Você está na página 1de 134

Direito Internacional Público

Apontamentos das aulas teóricas do Professor Carlos Blanco de Morais

Ano letivo 2020/2021


Direito Internacional Público Mariana Esteves

2
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Aula 1 – 15/09/2020

Regente: Carlos Blanco de Morais

Equipa de Direito Internacional Público I:

• Lourenço Viena de Freitas


• Ana Fouto
• Diogo Santana Lopes
• Afonso Brás

Lecionação da cadeira feita através de duas formas:


1. Filosofia das relações internacionais
2. Direito Internacional Público Positivo: normas jurídicas que regem o Direito
Internacional:
a. Normas da ordem constitucional portuguesa – várias normas que dispõem
sobre DIP
b. Convenções: Convenção de Viena sobre os Tratados de 1969 e 1986; Carta
das Nações Unidas
c. Regras consuetudinárias
d. Atos jurídicos unilaterais dos Estados e das organizações internacionais
O DIP é um Direito em formação, que não é um Direito tão completo como o constitucional,
porque na ordem jurídica internacional não temos um único legislador, uma única
estrutura executiva ou judicial/policial para fazer cumprir coercitivamente o direito (um
dos principais problemas de DIP é a debilidade do elemento coercitivo: quem incumpre
regras de DIP nem sempre é objeto de sanções em razão desse mesmo facto).

O facto de se apresentar como um direito incompleto leva a um debate sobre se estamos


efetivamente na presença de um verdadeiro Direito ou de uma Moral internacional? Para o
regente estamos claramente no âmbito do Direito, na medida que é composto por normas
jurídicas, existem tribunais existem sanções. Além disso, as constituições dos Estados que
têm valor cogente reportam-se á validade e eficácia das normas jurídicas internacionais.

Perspetiva radicalmente positivista: se as constituições estivessem a falar de uma


Moral Internacional, não estabelecem as regras que estabelecem para o DIP, que é
reconhecido pelas constituições dos Estados

Programa:

• Cap.I. Introdução ao Direito Internacional Público e às Relações Internacionais


• Cap II. Fontes de Direito Internacional Público
• Cap. III. Direito dos Tratados Internacionais
• Cap.IV. As relações entre o Direito Internacional e a Ordem Interna dos Estados: o
caso do ordenamento jurídico interno português
• Cap.V. Os sujeitos de Direito Internacional: entidades com capacidade plena e
entidades com capacidade limitada; menção especial às organizações
internacionais(NU, EU e o Conselho da Europa e o Tribunal Europeu dos Direitos
do Homem)
• Cap. VI. A resolução pacífica de conflitos

Bibliografia:

• Principal:
3
Direito Internacional Público Mariana Esteves

o Curso de Direito Internacional Público – André Gonçalves Pereira e Fausto


Quadros
o Sumários desenvolvidos de Direito Internacional Público – Carlos Blanco
Morais
o Coletânea de textos de Direito Internacional Público
• Secundária:
o Direito Internacional Público: a ordem global do século XXI – Maria Luísa
Duarte
o Manuais do Professor Eduardo Correia Baptista

Aula 2 – 21/09/2020

Sumário: Análise genética e conceptual de DIP; distinção entre DIP e Direito Internacional
privado

Nascimento do DIP

Facto de haver uma sociedade internacional > onde há uma comunidade/um conjunto de
pessoas há a necessidade de fazer regras que disciplinem as suas relações
A partir do momento em que haja uma sociedade internacional composta por sujeitos de
direito internacional, os primeiros foram os Estados (estado clássico/ de
Vestefália/oriental/ estamental da Idade Média), impérios que constituíram um pré-
Estado, sendo entidades que eram comunidades humanas que se relacionavam entre si na
paz e na guerra, a partir do momento em que foram estabelecidas regras, muitas delas
orais, em tratados verbais ou escritos, em convenções, surgiram as premissas do DIP.

DIP é o conjunto de regras jurídicas que disciplinam/regem a sociedade internacional.

Há uma relação umbilical/histórica, atualmente negada por diversos autores anti-


estatistas ou anti-estadualistas, entre o Estado e o DIP. A entidade estadual hoje em dia é
diferente daquela que existia, por exemplo, nos impérios da Antiguidade Oriental e
Clássica e dos reinos medievais, realidades anteriores ao Tratado de Vestefália, onde os
chamados elementos típicos do Estado vestefaliano – povo, território, poder político
soberano – existiam num quadro imperfeito: havia território, mas o espaço e as fronteiras
encontravam-se imprecisamente delimitados; havia povo, embora nem todas as pessoas
que eram a população desses territórios fossem consideradas súbditos ou cidadãos; havia
poder político, embora complexo (relações antes da Guerra dos 100 Anos, entre o rei de
Inglaterra e o rei de França – relação vassalática/feudal), sendo que o poder político
soberano tal como hoje o conhecemos, a soberania una e indivisível que não pode ser
dividida, não existia neste período.

A sociedade internacional, sendo interestadual, a noção de Estado aqui falada é uma noção
no sentido histórico, antes do Tratado de Vestefália.

Depois de Vestefália, o Estado afirma-se de uma forma diferente: passa a ser uma
coletividade politicamente organizada, com um povo em sentido jurídico – população
agregada num território pelo vínculo da nacionalidade - , com um território delimitado e
com fronteiras precisas e com um pode político soberano, no interior dessa parcela
territorial.
Assim, os vínculos que existiam anteriormente ao Império, à Igreja e ao Papado
desaparecem e surge uma nova ordem internacional, uma ordem essencialmente
interestadual, e é nesse momento que se afirma o DIP com mais vigor.

4
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Mais tarde, depois da II Guerra Mundial, passamos a ter uma situação diferentes, em que
os Estados continuam, como unidades primárias e decisivas da sociedade internacional,
mas os Estados passam-se a agrupar muitas vezes em organizações internacionais,
associações de Estado que prosseguem fins de natureza comum.

Hoje em dia não temos já um único sujeito de DIP, que é o Estado, temos também as
organizações internacionais, para além de outros sujeitos de capacidade limitada, como
movimentos de libertação, movimentos emancipalistas, movimentos insurretos e
governos de exilio. Contudo, o Estado continua a ser componente indispensável daquilo
que é hoje em dia o DIP e a sociedade internacional, que é regida por esse direito, porque
as próprias organizações internacionais são associações de Estados. Mesmo que mais
tarde possa haver organizações que se transforem em federações, o DIP regeria normas
entre essas macro entidades e outros agrupamentos de Estado.
O elemento estadual está sempre subjacente à génese do DIP e é inseparável do mesmo.

Períodos de evolução do DIP – ligados a factos históricos particularmente


relevantes

Podemos conceber dois grandes períodos de evolução do DIP, estando cada um subdivido
em várias fases.
1. Período de formação do DIP:
a. Vai desde a Antiguidade Clássica ás Revoluções Norte-Americanas e
Francesas (período particularmente longo);
b. Neste período o DIP está num “limbo” entre o que será direito em sentido
próprio (regras jurídicas com força imperativa) e uma espécie de moral
pública (conjunto de convenções que os Estados deveriam seguir);
c. Primeira fase: A Antiguidade Clássica é um período mais incerto, em que
havia relações entre as comunidades pré-estaduais/Estados em sentido
histórico (ex.- os impérios, como Roma e os povos bárbaros), durante o
qual emerge, particularmente em Roma, a noção de jus gentium – Direito
das Gentes - , como primícia histórica daquilo que é o direito internacional.
d. Jus Gentium era algo confuso, porque abarcava várias coisas: direito
aplicado a estrangeiros; convecções, tratados ou acordos estabelecidos
com outros povos; mesmo dentro do Império Romano, relativamente a
fortalezas que se encontravam nas fronteiras com os povos bárbaros –
ideia de direito aplicável a estrangeiros, a relações externas ou a zonas
militares, fora do perímetro central de Roma, nas periferias imperiais.
e. Segunda fase diz respeito à Idade Média e à Idade Moderna, antes do
Tratado de Vestefália. Durante este período tínhamos um direito muito
eurocêntrico – centrada nos povos europeus. A comunidade de sujeitos de
Direito Internacional era essencialmente europeia, sem prejuízo de
integrar também outros povos poderosos, muitas vezes adversários da
Europa, como era o Império Persa ou Otomano. Há uma noção de que os
Estados cristão, formariam aquilo que era chamado a República Cristã,
onde emergia o papel relevante do Papado e também do Imperador,
embora o Sacro Império Romano-Germânico tivesse uma força muito
variada. O Papado funcionava na Europa como espécie de Organização das
Nações Unidas, porque determinava através das suas ramificações eclesiais

5
Direito Internacional Público Mariana Esteves

– as igrejas – o que eram guerras justas e guerras injustas. A guerra era


considerada uma atividade normal de exercício da política. O Papado
determinava exposições relevantes em matéria religiosa, deveria sancionar
monarcas que não acatassem certo tipo de ditames e diretrizes. As bulas
papais reconheciam os territórios a descobrir (Tratado de Tordesilhas –
paralelo entre Portugal e Espanha). Declarava a guerra santa, como o caso
faz cruzadas, e tinha um papel relevante no âmbito do Direito
Internacional, na medida em que reconhecia a independência de Estados.
f. Durante este período a noção de jus gentium, herdada do Direito Romano,
sofreu uma evolução devido à interferência da Escola Clássica Espanhola,
com Francisco Soarez e Vitória. O jus gentium foi transformado no jus
intergentes – direito entre os povos. Para esta reconstrução de um direito
não só estadual, mas entre povos, teve particularmente importância os
Descobrimentos. As viagens marítimas portuguesas e espanholas deram
origem ao conhecimento de novos territórios e Estados. Portugal teve uma
política especialmente detalhada na celebração de tratados com Estados e
potentados. Havia entidades consideradas mais ou menos soberanas entre
as quais Portugal e Espanha passaram a celebrar um conjunto de
convenções. O DIP começa a ganhar corpo como um conjunto de regras
jurídicas quer em presentes, quer entre tratados quer em costume – as
práticas e os costumes passaram a ser confirmação deste direito.
g. Terceira fase: Paz de Vestefália até ás revoluções norte-americana e
francesa. A Paz de Vestefália pôs fim a uma guerra religiosa na Europa, a
Guerra dos 30 Anos – guerra entre católicos e protestantes, que terminou
com dois tratados, conhecidos como as Paz de Vestefália, das quais
resultaram essencialmente três consequências:
i. Esmorecimento do poder da Igreja - A separação da Igreja e do
Estado, foi de algum modo, embora não de absoluto, consagrada.
Mesmo os grande teóricos do absolutismo da época, diziam que o rei
estava acima da Igreja e que esta deve obedecer ao monarca, porque
foi pela interferência da Igreja que se desencadearam guerras
devastadoras para a Europa, pelo que o poder papal tem aqui o seu
ocaso – o Vaticano deixa de atuar como uma espécie de pré-ONU,
passando a ter um papel mais apagado relativamente a Estados que
se afirmam com poderes fundamentalmente seculares;
ii. Afirmação da soberania dos Estado – Quebra fundamental das
relações vassaláticas, com a afirmação de que o poder soberano
estava nos soberanos. A soberania implica, em grande parte dos
Estados, não ingerência nos seus assuntos internos. Foi consagrada
a ideia de que antes de conflitos armados: a guerra continuou a ser
uma importante componente do Direito Internacional, mas o papel
da diplomacia para evitar conflitos armados foi afirmado.
iii. Afirmação de um direito internacional - Afirmação de um conjunto
de regras que estabelecessem as relações entre os povos na paz e
a guerra; Hugo Grotius teve um papel fundamental na criação do
DIP com uma obra em que distinguiu aquilo que é o direito da paz
e aquilo que é o direito da guerra, noção que se antevê
praticamente intacta até à criação da ONU (atualmente já não se
pode falar da existência de um direito da guerra em sentido
próprio); a partir de Grotius surgem as escolas positivistas de DIP,

6
Direito Internacional Público Mariana Esteves

que recolhem essencialmente as regras convencionais e sobretudo


os tratados – cria-se um direito de tratados – e o DIP passa a ganhar
formar, como um jus intergentes.

2. Período de afirmação e de desenvolvimento do Direito Internacional


a. Vai desde as revoluções liberais até ao tempo presente, tendo três fases;
b. Primeira fase: Início da Idade Contemporânea, com as revoluções liberais e
prossegue até ao fim da I Guerra Mundial. Surge a noção de DIP que é uma
criação de Jeremy Bentham (An Introduction to the Principles of Morals and
Legislation). Reafirma-se a ideia de Estado soberano nascida em Vestefália.
Após as revoluções liberais, a independência das colónias espanholas da
América e do Brasil, dá origem a um princípio de autodeterminação dos
povos – os povos, com elemento diferenciais entre si, têm o direito de
escolher livremente o seu destino (quando há uma situação colonial, os
povos têm o direito de escolher pela independência – ocorreu nas colónias
espanholas através de guerras internas e no Brasil através de D. Pedro ter
declarado unilateralmente a independência do Brasil). Surge a ideia de que
as relações jurídicas internacionais se estabelecem entre Estados soberanos
e não entre casas reais (o Estado é que representa um conjunto de interesses
e não apenas os monarcas, que apenas são titulares do poder do Estado). No
século XIX falava-se muito em comunidades das nações civilizadas, que se
restringiam praticamente à Europa. Com a independência dos EUA, com a
afirmação a Oriente de certas potências, a comunidades das nações
civilizadas alarga-se aos novos Estados americanos, ao Império Otomano e
á Persa, mas também à China e ao Japão – sociedade internacional menos
euro-cêntrica. A afirmação extrema da soberania dos Estados (consequência
de Vestefália) dá origem a uma certa habituação à guerra - “a guerra é a
continuação da política por outros meios”. Voltaram a crescer guerras de
grande intensidade na Europa – a unificação alemã fez com a Alemanha
tivesse que derrotar um conjunto de Estados vizinhos para se impor num
grande Estado representativa dos povos germânicos. Esta situação originou,
já no século XX, uma guerra de grande escala, a I Guerra Mundial – “os
Estados arrastavam-se como sonâmbulos para um conflito armado que não
fazia sentido” – surgindo várias alianças entre os Estados, muito perigosas
por se encontrarem subordinadas à ideia de que uma agressão contra um
Estado constitui uma agressão contra todos. Depois do termo da I Guerra
Mundial e com a assinatura do Tratado de Versalhes, com a vitória de
Inglaterra, França e EUA, criou-se uma organização internacional chamada
Sociedade das Nações, cujo objetivo era evitar a eclosão de outros conflitos
da mesma escala e da mesma natureza. As organizações internacionais já
tinham começado a existir no século XIX (associações de Estados com
interesses comuns que celebravam tratados de natureza alfandegária e
fluvial). A SN teve como objetivo a criação de uma organização para-
universal ou global destinada a dirimir conflitos e garantir a paz, sendo
secundada por um conjunto de outro tipo de organizações internacionais
destinadas a fomentar a cooperação. Durante este período aquilo que
sucedeu foi que não se conseguiu evitar a II Guerra Mundial: a SN decidia
por unanimidade, pelo que era difícil condenar um Estado por uma guerra
de agressão (ex. – Itália vs Europa; Japão vs China); houve problemas de
ratificação desta convenção no senado dos EUA; a Rússia não integrou a

7
Direito Internacional Público Mariana Esteves

organização. A paralisia da SN não evitou precisamente que a Alemanha


tivesse desencadeado guerras de agressão a outros Estados, com a sua
aliança com o Japão e a Itália. Logo depois do termo da II Guerra Mundial há
a criação das Nações Unidas, que tenta substituir a SN como estrutura de
domínio internacional. Quando foram criadas logo após o pós-guerra, não
eram as tais Nações Unidas, que significavam todas as nações do mundo
conglomeradas neste projeto, tratando-se apenas das nações vencedoras da
II Guerra Mundial – EUA, França, Reino Unido e União Soviética.
Posteriormente, o tratado abriu-se a todos os Estados, mesmo àqueles que
foram derrubados na II Guerra Mundial, pelo que as Nações Unidas se
transformaram numa organização multilateral de fins gerais e para-
universal, tendo como objetivo central a garantia da paz internacional, que
todavia não se esgotava nesta mesma tarefa – desenvolvia outro tipo de
atividades, como atividades de cooperação económica, social e cultural, bem
como a tutela e defesa dos direitos do homem. Com a criação das NU sucede-
se a criação do movimento de autodeterminação dos povos, nos anos 50, 60
e 70, dos povos coloniais, que se encontravam em colónias das potências
europeias. A partir dos anos 50 há um movimento emancipalista para a
independência de povos afro-asiáticos, que começa na Ásia e termina
fundamentalmente em África. Portugal entendeu que não tinha colónias,
mas antes províncias ultramarinas, pelo que foi o ultimo império
ultramarino. Durante o Estado Novo (período de 14 anos) entendeu-se que
essa independência não era genuína, que os movimentos que lutavam contra
o Estado português eram fomentados/apoiados por potências estrangeiras,
pelo que as forças armadas foram enviadas para Angola, Moçambique e
Guiné, para lutar contra esses movimentos ditos emancipalistas. A situação
só terminou com a Revolução de 25 abril de 1974. Durante este o período o
DIP tem um grande desenvolvimento, surgindo novos sujeitos de direito
internacional, como os movimentos de libertação, governos do exilio, até o
individuo foi considerado sujeito de DIP, na parte respeitante ao facto de ser
protegido por normas internacionais (multiplicam-se os sujeitos de direito
internacional público) e passando a ter uma cariz mais positivo, havendo
várias escolas de DIP: a escola francesa, na qual o maior expoente é Nguyen
Quoc Dinh – o DIP deve ser reconduzido às suas fontes, que devem ser
aplicadas e garantidas jurisdicionalmente, tendendo a ser um direito
completo, com valorização das chamadas fontes formais (costume, tratados
e atos jurídicos unilaterais); a escola anglo-saxónica , sendo que no Reino
Unido e nos EUA vigora o princípio da common law, onde o direito para lá
dos elementos escritos e positivos é também ele construído pelos tribunais,
valorizando muito a jurisprudência, o case law, a força do precedente. A
partir do momento em que se criam tribunais internacionais, com as Nações
Unidas cria-se o Tribunal Internacional da Justiça que ocupa o lugar do
Tribunal Permanente de Justiça Internacional (que nunca funcionou), criam-
se tribunais arbitrais, criam-se tribunais ad oque e autores como Brown Lee
acabam por ser expoentes deste DIP essencialmente reconduzido a decisões
jurisprudenciais. Hoje em dia, mesmo os seguidores de Quoc Dinh, fazem um
mix das duas realidades: o DIP reconhece-se através das fontes positivas,
sem prejuízo do relevo da jurisprudência, porque é muitas vezes pela
interpretação das normas positivas feitas pelos tribunais que se chega ao
sentido das normas tal como elas são de aplicar.

8
Direito Internacional Público Mariana Esteves

c. Segunda fase: No plano das relações jurídicas internacionais coincide com a


Europa do pós-guerra e com o bipolarismo internacional. O mundo divide-
se entre países ocidentais democráticos, agrupados na Nato e nos seus
aliados latino-americanos, bem como alguns estados asiáticos e africanos
que dela não faziam parte, e, por outro lado, os países comunistas, a União
Soviética que criou o Pacto de Varsóvia, com os Estados satélites de Leste
que ocupou. Havia a concentração da tensão entre dois bloco antagónicos,
sem prejuízo de haver Estados que fugiam um pouco a esta lógica (ex. – a
China que era um Estado comunista fez questão de se autonomizar em
relação à União Soviética; os chamados 77 que era o bloco afro-asiático que
era um bloco autónomo, mas tinha uma relação forte com a União Soviética
nomeadamente no tocante a questões sobre a autodeterminação dos povos
sujeitos a domínios ultramarinos de Estados europeus). Era uma sociedade
bipolarizada, havendo um polo nuclear de cada lado – de um lado os EUA,
Inglaterra e França, e do outro, a União Soviética. Não houve um terceiro
conflito mundial, devido à politica de equilíbrio pelo terror – cada bloco
sabia que conseguia destruir o outro bloco em minutos, pelo que havia uma
politica de dissuasão. Os conflitos entre estes blocos faziam-se
essencialmente através da espionagem e do domínio de povos do Terceiro
Mundo: os EUA sofreram uma derrota importante quando perderam o
Vietname, bem como territórios dos seus aliados em África; na parte final do
regime soviético a Rússia perdeu o controlo do Afeganistão – os conflitos
travavam-se na periferia. Em termos de cooperação internacional isto tinha
as suas consequências: paralisia parcial da ONU. A ONU conseguiu liderar a
agenda da descolonização, mas não consegui evitar várias guerras israelo-
árabes, as suas decisões foram ineficazes, sendo estas um exemplo dos
conflitos periféricos entres os EUA e a União Soviética. A ONU só quase não
paralisava graças ao veto: resoluções condenatórias de atos de agressão
cometidos pela União Soviética eram parados pelo veto soviético, que
significava a possibilidade dos membros permanentes do Conselho de
Segurança, entre os quais a União Soviética e, mais tarde, a China popular,
os EUA, a França e o Reino Unido tinham este direito de veto, que era
bloquear deliberações do Conselho de Segurança sobre questões
substanciais – o veto permanente bloqueava a intervenção do Conselho.
d. Terceira fase: Ocorre com um importante elemento histórico, a queda do
muro de Berlim. Este muro significava a divisão internacional entre o leste
e o oeste, ou seja, entre o mundo comunista e o universo de livre mercado e
democrático. Passou a haver um movimento de revoltas em vários Estados
do leste europeu (Alemanha, Roménia, República Checa, mutações na
Hungria) e, mais tarde, devido à política dissuasora de Gorbachev, a União
Soviética foi afetada, desintegrando-se em 1991 e dando origem a uma
pluralidade de Estados (a Rússia separou-se da Ucrânia, da Bielorrússia, do
Cazaquistão, dos estados caucasianos), houve uma fragmentação daquilo
que era o Império Soviético, mas também do universo comunista europeu –
a mesma coisa não aconteceu com a China - , terminando de imediato com o
antigo bipolarismo e entrámos transitoriamente (terá demorado cerca de
uma década) num mundo unipolar: a única grande potência era os EUA.
Houve por parte das Nações Unidas a ideia-mito de que se tinha criado uma
nova ordem internacional pacífica. Assim, as Nações Unidas podiam agir em
conflitos periféricos com tropas próprias – os capacetes azuis - , fornecidas

9
Direito Internacional Público Mariana Esteves

pelo único membro competente, como braço armado, os EUA: uma ordem
internacional com um braço secular armado que seria a única
superpotência. Contudo, esta nova ordem internacional foi efémera: houve
várias intervenções das Nações Unidas em Estados que estavam a
desintegrar (ex. - Somália) e intervenção de tropas americanas. A partir daí
a ideia dos EUA serem um braço secular desinteressado da ONU não
funcionou. Com o fenómeno do terrorismo internacional – 2001: ataque às
torres gémeas, intervencionismo americano nas áreas Afeganistão, Iraque e
Estados Árabes – deu origem a uma realidade diferente: deixou de haver
nem bipolarismo, nem unipolarismo, passando a haver um mundo
multipolar. A Rússia reafirmou os seus direitos regionais e anexou a
Crimeia, fazendo a sua própria política na Síria que se desintegrava. Os EUA
fizeram a sua própria política, bem como a Europa, no mediterrâneo, com
intervenções várias. A Turquia está a atuar no mediterrâneo atualmente
para consagrar um mar turco, com o apoio da Líbia e de outros movimentos
numa parte da Síria. O Irão e a Arábia Saudita degladiam-se numa série de
conflitos.

Este multipolarismo tem enfraquecido o direito internacional, na medida em que se passou


a uma fase intervencionista e unilateralista, em que os Estados intervêm militarmente fora
do contexto das regras especificas das ONU – ex: intervenção da NATO no Kosovo;
intervenção anglo-americana no Iraque, a sul; anexação pela Rússia da Crimeia; a
intervenção de vários países, nomeadamente Estados europeus, na Síria.

Voltou-se a uma certa perigosa anarquia das relações internacionais, com o


enfraquecimento da ONU. As nações unidas neste momento, devido à tensão entre Estados
e do uso do veto voltaram a ser, quase como no tempo da Guerra Fria, uma organização um
pouco paralisada.

Esta terceira fase do segundo período representa um certo enfraquecimento do DIP geral
ou comum, tendo como contraponto o reforço do Direito Internacional Público Especial,
fortalecendo-se organizações internacionais de tipo regional: a organização dos Estados
americanos, a União Europeia, a Organização de Segurança e Cooperação na Europa, o
Conselho da Europa, a ASEANE, o Mercosul. Criam-se fundamentos para que os Estados se
grupem em função de interesses geográficos e económicos, sendo que estas organizações
em que eles se agrupam, passam a relacionar-se entre si como sujeitos de direito
internacional – fenómeno do regionalismo internacional (regionalismo ligado a
organizações internacionais defensoras de interesses comuns, muitos dos quais têm uma
base geográfica).
Esta terceira fase é uma fase de blocos regionais, onde o DIP de facto é importante, porque
parte destes blocos tem os seus próprios tribunais (Organização dos Estados americanos,
Conselho da Europa, tribunais da ONU), havendo uma maior intervenção de um direito
internacional público especial. É nesta fase que nos encontramos.

Definição conceptual de DIP


Quanto aos critérios tradicionais de definição:

• Sujeitos – O DIP seria definido como o conjunto de normas jurídicas que regulariam
as relações entre Estados (o DIP é um direito um pouco estatocrático). Hoje em dia

10
Direito Internacional Público Mariana Esteves

não o podemos definir assim, uma vez que atualmente o DIP envolve relações entre
sujeitos de DIP que não são apenas os Estados (ex. – organizações internacionais).
O critério subjetivista que atende essencialmente aos sujeitos poderia definir DIP, já
não como o direito que regula relações entre Estados, mas o direito que regula
relações entre sujeitos de direito internacional. Contudo, esta definição presente no
caso Lótus, no TJI, é insuficiente, porque a pergunta que se faz é “quem são esses
sujeitos?”. É uma definição que claudica na identificação do elemento subjetivo, que
afinal é o epicentro da mesma. Esta definição foi confrontada com outras, por
exemplo, com uma, também já superada, que atende ao critério do objeto.
• Objeto – O DIP seria o conjunto de normas jurídicas que regularia questões ou
matérias especificas da sociedade internacional, matérias intrinsecamente
internacionais (caso Nottenbohm, do TIJ). É uma definição considerada insuficiente,
pois questiona-se quais são hoje em dia as matérias intrinsecamente e naturalmente
internacionais. Temos visto ultimamente que matérias que eram próprias do direito
interno, como é o caso do direito penal (direito internacional penal), matéria
financeira (tratado orçamental europeu), matéria de segurança (tratados de
cooperação). Esta definição é ainda menos relavante do que a anterior.
• Fontes – Critério formalista defendido pelo professor André Gonçalves Pereira. O
DIP seria o conjunto das normas jurídicas que são produzidas e reveladas pelos
processos próprios da sociedade internacional. Há efetivamente fontes que são
especificas e próprias da sociedade internacional, com um processo de revelação
diferente daquilo que acontece com as normas de direito interno. Sendo verdade,
falta aqui qualquer coisa para CBM. Estas normas destinam-se a regular o quê? Falta
um objeto. Pegando em subsídios dados pelo professor André Gonçalves Pereira,
aditamos a esta definição um outro critério: o critério estrutural.
• Estrutural – O DIP é o conjunto de normas de direito, produzidas por fontes próprias
de direito internacional (processos próprios de produção e revelação
intrínsecos/inerentes á sociedade internacional) e que se destinam a reger as
relações jurídicas internacionais, as quais são de três tipos.

Decomposição da definição com base no critério estrutural:

• Fontes de direito internacional – São modos de produzir, de revelar e de justificar


ou fundamentar normas jurídicas internacionais que regem a sociedade
internacional. Temos como fontes próprias:
o Grandes princípios de direito internacional – São fontes que relevam, sendo
que alguns destes são comuns ao direito interno, havendo outros específicos
do direito internacional;
o Tratados – Não existe no direito interno;
o Costume internacional – Tendo elementos comuns com o costume do direito
interno, este releva pouco nos estados romanísticos;
o Atos jurídicos unilaterais dos Estados e das organizações internacionais;
o Subsidiariamente considera-se a jurisprudência e a doutrina, mas isso não
são fontes que podemos chamar fontes primárias e formais

As fontes formais e materiais, ou seja, as fontes primárias do DIP têm especificidade


entendidas, integrando necessariamente o conceito de definição de DIP.

• Sociedade internacional – Não é uma noção fácil, na medida em que muitas vezes se
usa indiferenciadamente as expressões sociedade e comunidade internacional. Em
termos rigorosos, Tunisse, por exemplo, disse que a sociedade internacional era
11
Direito Internacional Público Mariana Esteves

uma realidade mais ampla do que comunidade – a comunidade seria uma espécie
integrada no género mais amplo que é a sociedade. A sociedade faz parte de uma
associação inorgânica de pessoas coletivas internacionais, ou seja, pessoas jurídico-
públicas que estabelecem entre si relações jurídicas de natureza comum –
organizações internacionais constituídas no seu âmbito onde esses Estados se
encontram agrupados, para tratar de assuntos que, no fundo, são de interesse geral
da comunidade internacional, ex. : ONU (Estados adversários ou, por vezes,
inimigos, mas que acabam por estabelecer entre si relações de cooperação ou não-
agressão num contexto dessa mesma sociedade), OMS. Uma comunidade é uma
realidade distinta, significando que os estados que integram uma comunidade têm
uma relação de pertença, bem como elementos identitários que os aproximam num
projeto não só de cooperação, mas de valorização e promoção daquilo que é o seu
tronco político, cultura, económico ou outro de natureza comum. É algo de mais
coesivo do que uma sociedade internacional, veja-se o caso da União Europeia:
começou como Comunidade Económica Europeia, mas é efetivamente uma
comunidade de polos europeus que têm elementos aglutinadores que projetam
aquilo que é um programa coletivo. a noção que nos interessa mais é a de sociedade.
Muitas vezes – aconteceu no parecer no TIJ, no parecer sobre a Namíbia, em 1971 –
são as próprias organizações internacionais que usam indiferenciadamente os dois
conceitos, utilizando o conceito de comunidade internacional querendo referir-se à
sociedade internacional – em rigor distinguem-se, mas é comum haver uma
indiferenciação na denominação destes dois conceitos. Diz-nos particularmente
importância o conceito de sociedade, que diz respeitos aos sujeitos de direito
internacional público existentes no âmbito das suas relações, mesmo que estas
sejam conflituais e antagónicas.
• Relações jurídicas internacionais – Elemento muito importante, sendo estranho que
o professor AGP não o tenha integrado na sua definição, tendo sido ele pioneiro. O
DIP visa estabelecer normas que regem as relações jurídico-internacionais de
carácter público, que envolve as relações estabelecidas entre os diferentes sujeitos
de direito internacional, ou seja, que têm capacidade para estabelecer relações
jurídicas internacionais (tese consta no manual do professor André Gonçalves
Pereira), as quais se dividem em três tipos:
o Relações de subordinação – Há um sujeito de direito internacional que se
encontra posicionado numa plataforma supra-ordenada em relação a outro,
ou seja, um sujeito encontra-se numa posição de domínio em relação a
outros sujeitos. As relações jurídicas internacionais são relações que se
estabelecem entre sujeitos de direito internacional. Relações típicas de
subordinação, em sentido histórico, eram os Estados vassalos (ex. - Turquia)
e os protetorados de direito internacional (o estado protetor é um Estado
que exerce um certo domínio sobre o Estado protegido, que se traduz no
facto do Estado protegido, no âmbito das relações internacionais e da defesa,
necessitar, muitas vezes, de autorização ou ratificação do Estado protetor
para a prática de certo tipo de atos atinentes - esfera de segurança, entre
outros). Protetorados em sentido próprio em sentido próprio, geralmente
havia tratados de protetorado, a permuta desta intervenção era o facto do
Estado protetor, em caso de agressão ao Estado protegido, assumia o
compromisso de proteger este último (ex. – protetorado espanhol e francês
em Marrocos; protetorados britânicos nos Estados Árabes do Golfo, que já
terminaram; até 1985, sultanato do Brunei na ilha do Brunei; protetorados

12
Direito Internacional Público Mariana Esteves

que não são chamados como tal, mas que o são juridicamente, como a Bósnia
Herzegovina)
o Relações de reciprocidade – Não tem uma posição diferencial de supra
ordenação ou infra ordenação. São relações horizontais, equiordenadas
entre sujeitos de direito internacional, em regra, Estados ou organizações
internacionais, que visam satisfazer os seus interesses recíprocos. O direito
internacional serve para os Estados defenderem os seus interesses próprios,
sendo que os interesses do Estado por vezes são diferentes, pelo que não é
comum existir aquilo a que se chamam “trade offs”, ou seja, compensações
mútuas. Tratados bilaterais, ou seja, tratados bilaterais celebrados entre
dois Estados, acomodam estas relações (podia originar situações de
assimetria de domínio).
o Relações de coordenação – Relações horizontais entre Estados, que visam
satisfazer interesses coletivos. Por vezes, os Estados têm os seus interesses
próprios e têm que abdicar deles para salvaguardar os interesses
comuns/coletivos, tais como a cooperação económica, tratamento
humanitário de presos de guerra, questões relacionadas com a criação de
tribunais internacionais para a Comissão de crimes de guerra, crimes contra
a paz e crimes contra a humanidade (fins inerentes à própria sociedade
internacional e que são regidos por tratados multilaterais).

Por vezes, existem situações duvidosas em que nos perguntamos, perante um tratado, se as
relações dominantes são de cooperação ou de reciprocidade? Na dúvida, se o objeto da
relação for comum àquilo que são os interesses gerais da comunidade internacional,
diremos que estamos a tutelar relações jurídicas de coordenação. Veja-se o caso sobre o
tratamento de prisioneiros de guerra (regras de Direito Humanitário, que pode ser
considerado direito imperativo), defesa dos direitos do Homem e salvaguarda do Direito
Humanitário, nessa base prevalece uma relação jurídica de cooperação, embora se possam
acomodar os interesses específicos de cada um dos Estados envolvidos.

