde então. Publicações do grupo ver:
232  Eberhard Schmidt-Aßmann, Das allgemeine Verwaltungsrecht als Ordnungsidee.Grund-
lagen und Aufgaben der verwaltungsrechtlichen Systembildung. Springer Verlag 2006.
233  Trute, Veröffentlichungen der Vereinigung der Deutschen Staatsrechtslehrer, VVDStRL,
tomo 57, 1998, S. 216 - 219.
CAPÍTULO 14 - 225

em grandes empresas, em standarts normativos de organizações internacionais


etc.
Numa sociedade em que cada vez mais plataformas digitais ganham pro-
eminência dentro da arquitetura da rede e do mundo, o conceito de sociedade
informacional acabou por perder seu poder explicativo diante dessas transfor-
mações estruturais. O grande desafio atual do direito administrativo é encontrar
formas de regulação compatíveis com a sociedade das plataformas, que se articu-
lam globalmente com uma nova forma de articulação possibilitada pelas novas
tecnologias de coleta e processamento de dados por algoritmos e inteligência
artificial. Para adentrar no tema da regulação das redes sociais, primeiramente
faz-se necessário esboçar como a transformação da epistemologia social de uma
sociedade centrada em organizações para um sociedade gerada por plataformas
exige novas adaptações do direito.

2) O DIREITO DA SOCIEDADE DAS ORGANIZAÇÕES

Nas disciplinas afins do direito como é o caso da sociologia, vários autores


atestam essa importância das organizações quando marco central da moderni-
dade. O sociólogo Peter Wagner fala em „organized modernity“ Francois Dubet
fala em „modernidade institucional“, Ulrich Beck fala em „modernidade indus-
trial“ e atualmente Andreas Reckwitz se expressa afirmando que a modernidade
industrial e organizacional inaugura um marco importante dentro da moderni-
dade234. Um dos pontos de convergência entre os diversos autores é que a orga-
nização, ou melhor, a forma de constituição social pela organização, tem efeito
até mesmo nas formas de subjetivação moderna. Whyte fala em „organization
man“235, demonstrando especialmente como a organização molda ou disciplina
não só a subjetividade mas também cria o direito do trabalho moderno como
direito do empregado de organizações.

234  Reckwitz, Gesellschaft der Singularitäten. Zum Strukturwandel der Moderne, Suhrkamp,
Berlin 2017, S. 100.
235  W. H. Whyte, The Organization Man 1997.
226 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

No direito essa transformação tem sido refletida especialmente pelo auto-


res Gunther Teubner, Thomas Vesting e Karl-Heinz Ladeur. Para Teubner, por
exemplo, um longo processo de transformação do Estado e da sociedade sinali-
zam para uma nova forma de um poli-corporativismo, onde a posição hierárqui-
ca do Estado é colocada em cheque pelo crescente número de organizações so-
ciais intermediárias236. Karl-Heinz Ladeur foca por sua vez na passagem de uma
sociedade na qual o conhecimento social era centrado em organizações para um
sociedade que passa a gerar o seu conhecimento social através de redes237. Para a
presente abordagem o enfoque de Ladeur faz-se construtivo na medida em que
foca na dimensão da forma de articulação do conhecimento social e sua mu-
dança, ou seja, na transformação da epistemologia social. Entretanto, o conceito
de redes passa a ser substituído pelo de plataforma, que dá melhor contorno
conceitual à transformação atual e especialmente no tocante ao poder das redes
sociais na esfera pública.
A característica central do que se chama de sociedade das organizações
é que o conhecimento social na modernidade passa a ser produzido e repro-
duzido por organizações. Vários setores sociais passaram por profundas trans-
formações com a ascensão das organizações. Na área de farmacêuticos, grande
parte da população passa a utilizar remédios produzidos por empresas, não mais
recorrendo, em larga escala, ao conhecimento difuso das plantas medicinais. O
mesmo se deu no setor alimentício. Grandes empresas com tecnologia de ponta
passam a ser responsáveis pelo processamento de alimentos em grande escala
deixando de lado os resquícios da economia de subsistência. Essa nova dinâmica
das organizações passou nos últimos 80 anos a dominar a forma de geração de
conhecimento social grande parte da sociedade: partidos políticos, sindicatos,
universidades, hospitais, meios de comunicação, etc. grande parte dos âmbitos
sociais modernos passaram a ser geridos pela forma da organização.

