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Home > Colunas > Migalhas De Direito Médico E Bioética > Tecnologias Digitais Emergentes E O Direito Civil E Médico No
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Vivemos dias velozes e ultraconectados. Dias cuja única permanência é a mudança.
Está ocorrendo - e a pandemia acelerou isso - uma passagem, em múltiplos setores,
do universo físico-tradicional para o universo digital. Cremos que essas tendências se
acentuarão de modo ainda mais rápido, numa velocidade e descentralização sem
precedentes. Os avanços científicos dos próximos anos - e das próximas décadas - nos
surpreenderão de modo constante. O perfil do mundo que conhecemos se alterou, e
está constantemente se alterando. Se já achávamos que tudo mudava rápido, talvez
nos espantemos ainda mais com o caráter e o perfil das próximas mudanças.
É dever do civilista do século XXI estar atento às novas relações sociais. O direito deve
espelhar o nível evolutivo da sociedade em que se insere. Se essa sociedade muda
profundamente, o direito deve acompanhar as mudanças - de modo criativo e
responsável -, se quiser continuar a ter relevância. George Ripert - professor e reitor da
Faculdade de Direito de Paris - cunhou frase célebre na década de 40 do século
passado: "Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito".
É preciso ter aquele senso, já dizia Pontes de Miranda, para que o jurista não se
apegue, demasiado, às convicções que tem, nem se deixe levar facilmente pelo novo.
Nestas breves reflexões, a intenção é clara: trazer somente uma palavra inicial, de
contextualização, sobre esses temas. Apenas para que a leitora e o leitor percebam o
sentido - e a relevância - das mudanças que estão ocorrendo. Não é preciso muito
esforço de argumentação para evidenciar que são mudanças que têm profundo
impacto no direito privado (e não só nele).
Vale destacar que, o presente texto faz parte de uma edição especial de abertura
desta coluna, em 2023, e será dividido em Partes I e II. Propõe-se, nas linhas que
seguem, uma visão panorâmica dos impactos das tecnologias digitais emergentes
sobre o direito civil e médico, a partir das seguintes perspectivas: 1) Presença digital
também é presença; 2) Capitalismo de Vigilância e o corpo eletrônico.
Ademais, diante da possibilidade dos dados pessoais do morto serem coletados por
empresas, a partir de redes sociais, textos, e-mails, mensagens, imagens etc.,
permitindo-se reconstrução digital póstuma da voz e da imagem - a exemplo da
publicidade ocorrida por meio da reconstrução digital de imagem e da voz do falecido
pai do jogador Zico - , doutrinadores como Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Filipe
Medon, Fernanda Schaefer e Frederico Glitz têm ressaltado a necessidade de se
discutir a autodeterminação corporal após a morte e direitos relacionados à herança
digital, dando-se, ainda, um passo além, para refletir sobre a tutela da identidade
pessoal e valores existenciais do morto.9
Frank Pasquale relata evento ocorrido em 2008, nos Estados Unidos, em que os dados
de prescrição médica estavam sendo utilizados no mercado de seguros individuais,
pois as farmácias repassavam a relação de compras de remédios às seguradoras.12
Com a coleta de milhões de informações de pedidos, as empresas readequavam suas
políticas, a fim de excluir da cobertura algumas doenças e impor cobranças mais altas
do prêmio a determinadas pessoas. Ainda, pode-se cogitar a possibilidade de
empresas atribuírem determinadas condições médicas quando a pessoa faz algumas
pesquisas on-line sobre uma doença, preenche algum formulário e acaba associado a
essa doença em bancos de dados comerciais.
Surgem cada vez mais criativas formas de coleta e tratamento de dados pessoais, o
que renova, ininterruptamente, a necessidade de mecanismos para assegurar o direito
à autodeterminação informativa como instrumento de promoção da pessoa. Inclusive,
visando compatibilizar o assédio irrefreável das empresas que atuam com dados para
realizar práticas abusivas de mercado, há quem defenda que a responsabilidade civil
pela perturbação do sossego na Internet é um caminho viável. Por meio de uma nova
garantia fundamental chamada "habeas mente", concretizar-se-ia, segundo Arthur
Basan, os direitos à autodeterminação informativa e à privacidade.13
O marco da discussão sobre a proteção dos dados pessoais como direito fundamental
no ordenamento jurídico brasileiro é o julgamento pelo STF, em 2020, no âmbito de
cinco ações diretas de inconstitucionalidade - ADI 6.387, ADI 6.388, ADI 6.389, ADI
6.390 e ADI 6393 -, que suspendeu a eficácia da MP 954/2020, a qual autorizava a
transferência (para o IBGE) de toda a base de dados dos usuários de telefonia fixa e
móvel do Brasil. O Supremo, na oportunidade, reconheceu o direito fundamental à
proteção de dados (assinale-se que a decisão do STF foi anterior à vigência da Lei n.
13.709/18 - Lei Geral de Proteção de Dados). Posteriormente, o Congresso Nacional
aprovou a PEC incluindo a proteção de dados pessoais no rol do art. 5º da Constituição
Federal, reconhecendo de modo explícito sua qualidade de direito fundamental.
Assim, o art. 5º, inc. LXXIX, passou a dispor que "é assegurado, nos termos da lei, o
direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais". Frise-se, contudo,
que a comunidade jurídica já vinha anteriormente reconhecendo o direito à proteção
de dados como um princípio implícito no ordenamento brasileiro.
