Você está na página 1de 12

NO AR: Migalhas nº 5.

564

COLUNAS
Home > Colunas > Migalhas De Direito Médico E Bioética > Tecnologias Digitais Emergentes E O Direito Civil E Médico No

Migalhas de Direito Médico e


Bioética
Tecnologias digitais emergentes e o Direito
Civil e médico no prelúdio de um admirável
mundo novo - Parte I
Felipe Braga Netto e Rafaella Nogaroli
segunda-feira, 20 de março de 2023
Atualizado às 08:51

Compartilhar

0 Comentar

Siga-nos no

A A
Vivemos dias velozes e ultraconectados. Dias cuja única permanência é a mudança.
Está ocorrendo - e a pandemia acelerou isso - uma passagem, em múltiplos setores,
do universo físico-tradicional para o universo digital. Cremos que essas tendências se
acentuarão de modo ainda mais rápido, numa velocidade e descentralização sem
precedentes. Os avanços científicos dos próximos anos - e das próximas décadas - nos
surpreenderão de modo constante. O perfil do mundo que conhecemos se alterou, e
está constantemente se alterando. Se já achávamos que tudo mudava rápido, talvez
nos espantemos ainda mais com o caráter e o perfil das próximas mudanças.

Medicina, transportes, comunicações, viagens espaciais (e novos conhecimentos


astronômicos), tudo isso ganhará cores revolucionárias e abalará velhas estruturas. Em
termos comportamentais, a sociedade busca estruturas menos assimétricas e
desiguais. Na dimensão jurídica, o conceito de vulnerabilidade ganha extrema
importância no direito privado do século XXI. Situações de assimetria e desvantagem -
seja econômica, etária, informacional, de gênero, racial, tecnológica - são levadas em
conta na solução dos conflitos. Sobretudo no campo da Medicina, nota-se o frequente
debate sobre vulnerabilidade, além da profunda modificação da relação médico-
paciente com o grande arsenal tecnológico: atendimentos médicos à distância
(telemedicina), robôs cuidadores, cirurgias robóticas, algoritmos de Inteligência
Artificial no diagnóstico e propostas de tratamento, cuidados do paciente pela
representação digital (medical digital twins), predições do quadro clínico com base em
dados genéticos, Internet das Coisas (IoT) e wearable devices (tecnologias "vestíveis")
na avaliação e monitoramento médicos constantes, análises clínicas e treinamento
médico nas realidades virtual e aumentada etc.

Com a inédita disrupção tecnológica, o desafio - em termos normativos - é tentar


regular todas essas inovações, observando os perfis dos direitos fundamentais.
Podemos dizer, sem exagero, que as possibilidades das tecnologias digitais
emergentes são infinitas e espantosas - e já fazem parte do nosso dia a dia. Luís
Roberto Barroso ressalta que a "conjugação da tecnologia da informação, da
Inteligência Artificial e da biotecnologia produzirá impacto cada vez maior sobre os
comportamentos individuais, os relacionamentos humanos e o mercado de trabalho,
desafiando soluções em múltiplas dimensões".1

É dever do civilista do século XXI estar atento às novas relações sociais. O direito deve
espelhar o nível evolutivo da sociedade em que se insere. Se essa sociedade muda
profundamente, o direito deve acompanhar as mudanças - de modo criativo e
responsável -, se quiser continuar a ter relevância. George Ripert - professor e reitor da
Faculdade de Direito de Paris - cunhou frase célebre na década de 40 do século
passado: "Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito".
É preciso ter aquele senso, já dizia Pontes de Miranda, para que o jurista não se
apegue, demasiado, às convicções que tem, nem se deixe levar facilmente pelo novo.

Nestas breves reflexões, a intenção é clara: trazer somente uma palavra inicial, de
contextualização, sobre esses temas. Apenas para que a leitora e o leitor percebam o
sentido - e a relevância - das mudanças que estão ocorrendo. Não é preciso muito
esforço de argumentação para evidenciar que são mudanças que têm profundo
impacto no direito privado (e não só nele).

Vale destacar que, o presente texto faz parte de uma edição especial de abertura
desta coluna, em 2023, e será dividido em Partes I e II. Propõe-se, nas linhas que
seguem, uma visão panorâmica dos impactos das tecnologias digitais emergentes
sobre o direito civil e médico, a partir das seguintes perspectivas: 1) Presença digital
também é presença; 2) Capitalismo de Vigilância e o corpo eletrônico.