236  Gunther Teubner, Polykorporativismus: Der Staat als „Netzwerk“ öffentlicher und privater
Kollektivakteure, in: Peter Niesen, Hauke Brunkhorst (Orgs.) Das Recht der Republik: Fest-
schrift Ingeborg Maus, Frankfurt 1999, p. 346 - 372.
237  Ver de forma geral Ino Augsberg, Thomas Vesting (Orgs.) Karl-Heinz Ladeur. Das Recht
der Netzwerkgesellschaft, Mohr Siebeck, Tübingen 2013.
CAPÍTULO 14 - 227

Em resposta à essa dinâmica da sociedade das organizações, o direito e o


Estado também tiveram que se adaptar à nova epistemologia social, em especial
aos perigos advindos dela. Especialmente após o fenômeno das privatizações,
alterou-se sensivelmente tanto a sociedade quanto o direito administrativo em
si238. Com as privatizações ficou claro, que a participação das organizações para
a estruturação da sociedade ganhara um outro peso. Cada vez mais abriu-se es-
paço para organizações gerirem âmbitos até então privativos do Estado, criando
novas chances, mas também gerando novos riscos sociais239. Até mesmo o Es-
tado ganha outro nome e outra responsabilidade: o Estado se torna um Estado
Garantidor (Gewährleistungsstaat) e não mais um Estado provedor240.
Por conta da dinamização do conhecimento social através das organiza-
ções, o direito administrativo se viu obrigado a criar um novo paradigma para
lidar com essa nova epistemologia social241, moldando-se para essa nova ordem
de conhecimento da sociedade centrado em organizações. O marco regulatório
das agencias reguladoras parece se inserir justamente nesse paradigma da socie-
dade das organizações. A função regulatória das agencias regulados se encon-

238  Sobre a história da privatização, que é mais antiga que o proprio conceito ver Jörg Axel
Kämmerer, Privatisierung, 2001, p. 61 ss. Ver também Wolfgang Weiß, Privatisierung und Ver-
waltungsaufgaben, 2002. Barbara Remmert, Private Dienstleistung in staatlichen Vewaltungsver-
fahren 2003. Sobre o papel da dogmática nas privatizacoes ver Friedrich Schoch, Die Rolle der
Rechtsdogmatik bei der Privatisierung staatlicher Aufgaben, em: Stürner (Org.) Die Bedeutung
der Rechtsdogmatik für die Rechtsentwicklung, 2010, p. 91 ss.
239  Especialmente o direito penal moderno que é centrado no indivíduo passa a ter dificulda-
des para lidar com a sociedade das organizações. Casos surgidos dos novos produtos produzidos
com alta tecnologia por organizações/empresas como Contergan, Lederspray e Holzschutzmittel
causaram embaraços na dogmática tradicional do direito penal seja pelo falta da dificuldade de
constatação do nexo causal, seja pela questão da imputação. Contergan-Fall (LG Aachen Juris-
tische Zeitung 1971, p. 507)
240  Edgar Grande, Entlastung des Staates durch Liberalisierung und Privatisierung?, em: Voigt
(Org.) Abschied vom Staat - Rückkehr zum Staat? 1993, p. 388 ss. Gunnar Folke Schuppert,
Verwaltungswissenschaft, 2000, p. 383 ,Matthias Knauff, Der Gewährleistungsstaat: Reform der
Daseinsvorsorge 2004. Andreas Voßkuhle, Der „Dienstleistungsstaat“: Über Nutzen und Gefah-
ren von Staatsbildern, Der Staat 40 (2001). p. 495 ss.
241  Epistemologia social diferencia-se de duas matrizes do pensamento ocidental: a filosofia
analítica e teoria do conhecimento de matriz cartesiana. Para o viés da epistemologia social,
a forma com que as condições sociais do conhecimento se apresentam na sociedade é o ponto
central. Para uma visão geral veja T. Wilholt, Soziale Erkenntnistheorie, 2007, p. 46 ss. Sybille
Krämer, Medium, Bote, Übertragung 2008, p. 225. Para a dimensão política da epistemologia
social especialmente voltada para as fundações epistemológicas da política democrática ver Y.
Ezrahi, Imagined Democraties, 2012 p. 104 ss. Ver também Thomas Vesting, Medien des Rechts,
tomo I, p. 12ss.
228 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