O art. 927 do Código Civil estabelece a regra geral pela qual "aquele que, por ato ilícito,
causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo". Contudo, esse é apenas um dos
sentidos da responsabilidade, e os demais encontram-se ocultos no texto legal.
Defende-se uma nova concepção da responsabilidade civil proativa no tratamento de
dados pessoais. É preciso ser superada a visão do ordenamento positivo como mero
impositor de sanções negativas, a partir de normas com funções protetoras ou
repressivas, adotando-se, assim, um espectro voltado a sanções positivas, isto é, trazer
incentivos para que o possível ofensor aja de forma a evitar ou mitigar o dano, a partir
do cumprimento das diretrizes estabelecidas na lei. Essas mudanças também ilustram
a evolução das legislações sobre proteção de dados em direção a um regime de
proteção de privacidade mais preventivo e proativo.15
Diante dessas breves reflexões, observa-se que todas essas são realidades fantásticas,
mas de certa forma, assustadoras. Não se pode negar que existem perigos para as
relações humanas. Razão, ciência, humanismo e progresso: ideais do Iluminismo que
são notadamente atemporais, conforme aponta Steven Pinker na obra "O Novo
Iluminismo: em Defesa da Razão, da Ciência e do Humanismo". Um olhar crítico
pondera: as inovações tecnológicas laçam luzes sobre a condição humana, o que
evidencia a necessidade de impulsionar o pensamento crítico e o processo contínuo
da descoberta e melhoria do conhecimento, bem como o aperfeiçoamento gradual
e/ou ressignificação dos institutos e normas. Isso tende a se tornar mais acentuado no
futuro. Gostemos ou não, novos paradigmas se aproximam e é essencial tentar
entendê-los.
__________
1 BARROSO, Luís Roberto. Sem data venia. Rio de Janeiro: História Real, 2020, p. 78.
4 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NEVES, Bruno Torquato de Oliveira. O direito ao esquecimento e a
decisão do Supremo Tribunal Federal na Tese de Repercussão Geral n. 786. Revista Brasileira de Direito
Civil - RBDCivil, v. 28, p. 193-206, abr./jun. 2021.
5 Sobre o tema, destacam-se os seguintes trabalhos de Michael C. Silva: BARBOSA, Caio César do
Nascimento; SILVA, Michael César.; BRITO, Priscila Ladeira Alves de. Publicidade ilícita e influenciadores
digitais: novas tendências da responsabilidade civil. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, 2019. SILVA,
Michael César.; BARBOSA, Caio César do Nascimento; GUIMARÃES Glayder Daywerth Pereira. A
responsabilidade civil dos influenciadores digitais na "era das lives". Migalhas de Responsabilidade Civil,
10/06/2020.
6 MASCARENHAS, Igor de Lucena; NOGAROLI, Rafaella. Ser visto para ser lembrado: a publicidade
médica em redes sociais como desencadeadora de Responsabilidade Civil. Migalhas de
Responsabilidade Civil, 24/05/2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-
de-responsabilidade-civil/366566/publicidade-medica-em-redes-sociais-como-responsabilidade-civil.
Acesso em 17 jun. 2022.
8 KFOURI NETO, M; NOGAROLI, Rafaella. Inteligência artificial nas decisões clínicas e a responsabilidade
civil médica por eventos adversos no contexto dos hospitais virtuais. In: BARBOSA, Mafalda Miranda;
BRAGA NETTO, Felipe; CÉSAR SILVA, Michael; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (coord.). Direito
digital e Inteligência artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 1079-1107.
9 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; MEDON, Filipe. A reconstrução digital póstuma da voz e da
imagem: critérios necessários e impactos para a responsabilidade civil. Migalhas de Responsabilidade
Civil, 19/08/2021. Disponível aqui. Acesso em 18 jun. 2022. SCHAEFER, Fernanda; FREDERICO, Glitz. A
existência da responsabilidade contratual post mortem: Breves notas a partir da série Upload. Migalhas
de Responsabilidade Civil, 21/10/2021. Disponível aqui. Acesso em 18 jun. 2022.
10 ZAMPIER. Bens digitais: cybercultura, redes sociais, e-mails, músicas, livros, milhas aéreas, moedas
virtuais. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2021, passim.
11 FORD, Roger Allan; PRICE, W. Nicholson. Privacy and accountability in black-box medicine, Michigan
Telecommunications & Technology Law Review, v. 23, p. 1-43, 2016.
12 PASQUALE, Frank. The black box society: the secret algorithms that control money and information.
Cambridge: Harvard University Press, 2015, p. 26-30.
13 BASAN, Arthur Pinheiro. Publicidade digital e proteção de dados pessoais. O direito ao sossego.
Indaiatuba: Foco, 2021, p. 185-201.
17 ROSENVALD, Nelson. O direito civil em movimento: desafios contemporâneos. 4. ed. São Paulo:
JusPodivm, 2022, p. 210-216.
19 SANTOS, Romualdo Baptista dos Santos. A responsabilidade digital na lei da telessaúde. O que é
isso?. Migalhas de Responsabilidade Civil, 7/02/2023. Disponível aqui. Acesso em 14 fev. 2023.
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ISSN 1983-392X