1) Presença digital também é presença


Há, no mundo, quase 200 países e uma única internet. É inegável que a questão dos
limites e distâncias físicas perdem muito de sua importância, pois essa rede de
conexões - veloz e descentralizada - torna possível que estejamos presentes, diante
dos outros, mesmo que fisicamente não estejamos. A partir daí ocorre uma infinidade
de relações existenciais e patrimoniais, e o mundo interage de uma forma inédita. O
direito de acesso à internet a todos (Marco Civil Internet, art. 4º, I) é essencial à
construção de um Brasil menos desigual. A palavra de ordem, hoje, é inclusão digital.
Alguém sem internet, atualmente, é alguém condenado ao isolamento comunicacional
- e, em certo sentido, até social.

Nossas práticas cotidianas são indissociáveis da Internet. Somos hoje seres


progressivamente digitais, e isso se tornou algo tão cotidiano que sequer nos damos
conta. Só nos daríamos se perdêssemos de forma abrupta essa conexão digital, esse
mundo em rede. Virou rotina para quase todos nós a interação digital ao vivo em
reuniões, aulas e audiências judiciais etc. Inúmeras plataformas hoje oferecem esses
serviços - que com a pandemia adquiriu ares de essencialidade, sobretudo para
eventos profissionais (não por acaso as ações do Zoom dispararam na Bolsa
americana).

Todo esse fenômeno tem evidente repercussão jurídica, alterando o conceito de


presença. Hoje podemos estar diante dos outros, ainda que não estejamos fisicamente
diante deles. O "estar diante" assume outros significados e outras formas em nossos
dias. A presença não precisa mais ser física, no sentido tradicional. A presença digital
também é presença em termos jurídicos - e cada vez mais o será. Aliás, nas relações
de família, a doutrina tem enfatizado a importância dessas tecnologias (literalmente na
palma da mão) para permitir o contato, por som e imagem, a qualquer distância, pelo
tempo que desejarmos, sem muitos custos. Assim, por exemplo, o direito fundamental
à convivência entre filhos e pais pode ser exercido mesmo que um deles habite
fisicamente em outro lugar.

Além disso, na pós-modernidade, o conflito entre liberdade de informação e direitos


da personalidade tem ganhado uma especial tônica. Há uma nova realidade social,
ancorada na informação massificada na internet. Um dos danos colaterais da
modernidade líquida, afirmada por Zygmunt Bauman,2 diz respeito a atual
configuração do antigo conflito entre os espaços público e privado, ou seja, entre a
informação e a privacidade. O deslocamento para o ambiente público de atos que
eram eminentemente privados é hoje muito evidente e resulta do desenvolvimento de
tecnologias de comunicação e informação, as quais possibilitam uma rede de dados
ilimitada e de acesso público.

Em ambiente digital, assumem grande importância as discussões sobre os eventuais


danos sofridos pelos usuários da internet, bem como o direito de retirada de uma
informação ofensiva, a sua retificação ou, conforme o caso, a retratação por parte do
responsável. Além disso, Guilherme Martins afirma que o atual desenvolvimento
tecnológico tem alterado radicalmente o equilíbrio entre lembrança e esquecimento,
pois "a regra, hoje, é a recordação dos fatos ocorridos, enquanto esquecer se tornou a
exceção. (...) os usuários da Internet, cujos passos são sempre reconstruídos pelas
técnicas de rastreamento, acabam frequentemente privados da escolha quanto à
técnica de obtenção de dados e quanto às informações que serão colhidas a seu
respeito".3

Em 2021, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 1.010.606 (caso Aida


Curi), fixou entendimento de que o direito ao esquecimento é incompatível com
sistema constitucional brasileiro, mas excessos e abusos no exercício da liberdade de
expressão e da informação devem ser vistos caso a caso. A privacidade (como
fundamento do direito ao esquecimento) pode ceder a outros direitos e interesses, tais
como o direito à manifestação do pensamento, à livre circulação da informação e à
liberdade de imprensa. É necessária, como afirmam Maria de Fátima F. de Sá e Bruno
Torquato, "uma avaliação casuística, tendo em vista o tipo de informação, o quanto ela
atinge a vida privada do indivíduo e o interesse do público na informação".4