tra justamente na transformação do Estado moderno de um Estado Prestador


direto do serviço publico para um Estado Regulador e Garantidor de Serviços
Públicos ao regular os standarts e regulamentar os vários setores sociais, onde o
conhecimento é gerado por grandes empresas e organizações privadas242.
Um importante exemplo, especialmente dentro do escopo temático do pre-
sente artigo, é o da imprensa tradicional como interessante exemplo da socieda-
de das organizações. A produção de informação e conhecimento sobre informa-
ção passou a ser, nas democracias modernas, cada vez mais a serem produzidas
dentro de organizações. Grandes empresas de jornal impresso e televisivo, com
suas redações, revisão hierárquica de matérias e a necessidade legal de nomeação
de um redator, pautaram a produção de informação da esfera pública até a po-
pularização da internet. Apesar de no Brasil não existir agencia reguladora para
a imprensa, a dimensão da organização moldou a geração de informações para
a esfera publica até então tendo uma vasta infra estrutura de vinculação legal
tanto no sentido de concessão e autorização legal para a criação de empresa
nesse ramo, quanto a responsabilidade civil e penal do redator-chefe e diretor do
jornal por matéria publicada.

242  A regulação do setor elétrico centra-se na regulação de empresas e organizações que forne-
cem energia. A regulação de telecomunicações fica responsável por ficar parâmetros das empresas
e organizações que prestam serviço de telefonia. E assim por diante. Nossa estrutura de organi-
zação do estado não ficou alheia à utilização das agências reguladoras. As agências reguladoras
fazem parte da Administração Pública Federal indireta e são submetidas a regime autárquico
especial, vinculadas ao Ministério que cuida da matéria que elas visam a regular. São essas as agên-
cias reguladoras nacionais: Agência de Desenvolvimento da Amazônia (ADA – MP 2157-5/01);
Agência de De- senvolvimento do Nordeste (ADENE – MP 2156-5/01); Agência Nacional de
Águas (ANA – L 9984/00); Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC – L 11182/05); Agên-
cia Nacional do Cinema (ANCINE – MP 2228-1/01); Agência Nacional de Energia Elétrica
(ANEEL – L 9427/96); Agência Nacional do Petróleo (ANP – L 9478/97); Agência Nacional
de Saúde Suplementar (ANS – L 9961/00); Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL
– L 9472/97); Agência Nacional de Transportes Aqua- viários (ANTAQ – L 10233/01); Agên-
cia Nacional de Transportes Terrestres (ANTT – L 10233/01); Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (ANVISA – L 9782/99). Os diretores das agências são nomeados pelo Presidente da
República, após serem aprova- dos pelo Senado Federal (CF 52 III f) e a gestão de recursos hu-
manos das Agências se faz nos termos da L 9986/00. Cf. Georges Abboud e Nelson Nery Junior.
Direito Constitucional Brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 494-495. Floriano
Azevedo Marques Neto. Agências reguladoras independentes: fundamentos e seu regime jurídico, Belo
Horizonte: Forum, 2009. Gustavo Binenbojm. Agências reguladoras independetes, separação de pode-
res e processo democrático, In: Temas de Direito Administrativo e Constitucional, RJ: Renovar, 2007, p.
95-119. Gustavo Binenbojm. Um novo direito administrativo para o séc. XXI, , In: Temas de Direito
Administrativo e Constitucional, RJ: Renovar, 2007, p. 3-37.
CAPÍTULO 14 - 229