Problema da juridicidade do DIP (aprofundada no manual; interesse teórico)


As regras DIP geral ou comum, muitas vezes não são acatadas pelos Estados, havendo
problemas relacionados com aquilo que é um dos elementos essenciais do Direito que é a
coercibilidade – muitas vezes os Estados incumprem e não há meios para os fazer cumprir
essas regras.
Esse aspeto, a descentralização das fontes, a grande dependência dos Estados relativamente
ao cumprimento das regras internacionais leva a que se equacione a questão da
juridicidade.

Tem o DIP verdadeira natureza jurídica? Há vários posicionamentos doutrinários:

• Posições puramente negacionistas


o Escola Realista, que nos EUA é bastante importante, tendo também outros
importantes expoentes. Vêm o DIP como uma “cobertura” daquilo que são
as relações de força internacional. Aqueles que são os vencedores ou as
potências dominantes, constroem regras de direito à sua medida. DIP vai
evoluindo, no que toca sobretudo aos seus princípios e regras gerais, em
razão daquilo que é ditado pelas forças políticas e estaduais dominantes.
Esta escola não deixa de ter a sua razão. CBM, no plano das relações

13
Direito Internacional Público Mariana Esteves

internacionais, é um neorrealista, na media em que, avaliando as relações


internacionais, verifica-se que as mesmas são ditadas por entidades
estaduais ou parestuadais dominantes – ex: problema das guerras justas ou
injustas; reconhecimento de descobertas marítimas feitas por bulas papais,
reconhecimento de Estados (papado dominante na altura), DIP no âmbito
da conferência de Berlim sobre a questão da partilha de zonas de África
(potencias dominantes: Reino Unido e Alemanha), direito da descolonização
resultou da aliança entre os estados socialistas/comunistas e bloco afro-
asiático (aprovação de uma série de resoluções das Nações Unidas), Nações
Unidas foram concebidas pelas potências vitoriosas da II Guerra Mundial.
Não se pode dizer que todo o DIP seja produto dessas relações de força,
sobretudo na vasta na mó de relações de reciprocidade e de coordenação,
mas essa é uma realidade. Mas isto não serve para negar a existência de um
direito. Se essas potências dominantes resolveram, através de um certo
equilíbrio, criar um conjunto de regras, essas regras, desde que sejam
acatadas pelos outros Estados, destinam-se a imperar e a produzir os seus
efeitos jurídicos. O que se pode dizer é que, muitas vezes, os Estados que
criam as regras não as cumprem. Mas isso tem que ver com o problema da
coercibilidade do Direito Internacional, que é sempre o seu ponto fraco,
sendo que esse não é só um apanágio da Escola Realista. Esta diz que como
resulta de relações de força, muitas vezes, não cumprem as regras. Mas ás
vezes cumprem (ordinariamente): o não cumprimento ocorre normalmente
na parte relacionada com o uso da força. As posições realistas servem para
compreender relações internacionais e a influência destas na formação do
Direito, mas não para negar a existência desse Direito.
o Escolas positivistas afirmam que o DIP não é direito, porque não há um único
legislador, um único tribunal ou um polícia, isto é, uma estrutura coerciva
que imponha o cumprimento universal das regras. Assim, não há Direito,
pois este implica um legislador, um sistema de tribunais, etc. Não é
exatamente assim: o Direito nem sempre depende de um único legislador.
Pode haver até uma pluralidade de legisladores, o problema é saber se as
regras são ou não regras de Direito e se devem ser cumpridas ou não.
• Teses favoráveis à juridicidade:
o Conceções jusnaturalistas entendem que, desde há muito, o Direito das
Gentes se baseia naquilo que é o Direito Natural, que, por sua vez, é uma
refração do Direito Divino. Assim, a ordem internacional, ou seja, a
existência de um sistema de sujeitos, implica, tal como os outros ramos de
Direito, uma subordinação a grandes valores jusnaturalistas – dignidade da
pessoa humana, coexistência pacífica entre Estados, condenação de guerras
ilícitas, relação diplomática dos conflitos internacionais (há um conjunto de
valores que são considerados valores de ordem natural).
o Conceções estatocráticas e positivistas dizem-nos que o DIP está previsto
nas constituições, pode não ser um direito internacional pleno, mas é um
direito estadual externo com refrações internacionais. Alguns negacionistas
positivistas diziam que o DIP não existe, porque é um direito estadual
externo. Kelsen, como positivista, dá-nos a ideia de que a grund Norme/a
norma pressuposta – elemento mais débil da sua construção positivista –
que está acima das constituições, poderá ser a um conjunto de princípios de
Direito Internacional ou costumes internacionais (mancha na construção
positivista). Como é que uma norma de direito natural ou consuetudinária

14
Direito Internacional Público Mariana Esteves

(norma não decidida) pode ser fundamento de ordens jurídicas positiva.


Neste aspeto, Kelsen aproximou-se dos jusnaturalistas , sobretudo quanto
ao fundamento último do DIP.
• Posição adotada pela regência:
o Entende que o DIP é um direito incompleto e não totalmente formado. É um
direito incompleto, porque lhe faltam alguns elementos jurídicos dos
sistemas de direito internos, nomeadamente, a coercibilidade. É ela que nos
permite distinguir, por exemplo, aquilo que é o Direito e aquilo que é a Moral
– Moral e Direito distinguem-se porque a primeira é aceite ou não aceite por
razões de consciência, enquanto o Direito terá de ser aceite sob pena de
haver uma estrutura coercitiva que o imponha pela força. No DIP, não se
pode, à partida, dizer que não existem mecanismos de imposição das regras
de Direito. O problema é que muitas vezes são políticos, como é o caso das
decisões cogentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde há
quebra da paz internacional. A nível das organizações internacionais há
sanções, sendo que, por exemplo, se não cumprirem o Direito da União
Europeia, os Estados podem ser obrigados a pagar multas, havendo noutros
tribunais, mecanismos coercitivos, ainda que, por vezes, sejam débeis. É
desta debilidade, mas não da inexistência, que se pode dizer que há uma
incompletude do direito internacional, mais no campo do direito
internacional geral ou comum especial do que o chamado direito
internacional especial relativo às organizações internacionais, que têm
elementos mais robustos para fazer cumprir as normas.
o A ideia de que o DIP não é direito por não ter um único legislador não faz
sentido, porque o DIP é uma realidade descentralizada. Também num
Estado unitário federal ou num Estado federal não há um único legislador. O
que temos é um ramo do Direito com características muito próprias, como a
descentralização das fontes e o modo de produção das normas. Há também
descentralização e pluralidade das relações jurídicas que são regidas por
essas fontes.
o É um direito que poderá não ter um reconhecimento muito efetivo como
direito. Nós diremos que não: o DIP é reconhecido efetivamente como
Direito, nomeadamente através das constituições dos Estados (argumento
positivista mais forte), que dizem que este é direito, referem-se às várias
fontes de DIP e à sua aplicabilidade interna (enforcement interno) das
regras internacionais por parte dos tribunais, nomeadamente pelos
tribunais constitucionais – veja-se o art. 8º da CRP. Se as constituições
reconhecem valor jurídico ao direito internacional e se elas são as normas
de cúpula dos Estado, não há fundamento para negar essa juridicidade.
o O elemento mais débil é realmente a parametrcidade/vinculatividade.
Apesar de tudo isto, há Estados que podem não cumprir com as regras
internacionais – ex.: os EUA, por vezes, decidem não acatar decisões das
Nações Unidas, à qual estão vinculados pela carta, nomeadamente relativas
ao uso da força (intervenção na Síria). Este é um problema crónico do DIP.
Perguntar-nos-emos: estamos igual a como estávamos antes do século XIX?
Não estamos. Há uma maior robustez das instituições que aplicam o direito
internacional e que sancionam prevaricadores. Continua a haver uma
desigualdade na prevaricação: há pequenos Estados que quando o fazem são
imediatamente punidos; já médias potências normalmente nem sempre são

15
Direito Internacional Público Mariana Esteves

punidas e as grandes potências raramente são sancionadas. CBM entende


que a resolução deste problema não alcançará a totalidade do mesmo.
o Aquilo tem evoluído mais favoravelmente é a juridicidade do DIP no âmbito
das organizações internacionais. Estas, a partir do momento em que
preveem sanções e mecanismos jurisdicionais de aplicação das mesmas,
com especial relevo para a União Europeia, para o Conselho da Europa até
certo ponto a organização dos Estados Americanos, isto significa que há
componentes de DIP, o DIP especial, o enforcement do Direito passo a ter
maior relevo. Estamos perante um direito internacional com elementos de
incompletude e com elementos formativos ou em formação permanente no
plano das sanções (aparelho sancionatório).

Sistema de fontes
Fontes do DIP – Modos de produção, revelação e justificação das normas de Direito
Internacional

Podemos classificá-las em:

• Fontes formais – Processos de produção e de revelação de normas jurídicas


internacionais: formas de produção voluntárias (o elemento da vontade do Estado
e das organizações é relevante – convenções internacionais, tratados, atos jurídicos
unilaterais) e espontâneas (costume internacional).
• Fontes materiais – Aludem aos valores que fundamentam as normas. No seu âmbito,
existem os princípios de DIP, que são enunciados jurídicos de valores entre
organizações internacionais, tendo alguns origem nos Estados e são a estes comuns
(princípio da proporcionalidade e da boa fé) e sendo outros típicos/específicos das
relações internacionais (não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados)
• Fontes mediatas – Medidas de valor e ensinamentos subsidiários que sustentam a
aplicação ou não aplicação das fontes primárias, sem as quais não haverá fontes
secundárias ou auxiliares (ex. – jurisprudência, tem ganho, graças à influência anglo-
saxónica nos tribunais internacionais, um papel importantíssimo, através dos
precedente, ou seja, os tribunais interpretam os tratados, atos unilaterais ou
costumes e na resolução de casos emblemáticos (case law) há um ensinamento, uma
orientação, um fundamento principal do critério de decisão do tribunal que é
adotado, que tende a ser considerado em casos da mesma natureza que ocorram no
futuro; o TJI e o TJUE estão muito “apegados” aos seus precedente, ainda que, por
vezes, os derroguem; fonte subsidiária que tem ganho importância; como o DIP é
muito fragmentado e tem muitas lacunas, estas decisões de referência são
extraordinariamente úteis; doutrina, dos grandes jurisconsultos ou doutrinadores,
que, por vezes, sustentam as opções do tribunais e as argumentações dos Estados
nos diversos litígios; há também quem incluía a equidade contra legem e
derrogatória).
• Fontes imediatas – Implicam que as normas se apliquem diretamente e
imediatamente a uma relação jurídica controvertida. Antes de poder haver outro
tipo de fontes, há normas que se aplicam e que se têm que aplicar primariamente a
uma relação controvertida (ex. – convenções internacionais, que estipulam
princípios e regras de conduta que devem ser acatadas pelos sujeitos de direito
internacional; o costume, através de uma prática reiterada acompanhada com a
convicção de obrigatoriedade emergem critérios de decisão que são aplicadas às
relações jurídicas controvertidas; atos jurídicos unilaterais, uma resolução de uma

16
Direito Internacional Público Mariana Esteves

organização internacional cria Direito; princípios, fontes materiais de DIP que


regem controvérsias e litígios do tipo internacional).

Art. 38.º:
1. Convenções internacionais
2. Costume
3. Princípios de DIP
4. Jurisprudência e doutrina
5. Menção à equidade
1. Menção à equidade
O art. 38.º do estatuto do TIJ é norma de referência para a enumeração daquilo que são as
fontes do direito internacional, sendo objeto de diversas críticas, nomeadamente. pelos
professores André Gonçalves Pereira e Fausto Quadros:
1. A linguagem estaria obsoleta - A propósito dos princípios de DIP fala-se em
princípios das Nações Civilizadas, que é uma expressão anterior à descolonização,
sendo que hoje em dia todas as nações são consideradas civilizadas. Esta expressão
é uma noção de uma comunidade internacional anterior, extremamente
eurocêntrica, que, entretanto, despareceu. Para CBM não é o argumento mais forte,
porque nos devemos focar nos princípios de DIP e não nesta expressão.
2. Mistura entre fontes formais, materiais, diretas e indiretas - CBM não o acha, sendo
que mistura haveria se na mesma alínea ou número se falasse simultaneamente em
costume e jurisprudência, o que não é feito, porque cada inciso é dedicado a uma
coisa distinta.
3. Ambiguidade quanto à hierarquia entre as fontes - Não há supostamente nenhuma
hierarquia entre fontes, sendo este um dos ensinamentos do DIP. Pode haver uma
hierarquia entre certas normas de direito internacional, mas não entre fontes (ex. –
o costume não tem hierarquia superior ao tratado). Por vezes, chega a haver
transições entre fontes: uma regra começa por ser um princípio, depois converte-se
num costume e acaba por ser plasmada num tratado. O que se pode dizer é que há
uma precedência aplicativa entre as fontes que são imediatas e as fontes mediatas,
que são a jurisprudência e a doutrina (o que parece resultar do próprio artigo).
4. Há uma lacuna – Preenche-se com os atos jurídicos unilaterais.
5. Elevação indevida da equidade a fonte de Direito – A equidade é uma medida de
valor que visa temperar o rigor do Direito. Muitas vezes ajusta a norma ao caso
concreto: a aplicação pura e dura de uma determinada regra, por vezes, cria uma
injustiça maior do que a sua não aplicação. É uma medida ligada ao valor de justiça
que tempera o Direito. A equidade poderá não ser fonte de Direito em sentido
próprio quando atua interpretativamente – equidade secundum legem. CBM tem
dúvidas, mas entende que poderá não ser fontes quando tenha um papel integrativo
para integrar lacunas. A equidade contra legem, ou seja, uma equidade que derrogue
ou revogue normas de tratados ou costumes obviamente que cria uma regra de
Direito contrária, gerando Direito, pelo que é uma fonte de Direito. Aí CBM não está
de acordo com o entendimento de que a equidade nunca seria fonte de Direito: pelo
menos a equidade derrogatória de uma convenção ou de um costume é fonte de
Direito

Questões de precedências aplicativas em termos de fontes imediatas

17
Direito Internacional Público Mariana Esteves

As fontes não têm qualquer hierarquia. Todavia, há um enunciado que nos permite dizer
que havendo regras escritas num tratado, estas devem ter precedência aplicativa. Há um
litígio, havendo um tratado, aquilo que se deve aplicar, em primeiro lugar, é o Direito mais
certo. O costume tem vindo a diminuir a sua extensão e o seu alcance, porque muitas das
suas regras têm vindo a ser positivadas em tratado e algumas alteradas (ex. – costume do
direito do mar não desapareceu, mas é subsidiário à convenção de Montego Bay sobre o
direito do mar).

Em regra, dá-se uma precedência aplicativa aos tratados ou convenções, depois ao costume,
que cria critérios de decisões estáveis, e depois aos princípios. Contudo, isto não significa
que não possa haver um costume que contraria a regra de um tratado e a derrogue ou um
princípio que leve a um afastamento de certo tipo de normas de um tratado ou de uma regra
consuetudinária.

Aula 3 – 29/09/2020

Sumário: Fontes formais mais importantes: convenções internacionais e costume;


Considerações sobre as restantes fontes

Princípios de DIP

Os princípios de DIP são fontes materiais percetíveis, ou seja, são enunciados jurídicos de
valores dotados de uma grande indeterminação (gerais e abstratos, mas fortemente
indeterminados) que acabam por justificar certos comandos jurídicos (princípios justificam
normas), sendo algumas delas próprias do DIP e outras comuns ao direito interno.
É uma fonte de formação espontânea. Os princípios são normas, têm caracter normativo, ou
seja, são mandatos de otimização e conceberam-se na esfera do direito internacional de
duas formas:
1. Foram transplantados na sua grande maioria a partir do Direito Interno dos Estados
– veja-se o caso, a nível de princípios comuns, o princípio da boa fé, muito evidente
na ideia do pacto sum cervante (os tratados celebrados validamente devem ser
cumpridos, sendo que esse cumprimento implica que as partes o façam de uma
forma consciente e intelectualmente honesta), o princípio da proporcionalidade, o
princípio do respeito pelo caso julgado, o princípio do abuso de direito (presente em
sede de responsabilidade internacional), o princípio do ónus da prova, o princípio
da segurança jurídica (muito importante) e o princípio da Kompetenz, como dizem
os alemães, que atribui aos tribunais superiores a possibilidade de definirem, em
caso de dúvida, a sua própria competência (tal encontra-se previsto no estatuto do
TJI).
2. Há princípios originários do próprio DIP, que derivam das relações internacionais,
da estabilização dessas relações na base de critérios especiais de decisão.
a. Respeito pela integridade territorial e pela soberania dos Estados – Com a
paz de Vestefália, as fronteiras passaram a ser definidas, o soberano deixou
de ser apenas o monarca e passou a ser também o Estado. Nem sempre é
verdadeiramente observado (iniciada uma guerra entre a Arménia e o
Azerbaijão por haver uma disputa em relação a um enclave).
b. Princípio da não agressão – Os conflitos internacionais resolvem-se, em
regra, por via diplomática e não através do abuso do mundo da força. Com a

18
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Carta das Nações Unidas, a guerra passou a ser proibida, apenas é legitimada
ou aceite juridicamente como válida a legitima defesa.
c. Princípio da não interferência nos assuntos internos dos outros Estados –
Embaixador norte-americano em Lisboa veio dar indicações, seguidas de um
quase “ultimato”, isto é, um conjunto de considerações agressivas, relativas
aos negócios com a China sobre o 5G e sobre o Porto de Sines. Há ingerências
muito mais significativas, tais como a dos EUA na Ucrânia e na Rússia e da
Rússia nas eleições americanas. É um princípio que é sempre proclamado,
mas que é muitas vezes derrogado e não cumprido.
d. Princípio da autodeterminação dos povos sobre ocupação estrangeira ou
domínio colonial – Foi equacionado no século XIX aquando da
independência das colónias espanholas e do Brasil em relação a Portugal,
mas que ressurgiu em força no período da descolonização, nos anos 60 e 70
do século XX. É a ideia de que os povos têm a faculdade de disporem de si
próprios e de escolherem o seu próprio destino. Claro que este pode
consistir na continuação da ligação com uma mãe-pátria.
e. Princípio do uti possidetis juris – Se há territórios que anteriormente eram
colónias ou que faziam parte mesma república e se separaram, essa
separação e antigos Estados federados/territórios/colónias que tinham
fronteiras coloniais, a partir do momento em acedem à independência, essas
mesmas fronteiras coloniais passam a ser as fronteiras dos Estados (ex.:
Angola e Moçambique). Este princípio nasceu com a independência das
colónias espanholas no século XIX e, mais tarde, marcou as independências
africanas. Foi consagrado para evitar guerras fronteiriças e pela posse de
territórios de outro Estado, ou seja, disputas territoriais (ex.: caso da
Arménia). Tem funcionado como um apaziguador de relações
internacionais, mas ás vezes não é respeitado por razões de política real,
havendo comunidades humanas que não querem pertencer a outro Estado.
Aqui o princípio da autodeterminação interna acaba por contrapor-se a este.
f. Princípio da especialidade das organizações internacionais – As
organizações internacionais têm um conjunto de critérios estruturantes
próprios (princípio da especialidade – a organização exerce diversas
competências que dizem respeito aos seus fins estatutários previstos em
convenções internacionais).

Atos jurídicos unilaterais


Fonte de DIP bastante importante, ainda que não conste no artigo 38.º.

Os atos jurídicos unilaterais tanto podem ser dos Estados como das organizações
internacionais.
É uma decisão tomada por um só sujeito de Direito Internacional e cuja produtividade, em
termos de efeitos, validade e eficácia, acabam por operar si próprias, não dependendo de
qualquer outro ato jurídico concorrente, ou seja, basta que um só sujeito de direito
internacional emita o ato para que ele tenha consequências jurídicas ou políticas.

No que toca aos atos jurídicos unilaterais dos Estados, eles podem ser:

1. Autónomos – Manifestações de vontade que são, por si próprias, válidos e eficazes,


não dependendo da existência de nenhuma outra fonte prévia de direito

19
Direito Internacional Público Mariana Esteves

internacional (ex.: tratado ou costume que autorize a existência do ato). É o caso do


protesto, da renúncia, da promessa e de certas formas de reconhecimento. Há varias
formas de conceber o protesto: como um ato politico (manifestação de desagrado
ou discordância de um Estado relativamente à conduta de outro Estado, ou seja,
manifestação pública ou institucional de desacordo) ou um ato jurídico (modo de
evitar a formação de uma fonte de DIP, que é o costume, ou uma norma de DIP de
carácter consuetudinário; há vários Estados que vão assumindo uma determinada
prática com convicção da sua obrigatoriedade, mas à outros que não querem ficar
vinculados ao processo dessa norma em função, formulando um protesto). A
renúncia acontece quando um Estado pode declarar, juntos de outros, que pretende
não exercer um determinado direito (ex.: França renunciou o direito de fazer novos
ensaio nucleares em ilhas no Pacífico, a ela pertencentes). A promessa é um ato
menos definitivo do que a renúncia, sendo uma declaração de intenções de, no
futuro, esse mesmo Estado ou assumir um determinado comportamento positivo ou
vir a assumir um comportamento omissivo (ex.: França tinha formulado uma
promessa de voltar a fazer os ensaios nucleares), tendo um conteúdo mais político
do que jurídico. É um compromisso de não exercer certo tipo de direitos ou de
assumir uma determinada conduta. O reconhecimento pode ser um ato jurídico
unilateral, não ligado a convenções internacionais nem a costumes. Por exemplo, se
um Estado reconhece a independência de outro ou decide reconhecer um
determinado governo (ex.: ato jurídico unilateral autónomo em que um Estado,
como a Líbia ou a Venezuela, está dividido em dois governos; cada Estado reconhece
um determinado governo). É um ato essencialmente político, mas que tem
consequências jurídicas. O reconhecimento de Estado e, em particular, o
reconhecimento de governo, tem um conjunto de efeitos até a nível patrimonial. Por
exemplo, nos EUA o reconhecimento do governo de Guaidó implicou que bens que
pertenciam ao Estado venezuelano, nomeadamente na área petrolífera e depósitos
bancários que se encontravam nos EUA, passaram a ser diferidos, pelos tribunais,
ao governo de Guaidó.
2. Não autónomos – A sua prática depende do regime que a esse propósito tiver sido
estabelecido numa outra fonte de direito internacional, em regra, o costume ou um
tratado. A sua validade e eficácia depende da conformidade com aquilo que estiver
estipulado previamente numa outra fonte de direito internacional, são atos
dependentes. É o caso da denúncia, relativa a tratados internacionais, que significa
que um Estado que está vinculado a uma convenção internacional declara pretender
deixar de estar vinculado à mesma convenção. Há regras para saber como se pode
denunciar uma convenção. O recesso é quando a denúncia é retirada de um Estado
num tratado não unilateral mas bilateral. A reserva é uma declaração em que um
Estado vincula-se, sob condição, a uma convenção internacional, no sentido de
especificar que essa vinculação não é total: há normas individualmente
consideradas que seriam contrárias aos seus interesses ou existem normas nas
convenções internacionais que, muitas vezes, contrariam a constituição (são
inconstitucionais). Tudo isto depende de um conjunto de regras que estão
estipuladas na convenção de Viena sobre os tratados e também da vontade dos
outros Estados (há Estados que não aceitam as reservas). Adesão – há Estados que
não participam na negociação de uma convenção internacional, mas tem a
possibilidade de se vincular a posteriori à mesma: utilizam o seu instrumento de
adesão para ficarem vinculados a esse tratado.
Os atos jurídicos unilaterais podem ainda ser:

20
Direito Internacional Público Mariana Esteves

1. Auto-normativos – Decisões jurídicas tomadas por um Estado, em que esse Estado


é o primeiro destinatário dos efeitos jurídicos ou da eficácia jurídica dessa decisão.
É o caso da promessa, em que um Estado se compromete a adotar uma conduta ou
não adotar uma conduta, vinculando-se a si próprio. A mesma coisa acontece em
relação à renúncia: se um Estado exerce um Direito e abdica da titularidade e do
exercício desse direito, significa que mais tarde não o poderá exercer, isto é, ou
ninguém exerce ou há uma Estado que passa a exercer esse mesmo direito.
2. Hétero-normativos – Há uma decisão tomada por um Estado, em que o
destinatário mediato da eficácia ou dos efeitos jurídicos são outros sujeitos de DIP.
Não quer dizer que o próprio Estado não se vincule aos efeitos jurídicos, mas o
primeiro a vincular-se acaba por ser outro Estado ou outro sujeito de direito
internacional. É o caso do reconhecimento: Portugal reconhece o governo de
Tobruk, na Líbia, sendo que este é o primeiro beneficiário deste reconhecimento
(também implica compromissos políticos e jurídicos para o Estado). Também é o
caso do protesto: é um ato hétero-normativo, a partir do momento em que se está a
formar um costume e há um Estado que não quer de modo algum ficar abrangido
por esse mesmo costume, verificamos que essa regra consuetudinária não alarga o
seu âmbito subjetivo de aplicação, ficará confinada aos Estados que aceitam essa
regra, tendo efeitos hétero e auto-normativos, porque um Estado não fica vinculado
ao costume, mas os outros Estados que participam na formação do costume não o
podem impor ao Estado que apresenta o protesto. Depois temos decisões e
deliberações das organizações internacionais. As decisões são tomadas por órgãos
não colegiais, como o Secretário de Estados das Nações Unidas, o Dr. António
Gutierres, que é um órgão unipessoal, decisões que são do exercício da sua
competência são atos de vontade unipessoais, sendo decisões em sentido próprio.
As deliberações são também decisões, mas tomadas por órgãos colegiais, tal como
as resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas, órgão composto por
vários titulares.

Quanto à organizações internacionais, há decisões e deliberações que têm eficácia interna,


aplicam-se essencialmente á própria organização – ex.: quando as Nações Unidas aprovam
o seu próprio orçamento ou quando há decisões de natureza administrativa. Há muitas
decisões que se conformam em atos jurídicos unilaterais das organizações internacionais
que têm eficácia externa. É o caso das resoluções do Conselho de Segurança das Nações
Unidas, nomeadamente aquelas emitidas ao abrigo do capítulo 7.º, podem implicar sanções
a certos Estados violadores da carta e também até o uso da força contra esses Estado, tendo
estas resoluções uma eficácia imediata, mesmo na ordem jurídico dos Estados membros.
Existem também muitas deliberações da UE que se aplicam na ordem interna dos Estados:
os regulamentos, as diretivas, as decisões da UE vinculam a própria organização, bem como
a ordem interna dos Estados, tendo até um primado sobre as suas próprias leis (direito
ordinário interno). Há também decisões e deliberações que têm eficácia mista.

A jurisprudência é uma fonte de importância crescente, na medida em que existem muitas


lacunas no DIP, muitos vazios normativos, pelo que essas situações tendem a ser resolvidas,
muitas vezes as normas são vagas, através de decisões judiciais que criam precedentes, que
acabam por ter um sentido normativo. Há tribunais que perante um litígio internacional
decidem, tomando como referência decisões prévias de outros tribunais, sejam eles
arbitrais ou superiores de carácter internacional. Hoje em dia o precedente fez com a
jurisprudência passasse a ter um peso importante, mais do que a doutrina, embora a
doutrina dos grandes jurisconsultos a alimente, uma vez que as obras dos jurisconsultos são
citadas pelos juízes internacionais.

21
Direito Internacional Público Mariana Esteves

A equidade, consagrada no princípio ex aequo et bono, significa que existem certas


disposições em tratados ou certas regras consuetudinárias que são, por vezes, causadoras
de conflitos e de danos nas relações internacionais, bem como prejuízos que são mais graves
e de maior monta do que a continuidade de situações ilícitas. Outras vezes, a aplicação
demasiado dura de uma disposição de um tratado é causadora de certo tipo de
desigualdades flagrantes entre sujeitos de Direito Internacional e, como tal, essas
desigualdades geram conflitos. A equidade é uma medida de valor ligada à ideia de justiça
que tempera o rigor do Direito e que faz com que este se ajuste um pouco mais às
circunstâncias do caso concreto. A equidade secundum legem é a equidade interpretativa,
isto é, a equidade é ajustada a uma norma de uma convenção internacional permitindo uma
interpretação mais suave dessa norma. A equidade prater legem é uma equidade aplicada
na integração de lacunas existentes. A equidade contra legem é a mais interessante, porque
é a única fonte inequívoca em sentido próprio, na medida em que muitas vezes uma regra
de direito internacional não é aplicada, mas é aplicada uma outra regra completamente
diferente, por vezes criada pela jurisprudência com base no princípio da justiça. É sempre
mais problemática, mas se for aceite pelas partes, não existe problema. A equidade como
fonte de Direito tem um pressuposto que está no art. 38.º do Estatuto do TIJ, que é: os
tribunais só decidem em conformidade com a equidade, quando as partes no litígio
aceitarem o recurso à equidade. Isto acontece não só nos tribunais arbitrais internacionais,
mas também nos tribunais arbitrais internos. Isto dá uma maior discricionariedade ao juiz
para não só aplicar o Direito, mas também para o criar sobretudo no âmbito da equidade
contra legem. Temos uma fonte clara de Direito, porque a equidade contra legem é
derrogatória das normas que se encontram em vigor, fazendo surgir uma nova norma: uma
norma revogatória pura e simples ou uma norma substitutiva de criação jurisdicional.

Diferença existente entre fontes e normas

A diferenciação conceptual é de que uma fonte é um modo de produção, revelação ou de


justificação de uma norma. Há fontes de DIP que são fundamentais e típicas, como os
tratados, que não existem no direito interno, e o costume internacional, que tem algumas
semelhanças com o costume interno, mas nos países positivistas que não aceitam o costume
como fonte de Direito (caso de Portugal), no plano do direito internacional têm que acatar
essa mesma fonte, ou seja, de a incorporar – a constituição incorpora regras
consuetudinárias gerais de direito internacional através do n.º1 do art. 8.º da CRP. Normas
são critérios de decisão dotados em regra de generalidade e de abstração. Tanto podem ser
mandatos de otimização, sendo que nesse caso as normas serão princípios dotados de uma
maior determinabilidade, como podem ser regras, que são mandatos de definição, ou seja,
comandos muito mais precisos. O princípio é o enunciado jurídico de um valor com grande
generalidade e grande abstração.

Existe hierarquia entre fontes? Não há hierarquia entre fontes imediatas, ou seja, não há
hierarquia entre o tratado como fonte, o costume como fonte e os princípios de DIP ou
relativamente aos atos jurídicos unilaterais de carácter autónomo, que esses não dependem
de outras fontes. Já é mais duvidoso que não se possa falar de hierarquia entre as restantes
fontes imediatas – tratado, costume e princípios – e os chamados atos jurídicos unilaterais
não autónomos, que como o nome indica estão dependentes de outro tipo de normas
oriundas de outras fontes.
Entre as principais fontes – tratado, costume e princípios – não existe hierarquia, mas há
um primado das chamadas fontes imediatas sobre as fontes mediatas (jurisprudência e

22
Direito Internacional Público Mariana Esteves

doutrina). A jurisprudência deve de alguma forma aplicar o direito a litígios, ou seja, tem
que tomar em consideração e não deve decidir, exceto na equidade contra legem e por
acordo entre as partes, contra aquilo que são as disposições normativas em vigor,
produzidas através de fontes consuetudinárias, convencionais ou justificadas através de
princípios. Há um primado das fontes imediatas e das fontes formais, sob as fontes mediatas.

Mas se não há uma hierarquia entre fontes imediatas não quer dizer que não exista uma
hierarquia entre as normas produzidas por essas mesmas fontes, em certas circunstâncias.

Um tratado como norma tem uma hierarquia superior ao costume como norma, a uma
norma consuetudinária? Um princípio prevalece sobre um costume ou um tratado?
(estamos a falar não das fontes, mas das normas produzidas por essas fontes)

Não há um tratado como norma, uma norma consuetudinária e um princípio de DIP, têm,
por regra, a mesma hierarquia, mas há exceções. Há situações entre normas com certas
características existes:

1. Ius cogens – Previsto no art. 53.º da Convenção de Viena sobre os Tratados, que diz
que é nulo todo o tratado que no momento da sua conclusão é incompatível com
uma norma imperativa de Direito Internacional geral. Uma norma de direito
internacional geral é uma norma de hierarquia superior, chamada ius cogens ou
direito cogente, ou seja, direito imperativo e de patamar superior. Para os efeitos da
presente convenção, uma norma imperativa de direito internacional é aquela que
for aceite pela comunidade internacional em geral, pelos Estados, o que significa que
tem que haver um larguíssimo assentimento, isto é, a unanimidade entre os Estados
de como aquela norma esteja presente num tratado, costume ou princípio de DIP,
os Estados têm que reconhecer que aquela norma tem prevalência sobre todas as
outras, ou seja, tem precedência sobre todas as outras e é reconhecida como direito
cogente. Isto não significa que, por exemplo, se a Venezuela, a Coreia do Norte não
reconhecerem a natureza dessa norma, ela não possa ser direito cogente. Esta
norma só pode ser modificada por uma norma de idêntica natureza. Isto implica que
à norma de idêntica natureza também seja reconhecida pela comunidade dos
Estados em geral, essa superioridade. Há quem diga que o direito cogente é um
“fantasma sem sangue”, porque até agora os Estados não consensualizaram nada
como tal. Há Estados que entendem que a democracia é direito cogente, não o sendo
para o regente. Outros entendem que os direitos humanos são direito cogente, não
o sendo, no sentido global do termo, para o regente, na medida que há estados que
não aceitam a convenção global sobre direitos fundamentais. Aquilo que é direito
cogente é aquilo que é aceite tacitamente como tal, reduzindo-se a muito pouca
coisa, nomeadamente as Convenções de Genebra de 1949 sobre direito maritário
dado aos prisoneiros de guerra é considerado direito cogente, nem que seja pelo
Conselho de Segurança das Nações Unidas, que mandou aplicar essas convenções,
não só aos Estados que as não assinaram, mas também a outros sujeitos de direito
internacional, como movimentos de libertação ou insurretos. Há também outros
princípios, que tanto podem estar em costumes ou em tratados como podem ser
princípios gerais de direito internacional, desde que sejam aceites pela generalidade
dos Estados temos aqui este tal direito imperativo ou cogente. Qual é a consequência
da violação de uma norma de direito imperativo? A nulidade absoluta dessa
disposição normativa que violar uma regra de direito internacional presente noutro
tratado ou costume, que seja reconhecida como tal.
2. Tratados internacionais – Há tratados internacionais que acabam por determinar
que as suas disposições não podem ser contrariadas pelos Estados membros dessa

23
Direito Internacional Público Mariana Esteves

organização internacional, sob pena de exclusão. Isso acontece, por exemplo, no


Pacto Atlântico Norte: os tratados celebrados pelos Estados que são membros da
NATO, esses Estados não podem celebrar com terceiros tratados que contrariem o
Pacto do Atlântico Norte. Também no âmbito das Nações Unidas, existe uma
disposição que impõe que os Estados não possam celebrar entre si tratados
internacionais que contrariem as disposições da Carta das Nações Unidas
(considera-se uma violação muito grave). Temos assim uma hierarquia entre
normas convencionais no quadro de organizações internacionais, em que o ato
constitutivo da organização internacional, constante de tratado, tem uma
superioridade hierárquica sobre outras normas de direito internacional,
nomeadamente convenções.
3. Convenções internacionais que têm carácter substantivo ou principal
relativamente a outras convenções internacionais que lhes dão execução, isto
é, os acordos administrativos – Por vezes existe uma convenção internacional
relevante com disposições com natureza substancial e existem depois outras
convenções celebradas pelos mesmos Estados (acordos internacionais), que têm
como objetivo desenvolver, concretizar e integrar o tratado principal. Atende-se,
muitas vexes, que este não deve entrar em minudências, ou tem anexos remete para
acordos administrativos a celebrar no futuro. Há um tratado principal que opera
como uma lei e uma disposição adjetiva instrumental que opera como um
regulamento, o acordo administrativo deve subordinar-se, não o podendo derrogar,
ao tratado principal, sob pena de eventual invalidade ou ineficácia. Para haver um
acordo administrativo é necessário que o tratado principal preveja o seu
desenvolvimento ou concretização por este tipo de acordos. Senão temos uma
situação mais confusa, em que se aparecer um acordo de concretização que derroga
o tratado principal, sem estar previsto por este, temos uma situação diferente que é
um acordo secundário tentar derrogar um tratado principal, deve ser primeiro
reconhecido como tal pelo tratado principal e depois deve desenvolver esse tratado
no respeito pelas suas disposições.
4. Tratados institutivos ou constitutivos de organizações internacionais e atos
jurídicos unilaterais tomados pela mesma organização – Por exemplo, no
âmbito das Nações Unidas, as resoluções do Conselho de Segurança devem
obediência àquilo que estiver estipulado na carta. Da mesma forma, na UE, as
decisões, as diretivas e os regulamentos da mesma, devem conformidade ao Tratado
de Lisboa. Caso não aconteça, serão inválidos.