Outra questão a ser ponderada é a de que a evolução das tecnologias de informação e


comunicação tem aberto novas oportunidades para a interação entre fornecedores e
consumidores. A relação entre as marcas e seus públicos foi se adaptando ao
surgimento de plataformas digitais e redes sociais, enquanto novos canais de mídia e
produção de conteúdo. E, nesse cenário, algumas pessoas que se destacam em
ambiente digital pela influência que exercem em determinados nichos - conhecidas
como "influenciadores digitais" - começaram a utilizar suas redes sociais para divulgar
marcas e produtos.

São frequentes os episódios nos quais a atuação de influenciadores se configura como


publicidade ilícita (artigo 37, §2º, do CDC), na espécie "abusiva". Isso porque, como
ressalta Michael César Silva, essas pessoas induzem o consumidor a se comportar de
forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança, violando o princípio do
consumo com responsabilidade social, o qual determina que a publicidade não deve
induzir, de qualquer forma, ao consumo exagerado ou irresponsável.5

A Era Digital também trouxe dinamismo e agilidade na propagação de informações e


oportunidades para profissionais da saúde se conectarem com seus potenciais
clientes. Os novos padrões da publicidade, especialmente em mídias sociais, têm
gerado um grande desafio de adequação das técnicas de captação de pacientes no
mundo digital aos preceitos éticos e legais. Nesse cenário, verifica-se que o direito à
imagem é disponível (art. 20, do Código Civil), mas para os profissionais da Medicina há
limitação na esfera deontológica (art. 75, do Código de Ética Médica), de modo que,
mesmo diante de eventual autorização (licitude da conduta), o médico pode, em tese,
ser responsabilizado eticamente. Além disso, tem-se evidenciado o frequente debate
sobre os resultados postados pelos profissionais poderem ser interpretados como
promessa de resultado, com a consequente transformação da obrigação de meios em
resultado.6

Ainda no campo do direito médico, observa-se que a Telemedicina tem despontado


como via de amplo acesso à saúde e, ao mesmo tempo, denota-se um novo
significado do "estar presente", com profundo impacto na relação médico-paciente.
Antes de ser realizada uma teleconsulta, por exemplo, o paciente precisa receber - e
compreender - algumas informações importantes, tais como: benefícios, riscos,
indicação da plataforma utilizada e, ainda, comparação do atendimento médico
presencial em relação ao oferecido à distância. Ademais, o consentimento informado
(leia-se, livre e esclarecido) adquire certas peculiaridades, pois há necessidade de um
"duplo consentimento" do paciente, tendo em vista que, além do consentimento
referente ao tratamento e intervenção médica, o direito à informação adequada
engloba a ideia de consentir para o uso das novas tecnologias, a partir do
conhecimento de seu funcionamento, objetivos, suas vantagens, custos, riscos e
alternativas.7
Ressalta-se que há também alteração no processo do médico para obtenção do
diagnóstico nas teleconsultas, pois no exame físico, o profissional deixa de ser o
agente ativo e repassa ao paciente (ou representante legal) esse papel, por meio de
orientações para que o doente mesmo assista o médico na realização do exame e
resolva algumas questões solicitadas pelo profissional. Dada a complexidade de um
atendimento médico à distância, tem-se ressaltado a importância de o profissional da
saúde ter uma visão proativa, no sentido de pensar em como levar ao paciente as
informações necessárias e que ele realmente as compreenda, realizando
remotamente seu próprio exame físico a partir das orientações médicas passadas
durante a teleconsulta.