Os standarts profissionais gerados dentro da prática da organização na ge-


ração da informação exerciam um papel fundamental para a aplicação do diretio.
Por exemplo, para diferenciar entre opinião e afirmação de fato de um redator
ou jornalista de uma determinada matéria, os standarts profissionais eram de
suma importância para delimitar o que era calúnia e direito de resposta. Com
a ascensão das plataformas de redes sociais, a forma de produção de informa-
ção decentraliza esse papel central das organizações. A informação não mais é
necessariamente gerade dentro de organizações, ela passa a ser gerada de forma
decentralizada dentro do ambiente da internet sem o comum filtro dos standarts
jornalísticos. Somente tendo esse pano de fundo de uma passagem, ou melhor,
descentralização do papel das organizações, é que se consegue compreender me-
lhor o fenômeno das noticias fraudulentas ou fake news.
A próxima questão que se coloca é a seguinte: se as bases organizacionais
da sociedade perdem o papel até então desempenhado, como arquitetar uma
nova forma de infra estrutura legal para a nova sociedade de plataformas? A res-
posta se encontra no reconhecimento de que o paradigma da agencia reguladora
voltada para a regulação de organizações típico do fenômeno da privatização
pré massificação da internet deve ser substituído por um modelo mais reflexivo
e dinâmico da regulação autoregulada, no qual o elemento da proceduralização
do direito passa a ser central. Nesse contexto, o administrativista alemão chama
atenção de uma nova forma de gestão da administração, ou melhor, do direito
administrativo como um direito administrativo aberto à aprendizagem („lernen-
de Verwaltung“)243.

243  Martin Eifert, Regulierte Selbstregulierung und die lernende Verwaltung, in: Die Verwal-
tung. Zetischrift für Verwaltungsrecht und Verwaltungswissenschaften, Duncker & Humblot,
Berlim Caderno Especial „Regulierte Selbstregulierung als Steuerungskonzept des Gewährleis-
tungsstaates. p. 137 ss.
230 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

3) SOCIEDADE CENTRADA PLATAFORMAS E O


DESAFIO DO DIREITO (ADMINISTRATIVO)

Dentro do direito administrativo, pesquisadores americanos e alemães têm


chamado a atenção para o fato de que o direito administrativo deve repensar
suas premissas organizacionais, ou seja, suas premissas centradas numa socie-
dade de organizações, para poder dar uma resposta adequada para a sociedade
informacional244. Segundo William Simon, o direito administrativo (americano)
não levou em conta os novos desenvolvimentos modernos teoria e prática das
novas organizações e acima de tudo a transformação da empresa245. No contexto
alemão em especial, essa mudança tem sido nos últimos anos refletida sob a
perspectiva da dimensão cognitiva do direito administrativo e o problema da
geração de conhecimento para a tomada de decisão dentro do procedimento
administrativo como forma de lidar com a complexidade de certas esferas sociais
a serem regulamentadas246.

244  Thomas Vesting, Die Bedeutung von Information und Kommunikation für die verwal-
tungsrechtliche Systembildung, in: Wolfgang Hoffmann-Riem/Eberhard Schmidt-Aßmann/
Andreas Voßkuhle (Hrsg.), Grundlagen des Verwaltungsrechts, Bd. II: Informationsordnung –
Verwaltungsverfahren – Handlungsformen, München, 2. Aufl 2013, § 20; Andreas Voßkuhle, Der
Wandel von Verwaltungsrecht und Verwaltungsprozeßrecht in der Informationsgesellschaft, in:
Wolfgang Hoffmann-Riem/Eberhard Schmidt-Aßmann (Hrsg.), Verwaltungsrecht in der In-
formationsgesellschaft, Baden-Baden 2000, S. 349 ff. (369 ff.). Andreas Voßkuhle, Neue Ver-
waltungsrechtswissenschaft, em: Hoffmann-Riem, Schmidt-Aßmann, Voßkuhle (Orgs.)Grund-
lagen des Verwaltungsrechts, Tomo 1, 2006, § 1, p. 40 ss.
245  Willian Simon, The organizational Premises of Administrative Law, Law and Contempo-
rary Problems (2015) 61-100.
246  Hans Christian Röhl (Hrsg.), Wissen – Zur kognitiven Dimension des Rechts (DV Beiheft
9), Berlin 2010. Sobre a temática ver os artigo no livro Indra Spiecker gen. Döhmann/Peter Collin
(Hrsg.), Generierung und Transfer staatlichen Wissens im System des Verwaltungsrechts, Tübin-
gen 2008, e também em Gunnar Folke Schuppert/Andreas Voßkuhle (Hrsg.), Governance von
und durch Wissen, Baden-Baden 2008; Burkard Wollenschläger, Wissensgenerierung im Verfah-
ren, Tübingen 2009; Indra Spiecker gen. Döhmann, Wissensverarbeitung im Öffentlichen Recht,
Rechtswissenschaft 1 (2010), S. 247 ff.; ausführlich zum ganzen jetzt Ino Augsberg, Informa-
tionsverwaltungsrecht. Zur kognitiven Dimension der rechtlichen Steuerung von Verwaltungs-
entscheidungen, Tübingen 2014. Grundlegend zur Wissensthematik im (Öffentlichen) Recht
Karl-Heinz Ladeur, Das Umweltrecht der Wissensgesellschaft. Von der Gefahrenabwehr zum
Risikomanagement, Berlin 1995. Aus zivilrechtlicher Sicht instruktiv Dan Wielsch, Zugangsre-
geln. Die Rechtsverfassung der Wissensteilung, Tübingen 2008.
CAPÍTULO 14 - 231