As relações entre normas não se estabelecem apenas num quadro hierárquico. Também as
relações de cronologia e especialidade pautam o quadro de tensão entre as relações entre
normas internacionais. Por exemplo, um tratado posterior celebrado pelo número de
Estados, ou seja, um acordo administrativo, revoga um tratado anterior ou modifica-o,
derrogando algumas das suas normas. Significa também que existem tratados gerais e os
mesmo Estados ou parte deles podem estabelecer tratados especiais, sendo que aí a norma
especial prevalece sobre a norma consuetudinária ou do tratado com carácter mais geral.

Análise às duas fontes imediatas de carácter principal: o costume e as convenções


internacionais
Costume

24
Direito Internacional Público Mariana Esteves

O costume aqui define-se nos mesmo termos que aprendemos em termos conceptuais na
disciplina de IED: é uma prática reiterada efetuada com a convicção da sua obrigatoriedade
por sujeitos de DIP.
É uma fonte que produz normas e que tem certo tipo de características no aspeto genético-
formativo dessa mesma norma.

1. Há um elemento material do costume que é o uso: o uso é essa prática de uma


determinada conduta que é adotada uma, outra e outra vez, não é uma conduta que
é praticada isoladamente, o que significa que tem sequência e que é reiterada, sendo
uma prática que vai num determinado sentido e cria um precedente. Não há uma
situação em que haja uma conduta isolada ou irregular, ou seja, essa conduta é
assumida uma, duas, três e quatro vezes e depois é assumida contrária como das
outras tantas vezes e depois a mesma conduta e depois a conduta mais contrária,
num contexto desta natureza incoerente, a conduta não vai sempre no mesmo
sentido, não havendo uso algum neste âmbito. Ao verificar-se essa mesma prática,
ela começa a ser uma referência para condutas de natureza iguais ou análogas a
assumir no filtro. Essa repetição do uso, a sua constância e uniformidade, gera o
costume. Essa definição está presente no caso das pescas anglo-norueguesas, no
caso de uma decisão do TIJ, no caso do direito de asilo, em que o costume não é um
costume geral, mas sim um costume ligado essencialmente à América Latina. Por
exemplo, é muito típico na América Latina, presidentes que são derrubados em
golpes de Estado ou em revoluções, dignitários de um regime derrubado ou
perseguidos politicamente, se possam refugiar em embaixadas e legações
estrangeiras que lhes conferem o direito de asilo, a possibilidade de ficarem o tempo
que for necessário, até poderem sair de alguma maneiras, nessas embaixadas.
Contudo, nem todos os Estados aceitam este quadro de asilo. Por exemplo, quando
houve um sueco que se refugiou, por causa do caso Wiki Leaks, na embaixada da
República do Equador no Reino Unido, este a dado passo entendeu que não estava
vinculado à regra do asilo da embaixada, pelo que aquele mandato de captura contra
o sueco, havia a possibilidade da policia inglesa entrar pela baixada a dentro. Não o
fez, o senhor esteve lá vários anos até ser extraditado, na medida que essa atitude
poderia comprometer as boas relações que o Reino Unido tem com vários países da
América Latina, que rapidamente solidarizariam com o Equador. Não é um costume
internacional geral, sendo pelo um menos um costume regional na América Latina.
Muitas vezes, o silêncio vale como assentimento. Se há uma conduta praticada uma
e outra vez por uma pluralidade de Estados em que certos Estados não apresentam
protesto, nem objetam a esse costume, então esse silêncio vale como aceitação ou
aquiescência tácita da formação da regra consuetudinária, tal como o famoso caso
Lótus acaba por determinar.

2. Não basta uma prática para que se forme o costume. Uma mera prática, ou seja, a
repetição de uma determinada conduta, enquadra-se nas chamadas praxes
diplomáticas, que não são costumes, mas usos, que as chancelarias de alguma forma
adotam nas suas relações recíprocas tendo em vista uma boa convivência e
relacionamento entre Estados.

É necessário o elemento psicológico, isto é, a convicção da sua obrigatoriedade. Para que


haja costume, os Estados que adotem uma determinada conduta, é necessário que
considerem que no futuro esse critério se tornou obrigatório, pelo que no futuro devem

25
Direito Internacional Público Mariana Esteves

continuar a assumir a mesma conduta. Passa-se do ser para o dever ser de uma determinada
prática, ou seja, a convicção de que essa prática se vai transformando em regra. É a chamada
opinio juris, o elemento psicológico que tem algo de voluntarismo aqui, mas não totalmente.
Muitas vezes há Estados que se limitam a consciencializar que aquela prática é seguida por
um número considerável de outros Estados e que deve ser mantida, pelo que passivamente
ou ativamente acabam por acatar e integrar esse elemento psicológico.
Qual é a mais importantes: o uso ou o elemento psicológico? Há várias teorias sobre a
matéria:

1. Teoria do pacto tácito ou acordo tácito – Sobrevaloriza o elemento psicológico.


Entende que só se forma uma regra consuetudinária quando os estados têm
vontade que essa mesma prática se converta em norma. Esta teoria não explica
tudo. Por exemplo, há muitos costumes internacionais, anteriores à Convenção de
Montego Bay de Direito Marítimo sobre a navegabilidade dos mares e direito dos
mares, que são regras que surgiram antes das descolonizações, mas os Estados
descolonizados que se tornaram independentes, acabaram por aceitar tacitamente,
sem contestação, esse direito consuetudinário, como sucede com outros princípios.
Por exemplo, em África havia o princípio transformado em costume, que é o uti
possidetis juris, aquando da Conferência de Bandung, no auge das independências,
muitos dos novos Estados africanos não queriam ter as fronteiras legadas pelos
europeus, entendo que se deveriam seguir linhas tribais que passavam por
diversos Estados (ex. : Congo). Os pais fundadores da Organização para a Unidade
Africana concluíram que se fossem seguir linhas tribais e não aceitassem o uti
possidetis juris, havia Estados que desapareciam e outros entrariam em guerra,
pelo que tiveram que aceitar um princípio que se consolidou também como
critério consuetudinário. De facto, o elemento vontade é um elemento relevante,
mas releva mais para costumes de tipo local do que propriamente para o costume
regional e muito menos ainda para o costume geral (ex.: o costume da livre
navegabilidade dos mares acabou por se impor aos novos Estados independentes;
há costumes regionais que se não forem objeto de protesto também o elemento
vontade é para não integrar esse mesmo costume; já a subsistência dos costumes
bilaterais implica algum voluntarismo). Assim, a sobrevalorização do elemento
psicológico é criticada por ser mais aplicado os costumes locais do que aos
restantes.
2. Teoria do comportamento habitual – Sobrevaloriza o uso. A partir do momento
em que há uma prática reiterada de uma determinada conduta, chega-se à
conclusão de que se formou um costume. Mas isso é objeto de grandes críticas por
confundir uma prática com uma regra: uma prática pode ser adotada várias vezes
por conveniência, mas não há a perspetiva necessária de que ela deve ser
obrigatoriamente assumida no futuro, podendo ser derrogada, mesmo que haja um
grande recurso à mesma. As praxes diplomáticas de facto são múltiplas, mas não
são propriamente regras consuetudinárias. Ao sobrevalorizar o uso, esta teoria
acaba por confundir costume com prática, sendo aqui o elemento psicológico
fundamental.
3. Teoria objetivista – Defendida pelos professores Gonçalves Pereira e Fausto
Quadros, sendo uma teoria formalista que supera grandes divergências. É uma
teoria que acaba por dar enfase a dois aspetos: tanto o uso como o elemento
psicológico são fundamentais, pelo que estão numa posição paritária, tendo o
mesmo valor e relevância (só um não se pode impor ao outro), sendo os dois
elementos constitutivos necessários do costume; o costume tem uma fonte de

26
Direito Internacional Público Mariana Esteves

formação espontânea, não nasce de um ato de vontade, mas sim espontaneamente,


quando um conjunto de Estados entender que aquela prática se tornou obrigatória,
sendo algo que tem que fazer prova do tempo (não há costumes instantâneos – os
costumes nascem com a prova do tempo e com um número significativo de
práticas uniformes e adotadas no mesmo sentido). Há quem diga que o tempo
mínimo para a formação do costume são 10 anos (doutrina clássica), tendo que ver
essencialmente com o caso da plataforma continental do mar do norte. Há também
quem fale em 5 anos. O regente entende que é difícil defender um costume por um
período tão breve. Há normas consuetudinárias que se formaram depois de 90
anos, como foi o caso Palmas. Nunca sabemos exatamente o momento em que o
costume nasce ou efetivamente se forma.

Por uma questão de comodidade, a regência adota a teoria objetivista, porque é uma
doutrina e teoria que nos pode de alguma forma confortar.
Como é que o costume se forma? Qual é a prova da formação do costume? É difícil
apresentar provas formativas do costume, mas há vários elementos formatórios;
1. O requerente num determinado processo que invoque um costume, tem o ónus em
provar a sua existência - Tem a obrigação de provar em juízo a sua existência
2. Outros meios de prova podem ser leis – Há leis que incorporam na ordem jurídica
interna, normas consuetudinárias. Há tratados que fazem referência a costumes e
há tratados que substituem costumes fazendo-os referência ou que se aplicam
como legislação mais especial relativamente ao costume que continuará como
normação geral. Há decisões de tribunais ou de jurisprudenciais que aludem e
aplicam regras consuetudinárias.
3. Outros meios de prova podem ser a correspondência diplomática – Troca de cartas
entre as chancelarias nas quais uma das partes pode consciencializar que na outra
chancelaria ou ministério das relações externas, nesta comunicação, reconheceu a
existência de um determinado costume que agora está a tentar negar e que no
passado reconhecia. São elementos probatórios concretos, como atos de execução
ou regulamentos, atos administrativos em que se faça alusão ou que se dê
cumprimento a uma regra consuetudinária; declarações de responsáveis políticos;
atuações passivas e ativas; votações em órgãos internacionais que tenham por
base ou sejam feitas em cumprimento de uma norma consuetudinária .

Os elementos de prova são difíceis, mas são muito variados.


há três tipos fundamentais de costume:
1. Costume local – Tivemos um caso que teve que ver como direito de passagem que
opôs Portugal e a União Indiana, em 1960, no TIJ. Portugal tinha na altura
territórios ultramarinos na Índia – Goa, Damão e Dio. O território de Damão era um
pequeno território nos Gates em que havia o Damão propriamente dita e depois
pequenos enclaves encravados em território da União Indiana - Dadrá e Nagar
Haveli. Havia um costume, no período em que a Índia estava sujeita ao domínio
britânico, em que tropas portuguesas e abastecimentos, iam para Damão por um
rio, em território britânico, que depois banhava Dadrá e Nagar Haveli.
Originariamente, a União Indiana não contestou esse costume, continuando a
deixar passar certo tipo de comunicações através do rio, no seu território, até que
deu apoio a movimentos que defendiam a incorporação do Estado da Índia
português na União Indiana. Os enclaves começaram a ser atacados por terroristas

27
Direito Internacional Público Mariana Esteves

ou guerrilheiros ao serviço da União Indiana. Quando Damão se propôs socorrer os


dois enclaves, a União Indiana não deixou passar as forças portuguesas. A questão
foi levada ao TIJ e Portugal teve uma vitória a peso, porque se reconheceu no
tribunal a existência desse costume, se determinou á União Indiana que não podia
bloquear as comunicações entre os enclaves e o distrito de Damão, com
continuidade marítima, mas afirmou-se que a União Indiana detinha a
possibilidade de impedir o trânsito de armas e de forças miliares ou de segurança.
Foi uma vitória pirrónica, em que tínhamos razão, mas que não podíamos fazer
transitar força militares e o facto é que, mais tarde, esses dois territórios estavam
sem defesa e foram invadidos por uma força policial, em que um comissário
Aniceto do Rosário morreu a combater num posto policial durante um desses
ataques.
2. Costume regional – Há vários como o direito de asilo, da plataforma continental
do mar do Norte e sobretudo o caso das pescas anglo-norueguesas.
3. Costume geral – É o caso do costume relativo ao direito dos mares, hoje em dia já
substituído pela Convenção de Montego Bay.

Uma outra realidade que vale a pena focar relativamente às fontes de DIP tem que ver com
a transição entre fontes. Muitas vezes há uma norma que nasce de uma determinada fonte
que depois se transforma e é incorporada por uma outra fonte, acabando por ser ainda
incorporada e revelada por outra fonte. Uma delas tem que ver com a competência dos
tribunais superiores, nomeadamente internacionais, definirem os seus próprios poderes
em caso de incerteza. Começou por ser um princípio de direito interno, que passou depois
para a esfera do direito internacional, como um princípio de DIP; depois converteu-se num
costume internacional e finalmente foi positivado num estatuto do TIJ, que é um tratado
internacional, verificamos que existem situações de transição entre fontes de DIP, no
sentido de transição entre normas originárias de uma fonte que depois, mais tarde,
passam a ser reveladas por uma outra fonte.

Há também inequivocamente uma tendência para que paulatinamente os tratados


internacionais vão incorporando e roubando espaço ao costume. Um exemplo está na
Convenção do Direito dos Mares. O costume do direito dos mares continua a existir, mas
grande parte dos Estados da comunidade internacional resolveu ratificar/celebrar a
Convenção de Montego Bay sobre o direito marítimo.
Porque há esta tendência para a positivação do costume, ou seja, para a redução a escrito
do costume que passa a incorporar depois tratados internacionais? É o facto do próprio
desenvolvimento e especialização do DIP. O DIP passa, como qualquer outro ramo de
Direito, a tornar-se mais particular, mais especial e detalhado, sendo que essa exigência de
segurança e de detalhe torna dificilmente exequíveis normas com uma grande
generalidade, como as normas consuetudinárias, que continuam a existir um pouco a título
subsidiário e, por vezes, a título primário. Há de facto um esvaziamento gradual do
costume em favor da sua positivação em tratado.

Convenção internacional

Há duas convenções de Viena:


1. Convenção de Viena de 1969 que se aplica aos tratados celebrados entre Estados-,

28
Direito Internacional Público Mariana Esteves

2. Convenção de Viena de 1986 que se aplica às relações convencionais, ou seja, aos


tratados celebrados entre Estados e organizações internacionais ou apenas entre
organizações internacionais.
Para o regente, uma convecção é quase o decalque da outra com especialidades, sendo que
mais valia pegar na Convenção de Viena de 1969 e abri-la também com disposições
especais para as organizações internacionais, escusando se haver duas convenções
internacionais que são tão próximas uma da outra.

1. O que é uma convenção internacional?

Um tratado é uma fonte de direito internacional que não existe a nível do direito interno.
Seguindo aquilo que a alínea a), do n.º 1 do artigo 2º da Convenção de Viena, acaba por ser
um acordo de vontades concluído entre dois ou mais sujeitos de DIP, que devem ter
capacidade para celebrar contratos, têm que ter jus tractum, ou seja, capacidade de
celebrar entre si convenções internacionais, e que se destina a produzir eficácia jurídica ou
efeitos jurídicos na ordem jurídica internacional, ou seja, efeitos jurídicos regidos pelo DIP.
Seguimos a alínea a) com derrogações, na medida que esta diz que é um “acordo
internacional concluído por escrito entre Estados”.

Porque damos esta definição tão ampla? Pela simples razão de que há convenções
celebradas entre Estados, entre Estados e organizações internacionais, entre Estados e
movimentos de libertação nacional, entre Estados e movimentos insurretos, entre Estados
e governos de exílio e também entre organizações internacionais. Ou seja, não só os
Estados mas muitos outros sujeitos de DIP podem celebrar tratados. Neste sentido, não
podemos reduzir os sujeitos que detenham jus tractum aos Estados.

Em segundo lugar, os sujeitos devem ter capacidade para celebrar tratados e nem todos os
sujeitos de direito internacional o podem fazer. Por exemplo, o individuo não pode
celebrar tratados, bem como certas organizações internacionais, depende do que estiver
estabelecido na sua convenção constitutiva. Os movimentos de libertação, os governos do
exílio podem apenas celebrar certo tipo de tratados que têm que ver essencialmente com o
uso da força e a independência de determinados Estados, não têm uma capacidade
genérica para celebrar todo o tipo de tratados. É necessário verificar qual é a capacidade
do sujeito para poder exercer esta faculdade de jus tractum.
São acordos celebrados no plano internacional que visam produzir efeitos na ordem
jurídica internacional.

As convenções de tratados internacionais tanto pode ser por escrito como podem ser
orais, isto na generalidade. Mas para a Convenção de Viena, de acordo com o artigo
2º/n.º1/a), a situação é diferente. A convenção só regula tratados celebrados entre
Estados, regidos pelo direito internacional, podem estar consagrados num instrumento
único ou podem fazer parte de diversos documentos e têm de ser celebrados por escrito.
Não pode haver tratados orais regidos pela Convenção de Viena, sendo que esta só se
aplica a certo tipo específico de tratados.
Para efeitos desta mesma convenção, são tratados, estes acordos de vontade por escrito,
independentemente da sua designação. De facto, há convenções internacionais que são
designados por tratado; outros são designados por constituições; outros por cartas; outros
por acordos internacionais. Há uma pluralidade vasta de designações. Independentemente
da designação, desde que estejam presentes estes elementos constitutivos do artigo
2º/n.º1/a), aplica-se a Convenção de Viena a estes mesmos acordos de vontade.

29
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Os critérios de perfeição jurídica de vontade chamam-nos à colação da teoria geral do


negócio jurídico. Os tratados são negócios jurídicos, pelo que toda a teoria relacionada
com os seus vícios, como a invalidade do negócio jurídico, dolo, coação, corrupção e outros
tipos fraudulentos, aplica-se aos tratados. Também aspetos relacionados com a cessação
de vigência, com adaptações, são aplicados às convenções internacionais.

A Convenção de 1969 não se aplica a tratados entre Estados e organizações internacionais


e entre organizações internacionais, aos quais são aplicáveis outras convenções.

Os Estados que podem celebrar convenções não são quaisquer Estados, mas apenas
Estados soberanos. Por exemplo, o tratado celebrado entre Portugal e as autoridades
gentílicas nativas de Cabinda, o famoso tratado de Simulambuco, deu um reconhecimento
da autoridade portuguesa interna sobre o território de Cabinda, não foi um tratado
internacional, foi um tratado protetorado colonial que não vale como convenção
internacional, assim como convenção celebrado entre potentados e Estado e por vezes
mesmo tratados de protetorado havia algumas dúvidas, mas os tratados para serem
considerados como tal, têm que ser estipulados entre Estados soberanos. Para a
Convenção de Viena de 1969 não são considerados tratados aqueles que muitas vezes são
formalizados como tal, como o caso de acordos entre casas reais, nomeadamente relativos
a casamentos de famílias reais diferentes, isto nos termos desta convenção, o que não quer
dizer que não valham noutras circunstâncias.

Da mesma forma, os Estados federados podem celebrar tratados entre si – ex.: os Estados
federados norte-americanos podem celebrar tratados como os Estados federados de
outros países. Não são Estados soberanos, são Estados com autonomia constitucional, pelo
que não se lhes aplica a Convenção de Viena de 1969, mas aplica-se, por exemplo, o direito
consuetudinário dos tratados que existia antes desta convenção, sendo certo que estes
tratados que estamos a falar, entre entidades federadas, no fundo, para serem válidos
internacionalmente têm que ser ratificados/autorizados pelas autoridades federais, se não
era uma situação incontrolável.
Os tratados que podem ser estabelecidos entre um Estado soberano e sujeitos de direito
internacional não soberano, como o caso dos movimentos de libertação e de movimentos
insurretos, obviamente que se lhes aplica o direito consuetudinário internacional, mas não
se aplica a Convenção de Viena de 1969.

Os tratados devem submeter-se ao DIP, ou seja, às regras gerais da ordem internacional,


daí que esta própria Convenção de Viena, para os Estados que a ratificaram, tem uma
superioridade sobre os tratados que foram concluídos à sombra da mesma.
Para se aplicar a Convenção de 1969, os tratados devem ser celebrados da forma escrita. É
uma exigência instrumental, podem fazer parte de diversos documentos, sendo que aos
tratados orais acaba por não se aplicar este regime. Também os tratado secretos é muito
duvidoso que possam vincular Estados, precisamente por serem secretos e não serem
registados na ONU, eventualmente até porque não seguem os instrumentos de ratificação
próprios dos Estados, acabando ter maior validade política que jurídica.

Os tratados podem ser classificados por diversas formas e na base de um conjunto de


critérios (4):
1. Em razão do objeto:

30
Direito Internacional Público Mariana Esteves

a. Tratado lei – É aquele que é composto por regras de natureza geral, se


aplica a uma pluralidade de sujeitos com disposições uniformes, acabando
por respeitar aos tratados multilaterais, que envolvem diversos países.
b. Tratado contrato – Típicos de relações bilaterais, nem todas se
reconduzem a tratados contratos, mas estes estão na base de relações
bilaterais de reciprocidade: um Estado compromete-se a assumir um
conjunto de obrigações e outro Estado, como contrapartida, outras
obrigações (ex.: contrato de Barter)
c. Tratado misto – Tem disposições típicas de um tratado lei, disposições
genéricas aplicáveis a qualquer sujeito e a todas as partes do tratado, mas
também tem algumas disposições só aplicáveis a certos Estados ou que
procludem que certas normas se apliquem a determinados Estados (ex.:
Tratado de Lisboa)
2. Quanto ao âmbito material:
a. Tratados gerais – São equivalentes às leis gerais e abstratas, têm um
conjunto de disposições indeterminadas que se aplicam a uma pluralidade
de destinatários.
b. Tratados especiais – Têm disposições particulares que tratam com detalhe
uma determinada situação que pode ter uma relação de cabimento com um
tratado especial.
3. Quanto à pluralidade de partes (há um regime gera que é dos tratados bilaterais e
depois há disposições na convenção aplicáveis aos tratados plurilaterais que são
um conjunto de especialidades relevantes):
a. Bilaterais – Tratados celebrados entre dois Estados.
b. Plurilaterais – Tratados celebrados entre mais que dois Estados.
4. Quanto à forma:
a. Tratados solene – São sempre ratificados, ou seja, o momento da
autenticação do tratado, a fixação do texto é sempre separada do momento
em que o Estado se vincula definitivamente a esse texto, que pode ser por
ratificação, mas também por outro tipo de instrumentos.
b. Acordos sob forma simplificada – Também conhecidos no mundo anglo-
saxónico por “executive agreements” são aqueles em que no momento em
que se fixa o texto, os Estados vinculam-se.
Na ordem jurídica portuguesa não há tratados sob forma simplificada. Quer os tratados,
quer os acordos internacionais que a constituição prevê, os dois obedecem a um regime
dos tratados solenes da Convenção de Viena, porque o momento da assinatura que fixa o
texto distingue-se do momento em que o Estado posteriormente se vai vincular a essa
convenção.

Aula 4 – 06/10/2020

Sumário: Processo de celebração das convenções internacionais

Análise das convenções bilaterais


Muitos dos aspetos estruturais bem como elementos do processo de conclusão das
convenções são muito idênticas – as multilaterais é que têm um conjunto de
especialidades.
Preâmbulo

31
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Às convenções bilaterais, bem como a todas as outras convenções de um modo geral, a


estrutura da convenção é composta por um preâmbulo como vários considerandos. As
próprias diretivas da UE, que não são convenções, são atos jurídicos unilaterais, têm um
pouco esta lógica dos considerandos. Os considerandos preambulares são importantes
como elemento interpretativo da convenção, talvez mais até do que os preâmbulos dos
decretos-leis que vigoram em Portugal ou a exposição de motivos que acaba por ser
interna das leis da AR.

As convenções internacionais muitas vezes têm disposições ou normas com uma certa
ambiguidade, alguns conceitos indeterminados (uns estão definidos, outros não estão),
existem lacunas e, portanto, é necessário entender qual é o contexto da celebração do
tratado ou convenção bilateral, os objetivos que presidiram fundamentalmente à sua
conclusão, bem como o objeto (sobre o que é que trata especificamente). Muitos dos
considerandos, por vezes, até excessivamente extensos, acabam por elucidar precisamente
esses aspetos se eles não ficam perfeitamente determinados no preceituado, ou seja, nos
artigos, e que são a parte jurídica propriamente dita da convenção.
Os preâmbulos são extensos e relevantes. Não se pode dizer que tem valor normativo, pois
valor normativo não tem, mas tem valor interpretativo e se houver um litígio, em tribunal,
sobre o sentido de certas normas ou o fim da convenção, o preâmbulo pode ser convocado
pelos tribunais e até pelas partes em litígio, em abono de certo tipo de posicionamentos.

Corpo normativo da convenção

No fundo refere-se aos artigos e às normas que a convenção contém a título principal.
Aquilo que ocorre com frequência é que um primeiro artigo geralmente define o objeto da
convenção, mas geralmente também na parte inicial do preceituado da convenção – e, hoje
em dia, isso é muito comum – existe um artigo de definições, ou seja, um artigo que
procura explicitar o que é que certo tipo de expressões ou de conceitos que são de alguma
forma utilizados nas disposições normativas da convenção efetivamente significam. Isso é
importante porque há conceito polissémicos, os Estados podem atribuir significados
diferentes ao mesmo instituto e alo há um conjunto de definições unívocas e que são
adotadas pelo próprio tratado.

Também são importantes as disposições finais e transitórias da convenção, porque nos


dizem quando ela entra em vigor, se ela entra em vigor simultaneamente para todas as
partes – neste caso dos contratos bilaterais estamos a falar de duas partes, mas pode haver
uma entrada em vigor diferida -, em que termos, bem como aspetos que podem ser tido
como relevantes relativamente à sua aplicação.
As disposições transitórias são sempre particularmente importantes, tal como acontece
com as leis. Nunca devemos de deixar de examinar com cuidado, aquando a análise de uma
lei, as disposições finais e transitórias que nos elucidam que normas é que são revogadas,
aspetos relacionados com a vigência e aplicação, valendo tudo isso quanto aos tratados
internacionais.
Anexos

Conjunto de documentos para os quais o articulado, isto é, o corpo normativo do tratado,


remete.
são muito variados e têm valor jurídico muito distinto. Há anexos que são clarificações do
próprio preceituado, que são especificações e que têm valor claramente normativo. Assim,
há anexos que são compostos por normas, normas, muitas vezes, subsidiarias, que

32
Direito Internacional Público Mariana Esteves

podíamos definir materialmente como pararregulamentares. E porque se prefiguram em


anexos e não no corpo do articulado do tratado? Por razões de logística e de sistemática:
ou não têm dignidade, em razão da matéria, para figurar no corpo ou dariam origem a um
tratado desmesuradamente grande com minudencias e regras de muito detalhe, regras
adjetivas que desfigurariam o próprio corpo do tratado e que tornavam a leitura do “back
bone” convencional ilegível. Aspetos normativos, mas subsidiários, são remetidos para o
anexo, tendo este valor normativo.

Noutras circunstâncias, os anexos têm que ver com listagens. Imagine-se uma convenção
que visa banir certos medicamentos ou certos produtos perigosos, enunciando quais são
os mesmos. Não faz sentido que estas listagens figurem no corpo do tratado, sendo
remetidas para anexos. Convenções que tenham símbolos, também vêm os seus elementos
simbológicos constarem de anexos. Muitas vezes não são normas em sentido próprio, mas
têm uma conexão com as normas, figurando, por isso, em anexo.
Os anexos têm um valor jurídico variável. Podem ter um valor quase idêntico ao do tratado
ou das normas do tratado, nomeadamente, a nível de definições. Podem ter um valor
pararregulamentar, mas é vinculante, que executam ou concretizam aspetos do tratado.
Podem ainda ter um valor já mais subsidiário de normas técnicas. Uma coisa é uma
convenção, outra coisa são disposições que, por exemplo, tenham que ver com
medicamentos, produtos, substâncias e em que existem não normas jurídicas, mas normas
propriamente da ciência ou da técnica que está a ser adjetivamente envolvida no
preceituado da convenção. Nessas circunstâncias, há quem entenda que se trata de
normação puramente técnica, pelo que não terá o mesmo valor jurídico que uma
convenção internacional, sendo remetida também para os anexos.

Há anexos e anexos, que concorrem para a aplicação e efetividade da execução de uma


convenção internacional.

Procedimento de conclusão de uma convenção internacional


1. Fase da negociação

Tem um primeiro momento que é a elaboração do texto. Em regra, quando há uma


convenção bilateral há uma parte que dá o “pontapé de saída”, ou seja, apresenta um
anteprojeto ou um conjunto de bases (critérios gerais) que entende serem úteis na
convenção.
Nestas rondas negociais, o que deve ocorrer é o que plenipotenciário tem autoridade
sobre todos os membros da delegação, sendo importante que não perca o controlo sobre
os mesmos.

A pressa é uma semelhante conselheira. Se uma das parte tem pressa em celebrar a
convenção, sobretudo por razões que não são essenciais, tende a sacrificar alguns dos
interesses importantes para o próprio país, sobretudo em quadros de detalhe. Também
psicologicamente, se a outra parte que não tem pressa notar que a parte contrária está
apressada e nervosa por concluir a negociação, tenderá a arrastá-la e a colocar problemas
relativamente a certos detalhes e a propiciar cedências que numa situação normal não
deveriam de todo em todo ocorrer.
Também exibições, sobretudo pela parte do plenipotenciário, de nervosismo são captadas
com facilidade por diplomatas experientes da contraparte, se eles se situam num quadro

33
Direito Internacional Público Mariana Esteves

de frieza absoluta e de análise facial dos diplomatas que se encontram precisamente como
negociadores do outro lado. Este é um aspeto importante que deve ser acautelado.

A reciprocidade na alternância relativamente ao local onde as negociações acabam por


ocorrer. É importante que se diga que se existe por parte de uma delegação, alguma
insegurança e nervosismo relativamente a um detalhe, a contraparte, muitas vezes, finca
pé nesta questão, bem como reabre questões que aparentemente já se encontravam
fechadas.

Os processos de negociação internacional são muito delicados

Há situações em que um plenipotenciário pratica atos negociais e outros relacionados com


a negociação de um tratado e depois chega-se á conclusão que ele não era competente
para o efeito, sobretudo em termos de legislação interna. Isto pode suceder em certos
Estados em que deve ser um diplomata de carreira, nomeado pelo Ministério das Relações
Exteriores, a proceder à negociação. Mas no meio de pressas, mais tarde, acaba por
assumir esse papel de negociador um outro membro do governo, um vice-primeiro
ministro ou um técnico superior a quem é dado um poder específico, mas que, sobretudo
face ao direito interno, não tinha poderes negociais.

O que acontece quando ele efetivamente pratica atos negociais sem competência para o
efeito? O art. 8º da Convenção de Viena dá-nos a resposta: um ato relativo à conclusão de
um tratado, praticado por pessoa que não tenha competência ou não estava autorizada a
representar o Estado nessa negociação, para esse fim, faz com que os atos que ele tenha
praticado não produzam efeitos jurídicos, salvo se forem posteriormente confirmados.
As consequências desta situação podem ser as seguintes:

• Os atos são confirmados pelo governo do Estado, ou seja, o governo ratifica os


mesmos, sendo o vício de incompetência relativa sanado e os atos são plenamente
válidos.
• O governo decide não o fazer e os atos são ineficazes, ou seja, não produzem
efeitos jurídicos.
Quem é que pode ser plenipotenciário? Quem exiba junto da outra parte, em regra, uma
carta de plenos poderes.