Eric Topol vislumbra um futuro breve em que as inovações tecnológicas mudarão


definitivamente a experiência hospitalar, tendo em vista a disseminação dos chamados
smart hospitals (hospitais inteligentes) e virtual hospitals (hospitais virtuais) ao redor do
mundo. Embora sejam necessárias as UTIs, salas de cirurgia e de emergência, o
quarto normal de hospital é altamente suscetível à substituição em algumas situações,
pelo conforto e praticidade do local de residência do paciente, especialmente idosos e
pessoas com doenças crônicas, que necessitam de constante monitoramento médico,
abrindo-se, assim, espaço para o surgimento dos virtual hospitals. O atendimento e
monitoramento médico é feito por Telemedicina e com apoio de algoritmos de
Inteligência Artificial, big data e as mais diversas tecnologias digitais emergentes.8

O "estar presente" na Medicina tem assumido, portanto, novas formas com os


atendimentos e monitoramento médicos à distância. Inevitavelmente, as repercussões
jurídicas são inúmeras. Merece especial atenção a questão da garantia de sigilo da
informação e privacidade do paciente pela ampliação da circulação, conexão e
tratamento de dados pessoais sensíveis, o que potencializa os riscos de vazamento ou
tratamento/compartilhamento irregular. Além disso, como visto, há de se considerar
um novo modelo de consentimento do paciente e a maior complexidade na aferição
da responsabilidade civil.

2) Capitalismo de Vigilância e o corpo eletrônico


Virou lugar-comum dizer que vivemos, hoje, na Sociedade da Informação - mas talvez
seja necessário ir além e afirmar que estamos diante da Sociedade da
Hiperinformação. Tamanho é o volume de informações disponível, tamanha é a
velocidade de sua transmissão. Trata-se de algo realmente sem paralelo na história
humana. A sociedade global vive um período no qual grandes players econômicos e
plataformas digitais têm amplamente utilizado dados pessoais para controlar e
decodificar comportamentos, no intuito de auferirem maior lucro, conforme explica
Shoshana Zuboff, no livro "A Era do Capitalismo da Vigilância".

Em decorrência do desenvolvimento tecnológico e da virtualização da vida no


ambiente da Internet - com o fluxo incessante de dados que seus titulares a todo
tempo acabam por transmiti-los nas tecnologias digitais emergentes sem sequer
perceber -, vislumbra-se um cenário da informação em direção à vigilância, que é
amplificada em uma "sociedade em rede". Informações e dados pessoais -
compreendidos como preferências, situações e opções da vida - são utilizados
indevidamente por empresas. Nesse contexto, a prática denominada profiling
("perfilamento") reflete uma faceta da utilização de algoritmos em grandes acervos de
dados (big data), que propicia o delineamento do perfil comportamental do indivíduo,
o qual passa a ser analisado e objetificado a partir dessas projeções.

A velocidade com que tecnologias disruptivas têm sido lançadas e a capacidade de


armazenamento e processamento de dados evidenciam os riscos da
hiperconectividade e propiciam lesões ao chamado corpo eletrônico ou digital. Há
também um cenário que propicia publicidades virtuais que utilizam de maneira
indevida os dados pessoais dos consumidores, promovendo ofertas direcionadas e
importunadoras, além de práticas comerciais como geopricing e geoblocking, as quais
empregam o uso de dados pessoais e dados de conexão dos consumidores para o
direcionamento da oferta de produtos e serviços no mercado de consumo. Conceitos
como o de Stefano Rodotà (corpo elettronico) ou de Roger Clarke (digital persona)
repercutem diretamente na aferição dos impactos jurídicos das tecnologias digitais
emergentes.

Inovações tecnológicas geram mudanças culturais. Uma delas - intensamente


presente, mas nem sempre notada - é a superdocumentação que existe em nossas
vidas. Todos andamos com câmeras e máquinas fotográficas potentes na palma da
mão (smartphones), lidamos cada vez mais com tecnologias de rede, como a
geolocalização, por exemplo. Aliás, parece claro que algoritmos e códigos-fonte têm,
no século XXI, função cada vez maior de regular comportamentos. Nesse contexto,
algo parece certo: os cidadãos não conseguem controlar, de modo efetivo, o fluxo de
dados pessoais atualmente (nestas primeiras décadas do século XXI). O fluxo de dados
é incessante e não conhece limitação geográfica. Os titulares de dados, nesse sentido,
são vulneráveis, ou talvez até hipervulneráveis.

Em uma sociedade na qual as informações se tornam a riqueza mais importante,


assevera Stefano Rodotà que a tutela da privacidade contribui de forma decisiva para
o equilíbrio dos poderes. Isso porque o fim da privacidade não representa apenas um
risco para as liberdades individuais, mas pode também conduzir ao fim da democracia.
A privacidade constitui um elemento fundamental da cidadania dos novos tempos, da
"cidadania eletrônica".