Para W. Simon, por sua vez, o marco fundacional do paradigma das organi-
zações dentro do direito administrativo americano se deu com o Administrative
Procedure Act (APA) publicado em 1946 que tinha a produção estandardizada
de manufaturados em massa, a qual possuía como centro do marco regulatório a
„lage-scale organization“. Entretanto, nas ultimas décadas, houve uma profunda
transformação na pratica organizacional exigindo do setor público uma nova
forma regulatória para lidar com esse fenômeno da organização pós burocrática,
a qual é mais dinâmica e flexível247.
„In postbureaucratic organization, legitimacy depends less on prior au-
thorization than on transparency and consequent openness to ongoing diffuse
democratic pressures. The key type of norm is not the rule but the plan. Plans
are more comprehensive than rules, and although plans may contain rules, as
norms, they are more provisional and less categorically prescriptive than bu-
reaucratic rules. Plans typically set out procedures for monitoring their own
implementation and for frequent reassessment in light of information derived
from monitoring. Whereas change in bureaucracy tends to be episodic, chan-
ge in postbureaucratic organization tends to be continuous. Although they do
not regulate as tightly as rules, plans do not create pockets of unaccountable
discretion. Departures from a plan may be permissible, but they typically trig-
ger review and require explanation. Finally, postbureaucratic organization takes
a proactive approach to error detection: It tends to rely on audits more than
complaints, and it takes a diagnostic approach to complaints, understanding
them not just as evidence of idiosyncratic deviance, but as symptoms of systemic
malfunction.“248
Especialmente com a popularização da utilização ambiente da internet
criou-se novas possibilidades de articulação das empresas. Novos modelos dis-
ruptivos de empresas, inteligência artificial, casos automatizadas, internet das

247  Sobre as mudanças estruturais da empresa e sua ressonância no direito veja: Gunther Teub-
ner, Para o direito administrativo veja Roland Broemel, Strategisches Verhalten in der Regulierung.
Zur Herausbildung eines Marktgewährleistungsrechts in den Netzwirtschaften, Tübingen 2010,
p. 201 ff.;
248  Willian Simon, The organizational Premises of Administrative Law, Law and Contempo-
rary Problems (2015) p. 62.
232 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

coisas, entre outros mudam não somente o ambiente que em ocorre a concor-
rência das empresas, mas também coloca o direito público sob pressão para re-
pensar novos modelos de regulação condizentes com esse novo cenário social.
A questão atinente às fake news configura enblemático exemplo da necessidade
de formação de novos mecanismos de regulação e controle. Logo, não seria ne-
nhum exagero afirmar que as fake news constituem uma espécie de quebra de
accountability na formação e circulação das informações.
Richard Collins, comentando o debate que se deu no Reino Unido, em
2006, sobre a accountability da BBC, chama a atenção para duas concepções
distintas porém complementares dessa exigência democrática. A primeira delas,
de autoria da Baronesa Mary Warnock, sustenta que a accountability seria com-
posta por dois elementos: o dever de dar conhecimento ou informação (duty to
give an account) e o poder de impor uma sanção (right to hold in account).249 Já a
segunda, idealizada pelo estudioso Albert Hirschman, equaciona a accountability
ao exercício alternativo de três opções fundamentais: a de abandonar o veículo
de informações (seja por deixar de pagar preço ou de deixar de votar); a de se
fazer escutar (por meio do voto ou de reclamações diretas); ou a de demonstrar a
lealdade. O abandono é exercido pelo preço e pela política.250
O que se percebeu no Reino Unido, a partir dessas duas visões, é que a
garantia da accountability se vê por muitas vezes ameaçada pela tensão que existe
entre o mercado e o Estado em relação à mídia. Mesma tensão advinda do com-
bate às fake news. A partir do momento em que a circulação de notícias deixa
de ser monopólio do Estado, as várias empresas de telecomunicação - surgidas
para explorar essa nova fatia de mercado - encontram seu sustento nas assina-
turas daqueles interessados nos seus serviços. As pessoas então se dividem entre
consumidores e administrados. Os primeiros veem-se à mercê dos interesses do
mercado; os segundos, indefesos diante da opacidade da Administração Pública.
Embora os consumidores pareçam poder exercer de maneira mais direta o direi-