Muitas vezes, há uma dispensa de exibição de carta de plenos poderes relativamente a


pessoas que podem, em função das tarefas, competências ou cargo que ocupam, atuar
presuntivamente como plenipotenciários ou como representantes do Estado.
O art. 7º do n.º 2 da Convenção de Viena diz-nos que estão nesta situação –
plenipotenciários por inerência das funções que ocupam:

• Os chefes de Estado, os chefes de Governo e os ministros dos negócios estrangeiros


para atos relacionados com a conclusão de um tratado;
• Os chefes de missão diplomática, para a adoção do texto de um tratado entre o
Estado acreditante e o Estado junto ao qual estão acreditados;
• Os representantes acreditados pelos Estados perante uma conferência ou
organização internacional ou um de seus órgãos, para a adoção do texto de um
tratado em tal conferência, organização ou órgão.

34
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Se no meio destas questões todas que estão previstas no tratado, houver um problema de
incompetência de alguém que assina atos e pratica condutas relacionadas com o processo
negocial, há sempre a hipótese desses atos poderem ser posteriormente ratificados.
Se houver uma situação de embuste, em que alguém decidiu representar o Estado sem ter
qualquer tipo de mandato, o governo tem sempre a possibilidade de não ratificar e dizer
que aqueles atos não produzem efeitos jurídicos, porque não foram autorizados.
A negociação conclui-se, em regra, com o momento de autenticação da convenção
internacional. A autenticação de uma convenção bilateral opera, em regra, através da
assinatura.
2. Fase da autenticação

Significa que as negociações terminaram, que o texto da convenção fica definitivamente


fixado e que a partir desse momento se inicia um processo de vinculação interna da
convenção pelos Estados.

Nos tratados solenes, a autenticação é sempre uma fase de conclusão do tratado que é
diferente da vinculação. Primeiro fixa-se o texto do tratado, posteriormente a convenção é
objeto de apreciação pelos órgãos constitucionais competentes e estes procedem ou não à
outorga do seu consentimento através de vários instrumentos – aprovação, ratificação –
pelo que temos dois momentos jurídicos: fixação do texto e vinculação e expressão
definitiva do consentimento do Estado.

Há também os acordos sob forma simplificada que não existem na ordem jurídica
portuguesa, mas existem em ordem jurídicas de países estrangeiros anglo-saxónicos, em
que o momento da assinatura vale quer como autenticação, quer como expressão
definitiva do consentimento. Isto significa que, na conclusão de um acordo internacional,
quando o plenipotenciário assina o acordo, ele não só fixa o texto, mas exprime
definitivamente o consentimento do Estado relativamente a esse mesmo acordo.

Fala-se essencialmente da assinatura como instrumento apenas de autenticação. Portanto,


fixa-se e certifica-se o texto definitivo da convenção pelos plenipotenciários, sem prejuízo
da sua ulterior expressão de consentimento dos Estados em ficarem vinculados a essa
mesma convenção.

Um Estado que define uma determinada convenção internacional está para todos os
efeitos vinculado a exprimir o seu consentimento? Não estão obrigados. Esta situação tem
ocorrido frequentemente nos EUA, em que muitos tratados têm sido autenticado, mas
mais tarde o Senado não os ratifica.
Há um conjunto de condutas, ligadas ao princípio da boa fé, que é um princípio de DIP
além de ser um princípio de direito interno, diz-nos que, de acordo com o art. 18º da
Convenção de Viena, um Estado deve abster-se de praticar atos que privem o tratado do
seu objeto ou do seu fim. Isto evita situações em que um Estado que tem muito vontade, o
plenipotenciário assina a convenção para se vincular definitivamente, começa a praticar
atos cujo objetivo é uma justificação coxa para mais tarde não se vincular, praticando atos
que privem a convenção do seu fim ou objeto.

Estão aqui dois aspetos em que o artigo 18º fixa um conjunto de obrigações:

a) Quando assinou o tratado ou trocou os instrumentos constitutivos do tratado sob


reserva de ratificação, aceitação ou aprovação, enquanto não manifestar a sua
intenção de não se tornar Parte no tratado;

35
Direito Internacional Público Mariana Esteves

b) Quando manifestou o seu consentimento em ficar vinculado pelo tratado, no


período que precede a entrada em vigor do tratado e com a condição de esta não ser
indevidamente adiada.
Estes efeitos têm pouca vinculatividade. Se um Estado quiser fazer fá-lo, podendo, nalguns
casos, ser objeto de responsabilidade internacional, ainda que o regente não veja muito
bem como. Trata-se essencialmente de um enunciado muito genérico do princípio da boa
fé.

A autenticação muitas vezes não ocorre num só momento. O instituto mais comum que
envolve precisamente o processo das ratificações tem que ver com a assinatura. Mas
também há outros instrumentos que estão previstos no art. 12º:

• Rubrica – A rubrica de uma convenção tanto vale como uma aceitação provisória
do texto da convenção, como pode funcionar como assinatura. A rubrica é uma
assinatura simplificada. Portanto, se for estabelecido previamente que a rubrica
tem o valor de assinatura ela vale como tal, se não valerá um pouco como
aquiescência provisória do texto da convenção.
• Assinatura ad referendum – Muitas vezes chega-se numa determinada
negociação a um acordo sobre o texto final, mas com reservas e com dúvidas sobre
um ou outro preceito, mas, no fundo, aquilo que os plenipotenciários pretendem é
dizer que acabaram na essência o seu trabalho, têm dúvidas sobre estas questões,
pelo que não podem dizer que a negociação esteja plenamente concluída, porque
este texto necessita, até para se tornar definitivo, de aquiescência/acordo
relativamente aos órgãos políticos do Estado, nomeadamente os Ministérios das
Relações Exteriores, então fazem uma assinatura ad referendum: assinam, o texto é
um texto pré-final, mas está sujeito a confirmação por parte dos órgãos políticos
competentes e se estes não confirmarem, a negociação pode reabrir-se. Pelo
contrário, a assinatura ad referendum é aposta no texto e, mais tarde, os órgãos
políticos competentes confirma o texto. A partir daí a assinatura ad referendum,
depois da confirmação, vale como assinatura.
• Troca de instrumentos – Por vezes a fixação do texto pode ser feita por troca de
instrumentos. As duas partes, cada uma tem um texto e depois permutam os textos
entre si. Tanto pode valer como autenticação, como pode valer, como se vê no art.
13º, como expressão definitiva de consentimento. Nesta troca de instrumentos, os
mesmos estão efetivamente assinados. Hoje em dia não é muito comum, mas ainda
existe esta figura – ex. : EUA.

3. Vinculação

Estádio mais importante em termos jurídicos. Mesmo que fixado o texto não significa que
os Estados se encontrem vinculados juridicamente, sendo necessária a existência de atos,
aos quais as constituições se reportam, de vinculação do Estado á convenção.

É o momento principal em que o Estado, exprimindo o seu consentimento em ficar


definitivamente ligado/vinculado à convenção, depois terá que cumprir de boa-fé a
convenção que se vinculou – pacto sunt servanda: os tratados têm que se cumpridos e
executados de boa-fé.
Há várias formas de expressão de consentimento, faladas no art. 11º da Convenção de
Viena, sendo a mais comum, sobretudo nos tratados solenes, a ratificação.

36
Direito Internacional Público Mariana Esteves

A ratificação, que a ordem jurídica portuguesa prevê para os tratados, é efetivamente uma
forma de expressão definitiva de consentimento

A assinatura do plenipotenciário, nos acordos de forma simplificada, e a assinatura de


órgãos internos do poder político, relativamente a outras convenções. Por exemplo, na
ordem jurídica portuguesa, a expressão definitiva do Estado Português relativamente a
tratados é dada pela ratificação dos mesmos pelo PR e, relativamente aos acordos
internacionais, à sua assinatura pelo PR, sendo certo que a assinatura do presidente nada
tem que ver com a assinatura do plenipotenciário – o plenipotenciário fixa o texto, em
sede de autenticação, o presidente, depois de tramites internos , assina ou não assina a
convenção internacional.

Há outras formas como a aprovação, curiosamente em Portugal também existe antes da


ratificação ou da assinatura, ou seja, a convenção depois de ser autenticada pelo
plenipotenciário, no caso do s tratados, tem de ser aprovada pela AR e, no caso dos
acordos internacionais, pode ser aprovada pela AR ou pelo governo, em razão da matéria,
e so depois respetivamente ratificada e assinada.
Há várias outras figuras, ligadas e previstas no ordenamento jurídico de outros Estados.

Nos tratados multilaterais há a figura da adesão. Muitas vezes, a expressão definitiva do


consentimento de uma convenção aberta ou semiaberta, é depois de atos internos de
vinculação, haver um ato de adesão do Estado que não participou nas negociações, a uma
convenção internacional já em vigor e já devidamente eficaz.

Ratificações imperfeitas
Uma questão que geralmente ocorre e que tem impacto na segurança jurídica, é o
problema das ratificações imperfeitas. Isto é uma expressão que quer essencialmente dar
nota que, muitas vezes, existem situações em que a convenção internacional, sendo para
todos os efeitos objeto de assinatura e depois de vinculação (expressão definitiva do
consentimento do Estado), se verifica mais tarde que essa convenção é, por exemplo,
inconstitucional, isto é, é contrária a disposições fundamentais de direito interno.
A inconstitucionalidade pode ser muito variada:

• Pode a convenção internacional violar disposições da constituição – Por exemplo,


uma convenção que seja celebrada e que preveja irrestritamente a extradição de
criminosos para determinados Estados, onde lhes será aplicado necessariamente
prisão perpétua ou outras disposições em matéria de asilo que contrariem a
constituição (inconstitucionalidades materiais) ou outras situações de
inconstitucionalidade orgânica em que, por exemplo, se tratava de uma matéria
que era reserva de tratado, tendo sido aprovada pelo governo ou situações de
inconstitucionalidade forma, em que uma matéria que diria respeito às regiões
autónomas, onde estas deveriam ter participado na negociação, pelo menos
nomeando um representante para a delegação, mas em que se preteriu a
participação das RA’s como indica o art. 227º da CRP. Temos aqui situações de
vícios de inconstitucionalidade da convenção. As convenções internacionais
podem ser declaradas inconstitucionais, como normas que são, pelo TC. Esta
situação levanta problemas, porque deliberadamente certos Estados que depois se
querem desvincular de uma convenção, podem praticar inconstitucionalidades se
mais tarde se escudarem de um juízo de inconstitucionalidade do tribunal. Esta
situação de vícios internos, de ratificações ditas imperfeitas, tem obviamente

37
Direito Internacional Público Mariana Esteves

consequências negativas nas relações jurídicas internacionais entre Estados - é um


fator de insegurança jurídica.

Havia uma solução consuetudinária anterior à entrada em vigor da Convenção de Viena


sobre os Tratados que nos dizia que o Estado era responsável pelos seus próprios vícios
internos no processo de conclusão da convenção, pelo que a convenção continuaria a
produzir os seus efeitos jurídicos internacionais – o direito internacional não se
responsabilizava pelos vícios internos, isso era um problema do Estado, a não ser que a
outra parte decidisse renegociar a convenção.

Era uma solução excessivamente rígida e o art. 46º da Convenção de Viena passou a
aplicar-se a esta problemática das invalidades internas das convenções numa solução que
é menos rígida, mas não deixa de o ser. No fundo, o que resulta deste artigo que está
escrito de uma forma muito arrevesada, é o seguinte: só as inconstitucionalidades ou as
invalidades orgânicas relevam em termos de se projetarem na invalidade de toda a
convenção. Portanto, vícios de competência – ex. : se em Portugal um tratado não for
objeto de ratificação pelo PR ou se nomeadamente um tratado internacional for aprovado
pelo governo e não pela AR.

Vícios de natureza competencial são os únicos que relavam para que um Estado onde
revelou o vício possa alegar junto do outro Estado a invalidade de uma parte ou de toda a
convenção internacional, por vício interno. Tem legitimidade para o fazer apenas neste
caso e contando que, a disposição em causa, que está afetada pelo vício de competência,
seja uma disposição fundamental. Portanto, situações ambíguas e não evidentes, não
relevam para que esse Estado possa invocar a invalidade da convenção devido à sua
inconstitucionalidade orgânica, sendo nomeadamente o que nos diz o n.º2 (“manifesta”).

Em suma, vício orgânico, que recai sobre uma disposição fundamental da ordem interna
do Estado e com carácter ostensivo e evidente.

Isto levanta diversos problemas:

• E se o vício não for orgânico e for mas inconstitucionalidade material ou formal?


Tanto pior. Nesse caso, o Estado não pode alegar o vício como o motivo de
invalidade e nulidade da convenção internacional. O Estado terá que ficar obrigado
a transportar às costas o vício? Não, a constituição prima pelo direito
internacional, um tribunal constitucional ou equivalente pode declarar a nulidade
interna da convenção e ela não produz efeitos jurídicos e o Estado em causa não
cumpre com a convenção, com a consequência jurídica de incorrer em
responsabilidade internacional. Haverá sempre cláusulas de penalização e de
compensação, tendo eventualmente que indemnizar o outro Estado ou compensá-
lo de uma forma qualquer. Por vezes, para estes litígios há tribunais arbitrais ou os
Estados podem chegar, através de uma negociação, a uma qualquer solução
compensatória, que de alguma forma obvie a este tipo de questões.

4. Produção da sua eficácia


O regime de início de eficácia das convenções internacionais está previsto no art. 24º da
Convenção de Viena: um tratado entrará em vigor nos termos em que estiverem
estipulados nas próprias convenções do tratado (1º). Na falta dessas disposições ou de um
acordo entre os Estados que participaram na negociação, entra em vigor logo que a
expressão do consentimento relativamente ao tratado seja manifestado por todos os

38
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Estados que participaram nessa negociação. Esta disposição, no entendimento do regente,


não se aplica tanto às convenções bilaterais, mas às convenções multilaterais.

Importa que se tenha em consideração o seguinte aspeto: as convenções internacionais


celebradas pelos Estados têm eficácia jurídica entre eles, mas também têm eventualmente
uma eficácia jurídica internacional a propósito de questões que tenham quer ver com
litígios, entre esses dois Estados, a propósito dos tratados.
O art. 102º da Carta das Nações Unidas obriga o registo de todas as convenções bilaterais
ou multilaterais, celebradas pelos Estados, no Secretariado Geral das Nações Unidas, como
pressuposto de eficácia dessas convenções, junto dos órgãos das Nações Unidas. Por
exemplo, se dois Estados tiverem um litígio sério a propósito de uma convenção que
tenham celebrado que requeira a intervenção dos órgãos da ONU, esses órgãos, em tese, só
podem intervir se esse tratado estiver registado no Secretariado Geral, Mais ainda, faz
parte das Nações Unidas, como seu órgão, o TIJ e, por regra, só se pode submeter
convenções internacionais à esfera jurisdicional do TIJ, ou seja, este só será competente
para dirimir litígios entre Estados, a propósito de uma convenção, se essa convenção tiver
sido previamente registada no Secretariado Geral das Nações Unidas.

Isto são regras de eficácia quer quanto à entrada em vigor do tratado, quer quanto ao
problema da produção de efeitos jurídicos junto de órgãos ou instituições importantes,
como é o caso, em termos de organizações internacionais, da ONU.

Considerações sobre as convenções multilaterais


As convenções multilaterais são aquelas que são celebrada por mais de dois Estados. Hoje
em dia há um desenvolvimento muito acentuado do multilateralismo.

O processo de celebração de uma convenção desta natureza geralmente é coletivo,


ocorrendo de duas formas:

• Âmbito de uma conferencia internacional – Convoca-se uma conferência


internacional, os Estados enviam os seus plenipotenciários e, na sequência de
negociações dessa conferência, surge uma convenção internacional.
• Âmbito de uma organização internacional – Nações Unidas ou órgãos, como
organizações internacionais que flutuam na esfera das Nações Unidas (ex. – OIT).
Para lá destas duas formas típicas do processo de celebração de convenções multilaterais,
temos também formas mistas, ou seja, sob a égide de uma organização internacional
realizam-se conferências internacionais. Por exemplo, o Tratado de Roma que criou o
Tribunal Penal Internacional, houve uma conferência internacional localizada em Roma,
mas essa conferência internacional foi realizada sob a égide das Nações Unidas.

Fase da negociação
O primeiro estádio, a fase negocial ocorre através de órgãos específicos da organização
internacional ou, em regra, de uma conferência internacional. Aqui, a conferência tem
várias rondas/sessões e importa perceber que, entre cada ronda negocial, os
plenipotenciários não ficam parados, há muita troca de correspondência diplomática e
geralmente quando há uma ronda negocial ou uma sessão da conferência internacional,
muita “pedra” está partida, ou seja, muitos escolhos evitáveis que podiam causar grande
controvérsia e pequenas coisas também que fazem perder tempo na ronda negocial,

39
Direito Internacional Público Mariana Esteves

obviamente que essa matéria entretanto já foi desbravada através de consultas bilaterais
ou multilaterais entre os Estados.

Quando existe um consenso/compromisso mínimo sobre o texto da convenção temos


então a fase da autenticação.

Fase da adoção do texto

Designa-se por adoção do texto quando se trata de uma convenção multilateral (e não de
assinatura) e está prevista no art. 9º da Convenção de Viena.

Claro que a adoção implica assinatura. Os Estados ao adotarem uma constituição, adotam
por uma maioria, mas obviamente também assinam depois os instrumentos formais
atinentes a esse mesmo processo.

Todavia, a adoção de uma convenção implica, sobretudo em conferência internacional,


uma maioria qualificada. A regra geral que o art. 9º da Convenção de Viena estabelece é a
da unanimidade. Contudo, não havendo unanimidade é estipulada uma maioria de 2/3
para adoção em conferência internacional.

Todavia, podem os Estados acordar necessariamente por 2/3 que a adoção se faça por
maioria diferente, mais ou menos exigente. Previamente, os Estados por uma questão de
agilidade estipulam que vão exigir uma maioria mais exigente do que os 2/3 (ex. – 4/5) ou
uma maioria menos exigente (ex. – maioria absoluta). Essa maioria diferente deve ela
própria ser tomada por 2/3 dos Estados participantes.

Diversamente, se estivermos perante uma convenção que seja apenas e tão só negociada
no âmbito de uma organização internacional, o ato constitutivo dessa organização, que em
regra é um tratado, pode estipular maiorias de natureza distinta, maiorias específicas para
a adoção das convenções no âmbito da organização. Isto é o que resulta do art. 9º da
Convenção de Viena.
Adotado o texto, entende-se que restará aos Estados que participaram na negociação,
decidir ou não, em momento posterior, vincular-se ao mesmo. Claro que pode haver uma
situação diferente. Pode acontecer que, para alguns Estados, a convenção que se esteja a
negociar seja um acordo sob forma simplificada. Sendo um acordo sob forma simplificada,
a assinatura aposta no quadro da adoção pode valer como expressão definitiva do
consentimento, isto apenas para alguns Estados. Em Portugal isso não poderia nunca
suceder, terá de haver sempre um processo posterior de aprovação, de ratificação, de
assinatura (no caso dos acordos).

Estamos, todavia, a falar ainda da fase do termo das negociações e da autenticação por via
de adoção.

Também há situações previstas na Convenção de Viena que se reportam à chamada


assinatura deferida. A assinatura do Estado que participou na negociação é retardada para
o momento em que a convenção ficar aberta à assinatura de outros Estados que não
participaram no processo negocial. Há um Estado que reserva o direito de não assinar a
convenção; o texto da convenção fica fixada e é uma convenção aberta a terceiros Estados
que não participaram na negociação possam assiná-la. Um Estado que tenha participado,
pode não querer assinar imediatamente e pode assinar diferidamente, ou seja, posterga a
sua assinatura para um momento em que a convenção fica aberta à assinatura dos Estados
que não estiveram envolvidos no processo negocial.

Vinculação

40
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Quanto à expressão do consentimento, ou seja, a vinculação, há três tipos de convenções:

1. Convenções abertas - Para lá dos Estados que participaram na negociação da


convenção e que podem obviamente vincular-se à mesma num momento posterior,
a convenção é passível de ser objeto de vinculação posterior por Estados que não
participaram nessa mesma negociação. Portanto, se a convenção ficar
completamente aberta (ex. – Carta das Nações Unidas, outras convenções de
carácter multilateral geral), possuindo uma natureza genérica, pode ser objeto de
vinculação por esses outros Estados não participantes na negociação original.
Esses Estados vinculam-se à convenção através de um instrumento que é a adesão:
primeiro, eles assinam/autenticam a posteriori; depois exprimem internamente,
através do seus órgãos e tramites constitucionais a expressão definitiva do seu
consentimento; por fim, de alguma forma, depositam os instrumentos de adesão a
essa mesma convenção e, a partir do momento em que isso se sucede, ficam
vinculados à mesma.
2. Convenções fechadas – Há quatro, cinco, seis Estados que resolvem estabelecer
entre si uma convenção e não pretendem que outros, mais tarde, não se venham
vincular à mesma. Assim, estabelecem que apenas entre estes Estados é concluída
a convenção, ou seja, não há a possibilidade de adesão a posteriori por parte de
outros Estados ou sujeitos de direito internacional
3. Convenções mistas (semiabertas – para CBM/semifechadas) – Para além dos
Estados que concluíram a convenção internacional e que a negociaram na sua
origem, vinculando-se à mesma depois, ela fica disponível para que um conjunto
de outros Estados, previamente delimitados em função de um conjunto de
critérios, se possam vincular a posteriori através da adesão, que pode ser um
simples ato ou um tratado de adesão – ex. : Caso da União Europeia. As
especialidades da adesão encontram-se no art. 15º da Convenção de Viena.

Instituto do depósito
Função que é atribuída ou a um Estado ou a um órgão de organização internacional (ex. –
Secretariado Geral muitas vezes tem funções de depósito) que é uma função de
guardião/custódio dos tratados, dos seus originais, e de responsabilidade pela recolha das
ratificações e, se for o caso, de adesões.

O regime do depositário está previsto no art. 76º, faz sentido nas convenções multilaterais
e, muitas vezes, essa função fora do contexto das organizações internacionais é atribuída a
um determinado Estado, que depois fica com muitas incumbências: para lá da recolha de
ratificações, dos instrumentos de adesão, de verificação se as ratificações estão corretas e
se o Estado que adere à convenção o faz de uma forma regular, cumprindo um conjunto de
critérios exigíveis pela convenção para que se possa tornar parte nela a posteriori, também
tem outras funções, nomeadamente, relacionadas com a disponibilidade de instrumentos
de tradução da convenção para diversas línguas e esclarecimentos sobre o conteúdo da
mesma.

Em caso de divergência entre um Estado e o depositário pode haver mais tarde uma
conferência com os restantes Estados para dirimir esse eventual litígio.

Reservas

41
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Matéria particularmente importante no âmbito das convenções internacionais, da sua


celebração e regime jurídico das convenções multilaterais, e que é um requisito ou um
instituto próprio das convenções multilaterais que são as reservas.
As reservas têm lugar porque em tratados multilaterais, muitas vezes, os interesses dos
Estados são muito diferentes. Não só os interesses, como os ordenamentos jurídicos dos
Estados são muito distintos.
Isto faz com que a um Estado possa interessar a aplicação da maioria ou da quase
totalidade da convenção, mas não deste ou daquele artigo ou poder haver uma situação em
que um Estado verifica que pelo menos um ou outro preceito que a convenção contem
violam a sua constituição e acham importante ser parte da convenção internacional
quanto à maioria do seu regime, mas existe o óbice de contrariedade quanto ao seu direito
interno ou a um interesse nacional muito específico. Então é dada com alguma
flexibilidade dos Estados de praticarem um ato jurídico unilateral que é a reserva, no qual
se declaram eximir do cumprimento no todo ou em parte de preceitos da convenção,
sendo que esta não aplicação é oponível a outros Estados/às restantes, o que significa que
se o Estado não cumprir com aquele preceito, esse não cumprimento tem eficácia, no
sentido de às outras partes não poder ser exigível que esse Estado cumpra com o preceito
sobre o qual fez recair a reserva. Isto é uma forma de acomodar diversos interesses, mas
estamos a falar em abstrato.

Podemos classificar a reserva com um ato jurídico unilateral não autónomo. É unilateral
porque depende de uma decisão que emana do Estado. É não autónomo porque o regime
das reservas consta de um tratado, neste caso da Convenção de Viena que regula toda esta
problemática, nomeadamente, no art. 19º e seguintes. Assim, o regime das reservas está
previamente estabelecido.
Embora em certos caso a reserva, esse ato unilateral, possa ser totalmente ineficaz em
caso de objeções, que são prática de outros atos unilaterais, na maioria dos casos, ele
produz efeitos jurídicos, de natureza diversa, em função da existência ou não de objeções,
mas tende a produzir, caso não seja proibido ou condicionado pelo tratado, efeitos
jurídicos relativamente às outras partes.

É um ato não autónomo pelo qual um Estado, no momento da assinatura, adesão ou de


outra forma de vinculação a uma convenção, pretende excluir de todo ou em parte ou
modicar certas normas que constam da convenção internacional.

Existem figuras afins da reserva, isto é, figuras próximas das reservas, mas que não são
iguais tendo algumas afinidades:

• Declarações interpretativas – É uma tomada de posição do Estado relativamente a


uma norma de uma convenção, em que o Estado procura explicitar a relação de
sentido que para ele tem esse preceito. No momento em que um Estado
adere/autentica uma convenção, ele pode formular uma declaração interpretativa.
Enquanto na reserva o Estado exclui a aplicação, na declaração interpretativa o
Estado clarifica os termos em que entende o sentido de um preceito constante da
convenção. Isto significa que o Estado que formula uma declaração interpretativa
não pode condicionar a sua adesão e vinculação à convenção ao facto dos outros
Estados aceitarem essa declaração interpretativa, porque se tal suceder não
estamos já no âmbito de uma declaração interpretativa, mas sim de uma reserva
simulada. Efetivamente no caso Tamelta chegou-se à conclusão do seguinte: se um
Estado formular aquilo que aparenta ser uma declaração interpretativa

42
Direito Internacional Público Mariana Esteves

relativamente a uma convenção, mas condicionar a sua vinculação à mesma á


aceitação dessa interpretação pelos outros Estados, já não está a formular uma
declaração interpretativa, mas antes uma modalidade de reserva (uma reserva
simulada), pelo que a declaração deve ser tratada como uma autêntica reserva
sujeita, por consequência, ao regime jurídico das reservas – art. 19º e seguintes da
Convenção de Viena.
• Declarações política – Os Estados fazem um pronunciamento político por escrito
que fica anexo à convenção. Contrariamente às situações anteriores, as declarações
políticas não produzem qualquer efeito jurídico, tendo apenas efeitos políticos (ex.
– caso do Tratado de Lisboa)
• Cláusulas de opting-out – Têm uma maior semelhança com as reservas. São
cláusulas previstas no próprio tratado que permitem, a um Estado ou a
determinados Estados que o queiram, não cumprirem com um certo de tipo de
regras, obrigações ou estipulações constantes do tratado, ou seja, podem ficar de
fora (ex. – caso do Tratado de Lisboa; caso de ficar fora do euro). Há Estados que
podem não aceitar o opting-out, mas isso é irrelevante, porque ele está admitido
expressamente ou previamente na própria convenção.

Requisitos materiais de formulação das reservas


O regime anterior à Convenção de Viena sobre os tratados, era um regime difícil, previsto
naquilo que podemos chamar o direito consuetudinário dos tratados que exigia
unanimidade quanto à aceitação das reservas. As reservas seriam aceites desde que os
Estados, parte da negociação, aceitassem essa mesma reserva. Se não aceitassem todos, a
reserva não seria aceite. Isto foi considerado um instrumento de bloqueamento do
multilateralismo, previsto em convenções extensas e abertas a uma pluralidade imensa de
Estados.

A Convenção de Viena veio em boa parte suprir esta rigidez do direito consuetudinário dos
tratados. Portanto, dá-se uma ampla liberdade às altas partes contratantes quanto à
aceitação e formulação da reserva.

A ideia geral é de que os Estados podem estipular no tratado livremente se proíbem


reservas, ou seja, o tratado pode proibir reservas, se aceitam qualquer tipo de reserva ou
se só aceitam certo tipo de reservas ou de reservas sobre um conjunto de matérias.

Aquilo que se extrai do art. 19º e seguintes não é propriamente uma regra, mas, para o
regente, estes artigos são redigidos de uma forma um pouco arrevesada. A ideia é, no
fundo, liberdade das partes contratantes em proibirem, admitirem ou admitirem
condicionadamente reservas em razão da matéria.

Portanto, há convenções de todos os tipos. Há aquelas que proíbem reservas (ex. –


Convenção sobre o genocídio de 1948), mas noutras admite-se algumas reservas ou
mesmo todas, exceto aquelas que ponham em causa o objeto e o fim da convenção.

Se porventura o tratado for totalmente silencioso (tratados silentes) sobre toda esta
questão, isto é, sobre a admissibilidade ou não de reserva, o art. 19º da convenção, na sua
alínea c), estipula que em caso de silêncio, não são admissíveis as reservas que sejam
contrárias ao objeto e ao fim da convenção, porque poriam em causa a razão de ser pela
qual foi celebrada essa mesma convenção – proibição de sentenças incompatíveis, caso
Bellior sentença do TEDH de 1 de abril de 1988 .

Há depois outras regras:

43
Direito Internacional Público Mariana Esteves

• Regra da unanimidade – O art. 20º acaba por implicar muitas dúvidas, mas há
uma dúvida que pelo menos não existe relativamente ao seu n.º1. As reservas são
admissíveis num tratado que tenha um número restrito de Estado? Só são
admissíveis se forem aprovadas por unanimidade, isto é, se todos os Estados
estiverem de acordo. Aqui repristina-se um pouco o regime do direito
consuetudinário dos tratados, que exigia a unanimidade, mas para todo o tipo de
reservas e de convenções fossem elas com número extenso ou número restrito de
Estados.
Perguntar-se-á o que é um número restrito de Estados. Aí não há uma clarificação total da
convenção, sendo que há quem fala que até cinco Estados é um número restrito de
Estados. A partir daí será um número mais vasto, mas isso é algo que devia ter ficado
preciso/clarificado na convenção e não ficou.

Uma outra questão mais complicada tem que ver com tratados constitutivos de uma
organização internacional. O que resulta do n.º3 da Convenção é que quando isso ocorre,
isto é, quando se está a discutir a celebração de um tratado multilateral constitutivo de
uma organização internacional, a questão das reservas dependem essencialmente da sua
aceitação pelo órgão competente da organização. Pelos vistos ficará a situação pendente
até que a convenção entre em vigor e haja um órgão que será competente pela aceitação
ou não aceitação das reservas, o que para o regente é um pouco esdrúxulo, porque toda a
problemática das reservas deve em tese ficar completa até o tratado entrar em vigor. Aqui
tal não acontecesse, dando-se a ideia de que o tratado entra em vigor, as reservas ficam
numa situação de pendência e, mais tarde, haverá um órgão com efeitos retroativos que as
aceitará ou não. Para o regente isto parece ser uma solução francamente má, bem como a
muitos autores, assim como, imaginemos que a reserva formulada respeita às
competências do próprio órgão que depois mais tarde vai decidir sobre a aceitação ou não
aceitação das mesmas reservas. Temos aqui uma situação circular. Há quem diga que
reservas relativas a uma organização internacional deveriam seguir o mesmo critério das
reservas apostas num tratado celebrado ou negociado por um número restrito de tratados,
ou seja, a regra da unanimidade. Não ficou, todavia, esta situação minimamente e
adequadamente clarificada.

Se houver um tratado que em função do número restrito de Estados que entende que a
aceitação do tratado por todas as partes é condição essencial para o consentimento de
cada uma, então aí a reserva também será, nos termos do n.º2 do art. 20.º terá de ser
aceite por todas elas. No fundo, há uma liberdade dada aos Estados, mas existe depois um
conjunto de regras.
Síntese:

1. Liberdade dos Estados em fixarem na convenção a aceitação ou não aceitação de


reservas;
2. Número restrito de Estados a regra geral é a regra da unanimidade;
3. Organização internacional o que diz a convenção é que as reservas formuladas
terão de ser aceites por um órgão competente para o efeito – aquilo que se coloca é
a pouca exequibilidade desta disposição, na medida em que o órgão em causa vai
decidir retroativamente sobre a admissão das reservas, mesmo se estas tiverem
recaído sobre a sua própria competência, o que é estranho e leva alguns a
exigirem, também aqui, a regra da unanimidade;

Requisitos formais e circunstanciais das reservas

44
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Há um dever de comunicação que formula uma reserva às restantes partes – às partes


contratantes – mediante forma escrita, isto é, a comunicação deve ser escrita, e é deve ser
feita não apenas às partes contratantes, mas, tratando-se de uma convenção aberta,
também àqueles Estados que não tendo participado na negociação, estejam em condições
de aderir à mesma – é o que nos diz o art. 23.º/n.º1.

Quando é que devem ser formuladas as reservas? Nos momentos da autenticação – da


assinatura ou da adoção - , mas podem ser formuladas no momento da expressão do
consentimento – momento da ratificação, da aprovação ou da adesão – é o que diz o artigo
19.º da Convenção de Viena. Temos também situações de reservas condicionadas que
estão previstas no art. 23.º/n.º2.

Se um Estado formular uma reserva no momento da autenticação, ou seja, da assinatura


ou da adoção, caso vise manter juridicamente essa mesma reserva, deve confirmá-la no
momento da expressão definitiva do seu consentimento (ratificação ou adesão), para que
essa reserva seja juridicamente oponível a outros Estados.

Aula 5 – 13/10/2020

Figura das reservas – Ato jurídico unilateral não autónomo com pretensões de não
aplicação ou modificação de certos preceitos de uma convenção internacional.
Convém examinar a propósito do regime de aceitação e objeção, os artigos 20.º e 23.º da
Convenção de Viena de 1969.

As reservas podem ser aceites pelos outros Estados, podem ser parte de um tratado
multilateral, ou podem ser objetadas, isto é, há Estados-parte que podem não concordar
com a reserva formulada.

Se um tratado, ele próprio, admitir a formulação de reservas sobre todas as disposições ou


algumas das suas disposições, isto significa que a aceitação é irrelevante: se o tratado
autorizada, obviamente que quem formular uma reserva implica a sua aceitação tácita
automática pelas restantes partes, porque elas previamente já o tinham plasmado em
disposição própria na convenção.