Ademais, diante da possibilidade dos dados pessoais do morto serem coletados por
empresas, a partir de redes sociais, textos, e-mails, mensagens, imagens etc.,
permitindo-se reconstrução digital póstuma da voz e da imagem - a exemplo da
publicidade ocorrida por meio da reconstrução digital de imagem e da voz do falecido
pai do jogador Zico - , doutrinadores como Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Filipe
Medon, Fernanda Schaefer e Frederico Glitz têm ressaltado a necessidade de se
discutir a autodeterminação corporal após a morte e direitos relacionados à herança
digital, dando-se, ainda, um passo além, para refletir sobre a tutela da identidade
pessoal e valores existenciais do morto.9

Essa discussão enquadra-se no contexto dos bens da personalidade como bens


digitais existenciais, conforme defende Bruno Zampier, em trabalho pioneiro no
Brasil,10 ao apresentar a ideia de um testamento digital (digital will) formulado a partir
de serviços disponibilizados por sites específicos na Internet, ou mesmo por um
testamento particular regido pelo Código Civil. O autor defende a possibilidade de
haver uma diretiva antecipada da vontade para este fim.
No setor da saúde, desenvolveram-se, nos últimos anos, diversas soluções de big data
e Inteligência Artificial em aplicativos de smartphones e wearable devices (tecnologias
"vestíveis") - para gerenciamento de medicamentos e monitoramento frequente da
condição física e mental, dieta e exercícios físicos -, que coletam inúmeras dados
pessoais e analisam sinais vitais, batimentos cardíacos, temperatura, humor, cognição,
atividade física etc. Por isso, um dos maiores receios com o implemento de novas
tecnologias na Medicina, segundo afirmam Nicholson Price e Roger Allan Ford,11
refere-se à privacidade e proteção de dados pessoais sensíveis, pois uma quantidade
imensa de informações sensíveis é coletada e, ainda, pode ser eventualmente
compartilhada ou tratada de forma irregular, o que aumenta o potencial de
vazamentos de dados e de danos mediatos e imediatos aos seus titulares.

Frank Pasquale relata evento ocorrido em 2008, nos Estados Unidos, em que os dados
de prescrição médica estavam sendo utilizados no mercado de seguros individuais,
pois as farmácias repassavam a relação de compras de remédios às seguradoras.12
Com a coleta de milhões de informações de pedidos, as empresas readequavam suas
políticas, a fim de excluir da cobertura algumas doenças e impor cobranças mais altas
do prêmio a determinadas pessoas. Ainda, pode-se cogitar a possibilidade de
empresas atribuírem determinadas condições médicas quando a pessoa faz algumas
pesquisas on-line sobre uma doença, preenche algum formulário e acaba associado a
essa doença em bancos de dados comerciais.

Surgem cada vez mais criativas formas de coleta e tratamento de dados pessoais, o
que renova, ininterruptamente, a necessidade de mecanismos para assegurar o direito
à autodeterminação informativa como instrumento de promoção da pessoa. Inclusive,
visando compatibilizar o assédio irrefreável das empresas que atuam com dados para
realizar práticas abusivas de mercado, há quem defenda que a responsabilidade civil
pela perturbação do sossego na Internet é um caminho viável. Por meio de uma nova
garantia fundamental chamada "habeas mente", concretizar-se-ia, segundo Arthur
Basan, os direitos à autodeterminação informativa e à privacidade.13

O marco da discussão sobre a proteção dos dados pessoais como direito fundamental
no ordenamento jurídico brasileiro é o julgamento pelo STF, em 2020, no âmbito de
cinco ações diretas de inconstitucionalidade - ADI 6.387, ADI 6.388, ADI 6.389, ADI
6.390 e ADI 6393 -, que suspendeu a eficácia da MP 954/2020, a qual autorizava a
transferência (para o IBGE) de toda a base de dados dos usuários de telefonia fixa e
móvel do Brasil. O Supremo, na oportunidade, reconheceu o direito fundamental à
proteção de dados (assinale-se que a decisão do STF foi anterior à vigência da Lei n.
13.709/18 - Lei Geral de Proteção de Dados). Posteriormente, o Congresso Nacional
aprovou a PEC incluindo a proteção de dados pessoais no rol do art. 5º da Constituição
Federal, reconhecendo de modo explícito sua qualidade de direito fundamental.
Assim, o art. 5º, inc. LXXIX, passou a dispor que "é assegurado, nos termos da lei, o
direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais". Frise-se, contudo,
que a comunidade jurídica já vinha anteriormente reconhecendo o direito à proteção
de dados como um princípio implícito no ordenamento brasileiro.