249  Richard Collins. Accountabilty, Citizenship and Public Media In: Monroe E. Price, Sefaan G.
Verhulst, Libby Morgan (orgs.). - Routledge Handbook of Media Law, New York: Routledge, 2013,
p. 219-233.
250  Richard Collins. Accountabilty, Citizenship and Public Media, cit., p. 219-233.
CAPÍTULO 14 - 233

to de exigir contas das suas emissoras, o produto por eles consumido sempre se
voltará ao que for mais lucrativo. Ao passo que, se os administrados podem votar,
não podem jamais ter acesso ao que motiva as comunicações do Estado. O que
Collins sugere, para resolver essa encruzilhada dolorosa, é um terceiro modelo.
O cidadão é o meio termo entre o mercado e o Estado, e deverá exigir tanto de
um quanto do outro, a transparência da qual ele tanto necessita para decidir o
próprio destino.251
Dentro do âmbitos das redes computacionais e plataformas digitais o
conceito de accountability deve ser entretanto repensado levando em conside-
ração as peculiaridades da gramática do mundo digital que são não organizacio-
nais. Assim, um importante desenvolvimento do conceito de accountability seria
acopla-lo ao conceito de autoregulação regulada, onde procedimentos sejam
criados para compensar a incerteza e gerar conhecimento sobre a persecução de
certos objetivos e interesses públicos estabelecidos252.

4. CAPITALISMO DAS PLATAFORMAS,


TRANSFORMAÇÃO DA ESFERA PÚBLICA E REGULAÇÃO

O famoso teórico dos meios de comunicação canadense Marshall Mcluhan


chamou atenção para o fato de que o grande problema dos estudos dos meios
de comunicação é que até o momento se olhava para o meio como neutro: sua
mensagem é: „The Medium is the message“253. O meio - como a fala, a escrita, o
impressão ou o computador - não só transmite um tipo de informação mas tam-
bém afeta especificamente a percepção, pensamento e a forma de experiência

251  Richard Collins. Accountabilty, Citizenship and Public Media, cit., p. 219-233.
252  Ino Augsberg, Informationsverwaltung. Zur kognitiven Dimension der rechtlichen Steue-
rung von Verwaltungsentscheidungen, Mohr Siebeck, Tübingen 2014, p. 244 ss.
253  „Das ist in der Tat der erste Zugang, dass er von den Sinnen ausgeht, dass er die Sinnes-
erweiterungen, die Sinnesprothesen untersucht: Wahrnehmung ist dasjenige, was überhaupt erst
durch mediale Prozesse konstituiert wird, das heißt dass es also gar nicht so sehr um die Inhalte
geht,- also die Botschaft ist nicht das, was wir gerade sehen, das was wir lesen, was in den Texten
steht, sondern es geht um die Formierungsprozesse selber und das ist die eigentliche Botschaft
- und er hat dann auch zusammen mit Quentin Fiore, ein Buch veröffentlicht mit dem bezeich-
nenden Titel nicht The medium is the message, sondern The medium is the massage.“
234 - OS IMPACTOS DAS NOVAS TECNOLOGIAS NO DIREITO E NA SOCIEDADE