Nos outros casos, não sucede assim, e, no fundo, há um limite temporal de 12 meses
contados da data de notificação de uma reserva – as reservas têm que ser notificadas por
escrito aos outros Estados ou a Estados que podem vir a aderir à convenção ou estejam em
condições de aderir à convenção internacional - , ou seja, quem formula uma reserva,
notifica as restantes partes, e de entre essas mesmas partes, aquelas que pretendam
objetar terão um prazo de 12 meses contando dessa data da notificação para o fazer.

A objeção também observa a forma escrita e há dois tipos de objeções que têm efeitos
jurídicos distintos:
1. Pode-se objetar de uma forma simples
2. Pode-se proceder a uma objeção qualificada – efeitos jurídicos mais drásticos

Os efeitos jurídicos das reservas

Os artigos 20.º e 21.º regulam esta matéria, embora a sua conexão e o modo como estão
estes mesmos preceitos formulados não sejam simples no plano da sua apreensão.

45
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Três cenários que podem ocorrer na base da formulação de uma reserva e da formulação
de objeções a essa reserva:

1. Se um dos Estados formular uma reserva e os restantes não objetarem à reserva,


nomeadamente ou a acetam expressamente ou nada dizem durante o período de
12 meses, entende-se que a reserva é aceite pelas restantes partes e daí decorrem
efeitos jurídicos: se o Estado A resolve formular uma reserva que abranja a norma
X no sentido da não aplicação dessa mesma norma do tratado à sua ordem jurídica
interna, isso significa que essa disposição não se aplicará nas relações jurídicas
estabelecidas entre quem formula a reserva e quem a aceitou, nas suas relações
recíprocas no contexto da convenção; se a situação for diferente, em que o Estado
que formula a reserva pretenda uma aplicação parcial da norma ou pretenda uma
alteração do seu significado (reserva modificativa) e os Estados membros não a
objetarem, isso significa que essa norma X será aplicada nas suas relações jurídicas
de acordo com a reserva (aplicada apenas em parte ou de uma forma modificada).
2. Cenário da objeção a uma determinada reserva – Um Estado formula uma reserva
e um ou mais Estados formulam objeções simples a essa reserva (não concordam
com o conteúdo da reserva no sentido da não aplicação da norma ou da sua
aplicação modificada). As consequência jurídicas são que a norma que é objeto da
reserva e de objeção á mesma, não se aplicará nas relações estabelecidas entre o
Estado que formula a reserva e o Estado que a objeta. Mas qual é o sentido útil
desta situação em que alguém formula uma reserva e havendo outros que a
objetam, sendo que a consequência jurídica é sempre a não aplicação da norma?
Isto acontece quando a reserva visa a não aplicação da norma. Mas a situação é
diferente quando o objeto da reserva não for a não aplicação mas a sua aplicação
parcial ou modificada: a norma em si não produzirá efeitos jurídicos ou parcelados,
ou seja, não produzirá efeitos jurídicos entre o Estado que formula a reserva e o
que a objeta, no âmbito do tratado.
3. Um Estado formula uma reserva e outros Estados formulam uma objeção
qualificada, ou seja, uma objeção inequívoca ao sentido da reserva. Consequência
jurídica: Todo o tratado, não apenas a norma que é objeto de reserva, não
produzirá efeitos jurídicos nas relações entre o Estado que formula a reserva e os
Estados que formulam uma objeção qualificada (não relação jurídica)

Revogação da reserva
Às vezes os Estados formulam uma reserva, nos termos do art. 22.º da Convenção de Viena
e, mais tarde, vêm-se arrepender:
1. Foram pressionados a levantar a reserva;
2. Houve uma mudança do Governo e, por isso, da maioria política, sendo que a
reserva antes formulada deixa de ter sentido face àquilo que são as opções
jurídicas de fundo da nova maioria política;
3. Há uma alteração de circunstâncias e aquela reserva, antes formulada, que implica
a não aplicação de uma norma da convenção, passa a prejudicar os próprios
interesses do Estado;
4. Situações em que a constituição dos Estados se altera, em que a reserva depende
de uma antinomia entre uma norma da convenção e uma norma constitucional,
gerando um quadro de inconstitucionalidade; há uma alteração na constituição,
deixa de haver inconstitucionalidade e não há razão de ser para que a reserve
continue a produzir os seus efeitos.

46
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Os Estados podem revogar as suas reservas, mas ao fazê-lo têm a obrigação de notificar
expressamente e por escrito, os restantes Estados, de que revogaram essa mesma reserva,
porque isto significa uma alteração dos efeitos jurídicos da convenção internacional, em
virtude de uma norma que não se aplicava ou que se aplicava de uma determinada
maneira, passar a aplicar-se de uma forma, de um modo uniforme em relação a todos os
Estados – obrigação de notificação para que os efeitos revogatórios de uma reserva
possam produzir a sua eficácia.

Invalidade das convenções internacionais


Parte patológica das convenções e que deriva da parte destas se encontrarem viciadas ou
padecerem de ilicitude no tocante ao seu objeto.
Tratados inválidos – Tratados por padecerem de vícios ou de conteúdo ilícito não podem
produzir os efeitos prototípicos que lhes corresponderiam se fossem normas válidas.

A invalidade é o desvalor jurídico/valor jurídico negativo que uma convenção


internacional padece no sentido de, por se encontrar viciada, não se encontra apta a
produzir a totalidade dos efeitos jurídicos que lhe corresponderiam se essa mesma
convenção fosse válida.

Essa invalidade decorre de vícios nos seus pressupostos ou nos seus elementos e também
do seu conteúdo poder violar normas de hierarquia superior às quais a convenção deve
conformidade.

Muitos dos vícios, bem como quadros de ilicitude, não são muito distintos daqueles que
afetam o negócio jurídico. Um tratado tem algo de negócio jurídico, é um negócio jurídico
público e internacional, entre Estados. É um acordo plurilateral de vontades, pelo que
muitos dos vícios da vontade que se colocam nos contratos, acabam por se propagar aos
tratados.

As condições de validade de uma convenção internacional radicam essencialmente na


capacidade dos sujeitos de decidirem e vincular-se em convenções internacionais, a vícios
da vontade e à problemática da ilicitude do objeto da convenção.

O objeto tem de ser lícito, a vontade tem que ser livre e não viciada e as partes têm que ter
capacidade para a celebração de convenções.
Capacidade

Os sujeitos de direito internacional têm a faculdade de celebrar convenções internacionais.


Dentro dos sujeitos de direito internacional com capacidade plena estão os Estados e as
organizações internacionais, porque detêm uma prorrogativa que é o ius tractum. Esta
capacidade pode ser plena, pode sofrer um conjunto de limitações, os Estados soberanos,
em princípio, tirando limites muito próprios, têm uma capacidade plena de celebrar
convenções internacionais. A Convenção de Viena de 1969 aplica-se aos Estados
soberanos,

Se não estivermos perante uma convenção internacional, celebrada entre um Estado


soberano e uma entidade que não seja uma entidade estadual soberana, à luz da
Convenção de Viena, este tratado é inválido, porque um dos contraentes/uma das altas
partes contratantes não é um sujeito de direito internacional ou não é um sujeito de

47
Direito Internacional Público Mariana Esteves

direito internacional que possa celebrar com determinado Estados um tratado


internacional que se submeta ao regime da convenção (ex. – Caso Redline).

Vícios de expressão do consentimento e da vontade


Art. 46.º da Convenção de Viena – Convenções internacionais que violem disposições
fundamentais de direito interno: Referimo-nos normalmente à CRP. Uma convenção
internacional cujo conteúdo ou processo de aprovação interno seja contrário à
constituição. A Convenção de Viena dá uma solução restritiva sobre esta matéria: um
Estado só pode invocar a invalidade de uma convenção, na medida em que essa invalidade
decorrente de colisão com o direito interno, que diga respeito a uma inconstitucionalidade
ou invalidade orgânica (falta de competência de um órgão interno), a normas de
competência, que seja uma matéria de importância fundamental (regra constitucional
relevante) e tem que ser um vício ostensivo/manifesto (relativamente claro).
Há situações (ex. – Tratado Treanon) que determina que não possa haver recesso, ou seja,
nenhum dos Estados da convenção multilateral pode desvincular-se da convenção. Caso
isso ocorra, a convenção cessa vigência. O mesmo sucederá se houver um quadro de
nulidade no que toca aos pressupostos do art. 46.º que obrigue um dos Estados a retirar-se
(ex. – uma convenção só vigora enquanto os Estados se encontrarem todos vinculados; se
um se encontrar supervenientemente desvinculado por via da invalidade do seu
consentimento, ele propagar-se-á por toda a convenção e esta deixa de vigorar). Isto
quando a convenção o diga. Se não disse, regra geral, é que a invalidade só irá afetar o
Estado cuja expressão do consentimento, por violação de norma interna, estiver afetada.
Artigo 47.º da Convenção de Viena – Vícios relativos aos plenos poderes que são
conferidos ao plenipotenciário. Muitas vezes há acordos sob forma simplificada que são
negociados por plenipotenciários, nos quais a assinatura ou a adoção do plenipotenciário
não só fixa o texto da convenção como exprime definitivamente o consentimento do
Estado em ficar vinculado á convenção. Nestas circunstâncias, em que é dado uma carta de
poderes, faculdades a um plenipotenciário que representa o Estado na negociação e na
expressão de consentimento, para que ele possa vincular o Estado. A carta de poderes tem
limites, muitas vezes, particularmente precisos e a questão são situações em que o
plenipotenciário estende e não respeita esses mesmos limites, que são colocados pelo
próprio governo e vincula o Estado relativamente a determinadas matérias em relação às
quais não estaria autorizado a exprimir essa vinculação(a sua carta de poderes não
credencia essa mesma vinculação). Aqui há duas situações possíveis:
1. O plenipotenciário deu nota/publicidade às outras partes (plenipotenciários dos
outros Estados que negoceiam) dos limites dos seus poderes – devendo-o fazer,
por regra – daí que se porventura o plenipotenciário exceder o seu mandato e
vincular o Estado dos limites da carta de poderes, se os outros Estados sabem que
estão a contactar com alguém que não está credenciado para o efeito, isto significa,
que esse Estado cujo plenipotenciário ultrapassou o seu mandato pode invocar a
invalidade da convenção ou invalidade do seu consentimento, porque de alguma
forma atuou de boa fé e foi o seu representante que excedeu os poderes e os
outros Estados, sabendo que ele estava a negociar ultrapassando os seus poderes,
aceitaram muito bem e conformaram-se com essa situação, pelo que o Estado pode
invocar a invalidade do seu consentimento em tratados multilaterais ou da
convenção num tratado bilateral.
2. Se o plenipotenciário não exibiu a sua carta de poderes às contrapartes, negociou e
depois, mais tarde, o Estado, ou porque não lhe conveio ou porque realmente

48
Direito Internacional Público Mariana Esteves

houve um excesso de poderes, vem invocar a invalidade da convenção por


ultrapassagem dos limites aos poderes do seu representantes, essa invocação é
ineficaz, porque os outros Estados, isto é, as restantes partes que agiram de boa fé,
não sabiam quais eram os limites colocados ao representante que vem, mais tarde,
alegar a invalidade e o excesso do mandato.

A invalidade só pode ser invocada quando o plenipotenciário dá nota às restantes


partes dos limites das suas competências de vinculação e as outras partes se
conformam com isso

Art. 48.º da Convenção de Viena – Erro (também existe no negócio jurídico) é uma
dissintonia entre o conhecimento e a vontade, ou seja, há uma falsa representação de uma
determinada realidade. Nas convenções internacionais o que está em causa é um erro de
facto e não um erro de direito, ou seja, não é um erro sobre o regime jurídico aplicável,
mas é um erro sobre um facto que é relevante para a celebração da convenção, podendo
mesmo ser um pressuposto desta. Para que um Estado possa invocar um erro como
fundamento da invalidade da convenção internacional é necessário que erro seja sobre
uma matéria essencial (matéria fundamental para a celebração da convenção), que o
Estado, ele próprio, não tenha contribuído para a prática desse mesmo erro (o Estado deu
origem a essa situação de invalidade da convenção) e que o erro não seja de uma evidencia
absoluta (o erro é de tal modo ostensivo, que o próprio Estado se devia ter apercebido
dessa circunstância), isto é, erros também que afetem a redação do texto não relevam para
a sua invocabilidade (ex. - Caso Highlands, entre EUA e Reino Unido, em 1783; tratado
entre o Cambodja e Tailândia, com erro de direito, que não releva).

Art. 49.º da Convenção de Viena - Dolo, de um modo geral, é a intenção de um determinado


sujeito preencher um facto ilícito. No âmbito do dolo em DIP, no que toca à celebração das
convenções internacionais, o dolo significa uma intenção fraudulenta, uma intenção de
enganar ou de fazer com que alguém incorra na prática de um erro, isto significa induzir
deliberadamente em erro as restantes partes da convenção – vontade de praticar o ilícito e
conhecimento perfeito da sua conduta quando induz as outras partes em erro. O dolo não
pode ser invocado pelo Estado que assumiu essa mesma conduta fraudulenta (isso poderia
acontecer com a mudança de Governo, sendo aí ineficaz – ex.: Acordo de Munique de
1938).

Art. 50.º da Convenção de Viena – Corrupção (alguns acreditam que este vício não deveria
ter autonomia, devendo estar assimilado ao dolo) do representante de Estado e por partes
de outros Estados. Corromper significa atribuir vantagens de diversa ordem: patrimoniais
(depósitos em dinheiro ou espécie de objeto e quantias de valor significativo),
compromisso com garantias de dar uma vantagem posterior. Muitas vezes, em plano
diplomático, é difícil saber o que é um ato de corrupção e um ato de cortesia (ex. – Caso do
Imperador Bocaça): uma coisa são as vantagens de cortesia e outra coisa são atos de
corrupção. Por vezes, as fronteiras não são claras, sendo que aquilo que os Estados de
Direito fazem é o seguinte: ofertas diplomáticas até um determinado valor, até podem ser
guardadas pelo plenipotenciário ou pelo titular do poder politico de um Estado, a partir de
um valor mais levando revertem para o Estado, que os colocará em museus ou, de alguma
forma, incorporará esses mesmos valores.

Art. 51.º da Convenção de Viena - Coação é o uso da força ou a ameaça do uso da força
física, de forma a levar alguém a assumir uma conduta que sem essa ameaça ou uso da
força, essa pessoa não assumiria (ex. – Inexistência de atos de tumulto). No quadro de uma

49
Direito Internacional Público Mariana Esteves

situação desta natureza, a vontade dos titulares dos órgãos não é efetivamente livre, eles
não deliberam em liberdade, decidindo por medo, em função do uso ou ameaça do uso da
força. Num quadro em que alguém celebra um tratado num cenário de não liberdade e sob
ameaça, existirá um quadro coação e a coação, nomeadamente sobre representantes do
Estado, implica necessariamente a invalidade da convenção internacional (ex. - Tratado de
Madrid de 1526; Acordo de 1939 entre a Alemanha e a Checoslováquia)
Art. 52.º da Convenção de Viena – Coação sobre o próprio Estado: o uso da força ou a
ameaça do uso da força contra um Estado de forma a compelir esse mesmo Estado a
vincular-se num tratado (ex. - Ocupação de todo ou parte de um Estado; Caso França vs.
Kuwait em 1982). Muitas vezes não é necessário o uso da força, pode acontecer um
bloqueio que prive um Estado de se abastecer, gerando uma crise económica e social, o
que também é considerado um quadro de coação indevida(ex. – África do Sul vs. Lesoto).
Já a coação económica simples, a aplicação de sanções ou interrupção de relações
comerciais, não pode ser equiparada ao uso da força, ainda que alguns autores queiram
equiparar esta situação ao uso da força.

Ilicitude do objeto

Quando é que o conteúdo de um tratado internacional pode ser considerado inválido por
violação ou desconformidade com um parâmetro ao qual deve observância?

Os tratados devem se cumpridos, no pacto sum cervante, isto é, se nomeadamente neste


caso, um tratado internacional é concluído e esse mesmo tratado deve observância a
outros tratados de que o Estado é parte, aquilo que se deve fazer é assegurar a
conformidade com esses mesmos tratados de hierarquia superior ou que sejam de alguma
forma parâmetro vinculante.
Não há hierarquia entre fontes, mas há hierarquia entre normas de direito internacional,
precisamente existem normas que se enquadram num patamar hierárquico muito próprio
que são as normas de ius cogens/direito cogente/direito imperativo. Falou-se desde há
muito de uma moralidade internacional e de princípios gerais da ordem pública
internacional que seriam sempre superiores à vontade dos Estados e às convenções
internacionais. O jusnaturalismo sempre sustentou esse direito imperativo que seria
conformado pelos pontos cardeais daquilo que conformaria uma ordem jurídica natural.
Depois da II Guerra Mundial – crimes abomináveis contra a humanidade – começou-se a
falar de um conjunto de princípios estruturantes de ordem pública internacional e essa
ideia de um direito superior ou de hierarquia superior, que Kelsen chegou a admitir como
fundamento da grand Norm ou à margem da sua lógica positivista, acabou por ter
consagração no art. 53.º da Convenção de Viena de 1969: “é nulo todo o tratado que no
momento da sua conclusão (invalidade originária) o tratado é incompatível com uma
norma imperativa de direito internacional pré-existente”.

Uma norma imperativa de direito internacional será uma norma que for como tal
reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu conjunto, no sentido de
serem uma norma à qual nenhuma derrogação é possível, a não ser uma derrogação feita
por uma norma de natureza distinta.
O regente, como positivista, sempre teve alguma dificuldade em aceitar sem mais que uma
determinada disposição normativa seja uma norma de ius cogens, porque não uma
identificação dessas normas, isto é, não há uma listagem de normas de ius cogens na

50
Direito Internacional Público Mariana Esteves

convenção, como deveria ter havido. Serão princípios gerais de DIP os princípios da não
agressão, da coexistência pacifica, da não ingerência dos assuntos internos dos outros
Estados? Todos os dias há invalidades destas. Serão as disposições relacionadas com o
genocídio? O regente admite que nesse aspeto a Convenção sobre o Genocídio de 1948
seja uma norma de ius cogens, mas como tal deveria ter sido uma norma que devia constar
de uma convenção relativamente à qual todos os Estados deveriam subscrever, o que não
aconteceu e o facto é que Portugal, durante muito tempo, não se vinculou a essa
convenção. Será a condenação dos crimes de guerra, crimes contra a paz ou humanidade,
bem como os princípios gerais do DIP? Eles constam da Convenção de Roma que conforma
os estatuto do Tribunal Penal Internacional, só que os principais Estados não subscrevem
a convenção, pelo que não se pode dizer que sejam normas aceites por toda a comunidade
internacional no seu conjunto.
Não basta que uma norma seja uma norma de ordem pública internacional, isto é, um
conjunto de normas, princípios e regras, sem as quais a sociedade internacional não pode
subsistir. O problema é se moralmente/eticamente faria sentido que essas disposições
conformasse ius cogens, o facto é que não conforma, porque, no concreto, há um número
significativo de Estados que não quer reconhecer a qualidade a essas normas.

Há quem diga que as normas de ius cogens são como as leis penais em branco, sendo uma
espécie de “fantasma sem sangue”. O Professor Jorge Miranda faz uma longa listagem do
ius cogens, outros autores dizem que o princípio da autodeterminação é um princípio de
ius cogens, mas que, muitas vezes, não é respeitado. Há ius cogens para todos os sabores,
vontade e filosofias, daí a grande dificuldade em definir estas normas.

Neste sentido, poderíamos afirmar que a Carta das Nações Unidas é ius cogens, na medida
em que é subscrita por todos os Estados do mundo. Contudo, as suas disposições são
frequentemente violadas e ninguém invoca a violação de ius cogens. Para o regente, às
vezes há valores da humanidade de tal modo intangíveis, que têm que ser impostos não só
aos Estados, mas também a todos os sujeitos de direito internacional. Por exemplo, das
quatro convenções de Genebra sobre o tratamento humanitário de presos de guerra
consta que o Conselho de Segurança, mediante uma resolução, mandou aplicar a todos os
Estados membros, mesmo os que não fazem parte da convenção, e a todo o tipo de
beligerantes, mesmo insurretos e movimentos de libertação. Pode haver tribunais
internacionais até criados ad oque, pelas Nações Unidas, para julgar pessoas que violem
estas mesmas convenções. Pode haver situações dessas nos tribunais especiais que o
Conselho das Nações Unidas criou para os crimes cometidos na guerra da ex-Jugoslávia e
também nos grandes largos a propósito no confronto de duas etnias rivais no Ruanda e
Gurundi. Assim, o regente entende que a Convenção do Genocídio e as quatro Convenções
de Genebra dizem respeito à tutela mínima de aspetos essenciais da dignidade e da vida
humana, possam ser consideradas direito imperativo, na medida que o Conselho de
Segurança determina a sua aplicação coativa e cria tribunais ad oque para julgar as
pessoas que violaram pelo menos essas disposições e esses princípios humanitários.

Art. 64.º da Convenção de Viena - Violação superveniente de uma norma de ius cogens. Se
houver uma convenção que na sua origem seja plenamente válida sobre uma determinada
matéria e, posteriormente, essa convenção passa a ser desconforme a uma norma de
direito imperativo que entretanto foi criada, então a norma é nula e cessa vigência.

O Professor Eduardo Correia Baptista tem uma perspetiva um pouco diferente à do


regente, tendo uma tese de mestrado sobre o ius cogens, bem como uma maior inclinação

51
Direito Internacional Público Mariana Esteves

para que se decantem as regras consuetudinárias em normas consuetudinárias e


princípios de natureza geral.

As normas de ius cogens podem estar presentes em diversas fontes: princípios geras de
DIP, tratados internacionais, regras consuetudinárias.

Violação de tratados de hierarquia superior por tratados de hierarquia inferior


Aqui há uma lacuna na Convenção de Viena, mas não no direito internacional dos tratados.

Se tivermos uma situação em que um acordo administrativo em vez de desenvolver ou


concretizar disposições do tratado principal, as contrarie ou derrogue, temos aqui uma
situação de invalidade (tudo isto depende do que estiver estabelecido no tratado
principal).

Regime jurídico das nulidades dos tratados inválidos

A consequência jurídica dos tratados inválidos é, regra geral, a nulidade. Há dois tipos de
nulidades, embora a Convenção de Viena não fale nelas nestes termos, a doutrina e a
jurisprudência assentam num regime diferencial da nulidade que é, no fundo, a nulidade
absoluta e a nulidade relativa.

Um ato que, nomeadamente, por envolver vícios de vontade, de consentimento ou ilicitude


do objeto, se encontre em razão dessas desconformidades inato para produzir os efeitos
prototípicos se fosse um ato válido, pode ser objeto de sanções, ou seja, reações
repressivas do ordenamento jurídico contra a própria norma e os seus efeitos, que
assumem certas formas: um regime mais repressivo que é a nulidade absoluta e um
regime menos intenso que é a nulidade relativa.

O TIJ, por exemplo, em 1960, colocou algumas objeções à figura das nulidades absolutas, o
facto é que aquelas acabam por decorrer um pouco do regime sancionatório da convenção,
sem que esta nomeadamente enuncie com clareza entre as duas figuras.

A convenção no respeitante às nulidades, sobretudo no que toca ao art. 69.º “Consequência


da nulidade de um tratado”, ostenta deficiências que têm sido criticadas doutrinariamente,
porque diz uma coisa e depois diz outra. Por exemplo, diz que o ato de coação sobre o
representante de Estado é colocado, neste artigo, um pouco a par do dolo – implicando
este uma nulidade relativa - , mas o próprio que fala sobre a coação sobre o representante
de Estado, que é o art. 51.º, é muito mais intenso, dizendo que um tratado celebrado neste
tipo de condições não produz qualquer tipo de efeitos. Há aqui uma necessidade de
assegurar uma certa coerência e uma inaplicabilidade de algumas disposições da
Convenção de Viena

Nulidade relativa
Haverá nulidade relativa – há aqui lacunas da convenção – num conjunto de situações:

1. Vícios no consentimento por violação de direito interno (art. 46.º);


2. Restrições ao mandatado do plenipotenciário (art. 47.º);
3. Erro;
4. Dolo;
5. Corrupção;

52
Direito Internacional Público Mariana Esteves

6. Ilicitude do objeto por violação de tratado de hierarquia superior que não seja
direito cogente.

A nulidades relativa tem um regime menos intenso do que a nulidade absoluta, que se
traduz na possibilidade da convenção apesar de ser nula poder, em certas circunstancias,
produzir efeitos jurídicos ou mais concretamente de efeitos jurídicos passados que foram
libertados peça convenção nula puderem ser salvaguardados e que também limites quanto
à sua invocabilidade e a admissibilidade, em certas circunstâncias, não da invalidade total
da convenção, mas da invalidade parcial. Outras situações têm que ver com a invalidade
apenas respeitar a alguns Estados-parte e ao seu processo de expressão de consentimento,
e não necessariamente a todos os Estados-parte, o que significa que, em certas
circunstâncias, a convenção pode continuar em vigor a apenas a invalidade afeta alguns
dos Estados (ex. – violação do direito interno no que toca a tratados multilaterais).
O que podemos retirar em termos de invocabilidade, no âmbito das nulidades relativas?

Em princípio, podem invocar o vício, esta nulidade do consentimento do da convenção, o


Estado que não tenha concorrido através da sua conduta ou do seu comportamento para a
mesma invalidade. Isto, tirando o art. 46.º (excecionalidade relativamente ao direito
interno), o Estado que contribuiu para o erro, atuou fraudulentamente ou que corrompeu
o representante doutro Estado, nestas situações o Estado não pode invocar o vicio. Só o
Estado-vítima (não contribuiu para situação, mas foi afetado pela mesma)é que pode, de
um modo geral, é que modo invocar a nulidade relativa da convenção, nunca o Estado-
infrator. Isto é quanto ao que toca aos vícios da vontade.
Quanto aos efeitos há um dualismo de regime que precisa de ser tomado em consideração.
O art. 69.º começa a abrir um conjunto de exceções:

1. É nulo um tratado cuja nulidade resulte das disposições desta convenção – As


disposições de um tratado nulo não têm força jurídica, pelo que entendemos que
um tratado nulo não produzirá efeitos jurídicos e essa não produção de efeitos
jurídicos, tanto ocorre para o futuro, como há uma ideia de que os efeitos passados,
os atos praticados à sombra da convenção nula, podem ser eliminados com
fundamento nessa mesma nulidade. Contudo, depois vêm as exceções: havendo
nulidade qualquer parte pode pedir a outra parte que reestabeleça nas suas
relações mútuas a situação que teria existido se esses atos não tivessem sido
praticados. Havendo atos praticados com fundamento no tratado, no passado, os
Estados-vítima ou qualquer parte, podem ver que a situação que vigorava antes da
convenção seja reestabelecida (regime da nulidade e da retroação dos efeitos da
nulidade); qualquer parte pode invocar os atos praticados de boa-fé, em que se
presumia que a convenção era válida, sendo executado sem pretensão maliciosa,
pelo que esses atos são salvaguardados – de uma forma geral, esta situação pode-
se aplicar a todo o quadro de invalidade (tirando as nulidades absolutas), ou seja,
vícios no processo de consentimentos, questões relacionadas com os poderes do
plenipotenciário, validades internas, todos os vícios, havendo apenas uma exceção
presente no n.º3, que nos diz que a parte a quem seja imputável o dolo ou
corrupção, essa parte não pode invocar o restabelecimento da situação
anteriormente exigente, nem a prática de atos de boa-fé. Há aqui uma assimetria
entre situações em que qualquer parte pode invocar a prática de atos de boa-fé,
mas não nas situações de erro ou de corrupção. Há uma falta efetiva de conceção
adequada da norma, quando é mencionada a coação. Quanto à coação se diz que o
ato nos termos do art. 51.º, se diz que a convenção é desprovida de qualquer efeito

53
Direito Internacional Público Mariana Esteves

jurídico, então não faz sentido estar a aproveitar atos de boa-fé e haja a
impossibilidade do Estado que coagiu tentar invocar essa salvaguarda. Para o
regente há aqui uma contradição que lhe parece evidente, pelo que CBM tende a
não aplicar esta disposição do n.º3 do art. 60.º, ao fenómeno da coação – efeitos
quanto à eliminação de alguns atos e à salvaguarda de outros e impossibilidade de
alguns Estados invocarem a salvaguarda de certos efeitos se tiverem incorrido em
dolo ou corrupção.
2. Por outro lado, no que concerne àquilo que são os efeitos, há aqui uma situação,
outra consequência das nulidades relativas, que diz respeito à divisibilidade das
convenções, isto é, saber se toda a convenção é afetada pela declaração da nulidade
ou apenas uma parte dela – invalidades gerais e parciais/invalidades totais e
invalidades parcelares.
a. No caso de vícios de determinada natureza, por exemplo, vícios que não
tenham que ver com intenções enganosas e fraudulentas (dolo ou
corrupção), a regra geral é que, para estes vícios menores, o Estado-vítima
pode invocar a nulidade da convenção, ou seja, a regra geral é a da
nulidade parcial. Apenas as normas que estão viciadas ou afetadas por
estas patologias é que deverão ser eliminadas, salvaguardando-se a
restante parte da convenção. Esta invalidade parcial está sujeita a conjunto
de condicionantes, sendo que o n.º3 do art 44.º diz-nos “se uma causa de
nulidade apenas visar certas disposições, só relativamente a elas pode ser
invocado”. Na medida em que haja uma patologia que apenas afeta
determinadas disposições, apenas essas deverão ser eliminadas e
consideradas nulas; não haverá nulidade parcial, salvo se as clausulas
forem inseparáveis do resto tratado (relação de dependência entre
normas; a convenção não poderá ser executada sem essas normas nulas,
pelo que a invalidade terá de ser total); que também resulte do tratado que
a aceitação dessas cláusulas que forem consideradas nulas são condição
essencial para o consentimento dos Estados; não for injusto continuar a
executar o que subsiste do tratado,
b. Já no caso do erro e da corrupção, o Estado que tem direito a alegar estes
vícios tem a possibilidade de o fazer no plano da divisibilidade da
convenção, quer em relação a certas normas, quer em relação a todo o
tratado.

Nulidade absoluta

A nulidade absoluta significa que o tratado em princípio não produzirá qualquer efeito
jurídico. Já tínhamos visto, que no caso da coação exercida sobre representante de um
Estado, a convenção é desprovida de qualquer efeito jurídico, ou seja, não produzirá
efeitos futuros e os efeitos passados não serão aproveitados (semelhante à inexistência
jurídica), sendo o que resulta do art. 51.º (é direito especial, pelo que prevalece sobre
outras disposições, nomeadamente o art. 69.º, que tem carácter mais geral).

Relativamente ao art 52.º, sobre coação exercida sobre um Estado pela ameaça ou
emprego da força, não se fala na improdutividade total de efeitos, mas é nulo todo o
tratado cuja conclusão tenha sido obtida pela ameaça ou emprego da força com violação á
Carta das Nações Unidas, pelo que embora não se fale aqui em improdutividade total de
efeitos ou nulidade absoluta, aplica-se aqui, por analogia, o art. 51.º que também fala em
coação, mas sobre o representante do Estado.

O que sucede com uma norma originária de ius cogens?

54
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Em relação às normas de ius cogens, o art. 53.º diz-nos que todo o tratado é nulo, mas não
nos fala no regime da nulidade em todos os seus efeitos, pelo que concluímos que no caso
da nulidade absoluta, temos aqui várias disposições, como o art- 71.º que nos diz que
sempre que um tratado seja nulo em virtude do art. 53.º, as partes são obrigadas a
eliminar dentro da medida do possível todas as consequências jurídicas que advenham
dessa mesma convenção incompatível com o direito internacional e a tornar as suas
relações mútuas conformes à norma imperativa internacional – não há atos de boa fé a
serem salvaguardados; qualquer Estado, mesmo que não seja parte da convenção pode
invocar a sua validade; não há qualquer tipo de efeito jurídico que se produza (regra ligada
á putatividade: eliminar na medida do possível as consequência de todo o ato praticado
com base na disposição incompatível com direito internacional – ex. : obras públicas;
prestações financeiras, etc); as relações jurídicas entre os Estados são tornadas conformes
a norma imperativa de direito internacional.

Uma convenção que seja contrária a uma norma de ius cogens ou afetada pelo vício da
coação, não produzirá efeitos jurídicos, porque a regra é da invalidade total, inexistindo
invalidades parciais.

Aula 6 – 20/10/2020
Vicissitudes na vigência das convenções internacionais - Formas de modificação,
cessação, suspensão da eficácia das convenções internacionais

Como é que as convenções internacionais podem mudar? Podem ser modificadas ou têm
uma vigência permanente? As convenções tal como as leis podem ser objeto de
modificações, como podem ser objeto de revogações que façam cessar no todo ou em parte
a sua eficácia.
Modificação das convenções internacionais

Muitos designam este processo como revisão dos tratados. O art. 39.º da CVDT diz-nos que
as convenções podem ser sempre revistas por acordo entre as partes (tratado bilateral –
revisto pelas duas partes; tratado multilateral – revisto, em regra, por todas as partes que
celebraram a convenção).

Temos aqui uma regra geral relativa à modificação das convenções multilaterais que é a de
todas as partes que de alguma forma se vincularem à convenção, acordarem em alterá-la.
Contudo, pode haver situações em que a convenção é apenas alterada no contexto das
relações jurídicas entre alguma partes.
O primeiro critério específico em relação à mordicação de convenções multilaterais é de
que a convenção muitas vezes regula os termos da sua modificação – ex.: há convenções
que determinam limites temporais, substanciais ou de ordem formal para a sua alteração.
Diz o n. º1 do art. 40.º “quando o tratado não disponha de outro modo” – a convenção pode
sempre dispor especificamente de regras para a sua modificação – “a revisão dos tratados
multilaterais tem um conjunto de disposições que deve:
Quando a modificação respeita a todas as partes, toda a proposta que alguns dos Estado
coloquem relativamente à modificação, essa proposta deve ser enviada a todas as partes
da convenção, isto é, deve haver uma notificação expressa e formal a todas as partes da
convenção. Todos os Estados contratantes terão sempre o direito de participar nesse
processo modificativo. Todavia para lá das várias regras que constam deste artigo, pode o

55
Direito Internacional Público Mariana Esteves

acordo de modificação dizer apenas respeito a alguns Estados, havendo Estados que
decidem não participar nesse acordo de alteração de uma convenção internacional. Os
Estados que já são parte do tratado e que não participarem no acordo de modificação, não
se vincularão às modificações que tiverem sido estabelecidas, mas às disposições
anteriores – o que é algo de muito comum.

