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O pesadelo de Descartes
Do mundo mecânico à Inteligência Artificial
φ
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.behance.net/CaroleKummecke
Arte de Capa: Felix Rothschild - www.felixrothschild.com
http://www.abecbrasil.org.br
O pesadelo de Descartes: do mundo mecânico à Inteligência Artificial [recurso eletrônico] / João de Fernandes
Teixeira -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018.
190 p.
ISBN - 978-85-5696-405-2
CDD: 100
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100
Para Malu, Jujuba e Tâmara
Agradecimentos
Introdução ................................................................................................... 13
Capítulo I ..................................................................................................... 31
O sonho de Descartes
Capítulo II ....................................................................................................73
A paisagem digitalizada
1
Marcuse, H., 1998.
João de Fernandes Teixeira | 21
O sonho de Descartes
2
A hipótese é de Pagès, 1999, após estudar a correspondência de Descartes.
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3
Ver Colvin, 2016.
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***
4
Ver Stengers, I., 2015.
João de Fernandes Teixeira | 59
5
Ideia do filósofo espanhol Miguel de Unamuno e discutida por Murray, 2017.
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6
Ver o livro de Gardiner et alia, 2010.
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***
A paisagem digitalizada
7
Para uma crítica mais detalhada do Uber, ver Hill, 2016.
João de Fernandes Teixeira | 79
8
Essa observação, muito apropriada, foi feita por Schwab, K., 2017.
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9
Ver o livro de Gratton & Scott, 2017.
10
Ver o Leviatã, capítulo I, 2014.
11
Ver Freud, O mal-estar na civilização, 1930.
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quanto para descartá-la quando ela não interessa mais. Zoe é a vida
transformada em planilha. A mesma planilha que serve para aprovar
investimentos em pesquisas de medicamentos para prolongar a vida
dos idosos serve também para apressar sua morte quando ela é usada
para aprovar o fim dos subsídios para anti-hipertensivos e
antidiabéticos que muitos aposentados não podem comprar.
A contrapartida da longevidade e da vida como commodity
precificada levou à aparição de um novo imperativo ético: o dever
de sermos saudáveis para que as sociedades não se tornem
sobrecarregadas com o alto custo das aposentadorias e da saúde
precária no fim da vida dos idosos. O fardo econômico é imenso e,
por isso, muitos idosos aposentados se sentem culpados por viver.
O constrangimento por viver, talvez mais do que o esperado, e de
consumir sem repor assola muitos aposentados em idade avançada.
Esse constrangimento é a base de um novo imperativo moral que
chamo de ética somática.
Uma postura ativa, informada e prudente em relação ao que
pode ocorrer com nossos corpos em um futuro próximo se tornou,
também, uma responsabilidade indiscutível. A boa saúde, o controle
da dieta e os exercícios físicos regulares são prescrições gerais que
todos devem seguir. Na ética somática está incluída, também, a mens
sana, ou seja, o controle do stress pela meditação transcendental, que
já está disponível em aplicativos para smartphones.
A busca pela prevenção de doenças se tornou uma exigência
ética, um ideal obrigatório A ética somática fez a demanda por
serviços médicos de todos os tipos crescer exponencialmente.
Hospitais, laboratórios e centros de pesquisas de novos
medicamentos se multiplicaram. Tudo se passa como se tivéssemos
total responsabilidade sobre o nosso corpo e não estivéssemos
submetidos a más condições de trabalho e a uma alimentação na
qual predominam os produtos industrializados.
O ideal da ética somática é ser normal em uma sociedade
imensamente anormal. A exigência da boa saúde não combina com
o marketing televisivo de alimentos que, para não serem vilões,
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O mundo reencantado
Hebb, princípio geral das redes neurais que explica como elas
aprendam. O psicólogo americano Donald Hebb (1904-1985)
formulou essa regra no livro The Organization of Behavior [A
organização do comportamento]. É com base nessa regra,
aparentemente simples, que as redes neurais são construídas.
A rede neural é dinâmica, ou seja, conexões podem ser feitas,
desfeitas e refeitas o tempo todo. Um estímulo inicial espalha
excitações e inibições entre os neurônios artificiais. Diferentes
estados na rede podem ocorrer como consequência de mudanças
nas conexões, variando de acordo com a interação do sistema com o
meio ambiente e com seus outros estados internos.
Quando uma rede neural aprende, isso significa que ela
detectou um padrão que pode ser projetado para o futuro que, no
caso, significa um aumento na probabilidade de uma determinada
conexão ser mantida ao longo do tempo. O princípio fundamental
do aprendizado também é baseado na lei de Hebb: conexões
exercitadas são aprendidas. É isso que ocorre no caso dos algoritmos
de aprendizado baseados em exemplos e analogias.