humano254. Para o contexto do presente ensaio sobre as possíveis formas de re-


gulação de redes sociais a passagem do meio „impressão“ (organizações) para o
meio „computador“ (redes, plataformas) é o fator decisivo para se compreender
qual o tipo de transformação o direito e a sociedade tem enfrentado atualmente,
em especial no tocante ao surgimento das noticias fraudulentas.
Na sociedade centrada em organizações, a informação era produzida por
organizações ou empresas: empresa televisiva, jornal impresso, empresas de rá-
dio. Para esse tipo de produção de conhecimento dentro de organizações, há
uma infraestrutural de regras - formais e informais -, que permitem a responsa-
bilização, por exemplo, do redator pelas noticias. Há também uma certa eficácia
do direito de resposta visto que ele pode ser veiculado no próprio meio - jornal
escrito ou televisionado - na organização objeto255.
O grande desafio para o direito surge justamente quando as organizações
jornalísticas com seus standarts profissionais, as quais ofereciam um bom pa-
râmetro para a decisão judicial acerca da liberdade de expressão, por exemplo,
na consagrada diferença entre opinião e afirmação de fatos, sofrem uma des-
centralização devido ao surgimento do novo meio internet. Com a queda da
centralidade das mídias de massa, cai também esse suporte e filtro das regras
profissionais do jornalismo e também a vinculação das obrigações jurídicas or-
ganizacionais da redação de um jornal. Com a nova economia de plataformas,
possibilita-se a produção de informação desvinculada de organizações. Por um
lado, tem-se o aumento da pluralidade na esfera pública, por outro lado, a di-
minuição da qualidade e o surgimento de um mercado de noticias falsas. Nesse
contexto é que se coloca a questão da mudança da esfera pública e da comuni-
cação e qual seria uma nova possível forma de regulação.

254  „Im Kern ist McLuhans Idee, dass Medien eine Extension, eine Veräußerung des
menschlichen Körpers sind, Veräußerung und Erweiterung, das würde heißen, dass zum Beispiel
das Rad eine Erweiterung des Fußes oder der Gehwerkzeuge wäre, so dass ich dann sozusagen
nicht mehr selber laufen muss, sondern eben per Fahrrad, Auto, Zug, transportiert werde bezie-
hungsweise mich beim Fahrrad selber mit anstrenge, oder die große These, die er hat, dass der
Computer eine Veräußerung des menschlichen Gehirns sei, der Funktionalität, die das Gehirn
hat.“
255  Locus classicus é o caso Brisola vs. Jornal Nacional, no qual Brisola teve um direito de resposta
assegurado judicialmente de responder dentro da programação do jornal nacional, em cadeia
nacional.
CAPÍTULO 14 - 235

O modelo regulatório da autoregulação regulada apresenta-se como um


importante mecanismos para lidar com a regulação das plataformas digitais pois
ela incorporada os elementos centrais do modelo da proceduralização enquan-
to modelo do direito posicionando-se frente aos modelos acima expostos da
ponderacao e do quod omnes tangit como um moderno paradigma do direito.
Os elementos centrais do modelo da proceduralização, os quais viabilizam sua
aplicação em contextos das novas tecnologias são: flexibilização e capacidade de
aprendizagem criados dentro de uma temporalização do processo de toma de
decisão visando a geração de conhecimento em setores sociais de alta tecnolo-
gia256.
A mais valia de um modelo de proceduralização do direito concretizado
aqui no instituto da autoregulação regulada como caso de regulação das redes
sociais no tocante às noticias fraudulentas decorre especialmente do fato de que,
por um lado ele não consiste numa forma de regulação mais direta, como das
agencias reguladoras, e por outro lado, ele incorpora dentro de seu conceito re-
gulatório a participação do setor privado objeto da regulação incorporando um
conhecimento de áreas tecnológicas, o qual o Estado não dispõe. Com isso, o
modelo da autoregulação regulada responde ao deficit de conhecimento geran-
do procedimentos (proceduralização) e uma abertura temporal do direito para
lidar com uma sociedade cada vez mais complexa.

256  Para o direito administrativo ver Eberhard-Schmidt-Aßmann, Der Verfahrensgedanke in


der Dogmatik des öffentlichen Rechts, em: Peter Lerche, Walter Schmitt Glaeser, ders (Orgs.)
Verfahren als staats- und verwaltungsrechtliche Kategorie, Heidelberg 1984, p. 11 ss.

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