Há um outro processo de alteração das convenções que diz respeito apenas a alguns
Estados parte que decidem entre si estabelecer um acordo modificativo de um tratado
multilateral, que, todavia, vigora nas suas relações recíprocas, não produzindo, em regra,
efeitos relativamente às outras partes que não participam no acordo modificativo. Diz o
art. 41.º que “acordos que alterem tratados multilaterais apenas nas relações
estabelecidas entre algumas partes, podem ser celebrados desde que”:

1. Não sejam proibidos pelo tratado objeto de modificação:


a. Pode proibir de todo;
b. Pode admitir, mas apenas relativamente a algumas das normas – admite
estes acordos em razão da matéria e das disposições que constam da
convenção;
2. Esses acordos modificativos não ponham em causa – não violem, nem ofendam – o
objeto e o fim do tratado – caso assim sucedesse, isso implicaria uma
descaracterização da teleologia dos fins inerentes à convenção internacional;
3. Não ofendam os direitos de partes terceiras.

Existe esta flexibilidade das convenções jurídicas multilaterais, de as poder alterar apenas
na relação de algumas das partes, desde que se reúna estas exigências enumeradas.

Um tratado pode cessar a sua vigência, pode extinguir-se se as partes que o celebraram
decidirem revogá-lo sem substituição, ou seja, revogá-lo supressivamente. Celebram uma
outra convenção internacional que extingue o tratado.

Todavia os tratados podem modificar-se, extinguir-se ou suspender a sua vigência por um


conjunto de outro tipo instrumentos e vicissitudes.

Cessação de vigência de uma convenção internacional

• Vontade originária das partes – As partes desde a conceção da convenção


estabelecem um conjunto de regras pertinentes que determinam os termos da sua
cessação de vigência;
• Vontade superveniente das partes – Vontade das partes manifestada depois da
entrada em vigor da convenção e na base pressupostos/condicionantes que não
estavam presentes na convenção quando ela foi celebrada.
• Ocorrência de circunstâncias não previstas na convenção:
o Ligadas ao comportamento das partes
o ocorrem independentemente da vontade das partes

Cessação de uma convenção por vontade originária das partes

Há convenções que, logo à partida, têm cláusulas de caducidade, o que implica a cessação
de vigência de um ato jurídico em razão de vários fatores, um dos quais pode estar
relacionado com a ocorrência de um determinado facto que obstará a essa vigência ou
pode até ser estabelecida uma data limite para a vigência do contrato. Isto acontece num
negócio jurídico privado (nos contratos), bem como nas convenções internacionais, que

56
Direito Internacional Público Mariana Esteves

são manifestações plurilaterais de vontade. De facto, por vezes, existem cláusulas


internacionais que têm cláusulas ligadas a termo de vigência – ex: Tratado celebrado em
1977 sobre o Canal do Panamá, entre os EUA e o Panamá, tinha uma cláusula temporal
relativa à sua vigência.

Por vezes, não existem cláusulas de caducidade temporais, mas existem cláusulas de
caducidade ligadas à ocorrência de determinados eventos. No período da Guerra Fria, os
EUA e os seus aliados criaram o Tratado do Atlântico Norte – NATO - , sendo que a união
dos países comunistas criou, como resposta, o Pacto de Varsóvia. Estes são dois pactos
militares, com armas nucleares e forças militares de um lado e de outro, que poderiam ter
feito insurgir uma III Guerra Mundial, se não fossem as armas nucleares, que serviram de
elemento dissuasor(os conflitos entre os dois blocos resolviam-se fundamentalmente
através de pequenos movimentos de peças de xadrez no Terceiro Mundo – intervenções
em Estados limítrofes). No Pacto de Varsóvia existia uma cláusula que determinava que o
Pacto de Varsóvia seria dissolvido e o tratado em causa, designado por pacto, cessaria a
sua vigência se fosse criada uma organização de segurança e cooperação na Europa que
estabelecesse pressupostos de paz e o fim dos blocos. Sucede que, com a queda do muro
de Berlim e com o surgimento dos movimentos emancipalistas do leste europeu, houve um
desmoronamento interno do Pacto de Varsóvia, mas ele continuava a existir, havendo
inclusivamente, depois de transições para a democracia, Estados que continuavam ligados
a este pacto mas que não queria a ele continuar vinculados. O pretexto para acabar com
um pacto que já estava moribundo foi invocar-se que já existia uma organização de
segurança e cooperação na Europa, a OSCE, a que pertenciam os Estados de leste, bem
como os Estados ocidentais, nas quais se discutiram perspetivas de cooperação e
manutenção da paz. Obviamente que essa organização não implicou a dissolução
automática dos blocos, a NATO continuou a existir, mas o Pacto de Varsóvia que já estava
moribundo, sobretudo a partir da União Soviética, encontrou-se uma resposta diplomática
sem perda de face para dissolver o pacto, que foi dizer que já se tinha tal organização a
funcionar devidamente. Contudo, o Pacto de Varsóvia não continuou porque os Estados
que faziam parte dele não queriam que ele continuasse (caso da Federação Russa).

A explicação airosa dada foi uma cláusula de caducidade ligada ao aparecimento de uma
organização de segurança e cooperação na Europa.
Não só existem cláusulas explicitas de caducidade – como a anteriormente referida - , tal
como existem cláusulas implícitas. Muitas vezes existem em tratados contrato(tratados
bilaterais entre dois Estados, com prestações e contra prestações), sendo um conjunto de
obrigações que as partes devem realizar e quando essas obrigações são executadas e são
totalmente executadas, pode não haver razão para que a convenção subsista – ex: tratados
que envolvam fornecimento de armas ou assistência durante um conflito militar específico
- , designando-se por caducidade por execução da obrigação e extinção do objeto da
convenção.

Muitas convenções internacionais cessam vigência em razão daquilo que é a renúncia ou


recesso, que é algo que também temos nos negócios jurídicos (contratos).

Nos tratados internacionais a figura da renúncia, que é um ato unilateral não autónomo
através do qual uma das partes decide desvincular-se de uma convenção internacional,

57
Direito Internacional Público Mariana Esteves

aplicando-se aos tratados bilaterais, pode ter como consequência o fim da própria
convenção.

Se for num tratado multilateral, a figura em causa designa-se por recesso, ou seja, é uma
renúncia num tratado multilateral, mas que tem consequências diferentes: por regra, não
envolve o fim da
Qualquer convenção é livre de estabelecer que em caso de recesso se
extinga. Se nada disser, o recesso implica apenas a desvinculação do
Estado em causa no que toca à convenção internacional
convenção internacional, envolvendo apenas a desvinculação de um dos Estados – aquele
que entra em recesso – relativamente a essa convenção. Ela pode continuar a subsistir com
os restantes Estados. Existe depois um conjunto de especialidades:

• Há tratados multilaterais com um pequeno número de Estados (ex. – Convenção de


Montereau, de 1939, sobre os estreitos turcos, determina que o recesso por parte
de um dos Estados determina a cessação da vigência da convenção)
Porque é que se trata de uma to jurídico unilateral e não autónomo?

• É unilateral porque o recesso não depende necessariamente da aceitação do ato de


vontade de desvinculação pelas outras partes;
• É não autónomo porque depende daquilo que for disposto a propósito do regime
do recesso e do seu procedimento, seja na Convenção de Viena sobre os Tratados,
seja no próprio tratado que é objeto de recesso.
No art. 56.º, que trata da renúncia e do recesso, há uma regra geral – que não tem sido bem
assim aplicada – que nos diz que o tratado em causa é soberano quanto à admissibilidade
ou não de renúncia/recesso, podendo, por isso, proibir estes atos (o que é raro, porque
ninguém se pode vincular a uma convenção nestas condições), mas a convenção pode não
dizer nada a esse respeito, sendo, por isso, uma convenção silente. Se for silente, há uma
regra que diz que o recesso ou renúncia não serão consentidos, se o tratado nada dispuser
a esse respeito, salvo duas situações:

1. Se as partes tiverem admitido, fora da própria convenção, a possibilidade de uma


renúncia ou recesso, nomeadamente através de um conjunto de declarações ou de
um acordo posterior sobre a matéria;
2. Se se puder deduzir das disposições da convenção, a admissibilidade dessa
possibilidade, ou seja, se a convenção não o proibir e não seja contrário aos fins do
tratado e à sua própria natureza, então deve-se entender que o silencio vale como
admissibilidade da renúncia.
Estas disposições são um pouco contraditórias no entendimento do regente.
Uma parte se desejar desvincular-se de uma convenção internacional deve fazê-lo com
pré-aviso, o que também acontece nos contratos, isto para não apanhar os outros
contraentes de surpresa e causar-lhes prejuízo. Tem que haver um prazo mínimo para que
as partes se possam adaptar e conformar as suas relações jurídicas, económicas e outras, à
nova situação – um outro Estado pôr termo a um tratado ou ele próprio desvincular-se de
um determinado tratado, cessando as suas obrigações.
Assim, a notificação da renúncia ou do recesso deve ser feita pelo menos com um
ano/doze meses de antecedência. Contudo, há tratados que preveem prazos menores.
Aqui não se admite a possibilidade de haver prazos menores, mas a prática que há é que,
às vezes, há prazos menores de seis meses e admite-se tacitamente que esses prazos não

58
Direito Internacional Público Mariana Esteves

são inválidos porque é dada uma liberdade que decorre do n.º1 do art. 56.º, no sentido dos
Estados estipularem regras no tratado, regras específicas sobre a cessação de vigência
desse tratado mediante os atos unilaterais de renúncia ou recesso.
Esta figura também vale para cessação da vigência das convenções, na medida em que as
partes, por vezes as partes não querem denunciá-las, mas querem suspender
temporariamente a convenção.
Há uma outra situação que está prevista no art. 55.º sobre a entrada em vigência e a
cessação de vigência das convenções, na seguinte circunstância: há convenções que
determinam que elas próprias entrarão em vigor depois de serem ratificadas ou aprovada
por um determinado número de tratados. Imagine-se que é necessário que quinze Estados
ratifiquem a convenção. Ultrapassa-se os quinze Estados vinculados à convenção e esta
entra em vigor. Imagine-se que o número cresce, mas depois existem vicissitudes e
acontecimentos supervenientes que levam muitos Estados a repensar a utilidade de
continuar vinculados à convenção, começando a “chover” recessos – Estados a
desvincularem-se – e o número de Estados depois vinculados à convenção cai para menos
de quinze (número estabelecido para que esta convenção entrasse em vigor). Segundo o
art. 55.º da Convenção de Viena, a convenção não cessa vigência – por essa razão – por
razões de segurança jurídica (a não ser que a própria convenção diga o contrário, dando-
se sempre liberdade para que as partes contraentes estabeleçam regras especificas nesta
matéria).

Cessação de uma convenção por vontade superveniente das partes

A convenção pode cessar também vigência por vontade superveniente das partes,
nomeadamente pela celebração, pelas mesmas partes, de um tratado posterior que
revogue o anterior expressa ou tacitamente.

Se for celebrado um tratado com o mesmo objeto que o anterior, pelas mesmas partes e
com disposições idênticas, mas que também estabeleça outras disposições jurídicas
diferentes e incompatíveis com as disposições anteriores, entende-se que o tratado
antecedente foi tacitamente revogado.

A revogação também pode ser expressa. Pode dar-se o caso de celebrado um tratado
posterior que substitui o tratado anterior e o revoga expressamente, bem como pode
haver um tratado de artigo único que se limite a revogar um tratado anterior
supressivamente.
Depois existem outro tipo de revogações, nomeadamente no quadro da relação entre
normas gerais e normas especiais. Pode haver um tratado-quadro, com normas de
carácter geral, e depois pode aparecer um tratado posterior com disposições específicas
ou particulares, sendo que aqui a relação entre as duas normas não é derrogatória, mas de
generalidade/especialidade, podendo dizer-se que o tratado com disposições especiais
depois pode prevalecer sobre o tratado antecedente com disposições de carácter mais
geral.

Pode também haver cessação da vigência das convenções em razão de circunstâncias que
não estejam previstas no tratado. Algumas delas ligam-se ao comportamento das partes:

• Violação – Uma ou mais partes incumprem com as obrigações estabelecidas na


própria convenção internacional, pelo que dir-se-á que o incumprimento dá direito

59
Direito Internacional Público Mariana Esteves

às outras partes ou de se desvincularem da convenção ou de fazerem


inclusivamente cessar a vigência da convenção (se for uma convenção bilateral
haverá a cessação da sua vigência, se for uma convenção multilateral pode haver
ou não essa cessação de vigência).
A situação não é estabelecida a “preto e branco” no art. 60.º da Convenção de Viena
que nos diz que uma violação substancial de uma disposição de um convenção
bilateral, por uma das partes, autoriza a outra parte a invocar essa violação como
fundamento da cessação de vigência da convenção ou da suspensão da convenção
no todo ou em parte.
Fala-se aqui em “violação substancial”, o que significa que não pode ser uma mera
violação formal, tem que ser uma violação de uma disposição material e entende-
se relevante da convenção. Houve sobre esta matéria o Tratado de Ancón que foi
celebrado entre o Chile e o Peru, no contexto de uma guerra entre os dois países
(guerra no Pacífico) suscitou a desvinculação do Peru a esse tratado, o que
determinou a sua cessação de vigência, porque o Chile teria violado a mesma
convenção. Houve uma decisão de um tribunal/instância arbitral norte-americano,
em 1925, que estabeleceu que não havia razões para que o tratado cessasse
vigência, porque entendeu que a violação do tratado cometida pelo Chile não tinha
atingindo nenhuma disposição de natureza substancial. Houve também outro caso,
relacionado com uma sentença arbitral, em 1978, entre a França e os EUA.
Já num tratado multilateral, a violação por uma das partes autoriza as restantes
partes, nomeadamente por comum acordo, a suspender a aplicação do tratado ou a
pôr fim à sua vigência, seja nas relações entre as mesmas e o Estado autor da
violação, seja relativamente a todas as outras partes. As partes por comum acordo,
se houver um Estado que viole a convenção, podem determinar a suspensão ou o
termo da vigência da convenção multilateral. Pode haver uma situação, em que
uma das partes, atingida pela violação, poderá ela própria unilateralmente
desvincular-se da convenção ou solicitar a suspensão de algumas das suas
disposições.

• Rutura de relações diplomáticas entre Estados (art. 63.º) – Os Estados, por


vezes, cortam relações diplomáticas, embora hoje a situação seja estranha. Há
Estados que chegaram mesmo a entrar em conflito armado sem irromperem as
relações diplomáticas, o que é um paradoxo. Ulteriormente, as ruturas de relações
eram consideradas mais claras. Se dois Estados têm uma convenção internacional
celebrada entre si e romperem relações diplomáticas, dir-se-á que essa rutura
pode ou não determinar o termo de convenções internacionais celebradas entre
eles, dependendo de várias circunstâncias, não se falando exatamente na cessação
da convenção. O art. 63.º fala da rutura das relações diplomáticas como
pressuposto para a inaplicabilidade e a não produção de efeitos de uma convenção
entre as partes e não tanto da cessão da convenção. Por exemplo, há Estados que
rompem as relações diplomáticas mas são parte também de tratados multilaterais
que dizem respeito a uma pluralidade de Estados, pelo que nalguns casos se pode
dizer que as disposições desse tratado podem não se aplicar aos dois Estados nas
suas relações recíprocas. Tratados bilaterais, nomeadamente de comércio e outros,
podem deixar simplesmente de produzir efeitos. A norma não é clara se existe a
possibilidade das partes fazerem a norma cessar a vigência das convenções, está
implícito, mas o artigo não o determina. As partes podem exigir a cessação da
convenção, mas esta não é automática de acordo com a Convenção de Viena. O que
decorre também deste é preceito é que as convenções em si próprias só cessam

60
Direito Internacional Público Mariana Esteves

vigência só deixam de produzir efeitos, na medida em que a existência de relações


diplomáticas seja essencial para a aplicação do tratado. Assim, há convenções
internacionais multilaterais que podem continuar a vigorar normalmente e mesmo
algumas convenções bilaterais podem vigorar normalmente se as relações
diplomáticas não forem pressuposto essencial para a sua aplicação, isto salvo se as
partes não quiserem que elas sejam aplicadas como se disse há pouco. Todavia, há
tratados que podem mesmo cessar vigência na medida em que a existência de
relações diplomáticas seja pressuposto necessário dessa vigência (ex. – Pacto
Ibérico). Para certo tipo de situações e muitas situações, nomeadamente tratados
de amizade e de cooperação estreita, o fim das relações diplomáticas implica
necessariamente a cessação da vigência das convenções.

• Estado de guerra – É mais grave do que o corte de relações diplomáticas. O


conflito aramado entre dois Estados envolve o termos das convenções
internacionais estabelecidas entre eles e é uma realidade que não está prevista na
Convenção de Viena sobre os tratados. Sobre o assunto há pouca coisa a dizer. Aqui
também se aplica o seguinte: se houver tratados que impliquem as relações
diplomáticas entre Estados ou relações de amizade entre os Estados ou relações de
cooperação estreita entre dois Estados entende--se simplesmente que esses
tratados cessam vigência. Não é claro que tratados comerciais possam
necessariamente cessar vigência. Cessarão se for essa a vontade dos Estados, se
não o for dir-se-á que poderão ter eficácia suspensa. Há tratados que foram
celebrados entre dois Estados precisamente para serem aplicados em estado de
guerra (ex. – tratados que têm em vista disciplinar aspetos de um conflito armado).
Aqui tem-se aplicado mais o direito consuetudinário dos tratados do que a
Convenção de Viena, que diz pouco sobre esta matéria relacionada com os efeitos
dos conflitos armados nas convenções internacionais.

Os tratados multilaterais que agregam os Estados continuam a vigorar


independentemente de cortes relações ou de guerra entre os Estados (ex. – Caso da Carta
das Nações Unidas). Tirando situações que possam justificar a suspensão de certas
normas nas relações entre os dois Estados, em regra os tratados multilaterais aplicam-se
na ordem de dois Estados beligerantes.

• Costume revogatório ou derrogatório – Um tratado internacional pode muito


simplesmente ser derrogado, ou seja, algumas das suas disposições podem ser
revogadas mas não toda a convenção (a derrogação é uma revogação parcial),
como podem ser totalmente revogadas por costumes supervenientes (as normas
consuetudinárias e as normas convencionais detêm na ordem jurídica
internacional a mesma hierarquia). Assim, tal como um tratado tem revogado
costumes, também costumes podem efetivamente revogar ou derrogar tratados
internacionais, apesar disso não ser particularmente comum. Todavia, para todos
os efeitos, situações de costumes que passaram a modificar o conteúdo de
convenções. Por exemplo, a propósito das deliberações tomadas no Conselho de
Segurança das Nações Unidas, verificaremos que o veto nas deliberações do
Conselho de Segurança relacionadas com o capítulo VII, serão tomadas sem
oposição de nenhum dos membros permanentes do Conselho de Segurança. Há
aqui uma situação em que a convenção prevê literalmente ou textualmente que
essas deliberações devem ser tomadas com o voto favorável dos membros
permanente. Assim, uma abstenção em tese poderia funcionar como um veto, mas

61
Direito Internacional Público Mariana Esteves

a prática (gerando um costume) demonstra que o veto é apenas amissível ou


identificável quando um dos membros permanentes tem um voto contrário, não
quando se abstém. Temos aqui o exemplo de um costume que derrogou uma
disposição da Carta das Nações Unidas que exigia praticamente assentimento de
todos os membros permanentes relativamente à tomada de certas deliberações –
em princípio, as abstenções não contam como veto.
Circunstâncias que podem por termo ou podem gerar a suspensão das convenções
internacionais por circunstâncias não ligadas ao comportamento das partes

Há circunstâncias que sendo independentes da vontade das partes acabam por ter
consequências jurídicas na vigência ou na aplicação das convenções internacionais.

• Impossibilidade supervivente de execução da convenção internacional


Um dos casos que está previsto no art. 61.º tem que ver com a impossibilidade
superveniente de execução da convenção internacional: uma parte pode inovar a
impossibilidade de execução da convenção de um tratado como fundamento para por
termo à sua vigência ou para ele se retira (se for um tratado multilateral), se essa
impossibilidade de execução resultar da destruição ou do desaparecimento de um objeto
que é indispensável à execução do tratado(n.º 1) Pode haver afetações do objeto de título
permanente e afetações do objeto de tipo temporário. Alguns exemplos dados pelos
manuais têm um cariz bizarro, como o caso de ilhas que se afundam, algo que já ocorreu
no Atlântico, sem que faça grande sentido. Para o regente parecem mais claros outros
tipos de exemplos, como os que envolvem situações em que o Estado A celebra com o
Estado B um acordo para o fornecimento de gás natural, mas as jazidas de gás natural são
destruídas por um atentado terrorista ou não as próprias jazidas mas os mecanismos de
extração do gás natural. Durante um tempo considerável, o Estado fornecedor pode
colocar-se na situação de não ser possível a continuidade do fornecimento do gás. Temos
aqui uma situação em que o objeto é destruído, levando à cessação da vigência da
convenção, ou em que existe uma afetação permanente que leva a uma eventual suspensão
de vigência da convenção.

Diz o n.º2 do art. 61.º que a impossibilidade de execução não pode ser invocada por uma
parte com motivo para por termo à vigência do tratado – ou para se retirar de um tratado
se for um tratado bilateral – se essa impossibilidade resultar de uma atitude dolosa, de
uma violação pela parte que invoca essa cessação de vigência de uma obrigação constante
do tratado ou de uma obrigação internacional que a parte que se retira teria relativamente
a outra parte. Não pode, à luz do princípio da boa-fé, a parte que invoca a destruição
temporária ou permanente do objeto como fundamento para se retirar ou suspender a
convenção, essa parte não pode ter ela própria assumido uma conduta que tenha causado
ela própria a destruição do objeto indispensável à execução da convenção, nem violado
disposições da convenção. Terá de haver um quadro de normalidade e não um quadro
litigioso em que a parte que invoca tenha ela própria violado a convenção ou afetado
obrigações que teria relativamente à outra parte.

• Alteração fundamental de circunstâncias

Muito próxima desta figura que se chamada impossibilidade superveniente de execução,


temos uma outra figura que também está muito presente nos contratos de direito privado
que é a alteração fundamental de circunstâncias.

62
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Quando se celebra um contrato existe um conjunto de circunstancias - ocasio leges –


ligadas ao contexto da celebração em que as partes celebram um contrato para retirarem
do mesmo vantagens mútuas ou vantagens recíprocas e só o celebram se estiverem
reunidas um conjunto de circunstâncias naquele momento e que são condição
indispensável para essa celebração. Se essas circunstâncias mudarem radicalmente
poderá ser tido como injusto continuar a executar o mesmo contrato com prejuízo para
uma ou para várias partes.

O mesmo sucede com os tratados internacionais. Eles são celebrados num determinado
contexto, há pressupostos fundamentais que justificam a celebração, se essas realidades
mudam poderá haver situações de desequilíbrio, de desproporção e injustiça que
permitem a um dos Estados, aquele que ficar mais diretamente afetado por essa alteração
de circunstâncias, de exigir ou a suspensão ou a cessação da convenção. A expressão latina
para qualificar esta alteração de circunstâncias como fundamento de cessação ou de
desvinculação ou ainda de suspensão de uma convenção chama-se rebus sic stantibus.

O que é dito no art. 62.º é que uma alteração fundamental de circunstâncias relativamente
àquelas que existiam no momento em que se celebrou um tratado (circunstâncias não
previstas pelas partes, na medida em que as partes podem prever certo tipo de situações
extraordinárias como possíveis de ocorrer e passíveis de terem consequências negativas e
mesmo assim celebram a convenção), ou seja, terá de haver um conjunto de alterações de
circunstâncias que o tratado não preveja ou que as partes não tenham previsto em
declarações feitas no contexto da outorga ou celebração do tratado, não podem em regra
ser invocadas como razão para pôr termo ao tratado ou para uma ou mais partes se
poderem desvincular das mesmas, “salvo se” - artigo é formulado pela negativa – a
existência dessas circunstâncias tiver constituído uma base essencial para o
consentimento das partes, ou seja, se tiver sido claro que essas circunstâncias que não
foram previstas no tratado existiam à época e que as partes só se teriam vinculado à
convenção na medida em que essas circunstâncias permanecessem no futuro, se não
existissem as partes não se vinculariam. A questão é: se estas circunstâncias tiverem
existido à época da celebração do contrato e tiverem constituído base-essencial do
consentimento das partes a obrigarem-se ao tratado, as partes, caso haja uma alteração
dessas circunstâncias, podem invocar a cessação do contrato ou a sua própria
desvinculação de um tratado multilateral.

Para que isto possa acontecer, para que haja esta desvinculação, também é necessário que
a alteração das circunstâncias não seja uma alteração qualquer, é necessário que essa
alteração circunstancial possa produzir uma transformação ou uma modificação radical na
natureza das obrigações (impacto relevante na execução do tratado pelas partes). Se essa
alteração circunstancial gerar cenários em que passa a ser injusta a execução do tratado,
modificando radicalmente as obrigações entre as partes do tratado, então as partes podem
invocar a sua desvinculação ou a cessação do tratado (se for um tratado bilateral).
Todavia no n.º2 ainda habita um conjunto de regras que obstam ou que procludem a que a
alteração de circunstâncias possa ser invocada como motivo de por fim à vigência de um
tratado, ou seja, em que não se pode invocar o rebus sic stantibus:

• Tratados que estabeleçam fronteiras – Alteações circunstanciais que afetem


tratados que delimitem o espaço territorial entre dois ou mais Estados não podem
ser invocados, porque as fronteiras são realidades particularmente deliciadas,
delimitam o espaço próprio de exercício da soberania dos Estados sobre a sua
componente territorial, pelo que, até pelo princípio do uti possidetis juris, que visa

63
Direito Internacional Público Mariana Esteves

que Estados que acedam à independência conservem as fronteiras do período


colonial sob pena de haver conflitos sobre delimitação fronteiriça que podem
conduzir a guerras entre esses mesmos Estados, aqui evita-se que alguém proteste
alterações circunstanciais para por em causa o traçado das fronteiras
estabelecidas em Tratado.
• Se a alteração circunstancial de circunstâncias resultar de uma violação do tratado
pela parte que a invoca – Há aqui uma atitude de má-fé, uma atitude dolosa, em
que um Estado provoca uma alteração circunstancial para mais tarde invocar a
cessação da convenção.

A parte que invoca a cessação da vigência, diz o n.º 3, pode também invocar apenas a
suspensão da aplicação deste mesmo tratado.

Figura mista que tem que ver com a cessação da vigência e com a nulidade. É uma
disposição que tem sido objeto de muitas críticas.
Existe a situação de que uma convenção internacional que se encontra em vigor que
quando foi concluída não violava nenhuma norma de ius cogens (direito imperativo), mas
posteriormente forma-se uma norma de direito imperativo de natureza consuetudinária
ou convencional à qual é reconhecida essa hierarquia superior. O que sucede a uma
convenção com estas característica, desconforme com uma norma de ius cogens
superveniente?
Diz o art. 64.º que se sobrevier uma norma imperativa de direito internacional todo o
tratado existente que seja incompatível com a norma torna-se nulo e cessa a sua vigência.
Isto parece ser uma disposição que não é única, existem também disposições de direito
europeu que se referem a esta ideia mista de cessação de vigência e de nulidade, mas em
termos técnicos/termos dogmáticos a expressão parece infeliz, porque todos os tratados
nulos cessam vigência – se uma norma é nula, ela cessa vigência.
Para que haja um sentido racional dado a esta disposição aparentemente redundante, é
preciso entende-la da seguinte forma: se um tratado se encontra em vigor e se sobrevem
um outro tratado ao qual é reconhecida posteriormente a natureza de direito imperativo,
ou seja, de ius cogens, a partir do momento em que esse tratado entra em vigor, a
convenção/tratado anteriormente celebrado, que era plenamente válido quando fora
concluído, mas que mais tarde por causa da superveniência desse outro tratado de direito
imperativo se torna desconforme com ele, ele cessa vigência. A primeira convenção é como
que revogada, cessando a sua vigência. As partes têm que acordar entre si que essa
convenção deixou de produzir efeitos jurídicos, como que uma revogação tácita.
Imagine-se que as partes por má-fé ou por desatenção ou por não concordarem com a
circunstância da nova convenção de ius cogens ser efetivamente de ius cogens, as duas
partes continuam depois da entrada em vigor da norma de direito imperativo a executar e
a aplicar a convenção que é desconforme com o mesmo direito imperativo. Imagine-se que
essa execução se prolonga durante um período superior a 2/3 anos e que a questão sobe
ao TIJ, em que por razões de ordem pública internacional algum Estado decide impugnar
esse tratado por violação superveniente de uma norma de ius cogens. Nessas
circunstâncias, o TIJ declara a invalidade da norma do tratado que violou a norma de ius
cogens, declara a sua nulidade e a sua invalidade, o que implica que a convenção deixa de
vigorar para o futuro e a decisão de invalidade retroage desde o momento em que é
proferida a decisão até à data da superveniência da norma de ius cogens. É semelhante ao

64
Direito Internacional Público Mariana Esteves

art. 282.º/n.º2 da CRP, sobre a inconstitucionalidade superveniente. Isto significa que o


tratado comum que é celebrado num quadro de normalidade continua a ser válido e os
atos praticado à sua sombra continuam a ser preservados até à data da superveniência da
norma de ius cogens com a qual ele passa a ser desconforme – isso aí é salvaguardado,
porque inicialmente o tratado não era desconforme com nenhum norma de direito
imperativo. Esta é a única interpretação razoável que é possível extrair desta disposição
ambígua do art 64.º da norma contrária ao direito imperativo ser nula e cessar vigência.
Há um espaço para a cessação de vigência, que é a data da superveniência da norma de ius
cogens, e há um espaço para a nulidade, que é a continuidade da aplicação da norma
depois dessa mesma data.

Considerações sobre o regime de interpretação das convenções internacionais

A interpretação das convenções é particularmente relevante, os tribunais internacionais


são por excelência os grandes intérpretes das convenções internacionais.
É uma matéria importante na medida em que a linguagem das convenções internacionais
nem sempre é particularmente clara, daí a relevância de anexos e preâmbulos para a
elucidação do sentido da componente prescritiva das convenções.
O regente não gosta da forma como a interpretação está regulada na Convenção de Viena
nos artigos 31.º e 32.º, porque dogmaticamente sabemos que a interpretação de base
científica implica um programa normativo que tem uma fase de interpretação textual ou
literal, uma fase de interpretação lógica ou sistemática, uma fase de interpretação histórica
e uma fase de interpretação teleológica ou finalista. Depois haverá uma reação de sentido
que será sempre provisória, posteriormente ver-se-á se esse sentido provisório resultante
do encaixe destas diversas fase de interpretação se ajusta ao ambiente normativo, ou seja,
à situação concreta à qual essa relação de sentido será aplicável e depois teremos uma
norma de decisão que é uma decisão final, de um tribunal ou de um conjunto de partes,
sobre o sentido efetivo que se atribui às normas.

Ainda que o professor não diga que norma jurídica é norma interpretada, porque a norma
é sobretudo direito decidido por um decisor legitimado para o efeito, a relação de sentido
dos preceitos. Os elementos savignyanos referidos previamente encontram-se previstos
no art. 31.º e 32.º, só que se encontram “esfumados” e totalmente desordenados.
Obviamente que vemos nestes artigos o elemento textual, quando se diz “para os fins de
interpretação do tratado, o contexto compreende o preâmbulo e os anexos incluídos”. Para
o regente isto parece absurdo, na medida em que o contexto é uma realidade
completamente diferente, é o circunstancialismo que rodeou para todos os efeitos a
celebração da convenção. Assim, os anexos são textos da convenção; o preâmbulo é texto
da convenção. Tem uma parte indiscutivelmente normativa que é o preceituado e os
anexos podem ou não ter uma componente normativa – há anexos que não têm sentido
normativo (ex. – compostos por figuras, normas técnicas, listagens), mas há anexos que
têm efetivamente uma componente jurídica, pelo que não faz sentido dizer que faze parte
do contexto. Por outro lado, os preâmbulos não tendo sido normativo são absolutamente
essenciais para ajudar a elucidar a interpretação textual e até teleológica dos diversos
preceitos. Texto normativo, preâmbulo e anexos fazem parte da base da própria
convenção e relevam para a interpretação textual. Tem que haver uma relação de

65
Direito Internacional Público Mariana Esteves

significado extraída da leitura quer dos anexos, quer do preceituado, quer do próprio
preâmbulo.

Dá-se aqui, sem dúvida, valor especial ao texto. Diz-se também que se deve tomar em
consideração juntamente com todos estes elementos – que designam por ser o “contexto”
– tratado ulteriores estabelecidos entre as partes sobre a interpretação de uma convenção
(pode ter por objetivo a descodificação da relação de sentido do primeiro tratado; um
tratado interpretativo de outro releva para efeitos da interpretação do primeiro),releva
também toda a prática ulterior de execução da convenção (estudar o modo como ela foi
executada é importante para a sua interpretação), bem como outras práticas e até
costumes (mesmo os derrogatórios) que possam ter surgido da convenção, bem como
disposições pertinentes de direito internacional que podem relevar para a interpretação
da convenção(declarações feitas no âmbito de organizações internacionais).
O elemento teleológico como fase interpretativa também se encontra presente no art. 33.º,
mas desgarrado. Tem-se necessariamente em conta, quando se fala do fim, do elemento
teleológico, que é a ideia de que o texto é este, mas o que é que as partes pretendiam
quando celebraram a convenção? Este é um elemento relevante.

Aqueles que são elementos principais, nos termos do art. 31.º, são:

• O texto e a relação de sentido comum atribuível ao texto;


• O fim – Elemento teleológico;
• Contexto – O regente acredita que indevidamente são os anexos, mas talvez mais
relevantes sejam tratados interpretativos e costumes.