A maioria das redes neurais têm uma regra de treinamento
por meio de exemplos e é capaz de extrair uma regra básica ou um
padrão a partir dos dados. Quando uma rede neural é treinada e
aprende, ela pode comunicar imediatamente o aprendizado para
outras redes.
Imagine agora expor uma rede neural a uma coleção de rostos
obtida por técnicas de BIG DATA, ou seja, uma imensa base de dados
construída a partir de rostos que estão dispersos na internet. Essa
rede neural pode identificar padrões nesses rostos e, com isso,
aprender a agrupá-los a partir de características semelhantes, como
se pertencessem a uma mesma família. Quando um novo rosto
surge, a máquina é capaz de projetar os padrões aprendidos e
verificar a qual grupo familiar ele pertence e, em seguida, refinar a
busca nas bases de dados até chegar à identidade da pessoa. Se a
mesma tarefa tivesse que ser executada manualmente por humanos,
o resultado seria demorado e caro.
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o que você come, bebe, por onde anda, quantos passos você caminha
durante o dia, quem você encontra, a taxa de seus batimentos
cardíacos, seus ciclos hormonais, a taxa de álcool no seu sangue, a
que horas você ligou a máquina de lavar roupa, quanto tempo você
passou no chuveiro, quantas vezes por semana você usa o aspirador
de pó, com qual frequência você esquece as luzes acesas ao sair de
casa, quantas horas você dorme e quantas vezes se revira na cama.
As empresas que controlarem a IoT saberão todos os seus hábitos e
preferências para oferecer mercadorias e serviços nos momentos
mais oportunos. Tudo e todos poderão ser administrados e
otimizados.
Os efeitos cognitivos da IoT sobre as pessoas poderão ser
surpreendentes. É provável que a IoT afete o modo como
percebemos a relação entre os objetos físicos à nossa volta, em geral
concebida como um nexo entre causa e efeito. Nossa vida cotidiana
é organizada pelo princípio da causalidade. A relação causa-efeito
molda nossas expectativas em relação ao futuro imediato.
Representar o futuro é uma das funções primordiais do
conhecimento.
A antropologia cognitiva mostra que a ideia de causalidade é
adotada, por diversas culturas, como alternativa a uma visão
animista da natureza. Contudo, em algumas culturas primitivas, as
mudanças ainda são interpretadas como produto da vontade dos
deuses ou de espíritos malignos. Uma dor de estômago não é o efeito
da ingestão de algum alimento em condições inadequadas, mas o
resultado da ação de algum espírito maligno. Um ataque cardíaco é
resultado de bruxaria contra alguém. O interessante é que nessas
culturas, o princípio de causalidade não é um conceito organizador
do conhecimento e nem é o que torna inteligíveis as mudanças que
ocorrem na vida cotidiana. Para os integrantes dessas culturas, a
mágica é o que torna inteligível as mudanças cotidianas. Como para
eles não existe relação causa-efeito, não faz sentido estudar as
propriedades do alimento ingerido antes de a dor de estômago
João de Fernandes Teixeira | 111
A pos-ciência
internet. Nossos rastros digitais podem ser invisíveis para nós, mas
facilmente detectados e analisados por máquinas. Em outras
palavras, somos nós que alimentamos a inteligência artificial, quase
sempre sem sabermos. Somos nós que contribuímos para estocar a
informação garimpada pelas técnicas de BIG DATA. Somos nós que
alimentamos e aperfeiçoamos os algoritmos de aprendizagem.
A internet é a grande rede neural na qual todos participamos
para gerar novas conexões e fortalece-las pelo seu uso repetido,
transformando a estatística no melhor critério de relevância de que
podemos dispor. Ao interagir com a internet estamos, também,
ensinando-a como a informação deve ser usada. A probabilidade
passou a ser a medida da relevância e da crença que devemos
atribuir a uma informação baseada no seu uso e repetição na
internet. Quanto mais ela é usada, mais ela é repetida e maior é a
sua chance de ocorrer novamente, o que é um indício de que ela é
uma informação relevante e com grande probabilidade de ser
verdadeira.
Esse cenário de simbiose se assemelha ao que ocorre no filme
Matrix (1999, 2003), dirigido por Wachowski & Wachowski, no qual
os seres humanos estão profundamente entranhados com máquinas
que usam seus corpos como fonte de energia para se manterem
funcionando. No entanto, não é dos corpos humanos que essas
máquinas realmente precisam, pois o corpo de outros animais,
muito maiores do que o nosso, poderia gerar muito mais energia.
Elas precisam da consciência humana, pois nunca poderiam gerá-la
artificialmente. A consciência produz ação que, por sua vez, produz
uso para a informação e, ao torná-la relevante, gera comportamento
inteligente.