Por fim, vale um destaque: a polifuncionalidade da responsabilidade tem merecido


especial destaque na doutrina brasileira, especialmente por Nelson Rosenvald, no
contexto de tecnologias digitais emergentes e na atividade de tratamento de dados
pessoais, tendo em vista a tendência de irreparabilidade de danos à privacidade,
identidade pessoal, liberdade e igualdade, além de existir notável potencial de uma
imensa quantidade de pessoas ser atingida.14

O art. 927 do Código Civil estabelece a regra geral pela qual "aquele que, por ato ilícito,
causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo". Contudo, esse é apenas um dos
sentidos da responsabilidade, e os demais encontram-se ocultos no texto legal.
Defende-se uma nova concepção da responsabilidade civil proativa no tratamento de
dados pessoais. É preciso ser superada a visão do ordenamento positivo como mero
impositor de sanções negativas, a partir de normas com funções protetoras ou
repressivas, adotando-se, assim, um espectro voltado a sanções positivas, isto é, trazer
incentivos para que o possível ofensor aja de forma a evitar ou mitigar o dano, a partir
do cumprimento das diretrizes estabelecidas na lei. Essas mudanças também ilustram
a evolução das legislações sobre proteção de dados em direção a um regime de
proteção de privacidade mais preventivo e proativo.15

Em que pese os parâmetros de conduta dos agentes de tratamento de dados pessoais


elencados no art. 50 e 51 da LGPD não possuírem previsão de natureza cogente, há
parcela da doutrina brasileira que entende o seguinte: caso esses parâmetros sejam
adequadamente seguidos, deverão ser considerados para os fins de mitigação de
eventual responsabilização administrativa ou civil.16 Isso porque é tempo de
"alargarmos os horizontes e investirmos em uma função promocional da
responsabilidade civil, na qual a tônica será a aplicação das sanções premiais" - isto é,
para além de compensar, punir e prever danos, a responsabilidade civil deve
"criteriosamente recompensar a virtude e os comportamentos benevolentes de
pessoas naturais e jurídicas".17

No direito médico, com a recente publicação no Brasil da lei 14.510/2022, reforçou-se a


importância da governança de dados de saúde e, no âmbito da Telemática em Saúde
(subdividida, a partir da sua finalidade, em Telessaúde e Telemedicina), serem
implementadas práticas e estratégias voltadas para usar os meios telemáticos de
forma mais segura e eficaz. O princípio da responsabilidade digital, apontado como
princípio informador da Telessaúde no art. 2°, da lei 14.510/22 (art. 26-A, IX, da lei
8.080/90), direciona-se, segundo Fernanda Schaefer, "ao que se entende por
accountability, parte importante da governança de dados (plano ex ante no qual se
insere o compliance) e que amplia as zonas de incidência da responsabilidade civil
também para os parâmetros regulatórios preventivos".18

O objetivo é ampliar o espectro da responsabilidade, por meio da inclusão de


parâmetros regulatórios preventivos, com uma regulamentação voltada à governança
de dados, seja em caráter ex ante ou ex post. Nesse sentido, Romualdo Baptista dos
Santos é categórico: "a responsabilidade digital ou accountability digital mencionada
na Lei da Telessaúde se refere à observância às normas expedidas pelo órgão de
direção do Sistema Único de Saúde e às normas deontológicas baixadas pelo
Conselho Federal de Medicina, além das normas sobre proteção de dados pessoais, a
fim de evitar a ocorrência de danos. Se, a despeito de todos esses cuidados, o dano se
concretizar, o descumprimento dessas normas é determinante para configuração do
nexo de causalidade para efeito do dever de reparação."19
O princípio da accountability, ao estabelecer possíveis caminhos para conciliar a
desejável inovação com a necessária segurança jurídica, demonstra como as funções
preventiva e precaucional da responsabilidade civil orientam o desenvolvimento
tecnológico no setor da saúde, neste primeiro quartel do séc. XXI. Inclusive, José
Faleiros Jr. e Nelson Rosenvald explicam que a vertente ex post da accountability atua
como um guia para o juiz, norteando a identificação e quantificação das
responsabilidades, estabelecendo os remédios mais adequados e sua
gradação/dosagem para cada tipo de tecnologia e situação concreta, a partir do
reconhecimento da polissemia da responsabilidade civil. Nesse sentido, os
doutrinadores ponderaram que, se o causador do dano investe com efetividade em
compliance, pode-se cogitar a mitigação (redução equitativa) da indenização, numa
espécie de sanção premial por seguir determinados standards de conduta (parágrafo
único do art. 944 do CC).20