O art. 32.º fala em meios complementares de interpretação. Ao dizer que são


complementares está a subsidiarizar estes elementos como elementos interpretativos.
Nomeadamente fala-se neste artigo em trabalhos preparatórios e circunstâncias em que
foi concluído o tratado, estamos aqui a falar do elemento histórico de interpretação que
tem que ver com uma componente que é intencionalista (o que é que as partes pretendiam
quando estiveram a elaborar a convenção, para o que relevam os trabalhos preparatórios).

O elemento histórico também tem outras componentes, sendo que uma delas é as
circunstâncias em que o tratado foi celebrado. Pode ter sido celebrado num quadro de
tensão ou normalidade entre dois Estados, num quadro em que um dos Estados estava
numa situação claramente de desvantagem em relação a outro e um quadro de
necessidade, pelo que são aspetos que podem elucidar o circunstancialismo que rodeou o
tratado.

Para o regente o verdadeiro contexto é a ocasio leges, mas não são estas disposições, como
o preâmbulo ou os anexos, pelo que estes artigos foram mal elaborados e não elaborados
de acordo com a metodologia interpretativa que se utiliza na Europa romanística, pelo que
o regente prevê que tenha havido aqui uma intervenção anglo-saxónica.
Há outros elementos importante do elemento histórico que não estão aqui presentes e que
são tão importantes e tão relevantes como os trabalhos preparatórios e a ocasio leges, que
é a existência ou não de decisões de tribunais internacionais que tenham interpretado ou a
mesma convenção ou convenções de natureza idêntica. Se alguma coisa que releva hoje em
dia é a jurisprudência internacional, quer de tribunais arbitrais quer de tribunais
internacionais com competências genéricas (ex. - TIJ), e se há definições, conceitos, modos
de revelação no sentido de normas semelhantes ou análogas ou das próprias normas feitas
anteriormente pelos tribunais, esse elemento interpretativo que integra a fase histórica de

66
Direito Internacional Público Mariana Esteves

interpretação (estamos a examinar algo que está para trás). Não há aqui uma menção à
jurisprudência, mas é de facto uma componente do elemento histórico.

Na alínea b) faz-se uma menção também desgarrada a outro elemento interpretativo que é
extraordinariamente importante – atirado aqui como elemento complementar – que é o
elemento lógico-sistemático, porque uma norma não pode ser interpretada isoladamente,
nem pode ser interpretada em termos de conduzir a um resultado que seja o ilógico ou
desrazoável. A interpretação lógica significa a proibição do absurdo, daquilo que não tem
fundamento silogístico, em última instância.

Para o regente, os quatro elementos de interpretação – textual, histórico, lógico-


sistemático, teleológico – estão presente nos artigos 31.º e 32.º só que estão arrumados da
forma mais caótica possível e hierarquizados de modo indevido, porque se dá um relevo
excessivo ao elemento literal num quadro de um contexto que envolve realidades que não
deviam fazer parte dele e também ao elemento teleológico, embora com uma pequena
menção, tendo sido muito valorizado pelos objetivistas, mas hoje em dia, pelo menos em
direito constitucional, há autores que o consideram quase como uma página em branco, na
medida em que os fins do tratado só podem ser alcançados muitas vezes depois de
perpassarmos após uma análise aos elementos literal, lógico-sistemático e sobretudo ao
elemento histórico – não podem ser os fins do tratado percebidos de uma forma
completamente autónoma. Muitas vezes o elemento teleológico deriva ou é compreensível
em função dos anteriores elementos. Mas aqui é dado um valor superlativo a esse
elemento.
Dois elementos interpretativos que o professor repute como fundamentais é o histórico e
também o lógico, que são arrumados aqui como meios complementares. Para o regente,
não parece que pelo modo que os tribunais interpretam os tratados se siga propriamente
esta “mistura mal concebida” conformada por estes dois artigos da Convenção de Viena
sobre os tratados.

Aula 7 – 27/10/2020

Relações jurídicas entre o Direito interno e o Direito Internacional Público

Saber como é que as normas de DIP podem produzir os seus efeitos jurídicos no
ordenamento dos Estados: como podem produzir os seus efeitos? Com que hierarquia ou
força essas mesmas normas produzem as suas consequências? Com prevalência sobre a
constituição? Com prevalência sobre a lei? Com prevalência sobre os regulamentos
administrativos? É um problema subsequente ao modo como entram em vigor – questão
da potência de valor.

Aplicabilidade
Aplicam-se na ordem interna como convenções internacionais. Aplicam-se na ordem
interna como normas internacionais não convencionais, como é o caso do costume, dos
princípios e atos normativos das organizações internacionais. Aplicam-se na ordem
interna apenas depois de serem reconhecidos ou transformados em direito interno. Para
isto há varias conceções doutrinárias.

Há uma conceção muito germânica defendida por Triple, que também teve impacto e
adesões doutrinais e constitucionais em Itália, que é a teoria dualista. A teoria dualista diz-
nos que ordem interna e ordem internacional são realidades diferentes, são dois

67
Direito Internacional Público Mariana Esteves

ordenamentos distintos, com normas distintas e princípios distintos, bem como que com
âmbitos de aplicação diferentes. Esta conceção defende uma separação estanque entre
essas duas ordens normativas. Daí que para um ato jurídico internacional, seja ele
consuetudinário, uma convenção internacional ou um ato jurídico unilateral, produza
efeito na ordem interna de um Estado, necessário será que seja convertido em ato interno,
que seja reconhecido como ato interno ou transformado mesmo num valor legislativo. A
partir do momento em que seja reconhecido ou transformado de ato internacional em ato
interno, ele poderá produzir efeitos jurídicos na ordem interna com a hierarquia que lhe
for atribuída pelo ato de transformação.
Há uma outra conceção que se subdivide em teses distintas, que é a conceção monista. Esta
conceção diz-nos que - há varias formas de a entender – que ordenamento interno e
ordenamento internacional conformam o mesmo sistema jurídico, são sistemas
concêntricos que estabelecem mecanismos de comunicação entre si. Portanto, não há um
ordenamento internacional separado de um ordenamento interno: há um ordenamento
interno e internacional e, depois, no âmbito do ordenamento internacional, temos também
os ordenamentos internos dos Estado.

Há, todavia, quem entenda diversamente, sendo que o professor considera esta a tese mais
correta, que dentro do monismo, isto é, para quem aceitar as conceções monistas e nos
Estados que incorporam no seu ordenamento constitucional uma forma monista de
aplicação do direito internacional, há uma outra conceção que é a do monismo que separa
o ordenamento jurídico internacional do ordenamento jurídico interno, sendo realidades
distintas, os ordenamentos internos têm como norma de referência a constituição e o
ordenamento internacional terá um conjunto de princípios e regras de ordem pública (é
um ordenamento muito descentralizado), mas que numa cúpula desse ordenamento
estarão normas de ius cogens e princípios gerais de ordem pública internacional. Ainda
que sejam realidades distintas, isso não significa que não estabeleçam entre si relações
diretas. Há quem entenda que se tratam de ordenamentos homomórficos, ou seja,
ordenamentos onde existe uma via de comunicação entre as normas de um deles
relativamente àquilo que é a normação do outro. Esta ideia da intercomunicabilidade
entre ordenamentos diferentes é a construção que atualmente prevalece.
Mesmo que se entenda que não é necessário um ato de transformação na generalidade,
para que uma norma de direito internacional – um tratado ou costume – possa produzir
efeitos na ordem interna de um Estado, temos que tentar apercebermo-nos com que valor,
com que hierarquia, com que força é que a norma internacional irá produzir os seus
efeitos jurídicos. Ela é aplicável, mas com que força?
Há uma corrente estatocrática, um pouco estatista, de um grande jurista alemão, Jelineck,
que nos dizia que o monismo implica a aplicação de normas de direito internacional na
ordem dos Estados, mas com prevalência do Direito interno, de todo o Direito interno.
Portanto, as convenções vigoram, mas fazem-no num quadro de supremacia do Direito
interno, seja ele da constituição, seja das leis, seja eventualmente até de regulamentos,
sobre o ato jurídico internacional, nomeadamente, um tratado, um acordo ou uma norma
consuetudinária. Esta conceção, hoje em dia, já se encontra quase superada porque ela
teria como consequência a possibilidade dos Estados não cumprirem as convenções
internacionais – um tratado estaria em vigor, entraria em vigor uma lei ordinária ou uma
norma regulamentar, iria estabelecer-se entre estas normas uma antinomia e os tribunais
ou a administração resolveriam sempre essa antinomia dando prevalência ao direito
interno; consequência jurídica: a convenção seria inaplicável e o Estado deixaria de

68
Direito Internacional Público Mariana Esteves

cumprir as suas obrigações internacionais e incorreria facilmente em responsabilidade


internacional, tendo de pagar compensações.

Há quem entenda, sendo esta uma conceção que tem tido um acolhimento maioritário,
para quem adota os sistemas monistas, que é a do monismo com primado do Direito
Internacional, sobretudo no que toca ao Direito ordinário. Entrando em vigor um tratado
internacional na ordem de um Estado e entrando esse tratado com leis internas ou
regulamentos, entende-se que, no quadro do pacto sunt servanda, sendo que esse princípio
é aceite por todas as ordens jurídicas estaduais, então o Estado terá de dar, em caso de
antinomia com Direito ordinário interno, prevalência ao DIP, às convenções
internacionais, tendo estas, assim, prioridade aplicativa em caso de conflito.

O professor diria que a diferença rígidas destas conceções, no que toca aos ordenamentos
constitucionais dos Estados, tem sido superada, se não total, pelo menos parcialmente,
porque a maioria dos ordenamentos acabar por incorporar sistemas mistos, que têm uma
componente monista e uma componente dualista, sendo que o problema é saber qual
delas é a componente dominante. Mesmo sistemas dualistas, em que se requer uma ato de
reconhecimento, de consentimento ou de transformação e uma convenção internacional
por um ato jurídico interno – caso da Alemanha e Itália - , acabam por mitigar um pouco
esta separação e até afastá-la relativamente a princípios gerais de Direito internacional ou
a regulamentos da União Europeia, que são atos normativos unilaterais do Direito
derivado, aprovado pela União, que nos Estados produzem a sua eficácia e os seus efeitos
internos sem necessidade de transformação ou incorporação por ato jurídico dos Estados,
contrariamente com o que acontece com as diretivas.

Os sistemas tipicamente monistas, como é o caso de Portugal, Espanha e, em parte, França,


também acabam por reconhecer no campo do Direito da União Europeia, a necessidade de
transformação interna ou de incorporação por ato jurídico interno, das diretivas da União
Europeia.

Os tratados, nomeadamente o art. 278.º do Tratado de Lisboa, determina que as diretivas


são normas de resultado e, portanto, como tal, devem ser incorporadas, transportas, por
ato jurídico interno.

Os sistemas hoje em dia têm uma componente mais eclética, que não deixa de afastar o
entendimento de que há sistemas predominantemente dualistas e sistemas
constitucionais predominantemente monistas. Por exemplo, há sistemas mistos de pendor
dualista, que é o caso do ordenamento alemão e italiano. Isto significa que no que toca aos
tratados, pelo menos, eles vigoram nas respetivas ordens internas ou depois da
transformação em lei ou através de um ato interno com força de lei com assentimento da
aplicação dessas convenções na ordem interna ou de atos internos de reconhecimento. Na
Alemanha, verificamos no art. 59.º da Constituição que regula esta matéria, que havia
originariamente uma tese, fundada em Triple, que o TC alemão aceitou durante algum
tempo, segundo a qual as convenções internacionais valeriam na ordem interna alemã
apenas depois de serem transformadas em lei interna. Só que esta conceção sofreu
modificações que são reconhecidas hoje em dia pelo TC. Entende-se que todas as
convenções internacionais que respeitem a matéria de competência legislativa do
parlamento, devem ser objeto de um ato interno de consentimento, que tem a força de
uma lei interna estatutária que adota a convenção internacional, não tendo que a
reproduzir. O ato do consentimento tem o duplo efeito de autorizar o PR a ratificar a
convenção e também estabelece regras de como é que essa convenção deve ser aplicada
no Direito interno. Pode declarar em que termos o tratado se aplica, a quem é vincula e os

69
Direito Internacional Público Mariana Esteves

termos dessa vinculação. O ato do consentimento também diz em que termos é que uma
convenção internacional poderá ter ou não ter primado sobre normas de direito interno. A
convenção vale na ordem interna, pode até produzir os seus efeitos jurídicos diretos nos
termos que forem definidos e habilitados pelo ato de consentimento, que é um ato com
valor de lei. Não há transformação, no sentido da conversão de todas as normas do tratado
em lei interna, mas há necessariamente e obrigatoriamente uma lei interna que equivale a
uma forma de transformação, que reconhece o tratado, autoriza a produzir efeitos na
ordem alemã, mas determina em quer termos esses efeitos se produzem, com que
hierarquia e eficácia. É um sistema que dá mais peso à vontade do Estado, relativamente
ao modo como as convenções internacionais se aplicam. Em Itália existem também
mecanismos de transformação, alguns deles em ato legislativo interno outros num quadro
de reconhecimento.
Depois há sistemas mistos de pendor monista, que é o caso sistema francês. Misto porque
apesar dos princípios e do costume se aplicarem diretamente na ordem interna, mas
quanto aos tratados internacionais, alguns tratados, relativamente a matérias
consideradas essenciais no âmbito de matéria legislativa do parlamento, algumas matérias
(que estão elencadas na constituição), carecem de incorporação e transformação na ordem
jurídica francesa através de um ato de direito interno. Todavia, na maioria das convenções,
nomeadamente nos acordos internacionais, eles podem produzir na ordem francesa
diretamente os seus efeitos jurídicos. A França no que toca ao Direito da União Europeia
regula-se nos termos do art. 288.º do Tratado de Lisboa – tratado relativamente à
organização da União, neste momento – e, portanto, as diretivas necessitam de
incorporação e de ato legislativo interno, já os regulamento da União podem produzir
efeitos internos, assim como as decisões, pelo que aí há um reenvio receptício para o
Tratado da União Europeia. Temos aqui um sistema tipicamente misto, embora com algum
pendor monista.

Depois temos sistemas monistas, como é o caso do ordenamento jurídico norte-americano,


britânico e espanhol. Nos EUA temos os executive agreements, que são objeto de
autenticação e expressão definitiva do consentimento através de um ato interno da
administração internacional e interno da administração do governo federal e, a partir do
momento em que isso se suceda, a convenção aplica-se na ordem interna na categoria de
convenção ou como convenção internacional. No caso dos tratados, eles estão sujeitos a
ratificação do Senado, que, muitas vezes, é lenta, mas quando é feita o tratado como
tratado aplica-se diretamente na ordem interna americana.

Portugal enquadra-se no modelo monista, embora subsidiariamente com alguma


componente do dualismo, isto no âmbito sobretudo do Direito Europeu, da sua aplicação e
da eficácia.

Há muitas designações que a doutrina faz relativamente ao sistema português e às suas


diversas vias de aplicação do Direito internacional na ordem interna, pelo que o professor
se limitará a dar a opinião sobre o que considera e como classifica essas mesmas vias de
receção.

Sendo um sistema monista, é um sistema que receciona o DIP como DIP, pelo que não
carece esse mesmo Direito, em regra, de ser incorporado e transformado por ato interno
na ordem jurídica portuguesa.

Todavia, verifica-se que, no que toca, em primeiro lugar, aos princípios de DIP e ao
costume internacional geral, o n.º1 do art. 8.º da CRP diz-nos que são normas que se

70
Direito Internacional Público Mariana Esteves

aplicam diretamente na ordem do Estado. Integram o Direito português como normas


internacionais, mas sem necessidade de qualquer transformação. O professor designa esta
via de receção do DIP geral ou como como uma receção automática simples. temos aqui
grandes princípios de DIP e direito consuetudinário geral, o costume geral.

Este preceito tem uma lacuna evidente porque não se refere àquilo que são os costumes
regionais e os costumes locais. Em face a esta referência sucede-se o seguinte: apesar do
costume regional e local não ser geral ou comum, não se aplica na ordem interna
portuguesa. Será que, como defendeu o Professor Silva Cunha, estes dois tipos de costume
para valerem na ordem interna, carecem de transformação legislativa?
Por uma questão de agilidade, havendo uma lacuna, o regente entende, que a mesma deve
ser resolvida por analogia e através de um apelo aos lugares paralelos, fazendo-se uma
transposição daquilo que ocorre com o Direito geral ou comum para o costume local e
para o costume regional.

Se o Direito internacional geral ou comum, que está presente numa norma


consuetudinária, pouco relevo dá à vontade dos Estados – há muitos Estado que, hoje em
dia, acabam por aceitar ou são obrigados a isso, normas de direito internacional geral ou
comum de natureza consuetudinária, em em cuja formação não participaram, nem
exprimiram nenhum ato de vontade no sentido de formular um protesto durante a
formação da regra de Direito Internacional, nem reagiram à formação do costume ou
deram a sua aquiescência à formação do mesmo, se esse costume se lhe impõe – muitas
vezes aceitam pelo silêncio – por maioria de razão, o costume deve vincular o Estado
Português, se o Estado teve um maior protagonismo, em termos de expressão da vontade,
na formação desse costume. Num costume regional, um protesto é algo muito mais ágil do
que um costume internacional geral. Num costume internacional geral uma reação à
formação de um costume, por parte de um Estado que é independente, pode ser
considerado irrelevante e o Estado ficar obrigado a ficar vinculado a esse costume. Mas
não um costume regional, onde o protesto é mais fácil de ser acolhido e absorvido, e,
sobretudo, num costume local, que só existe na medida em que haja uma vontade
consolidada dos Estados, sendo talvez o tipo de costume onde o elemento volitivo ou
psicológico, na sua componente vontade, é mais relevante.
Nestes dois costumes, por maioria de razão, estando mais presente a vontade dos Estados
em aceitar o costume ou não rejeitar o costume, então ele também deverá valer como
costume internacional geral. Mais difícil seria aceitar diretamente o costume internacional
geral na ordem interna dos Estados. Estamos aqui a falar de ius cogens. Há muitas normas
de Direito internacional geral consuetudinário, como o costume relativo ao Direito dos
Mares, que foi depois, em parte, positivado na Convenção de Montego Bay, continua a
subsidariamente a ser aplicado em alguns Estados.

Art. 8.º/1 – Receção automática simples

Art. 8.º/2 – Convenções internacionais: Estamos perante um tratado ou acordo


internacional, pelo que temos de proceder a como é que o Estado, depois de se vincular,
reage relativamente a aplicação da convenção na sua ordem interna, isto é, como é que
receciona a convenção, como é que lhe permite produzir os seus efeitos jurídicos. O que
nos diz este artigo é que a convenção internacional produz os seus efeitos jurídicos
internos, depois de ser regularmente provada, ratificada ou publicada (o “ou” é um erro):

71
Direito Internacional Público Mariana Esteves

1. Um tratado vigora na ordem jurídica interna portuguesa, como tratado, e produz


os seus efeitos jurídicos, sem necessidade de conversão em lei interna ou de ato
interno de reconhecimento se:
a. Tiver sido regularmente ratificada. A expressão “ou aprovada” deve ser
lida e corrigida por “e aprovada”, na medida em que, quer os tratados quer
os acordos internacionais, antes de serem ratificados ou assinados, devem
ser aprovados, no caso dos tratados pela AR, no caso dos acordos
internacionais, ou pela AR ou pelo Governo. Isto é uma condição
fundamental de validade das próprias convenções.
b. As convenções têm de ser sidas já publicadas no Diário da República. Elas
produzem os seus efeitos diretos e imediatos, tendo efeitos intersubjetivos
juntos dos cidadãos e dos operadores jurídicos, e esses efeitos continuam a
produzir-se enquanto essa convenção continuar a vincular e a obrigar o
Estado português no domínio internacional, ou seja, enquanto o Estado
português não se retirar da convenção através da renúncia ou do recesso
ou de caducidade – qualquer forma mediante a qual uma convenção
internacional poe cessar a sua vigência. A cessação da sua vigência no
plano internacional, é diferente da cessação de vigência interna, sendo que
esta pode ocorrer devido a uma declaração de inconstitucionalidade e a
primeira por outras vias: caducidade, cessação da convenção por situações
não previstas pelas partes, renúncias, recesso. Portando, enquanto
situações destas não ocorrerem, a convenção continua a aplicar-se a
vincular o Estado português, bem como a aplicar-se internamente na
ordem interna portuguesa.
O regente designa esta forma de receção como uma forma de receção condicionada. É uma
recessão automática, na medida em que não é necessário um ato interno de conversão,
mas é condicionada, aos pressupostos anteriormente referidos (aprovação, ratificação,
publicação, vigência na ordem internacional).

E o Direito Europeu e o Direito das Nações Unidas? Há aqui uma situação relativamente
ambígua. Até 2004, tínhamos apenas o n. º3 do art.8.º e era através dele que, no fundo,
produziam diretamente os seus efeitos; as resoluções do Conselho de Segurança das
Nações Unidas, destinadas a garantir a paz internacional, eram emitidas ao abrigo do
capítulo VII e reprimir atos contrários à carta. Era também por esta via que havia uma
aplicação direta e imediata de regulamentos e decisões da União Europeia e haveria uma
aplicação já por via de transposição – incorporação por ato jurídico interno – das diretivas
da União.
Na União Europeia, o art, 288.º e os artigos que precederam nos tratados de Roma, de
Amsterdão e Nice, dispõem que as diretivas, para valerem internamente nos Estados,
necessitam de serem transformadas, ou seja, em ato jurídico interno com eficácia jurídica
intersubjetiva, enquanto os regulamentos e as decisões produzem imediatamente os seus
efeitos jurídicos sem carecerem de ato interno.

Em 2004 sucedeu uma revisão constitucional relativamente mal feita, na opinião do


regente, onde se estabeleceu que as disposições dos tratados que regem a União Europeia
e as normas emanadas das suas instituições – tratados da União e Direito derivado
(diretivas, regulamentos, decisões) – , estas disposições quando emitidas pela União, no
exercício das suas competências , aplicam-se na ordem interna, nos termos definidos pelo
Direito da União, – portanto, os tratados constitutivos – com respeito pelos princípios
fundamentais do Estado de Direito.

72
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Esta disposição é uma disposição ambígua, que a apareceu porque se estava a discutir na
altura, algo que se dava por adquirido, que era o tratado constitucional europeu, que
precedeu o tratado de Lisboa. O tratado constitucional europeu nunca viu a luz do dia,
porque foi rejeitado em referendo pela França e Holanda, sendo um tratado com recorte
fortemente federalista. A ideia era iniciar-se algo semelhante à Convenção de Filadélfia,
com a constituição preliminar, premissial dos Estados Unidos da Europa. O tratado estava
quase que concebido em termos de se afirmar como uma espécie de constituição, havendo
um art. 6º/1 que dizia que todo o direito da União Europeia prevaleceria sobre todo o
direito interno dos Estados, uma cláusula de supremacia federal semelhante àquela que
existe na constituição americana (supremacy clause)e alemã (bundesrecht bricht
landesrecht). Era esta cláusula suscitou uma grande reação jurídica por parte de muitos
autores mais soberanistas, bem como em setores do eleitorado. Não foi apenas por causa
desta cláusula, mas ela contribuiu, para que a França e a Holanda recusassem ratificar este
tratado.

Portanto, o tratado de Lisboa que aproveitou muitas normas do tratado constitucional de


fundo, todavia, não incorporou o art. 6º, tal como ele constava deste último. Só que, em
Portugal, deu-se por adquirido esse tratado e houve uma revisão constitucional no sentido
de estabelecer uma regra que permitisse a possibilidade de o Direito Europeu, tendo em
conta o art. 6º, aplicar-se na ordem interna portuguesa com prevalência sobre a própria
CRP, para lá prevalência sobre a lei, embora se tenha estabelecido um limite muito ténue,
que era os princípios fundamentais do Estado de Direito democrático, o que significava
que a constituição poderia ser desaplicada por um simples regulamento ou uma decisão da
União, para além dos tratados, exceto se esse ato da União Europeia pusesse em causa os
princípios fundamentais do Estado de Direito democrático – não são muito: segurança
jurídica, democracia, núcleo essencial dos direitos fundamentais. Esta norma foi feita a
pensar no art. 6.º, só que não houve tratado constitucional europeu, nem art. 6º, e a norma
ficou, no entendimento do regente, sem grande objeto na parte que é mais essencial, que é
a prevalência. O que é que faz esta norma? Um pouco o que faz a norma do n.3º, isto é, um
reenvio receptício para os tratados constitutivos das organizações. O n.4º faz praticamente
a mesma coisa: Direito da União deve entender-se nos termos das convenções que regem o
Direito da União Europeia e não da jurisprudência. O n.6º do art. 7º da CRP diz que
Portugal, em condições de reciprocidade, pode convencionar limitações á sua soberania,
sendo que convencionar significa acordar mediante convenção internacional, portanto,
não poderia ser de outra forma, no quadro do respeito pela soberania do Estado (na
perspetiva do regente).

Se o tratado fosse o tratado constitucional europeu, nós teríamos um regime de


prevalência absoluta do Direito da União Europeia sobre a CRP, embora houvesse uma
salvaguarda que permitira ao TC poder declarar a inconstitucionalidade de normas da
União Europeia, se estas tivessem em colisão com os princípios do Estado democrático de
Direito.

Mas, hoje em dia, não existe uma cláusula semelhante e aquilo que faz o n.4º é aquilo que
faz o n.3º: reenvia para o tratado da União Europeia, e este, no art. 288.º, para além das
disposições sobre a aplicabilidade dos tratados, que nos define e determina como é que se
aplica uma diretiva, como se aplica um regulamento e como é que aplica uma decisão. Este
envio reptício não envolve por parte dos tratados da União nenhuma regra de prevalência
desses atos de Direito Europeu sobre a constituição.
O que é que podemos extrair daqui? Que o n.º4 é uma norma especial relativamente ao
n.º3 e que aquilo que está consagrado é um regime misto, em que, como se reenvia para os

73
Direito Internacional Público Mariana Esteves

tratados, o art. 288.º do Tratado de Lisboa diz-nos “os regulamentos aplicam-se


diretamente”, logo a aplicação direta e imediata, sem necessidade de transposição; as
decisões têm o mesmo regime dos regulamentos, em problemas; as diretivas devem
implicar uma incorporação em direito interno, a chamada transposição, pelo que aí não se
aplicam diretamente, aplicam-se através de um ato interno que é um ato legislativo, nos
termos do n.º8, do art.112º , da CRP.
Este é o sistema português de receção das normas de DIP. Mas uma coisa é a recção, a
receção automática simples (o costume) e receção automática condicionada (direito
convencional) e regime misto, condicionado a um regime receptício para os tratados, no
que trata ao Direito Europeu e ao Direito das Nações Unidas.

Este é o nosso modelo, predominantemente misto, sabemos como é que o direito se aplica
na ordem interna, mas uma coisa é a aplicação do direito – a produção imediata ou
mediata dos seus efeitos jurídicos – outra coisa será a força jurídica – com que hierarquia,
com que força é que se aplica? Com ou sem prevalência sobre a constituição? Com ou sem
prevalência sobre a lei ordinária? Com prevalência sobre os regulamentos?

Relações entre o DIP e o Direito interno na ordem jurídica portuguesa

- Relação entre o DIP e o DC


- Relações entre o DIP e a legislação ordinária (leis e regulamentos
administrativos)

Existe uma doutrina que entende que existe prevalência ou precedência do DIP cogente, o
ius cogens, sobre o direito interno de valor constitucional, ou seja, sobre a CRP. Este
posicionamento foi sustentado, por exemplo, pelo Professor Jorge Miranda. Portanto, o
Direito imperativo impor-se-ia em qualquer ordenamento jurídico, impor-se-ia na ordem
internacional de acordo com Convenção de Viena e, assim, também se imporia no Direito
interno, sendo um conjunto de normas aceites por todos ou quase todos os Estados da
comunidade internacional, diriam respeito a valores estruturantes da ordem internacional
e esta teria uma prevalência sobre a ordem interna. Podemos até dizer que existe alguma
reminiscência em toda esta problemática na construção de Kelsen, muito atacada por
positivas mais consequentes, desde Schmit a Merkl, que entendiam que havia uma
fragilidade na construção de Kelsen, na medida em que fazia assentar o vértice da sua
pirâmide normativa numa norma aparente de Direito Cogente, numa norma de Direito
internacional geral, que alguns identificaram como ius cogens. Essa norma pressuposta
nunca foi plenamente clarificada por Kelsen e é o elemento mais débil da sua construção,
tendo depois aspetos que são aceites e perfeitamente racionais que dizem respeito à
construção hierárquica entre atos normativos.
O Professor Jorge Miranda entende, no que toca ao Direito cogente, que ele se imporia à
nossa própria constituição, pela essência que o mesmo tem para a ordem jurídica
internacional, sendo princípios civilizacionais que teriam uma hierarquia natural.
Teríamos segundo alguns autores, incluindo o Professor Jorge Miranda, o problema da
Declaração Universal dos Direitos do Homem. Aí o Professor Jorge Miranda já é menos
claro quando à questão hierárquica. De facto, a constituição no art. 16.º/2 diz-nos que as
disposições da própria constituição devem ser interpretadas e integradas à luz da DUDH,
que é um documento político das Nações Unidas, que está anexo à Carta das Nações
Unidas, mas não vale como norma jurídica internacional per si, vale como declaração

74
Direito Internacional Público Mariana Esteves

política. Isto não inibiu vários Estados, entre os quais Portugal, de proceder a uma receção
integral e plena da DUDH na sua ordem interna, pelo que na ordem interna portuguesa a
DUDH vale como direito constitucional, não sendo um direito constitucional qualquer, mas
antes um direito constitucional em que não se afirma inequivocamente uma prevalência
sobre as normas constitucionais da lei fundamental originária, mas a DUDH é entendida
pelo art. 16.º/2 como um parâmetro jurídico de interpretação, portanto, de descodificação
do sentido normativo das normas da CRP que tratem dos mesmos direitos ou de
integração de lacunas.

Há aqui um fenómeno de aparente hierarquia, precedência ou prevalência da DUDH, sendo


que a situação nunca foi clara. O Professor Paulo Otero entendeu originariamente, numa
mitigada posição, que se trataria de uma hierarquia, que levaria a que normas da CRP de
1976 pudessem ser normas constitucionais inconstitucionais. O TC é ambíguo e fala numa
expressão, que o professor acha pouco científica e pouco apurada, que é a “quase
hierarquia” da declaração universal. O Professor Jorge Miranda diz que há uma
prevalência ou precedência, nesse aspeto o professor tende aproximar-se deste
entendimento, destas disposições.

Há quem entenda, sendo que praticamente todos os professores de Direito europeu, talvez
com algumas exceções no âmbito da Professora Maria Luísa Duarte, que o Direito europeu,
quer originário (constante dos tratados da União Europeia, nomeadamente o tratado de
Lisboa), quer o derivado (diretivas, regulamentos, decisões – art. 288.º do Tratado de
Lisboa), teriam uma força jurídica superior à da própria constituição, porque decorreria
talvez não do texto dos tratados, mas decorreria da jurisprudência do TJUE, que há muito
tempo veio entendendo que a verdadeira carta constitucional europeia estaria a ser
construída pelos tratados e também, nessa base, por um conjunto de critérios de
prevalência onde figuravam as normas de Direito europeu e haveria, portanto, uma
prevalência dessa constituição europeia e das normas regidas pela sobredita constituição
sobre o direito ordinário dos Estados, daí o art. 6º/1 do defunto tratado constitucional
europeu falasse nesta prevalência total do Direito da União Europeia sobre o direito
interno dos Estados, incluindo as constituições. Não figurou no Tratado de Lisboa, figurou
numa declaração política que não tem valor jurídico-normativo e que foi subscrita por
alguns Estados, sendo isto mesmo confirmado pelo TC alemão, nomeadamente no seu
acórdão sobre o Tratado de Lisboa, pelo que, de qualquer forma, declaração política ou
não, a jurisprudência do TJUE iria no sentido dessa hierarquia, havendo várias
contribuições doutrinárias para sustentar a mesma hierarquia, nomeadamente o
Professor Fausto Quadros convoca um doutrinador de Direito Europeu, Pescatore, na base
do seguinte raciocínio: se os Estados educassem as suas constituições para incumprir o
Direito Europeu, verificar-se-ia que o Direito Europeu deixaria de existir, pois passaria a
ser incumprindo pelas constituições e perderia a sua eficácia, pondo em causa a
subsistência da União Europeia.
Outros autores, nomeadamente da Escola de Coimbra, o Professor Jónatas Machado, numa
apreciação crítica às posições que o regente assumiu, entendia que o entendimento do
regente nesta matéria se encontrava ultrapassado. Não são apenas quando o n.º4 do art. 8º
prevê que o Direito da União Europeia se aplica na ordem interna, de acordo com o
estabelecido no Direito Europeu, ele entende que o facto dos tratados não estarem a
prever uma hierarquia explícita do Direito Europeu sobre a constituição não significa que
não haja Direito Europeu que reconheça essa hierarquia, que seria o caso, segundo o
Professor Jónatas Machado, da jurisprudência. Essa prevê essa hierarquia. O mesmo tem

75
Direito Internacional Público Mariana Esteves

defendido o Professor Poiares Maduro, talvez com menos enfase, e o professor Rui
Medeiros.

Temos então três eixos de aparentes regras de DIP sobre o Direito interno.:

1. Declaração Universal dos Direitos do Homem

É inequívoco que essa declaração foi rececionada como Direito Constitucional português,
por uma norma de Direito Constitucional que é o art. 16.º/2 .

Originariamente a DUDH não tem valor de DIP, não é um tratado internacional, nem é
produto de qualquer outra fonte de DIP, sendo uma declaração política. Essa declaração
política, acoplada na convenção internacional é certo, não tem valor jurídico-normativo
por si própria, sendo que este é lhe dado pela CRP. Ela vale como Direito Constitucional e
com alguns aspetos de precedência sobre normas da constituição originária, porque,
através de um ato de livre vontade, o constituinte português resolveu incorporá-la como
Direito Constitucional através de uma receção com eficácia plena e que implica que até as
normas da CRP e as normas originárias devam ser interpretadas, e se for necessário
integradas, no respeito por esse mesmo Direito Constitucional rececionado, em que se
recebe uma declaração puramente política que passa, por via dessa receção, na nossa
constituição a ter valor normativo constitucional e paramétrico inclusivamente no plano
interpretativo e integrativo de normas constitucionais originárias.