Como a nova inteligência artificial pegará emprestada a
semântica de seus usuários, ela tenderá a se tornar o que Pedro
Domingos chamou de “subconsciência global, a identidade coletiva
da raça humana”. Mas prefiro chamá-la de conectoma global.
O conectoma é o conjunto das ligações entre os neurônios. Ele
é extremamente plástico, ou seja, constantemente modificado pelas
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Ver Greenfield, S.,2017.
Capítulo V
O pesadelo de Descartes
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tarefa de levar uma pedra morro acima até que ela caia novamente
pela encosta, mesmo antes de chegar ao topo.
Uma das reconfigurações do trabalho, talvez a mais
interessante, virá da redefinição de nosso papel nas sociedades
digitalizadas. As redes sociais, que deveriam aproximar as pessoas,
criaram um efeito paradoxal nas relações humanas. O aumento da
comunicação levou a uma diminuição da intimidade e da empatia. A
perda progressiva da capacidade de percepção do outro é uma
consequência quase inevitável. Construímos o outro a partir da
projeção de nossas intenções, crenças ou desejos, mas essa tarefa
fica muito difícil quando não sabemos se estamos conversando com
um vizinho, um amigo, com blogueiros pagos ou com um robô na
internet que produz mensagens como se fosse um ser humano.
A introspecção é a chave para a compreensão do outro, pois
sempre supomos que ele agirá de uma forma parecida com a nossa.
Mas o que ocorre quando a avalanche de sons, imagens e mensagens
que recebemos incessantemente ofusca a introspecção? Quais serão
os efeitos de interagirmos, cada vez mais, com sujeitos virtuais?
Um sujeito virtual nos dá a segurança de estar sempre sob
nosso controle, pois podemos fazê-lo aparecer e desaparecer quando
quisermos, bastando, para isso, ligar ou desligar um computador.
Mas a incapacidade de reconhecer a existência de uma outra pessoa
a partir de nossos próprios sentimentos pode nos confinar a um
casulo digital, no qual conversamos apenas com nós mesmos da
mesma maneira que uma menina dialoga com sua boneca,
fantasiando suas respostas e interrompendo a brincadeira quando
quiser.
A necessidade de revalorizar a empatia e a presencialidade já
trouxe de volta os shows ao ar livre como alternativa ao streaming.
Um show musical ao ar livre ou em grandes auditórios envolve a
presença de um corpo ao vivo, com o qual interagimos em tempo
real. Como vimos no capítulo III, o corpo em exibição é uma
compensação para uma vida sedentária na qual os contatos virtuais
predominam. Nada disso pode ser fornecido pelas operadoras de
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Devo essa sugestão a meu amigo Gustavo Leal-Toledo.
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trabalho que pode ser feito por máquinas. Como podemos ter
autoestima se gastarmos quase todo nosso tempo fazendo o que
poderia ser feito por máquinas? Obrigar os estudantes a fazer o que
as máquinas fazem é um ranço punitivo que muitas escolas ainda
conservam.
Não há mais tempo para recapitular o conhecimento.
Enfatizar a memorização como estratégia de ensino é tornar a escola
redundante, pois estocar informação é algo que não precisa ser feito
por cérebros humanos. Todos sabem que se aprenderem
simplesmente o que uma máquina pode fazer se tornarão não,
apenas desempregados, mas inempregáveis. Esse será o triste
destino de grande parte de quem optar pelo ensino
profissionalizante.
A escola deveria se concentrar no que as máquinas não podem
nos proporcionar. Uma máquina não tem capacidade de negociar.
Uma máquina não sabe ler nas entrelinhas. Essas serão habilidades
cada vez mais necessárias. As escolas deveriam, também, ensinar
como enfrentar perdas e frustrações, que serão muito mais
numerosas à medida em que as sociedades se tornam competitivas
e que vivemos por mais tempo. Seria importante, também, que as
pessoas se acostumassem com a morte para diminuir um pouco a
brutalidade com que ela nos assola.
Em sociedades superpovoadas e mais violentas, mortes
intempestivas serão mais frequentes. Uma forma de lidar com esse
problema é levar os alunos a visitarem, de tempos em tempos,
hospitais e a comparecerem a alguns funerais. Essa é uma tarefa
delicada, pois seu exagero pode levar à banalização da morte, o que
seria totalmente indesejável. Seria importante, também, que todos
passassem pela experiência de ser um cadeirante por pelo menos
uma semana, até que as tecnologias de exoesqueletos estejam
desenvolvidas e popularizadas.
A empatia, o convívio, a capacidade de fazer e de receber
críticas são benefícios insubstituíveis da escola tradicional. O
autoconhecimento, condição para a flexibilizar os comportamentos
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***
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190 | O pesadelo de Descartes: Do mundo mecânico à Inteligência Artificial
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