Ainda, nesse contexto, destaca-se a importante proposição de Hans Jonas, de uma


ética da responsabilidade (princípio da responsabilidade). Trata-se de uma tarefa
prognóstica e profilática em vista das consequências. A responsabilidade tem um
princípio interno, portanto, porque está ligado à capacidade de previsão da
consequência. Diante dos novos riscos e desafios tecnológicos, a responsabilidade é,
sobretudo, uma forma de evitar que o próprio dano se concretize. Em outras palavras,
não se trata de uma responsabilidade por uma ação já cometida, mas um
compromisso por fazer ou deixar de fazer algo. A responsabilidade se liga à ideia de
precaução em relação aos futuros efeitos ambivalentes da ação presente. De fato, a
função compensatória por si só já não é capaz de responder aos reclamos de tutela de
direitos fundamentais no contexto das tecnologias digitais emergentes.

Diante dessas breves reflexões, observa-se que todas essas são realidades fantásticas,
mas de certa forma, assustadoras. Não se pode negar que existem perigos para as
relações humanas. Razão, ciência, humanismo e progresso: ideais do Iluminismo que
são notadamente atemporais, conforme aponta Steven Pinker na obra "O Novo
Iluminismo: em Defesa da Razão, da Ciência e do Humanismo". Um olhar crítico
pondera: as inovações tecnológicas laçam luzes sobre a condição humana, o que
evidencia a necessidade de impulsionar o pensamento crítico e o processo contínuo
da descoberta e melhoria do conhecimento, bem como o aperfeiçoamento gradual
e/ou ressignificação dos institutos e normas. Isso tende a se tornar mais acentuado no
futuro. Gostemos ou não, novos paradigmas se aproximam e é essencial tentar
entendê-los.

Em breve, traremos a continuação do presente texto, com análise dos impactos de


novas tecnologias no direito civil e médico a partir de uma terceira e quarta
perspectivas: 3) O Admirável Mundo Novo da Inteligência Artificial e o ChatGPT; 4)
Metaverso e os Gêmeos Digitais (digital twins).

__________

1 BARROSO, Luís Roberto. Sem data venia. Rio de Janeiro: História Real, 2020, p. 78.

2 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.


3 MARTINS, Guilherme Magalhães. Direito ao esquecimento na era da memória e da tecnologia. Revista
dos Tribunais, v. 1019, p. 109-153, set. 2020.

4 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NEVES, Bruno Torquato de Oliveira. O direito ao esquecimento e a
decisão do Supremo Tribunal Federal na Tese de Repercussão Geral n. 786. Revista Brasileira de Direito
Civil - RBDCivil, v. 28, p. 193-206, abr./jun. 2021.

5 Sobre o tema, destacam-se os seguintes trabalhos de Michael C. Silva: BARBOSA, Caio César do
Nascimento; SILVA, Michael César.; BRITO, Priscila Ladeira Alves de. Publicidade ilícita e influenciadores
digitais: novas tendências da responsabilidade civil. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, 2019. SILVA,
Michael César.; BARBOSA, Caio César do Nascimento; GUIMARÃES Glayder Daywerth Pereira. A
responsabilidade civil dos influenciadores digitais na "era das lives". Migalhas de Responsabilidade Civil,
10/06/2020.

6 MASCARENHAS, Igor de Lucena; NOGAROLI, Rafaella. Ser visto para ser lembrado: a publicidade
médica em redes sociais como desencadeadora de Responsabilidade Civil. Migalhas de
Responsabilidade Civil, 24/05/2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-
de-responsabilidade-civil/366566/publicidade-medica-em-redes-sociais-como-responsabilidade-civil.
Acesso em 17 jun. 2022.

7 DANTAS, Eduardo. NOGAROLI, Rafaella. Consentimento informado do paciente frente às novas


tecnologias da saúde (telemedicina, cirurgia robótica e inteligência artificial). Lex Medicinae - Revista
Portuguesa de Direito da Saúde, Coimbra, n. 13, ano 17, p. 25-63, jan./jun. 2020.

8 KFOURI NETO, M; NOGAROLI, Rafaella. Inteligência artificial nas decisões clínicas e a responsabilidade
civil médica por eventos adversos no contexto dos hospitais virtuais. In: BARBOSA, Mafalda Miranda;
BRAGA NETTO, Felipe; CÉSAR SILVA, Michael; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (coord.). Direito
digital e Inteligência artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 1079-1107.

9 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; MEDON, Filipe. A reconstrução digital póstuma da voz e da
imagem: critérios necessários e impactos para a responsabilidade civil. Migalhas de Responsabilidade
Civil, 19/08/2021. Disponível aqui. Acesso em 18 jun. 2022. SCHAEFER, Fernanda; FREDERICO, Glitz. A
existência da responsabilidade contratual post mortem: Breves notas a partir da série Upload. Migalhas
de Responsabilidade Civil, 21/10/2021. Disponível aqui. Acesso em 18 jun. 2022.

10 ZAMPIER. Bens digitais: cybercultura, redes sociais, e-mails, músicas, livros, milhas aéreas, moedas
virtuais. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2021, passim.

11 FORD, Roger Allan; PRICE, W. Nicholson. Privacy and accountability in black-box medicine, Michigan
Telecommunications & Technology Law Review, v. 23, p. 1-43, 2016.

12 PASQUALE, Frank. The black box society: the secret algorithms that control money and information.
Cambridge: Harvard University Press, 2015, p. 26-30.

13 BASAN, Arthur Pinheiro. Publicidade digital e proteção de dados pessoais. O direito ao sossego.
Indaiatuba: Foco, 2021, p. 185-201.

14 ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas de Proteção de


Dados, 6/11/2020. Disponível aqui. Acesso em: 17 jun. 2022.
15 ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas de Proteção de
Dados, 6/11/2020. Disponível aqui. Acesso em: 17 jun. 2022.

16 ROSENVALD, Nelson. O compliance e a redução equitativa da indenização na LGPD. Migalhas de


Proteção de Dados, 9/03/2021. Disponível aqui. Acesso em: 17 jun. 2022.

17 ROSENVALD, Nelson. O direito civil em movimento: desafios contemporâneos. 4. ed. São Paulo:
JusPodivm, 2022, p. 210-216.

18 SCHAEFER, Fernanda. Telessaúde e responsabilidade digital na lei 14.510/22. Migalhas de


Responsabilidade Civil, 14/02/2023. Disponível aqui. Acesso em 14 fev. 2023.

19 SANTOS, Romualdo Baptista dos Santos. A responsabilidade digital na lei da telessaúde. O que é
isso?. Migalhas de Responsabilidade Civil, 7/02/2023. Disponível aqui. Acesso em 14 fev. 2023.

20 ROSENVALD, Nelson; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Accountability e mitigação da


responsabilidade civil na Lei Geral de Proteção de Dados. In: FRAZÃO, Ana; CUEVA, Ricardo Villas Bôas.
Compliance e políticas de proteção de dados. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 771-807.

Siga-nos no

EDITORIAS SERVIÇOS ESPECIAIS MIGALHEIRO


Migalhas Quentes Academia #covid19 Central do Migalheiro
Migalhas de Peso Autores dr. Pintassilgo Fale Conosco
Colunas Migalheiro VIP Lula Fala Apoiadores
Migalhas Amanhecidas Catálogo de Escritórios Vazamentos Lava Jato Fomentadores
Agenda Correspondentes Perguntas Frequentes
Mercado de Trabalho Eventos Migalhas Termos de Uso
Migalhas dos Leitores Livraria Quem Somos
Pílulas Precatórios
TV Migalhas Webinar
MIGALHAS NAS REDES

ISSN 1983-392X

Você também pode gostar