Não estamos perante uma hétero limitação, uma limitação imposta por fora à nossa
constituição, mas uma autolimitação do próprio constituinte português. Como dizia
Jelineck, uma autolimitação não é uma verdadeira limitação. O constituinte decidiu limitar-
se porque quis, decidindo nesse sentido e tinha razões para o fazer. Portugal atravessava
um período pós-revolucionário incerto, ainda sob tutela militar, com forças políticas
extremistas, nomeadamente na área da extrema-esquerda e outras forças marxistas, que
entendiam colocar Portugal com um modelo político em trânsito para uma sociedade
socialista não democrática (semelhante a alguns ordenamentos jurídicos do leste europeu
e revolucionários do Terceiro Mundo), pelo que era necessário face à incerta do plano
militar consagrar na CRP a ideia de que qualquer interpretação dada aos direitos
fundamentais constitucionalizados deveria ser conforme a um documento importante sob
o ponto de vista da tutela universal desses direitos, que é a DUDH.

Concluindo:

• Não há uma verdadeira hétero limitação pelo Direito Internacional da CRP.


• Aplicando-se a declaração na ordem interna isto significa que ela pode ser
chamada à coação pelo TC para declarar a inconstitucionalidade de normas da
nossa própria constituição – a prevalência hierárquica é isto mesmo. Isto significa
que uma norma da CRP que enfrentar uma nova norma de Direito Constitucional
constante da DUDH pode ser declarada inconstitucional? Não, não pode. Existem
normas da constituição originária, nomeadamente a norma sobre a incriminação
retroativa dos agentes da ex-PIDE e DGS, que afrontam diretamente a declaração
universal, quando a mesma proíbe a retroatividade de leis penais incriminadoras.
Quanto muito pode-se dizer que nesta situação, quando o tribunal se confrontar
com duas interpretações, a da parte transitória da constituição e a da declaração
universal, poderá dar precedência à declaração universal. Isso é totalmente
plausível. O que não é plausível é utilizar a norma da declaração universal no seu

76
Direito Internacional Público Mariana Esteves

valor paramétrico de interpretação para declarar a invalidade da disposição


transitória que permite a punição retroativa dos agentes da ex-PIDE e DGS.
Portanto, não temos aqui uma prevalência hierárquica, temos aqui domínios de
prevalência paramétrica da DUDH relativamente à via interpretativa e integrativa
da constituição positiva.

2. Ius cogens

Será ou não que o Direito imperativo, como defende o Professor Jorge Miranda e Paulo
Otero, prevalece sobre a própria constituição do Estado?
É a própria constituição que determina quais são as normas que podem eventualmente
prevalecer, não só em relação a ela, mas também aos outros atos normativos. O art. 112º e
8º, entre outros, são efetivamente normas constitucionais sobre a normação, ou seja, meta
normas constitucionais que regulam a hierarquia, o valor, a força e, por vezes, o modo de
produção e revelação das normas jurídicas que se aplicam no ordenamento português.

Na CRP, que é a norma de referência no nosso ordenamento, não existe nenhuma


disposição que faça uma alusão ao ius cogens. Portanto, este não está referido na
constituição como norma de direito internacional muito menos imperativo. Mesmo no n.º1
do art.8º quando se fala em princípios e normas de direito internacional geral ou comum,
uma multiplicidade de convenções, a começar pela Carta das Nações Unidas até outras
convenções internacionais, bem como o costume, que são Direito Internacional geral ou
comum, não são Direito imperativo.
Portanto, não há nenhuma disposição na constituição que autorize que uma norma de ius
cogens possa prevalecer em relação à constituição.

Primeiramente, também não sabemos como é que podemos identificar o bloco normativo
de ius cogens, na medida em que há uma pluralidade de interpretações sobre a matéria –
núcleo mínimo aceitável de regras de Direito imperativo anteriormente referido.

Não só as normas da CRP não contrariam, antes pelo contrário, essas disposições, como, se
houvesse alguma discrepância, essas convenções não teriam uma norma ou credencial
habilitante para poder prevalecer sobre a constituição portuguesa.

Em segundo lugar, as normas de ius cogens são reveladas através de fontes muito precisas:
princípios gerais de DIP que podem ser ius cogens, costumes internacionais que podem
conter critérios de ius cogens e convenções internacionais. Quer o costume, quer atos
unilaterais, quer as convenções internacionais, todas elas estão subordinadas à
constituição. Se houver uma norma de ius cogens, contida num tratado internacional, esse
tratado pode ser julgado inconstitucional, por fiscalização expressa logo à partida na
fiscalização preventiva. A fiscalização sucessiva diz que qualquer norma vigente na ordem
interna, norma jurídica internacional ou interna, pode ser julgada inconstitucional se
violar a constituição. Não é feita aqui nenhuma atenção em relação ao Direito imperativo.
Portanto, não há arrimo jurídico positivo para defender esta prevalência do ius cogens
sobre a constituição portuguesa. Todos nós podemos defender filosofias ou tese favoráveis
àquilo que devia ser o dever-ser, mas isso são conceções políticas ou filosóficas, não têm
uma base normativa, e nós como juristas aprendemos que o Direito advém da norma e
sem norma não há Direito.

77
Direito Internacional Público Mariana Esteves

3. Direito da União Europeia

Recomendação: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, artigo “A


sindicabilidade do Direito da União Europeia pelo Tribunal Constitucional” (posição do
regente não muito diferente da do TC alemão).

Esta questão é mais complexa, estando na base de uma controvérsia que ainda não acabou.

Surge o problema do suposto primado do Direito Europeu sobre a constituição


portuguesa.

Esse primado é defendido, há muito tempo, pelo TJUE, antes designado por Tribunal
Justiça das Comunidades Europeias. Em acórdãos como o do PEV, de 1986; de alguma
maneira, no caso Cimental; numa sentença de julho de 2005, entre vários acórdãos, há
uma jurisprudência consolidada do TJUE que nos diz que os Estados são obrigados a
cumprir o Direito Europeu, logo isto significa uma prevalência das normas de Direito
Europeu, quer tratados quer Direito derivado, sobre todo o Direito interno incluindo a
constituição. Esta regra da vinculação dos Estados ao cumprimento do Direito Europeu,
implicaria a aceitação deste primado.
Este entendimento e o entendimento que foi refletido por Pescatore e sustentado pelo
Professor Fausto Quadros, naquilo que é o Direito Constitucional positivo português e no
plano do DIP não parece ter uma sustentação inequívoca, em primeiro lugar.
A tese sobre a qual os Estados europeus estão vinculados ao cumprimento do Direito
europeu é inequívoco e, inclusivamente, o Tratado de Lisboa prevê a aplicação de sanções
a todos os Estado que, por exemplo, não transpuserem diretivas ou não derem
cumprimento aos regulamentos e às decisões. Existe um processo aberto pela Comissão
Europeia que pode redundar na aplicação de sanções, nomeadamente pecuniárias, aos
Estados. Contudo, esta realidade não pressupõe a hierarquia do Direito Europeu sobre as
constituições, porque também no Direito Internacional Público geral os Estados estão
obrigados ao cumprimento dos tratados pelo princípio do pacta sum servanda, e se os
Estados não cumprirem com as obrigações dos tratados internacionais e esse
incumprimento gere, nomeadamente, prejuízos para a outra parte, o Estado incorre em
responsabilidade internacional, havendo penalidades que podem ser aplicadas por
tribunais internacionais. Muitas vezes, os próprios tratados contêm normas remissivas
dos conflitos que possam emergir da aplicação dos mesmos, para tribunais arbitrais, para
o TIJ ou para tribunais intervencionais de natureza regional. Portanto, a responsabilidade
dos Estados pelo incumprimento do Direito não significa hierarquia, significa
obrigatoriedade do cumprimento.

Há Estados que podem entender que há normas de Direito Europeu que são
inconstitucionais, por violação das suas constituições – é o caso da Alemanha, Itália,
Dinamarca e Polónia. Estas normas podem ser julgadas inconstitucionais pelos respetivos
tribunais constitucionais, sendo que, nesse caso, não se aplicam na ordem jurídica interna
ou no quadro de uma determinada interpretação, sendo que os Estados podem optar por
preferir manter a integridade da sua constituição e não aplicar essas mesmas normas e,
consequentemente, assumirem as penalidades derivadas desse incumprimento, que é
pagar uma indemnização. Esta é uma opção dos Estados, sendo algo muito diferente do
que os tribunais e a Administração Pública derrogarem ou desaplicarem a constituição,
aplicando Direito Europeu.

78
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Em segundo lugar, a tese segundo a qual incumprir o Direito Europeu invocando a


constituição seria negar validade a todo o Direito Europeu e este arriscava-se a
desaparecer, juntamente com a ordem jurídica europeia. O regente entende que é uma
posição dramática maximalista, porque aquilo que acontece no Direito Interno com o
Direito contraordenacional e com o próprio Direito Penal é que, muitas vezes, pessoas
individuais ou coletivas decidem incumprir com a lei e não cumprem as suas obrigações, o
que não significa que possam sair impunes, serão aplicadas sanções administrativas ou
penais a esse incumprimento, o que não significa a negação destes direitos. O mesmo
acontece com o Direito Europeu: se houver o incumprimento de uma norma jurídica
europeia em razão da mesma ser contrária à constituição, isto significa que o Estado que
voluntariamente assume o incumprimento, todavia, é suscetível de responsabilização; não
desaparece o Direito Europeu, em razão desse incumprimento. A tese é claramente
exagerada, porque têm sido pouquíssimos os casos em que os Estados invocam a sua
constituição para incumprir com o Direito Europeu. Das poucas vezes, são questões
relevantes que dizem respeito á tutela de Direitos Fundamentais.
Estes dois primeiros argumentos situam-se no plano do DIP originário ou derivado no
quadro da União Europeia, ou seja, são argumentos que dizem respeito à ordem jurídica
europeia.
Há um terceiro argumento que já envolve uma interpretação da constituição portuguesa e
do tratado vigente da União Europeia. Está presente no n.º4 – e estava no n.º3 – do artigo
8.º: as disposições dos tratados e do Direito derivado europeu aplicam-se na ordem
interna nos termos definidos pelo Direito Europeu. Logo à partida, o Direito Europeu está
conformado nos tratados, que são as normas de hierarquia superior de Direito Europeu. O
que nos diz o art. 288º do Tratado de Lisboa sobre Direito derivado? Diz-nos como é que
se aplicam os regulamentos, como é que se aplicam as diretivas e as decisões. Em nenhum
destes preceitos se determina a hierarquia de nenhuma destas três normas sobre o Direito
Constitucional interno. Os regulamentos têm um primado, mas é sobre o direito ordinário
interno, não é sobre a constituição, têm aplicabilidade direta e efeitos jurídicos diretos,
tendo as decisões o mesmo regime. Já as diretivas têm que ser transpostas para ato
normativo interno, que na ordem jurídica português se trata de lei, decreto-lei ou decreto
legislativo regional, nos termos do n.8º do art. 112º. Portanto, ao serem incorporadas em
leis, por exemplo, não se pode dizer que uma lei ordinária possa ter prevalência sobre a
CRP, sendo que isso violaria completamente todas as regras de prevalência normativa
desde o art.3º aos artigos de fiscalização da constitucionalidade e o art. 112º. Aquilo que se
verifica é que a remissão – reenvio receptício – que é feita para o Direito Europeu,
nomeadamente no que toca ao Direito derivado, não autoriza, a partir do art, 288º, que se
possa sustentar que diretivas, regulamento e decisões tenham qualquer espécie de
prevalência sobre a CRP. Este é um ponto de maior importância no entendimento do
regente. No que toca aos tratados europeus, estes não são regulados de forma muito
diferente do que os demais tratados internacionais, os quais podem ser sujeitos à
fiscalização da constitucionalidade e declarados inconstitucionais, acontecendo o mesmo
com os tratados europeus. Nenhuma disposição do Tratado de Lisboa nos diz que o
mesmo prevalece sobre Direito Constitucional dos Estados. Portanto, o reenvio receptício
não resolve o problema de hierarquia e o facto é que hoje em dia os defensores do
constitucionalismo cosmopolita, como é o caso dos Professores Poiares Maduro e Rui
Medeiros, defende a existência de um Direito Constitucional Europeu por natureza como
forma da resolução do problema da hierarquia, que é um problema não resolvido.

79
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Este problema não foi resolvido porque aquilo que o regente refere é o que diz, de forma
mais branda e mitigada, o TC alemão. A tensão entre o TJUE e o TC alemão é antiga e tem
uma história, na medida em que o problema da prevalência do Direito sempre se colocou.
O TC alemão começou por ter uma atitude branda, mas clara sobre um determinado ponto
de vista, aquilo que chamam os princípios ou regras estruturantes da constituição alemã
são inderrogáveis pelo Direito Europeu, tendo por este que ser respeitados. Nos chamados
casos, duas decisões, Solange I e Solange II, o TC alemão disse o seguinte: muitos dos
Direitos Fundamentais que estão previstos na constituição alemã, onde os Direitos
Fundamentais constituem uma parte do núcleo estruturante da mesma, são aceites pela
União Europeia, nomeadamente pelos direitos que consagram nos tratados e pelo facto de
ter recebido na ordem interna europeia toda Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
que é rececionada, pelo que não há aqui um tratamento muito diferente, mas adverte o TC
que se porventura se verificar que o sistema de garantia e proteção dos direitos constante
da constituição alemã é mais eficaz do que aquele que é concedido pela União Europeia, e
se houver uma norma europeia que não assegure devidamente a proteção desses direitos,
colidindo com a constituição alemã, então, nesse caso, o TC é competente para julgar a
inconstitucionalidade dessa regra de Direito Europeu ou a norma interna que transponha
a regra de Direito Europeu. Quando o dito tratado constitucional europeu, com aquele art.
6º, foi reprovado nas urnas, em referendo, em França e na Holanda, o TC alemão sentiu-se
mais poderoso para em cheque aquilo que disse o TJUE, que continua a afirmar a
prevalência absoluta de todo o Direito Europeu. A propósito de uma decisão-quadro, sobre
o mandado de segurança europeu, que implicava certo tipo de restrições a Direitos
Fundamentais, na ordem criminal, o TC alemão julgou a inconstitucionalidade da lei
interna que transpunha essa decisão-quadro (regime próximo das diretivas). O ST de
Chipre e o TC polaco, este numa interpretação conforma à constituição deixava pendente
uma orientação inconstitucional, reagiram no sentido de apreciarem e julgaram a
inconstitucionalidade desta decisão-quadro, que deu origem a um grande furor: o TJUE
reafirmou os seus poderes, muitos autores reagiram contra esta decisão, que não foi
devidamente levada a sério como devia ter sido levado. Vários autores de Direito Europeu
começaram a dizer que isto tinha sido uma decisão-quadro e não uma diretiva, tendo o
tribunal, nesse caso, feito uma advertência, na medida que nunca julgaria uma diretiva ou
de um regulamento. Anos depois o TC alemão julgou precisamente a inconstitucionalidade
de uma lei que transpunha uma diretiva que tinha que ver com a proteção de dados por
companhias telefónicas. Foi a segunda vez que o TC alemão resolveu mostrar a sua força,
não tendo nada feito o TJUE. Mas não se ficou por aqui. Quando o Tratado de Lisboa foi
objeto de um controlo de constitucionalidade, o TC alemão não julgou o Tratado de Lisboa
inconstitucional, mas fez uma passagem brilhante, no entendimento do regente, sobre
aquilo que eram os limites da aceitabilidade da prevalência do Direito Europeu sobre a
constituição alemã, dizendo que sobre algumas matérias que não sejam o núcleo
estruturante e fundamentais da constituição, ate pode haver essa precedência ou
prevalência, agora sobre aquilo que é a componente estruturante da constituição alemã, aí
não há prevalência de espécie nenhuma e o TC é competente para julgar a
inconstitucionalidade de Direito Europeu que contrariar a componente normativa da
constituição. O TC lembrou ainda que a União Europeia não era um Estado, não era uma
federação, que não havia nenhuma cláusula normativa de prevalência porque a declaração
que consta no Tratado de Lisboa sobre esta matéria, não é uma norma, mas antes uma
declaração política sem valor normativo, subscrita por vários Estados que seguem o TJUE
(infelizmente, Portugal também), que não nos vincula. Mais tarde, noutras decisões, o TC
alemão dentro da sua lógica moderadora aceitou que Direitos Humanos com igual
capacidade ou aptidão de proteção, tratados à luz do Tratado de Lisboa, cuja proteção seja

80
Direito Internacional Público Mariana Esteves

equiparada àquela que é concedida pela constituição alemã, podem continuar a ser
tutelados pelo TJUE, mas o TC alemão reserva sua última palavra. Na ordem jurídica
portuguesa, vários autores, nomeadamente o antigo presidente do TC, o Professor Cardoso
da Costa, de Coimbra, tem uma posição idêntica neste quadro, mesmo o Professor Jorge
Miranda tem uma posição próxima. O regente defende, ainda mais estritamente, face à
atual redação do n.º4 que remete para os tratados, a impossibilidade da CRP poder ser
contrariada, desaplicada ou derrogada por normas de Direito Europeu.

Imaginemos que o Tratado de Lisboa é alterado, inserindo-se nele uma cláusula de


supremacia idêntica àquela que existia no tratado constitucional europeu (“todo o Direito
Europeu prevalece sobre todo o Direito interno”). Se isso suceder, o Direito Europeu,
conforma o n.4º, teria que respeitar princípios fundamentais do Estado de Direito
democrático. Como diz o Professor Jorge Miranda, não são os princípios fundamentais de
qualquer Estado de Direito democrático, são os princípios fundamentais do Estado de
Direito democrático português, que são muitos, estando muitos deles previstos na cláusula
de limites materiais de revisão, do art. 288.º. Esta é a perspetiva jurídico-positiva que a
regência da cadeira sustenta e que se resume no seguinte: presentemente, o Direito
Europeu, quer a nível de tratados, quer a nível do Direito derivado, não prevalece sobre a
CRP e pode ser julgado inconstitucional se violar a constituição, qualquer norma, de
acordo com os arts. 280.º e 281.º da CRP, que entrar em colisão com princípios e regras da
CRP pode ser julgada inconstitucional pelo TC.

O regente foi criticado pelos Professores Rui Medeiros e Jónatas Machados quando, no art.
7/n. º6, reduz às convenções internacionais aquilo que é o Direito Europeu, não serão
princípios metafísicos, nem jurisprudência do TJUE (não assenta num sistema
jurisprudencialista de natureza constitucional, aplicando o Direito Europeu na ordem
europeia). Apesar da conceção do regente ser pouco cosmopolita, de acordo com que
dizem os professores de Coimbra, segue sensivelmente o que diz o TC alemão, que é de
facto o mais relevante e apurado de todos os tribunais constitucionais europeus.

Relações entre o Direito Europeu e o Direito ordinário interno do Estado português

- O que prevalece em caso de antinomia?


O Professor Jorge Miranda, seguido pelo regente neste aspeto, entende que, do n.º2 do
art.8.º, no que toca à relação entre tratados e acordos internacionais e o direito interno
consegue-se extrair uma regra de prevalência/hierarquia ou maior força do Direito
internacional convencional.

Como é que se extrai? Não será o n.2º apenas uma regra que estipula os simples termos da
recção do Direito internacional convencional na ordem interna? Não, irá além disso,
sobretudo atento o disposto no segmento normativo final do n.2º. Se um tratado
internacional entrou em vigor, foi regularmente ratificado, produz os seus efeitos jurídicos
e o Estado português não o invalidou, não o denunciou, nem entrou em recesso, o tratado
continua a vincular internacionalmente o Estado português. Assim sendo, ele aplica-se
plenamente na ordem interna. Essa aplicação plena na ordem interna, imposta pelo n.º2
do art. 8º, deixaria de ter lugar se se admitisse que uma lei superveniente pudesse
contrariar esse mesmo tratado. Uma lei aprovada posteriormente à entrada em vigor do
tratado e que o tentasse tacitamente revogar ou desaplicar, violaria o n.2º, porque essa
precedência de lei poria em causa a aplicação interna do mesmo tratado, a qual deve
ocorrer enquanto este mesmo tratado vincular internacionalmente o Estado português, ou

81
Direito Internacional Público Mariana Esteves

seja, enquanto o Estado português não invocar a sua caducidade ou denunciar essa mesma
convenção. Isto significa que enquanto o Estado estiver vinculado ao tratado, ele deve-se
aplicar na ordem interna, logo não se aplicarão disposições de Direito ordinário que
contrariem o mesmo tratado.

Não há aqui propriamente uma inconstitucionalidade ou uma revogação relativamente à


lei, sendo que a lei interna não perde a sua validade, mas apenas na norma que entrar em
contraste ou em conflito com a disposição do tratado, essa norma não será aplicada,
dando-se uma espécie de aplicação preferencial dada ao tratado sobre a lei que verá
apenas a norma em causa que entrou em antinomia, bloqueada na sua eficácia. O tratado
terá aqui uma força jurídica preemptiva, ou seja, bloqueadora da eficácia jurídica de
determinadas disposições de uma lei ordinária que entre em colisão com o seu
preceituado.
Esta realidade não foi muito bem tratada na lei do TC. O art. 71.º/1/i) não fala em
inconstitucionalidade, quando ocorra uma colisão entre uma convenção internacional e
uma lei ordinária e se verifique que, nessa colisão, é dada preferência á convenção sobre a
lei ordinária. Quando isto suceder, deve haver recurso para o TC ou se houver uma
violação daquilo que é a jurisprudência do tribunal sobre a matéria. No entendimento do
regente, o artigo está mal redigido: porque é que o TC deve conhecer nesta questão no
caso de ser preterida a aplicação de uma lei ordinária em relação a uma convenção, a qual
é tida como uma norma preferente? Isso é a regra geral que decorre do n.2º do art. 8º. O
normal é uma lei ser desbancada ou desaplicada por um tratado. Para quê a intervenção
do TC nesta matéria? A norma foi mal redigida e mal pensada, sendo que também o
Professor Cardoso da Costa fala nisso, num artigo sobre a matéria. O contrário é que
deveria ocorrer, isto é, se uma lei ordinária que não tem força para desaplicar um tratado,
for objeto de preferência por parte de um tribunal, por exemplo, e o tratado for
desaplicado para dar preferência à lei, isso sim justifica uma intervenção do TC.

Direito europeu: operatividade

Art. 288.º - As três normas têm regimes aplicativos distintos:

• As diretivas são normas de resultado, ou seja, são, por regra, normas de Direito
Europeu, que, nos termos do art. 288º, carecem de ser transpostas para a ordem
interna dos Estados por ato de Direito interno, sendo que se verifica, pela
jurisprudência do tribunal, que esse ato de direito interno tem de ter eficácia
intersubjetiva externa. As diretivas para valerem carecem desta incorporação em
Direito interno, que equivale a uma transformação, é a componente dualista dos
sistemas dos Estados da União Europeia relativamente a uma norma da diretiva. A
diretiva, por regra, para valer no interior dos Estados carece de transposição, não
tem aplicabilidade direta. Aplica-se desde que seja convertida em norma interna e
é a norma interna que produz os seus efeitos jurídicos. A diretiva também não
deveria ser pormenorizada ao ponto de retirar ao Estado a competência para a
desenvolver e a integrar. Esta, por regra, não pretende fazer valer sem mais o seu
preceituado, ela deixa espaço a um suplemento normativo de Direito interno, que
ajusta as suas normas-fim às especificidades de cada ordem jurídica dos Estados-
membros, tendo, por isso, cada um uma margem de liberdade cofiadora
minimamente relevante para adaptar, ajustar, complementar e concretizar as
disposições da diretiva. Aquilo que esta determina são obrigações de resultado,

82
Direito Internacional Público Mariana Esteves

não impõe especificidades quanto aos meios de atingir esse resultado, que são
deixados ao Direito interno.

• O regulamento é uma norma mais poderosa do que a diretiva, que tem não só uma
aplicabilidade direta, ou seja, vigora no ordenamento dos Estados-membros sem
necessidade de transposição (incorporação num ato de Direito interno), vale como
regulamento na ordem interna dos Estados, como tem ainda efeitos jurídicos
diretos, que tem que ver com a hierarquia ou com a força, ou seja, o regulamento é
aplicável em todos os seus elementos e imediatamente tem eficácia intersubjetiva
e tem um primado que lhe permite afastar ou desbancar toda a legislação ordinária
contrária e, por maioria de razão, a regulamento administrativa interna que lhe for
contrária. Os tribunais têm de dar prevalência ao regulamento, assim como a
Administração Pública dos Estados. O regulamento é obrigatório em todos os
elementos. Claro que pode haver Direito interno de execução dos regulamentos,
sendo que, muitas vezes, para a aplicação de um regulamento de Direito Europeu,
são emitidas leis internas que criam órgãos de monotorização e aplicação, uma
estrutura administrativa, que permita a aplicação do regulamento. Pode até haver
regulamentos que difiram para o Direito interno normas complementares, mas
isso não é muito comum. Assim, o regulamento vale em todos os seus elementos e
com prevalência ou primado sobre o Direito ordinário. Os regulamentos aplicam-
se a todos os Estados.
• Quanto às decisões, não se sabe muito bem se configuram uma norma ou não. As
decisões são atos jurídicos unilaterais emitidos pela União Europeia, que não são
emitidas para todos os Estados europeus, mas sim para alguns Estados e, portanto,
houve quem entendesse que, por isso, não teriam carácter normativo, equivalendo
a atos administrativos – entendimento pouco apurado: não é exatamente assim.
Uma decisão pode ou não ter carácter normativo conforme seja ou não geral e
abstrata. Se uma decisão que se aplica a um, dois ou três Estados e não a todos,
tiver um conteúdo geral e abstrato (se pelo menos, a generalidade estiver
presente), será norma e, como tal, pode ser impugnada como norma junto da
Justiça Constitucional dos Estados-membros. Mas pode ser um ato individual e
concreto, não tendo assim natureza jurídica. As decisões são ou não são normas
em razão do seu conteúdo, de terem ou não um conteúdo geral e tendencialmente
abstrato. As decisões operam juridicamente como os regulamentos, ou seja, têm
aplicabilidade direta e produzem feitos jurídicos diretos. Estes podem ser verticais
ou horizontais: são verticais quando incidem apenas sob o Direito concreto ou
Direito interno; são horizontais se interferirem também com Direitos dos
particulares. Em regra, os efeitos que são ordinariamente produzidos por
regulamentos e decisões são efeitos diretos verticais.

Aula 8 – 03/11/2020

Direito europeu: operatividade


Deriva do art. 288º do Tratado de Lisboa que os regulamentos assumem um primado
relativamente ao Direito interno, aplicando-se em todos os seus elementos, com aplicação
direta e com efeitos diretos, dos quais resulta (nomeadamente dos efeitos verticais) a sua
prevalência relativamente a atos legislativos. Se um operador judicial ou administrativo

83
Direito Internacional Público Mariana Esteves

estiver diante de um regulamento da União Europeia e de um ato legislativo, deve dar


aplicação a este e desaplicar o ato legislativo interno.

O mesmo deve suceder com as decisões da União Europeia, pelo que se estas tiverem
carácter normativo têm prevalência sobre a legislação interna, dado que o seu regime
jurídico em termos de aplicabilidade direta e efeitos diretos é análogo ao dos
regulamentos, nos termos do art. 288.º do Tratado de Lisboa.
Quanto às diretivas, para estas operarem, devem ser incorporadas em Direito interno,
tendo de ser transpostas em norma jurídica interna. São normas de resultado, nos termos
do art. 288º, a União Europeia não determina regras sobre os meios de incorporação da
diretiva, interessando apenas que os resultados sejam atingidos pela legislação interna.

Se estivermos perante uma situação em que uma diretiva é transposta para a ordem
interna através dos atos que a CRP qualifica como atos de transposição, no n. º8 do art.
112º (lei, decreto-lei, decreto legislativo regional), ou seja, só por ato legislativo (atos com
forma específica de lei). Se houver uma lei que transpõe a diretiva e depois há uma lei
sucessiva que revoga ou derroga essa mesma lei que assegura a transposição, e essa
derrogação põe em causa o cumprimento da diretiva. Neste campo, não há nada a fazer. A
lei de transposição é derrogada; a obrigação do resultado da diretiva pode ser posta em
causa pela lei nova e o que pode acontecer é o Estado incorrer em responsabilidade por
não dar execução devida às diretivas da União Europeia e não cumprir com as suas
obrigações.

Há uma outra situação que deve ser tomada em consideração, que não deriva do art. 288.º
do Tratado de Lisboa, nem das normas que o antecederam, mas que deriva de uma prática
e jurisprudência do TJUE. Há certas diretivas que são qualificadas como diretivas auto-
aplicativas (self-executing) ou diretivas regulamentares, porque o seu conteúdo
pormenorizado é análogo ao de um regulamento da União Europeia, há diretivas que são
de tal modo pormenorizadas que deixam muito pouco espaço para o suplemento
legislativo da ordem interna adicionar regras relativas ao respetivo regime, ou seja, o ato
de transposição em lei ordinária interna tem pouca margem de manobra em termos de
complementação daquilo que é o conteúdo da diretiva. A liberdade de conformação ou a
discricionariedade legislativa do Parlamento ou do Governo é muito menor do que numa
diretiva normal.

Portanto, há quem entenda, entendo assim o TJUE (tendo sido confirmado por um tribunal
judicial português), que se uma diretiva self-executing não for transporta durante os dois
anos que, em regra, são dados para que a diretiva possa ser transposta, se o Estado não
assegurar essa transposição ou a transposição completa, a diretiva poderá aplicar-se na
ordem interna do Estado, produzindo efeitos diretos como um regulamento e, portanto, se
a Administração Pública estiver perante uma lei ordinária e uma diretiva self-executing ou
regulamentar, deverá dar preferência direta à diretiva.

Este regime levanta muitos problemas, porque:


1. Não está previsto nos tratados, deriva da jurisprudência e da prática da União
Europeia
2. Há aqui um anacronismo, porque o tratado diz que a diretiva não tem
aplicabilidade direta, mas o tribunal reconhece-lhe maior força jurídica, depois
do prazo de transposição, do que os atos de Direito interno. Ela tem efeitos
jurídicos diretos, em termos de maior força jurídica, mas não tem

84
Direito Internacional Público Mariana Esteves

aplicabilidade direta, que é um pressuposto dessa natureza jurídica. Portanto,


há um salto lógico na jurisprudência do TJUE.
3. Muitas diretivas criaram problemas e reações nos Estados, que entenderam
que as suas prerrogativas de transposição de diretivas estavam a ser postas em
causa e, inclusivamente, houve uma alteração durante algum tempo da prática
normativa da União Europeia, no sentido de não dar um conteúdo tao
pormenorizado às diretivas. Se isso é verdade, não significa que elas tenham
desaparecido. Não tendo desparecido, a sua aplicabilidade interna continua a
processar-se nos termos da jurisprudência da União Europeia.
A prática dos órgãos normativos da União Europeia – estas diretivas não estão previstas
no tratado – levou a que se pudessem fazer mais classificações de diretivas:

1. Diretivas de harmonização máxima – Se uma determinada diretiva estabelece


certo tipo de regras para serem introduzidas no Direito interno, essas regras têm
de ser aplicadas como tal, não podendo o Estado nem fixar disposições no âmbito
da transposição, nem disposições de Direito interno mais favoráveis, nem mais
desfavoráveis. Têm de seguir os padrões fixados na diretiva.
2. Diretivas-quadro e diretivas de execução – Um diretiva-quadro é uma diretiva
principal, que fixa um conjunto de objetivos de natureza geral e depois há outras
diretivas que estão dependentes da anterior e que, pelos vistos, podem ser
invalidadas no plano do direito europeu se violarem as diretivas-quadro, mas as
diretivas de execução são, portanto, normas que têm como função desenvolver,
integrar e concretizar as disposições das diretivas-quadro. Umas e outras carecem
de transposição para o Direito interno.
3. Diretivas não legislativas que são delegadas – Pode haver normas delegadas por
Direito Europeu, isto é, normas de Direito Europeu que podem estabelecer uma
espécie de autorizações normativas e pode haver diretivas de delegação e diretivas
delegadas, que devem mover-se ao abrigo das diretivas delegantes ou
autorizativas.

Celebração de convenções internacionais pelo Estado português


Na ordem jurídica interna, encontramos na CRP, dois tipos de convenções:

1. Tratados internacionais (tratados solenes);


2. Acordos internacionais (não são equivalentes a acordos sob forma simplificada) –
Seguem o mesmo regime da Convenção de Viena sobre os Tratado: convenções
que separam o momento da autenticação do momento da vinculação.

Os acordos e os tratados internacionais têm entre si grandes semelhanças na expressão do


consentimento, mas têm também elementos diferenciais que importa atentar, embora
estes, cada vez mais, se tornem menos relevantes, levantando o problema de saber se terá
havido alguma estratégia minimamente consistente nesta diferenciação.
Como é que são concluídas as convenções internacionais na ordem interna portuguesa?

1. Fase negocial

A competência para negociar convenções internacionais trata-se de uma competência


exclusiva do Governo, de acordo o o art. 197/1/b) da CRP. Não pode nem o PR, nem o
Parlamento, exercer funções negociais. O Governo negoceia e ajusta as convenções

85
Direito Internacional Público Mariana Esteves

internacionais, tanto tratados como acordos, e, em regra, o órgão com a competência para
essa negociação, sem prejuízo da possibilidade de delegação de competências do Conselho
de Ministros noutro órgão, é o Ministério dos Negócios Estrangeiros, sem prejuízo de
outros ministérios em coordenação e em articulação com este, poderem assumir
protagonismo num determinado processo negocial.

2. Fase instrutória
Coloca-se o problema de saber se há convenções internacionais que exigem intervenção de
outras entidades ou a formulação de pareceres obrigatórios. Há quem entende, e
prudencialmente isso deve ocorrer, que se há leis – nomeadamente laborais e sobre
Segurança Social – que exigem intervenção de sindicatos e associações profissionais, no
sentido da elaboração de pareceres, entende-se ser, por identidade de razão (embora isso
não decorra da CRP), que essas mesmas entidades devem ser ouvidas previamente à ao
juízo de consentimento dos órgãos do Estado português relativamente a essa convenção.
Onde a CRP exige a intervenção de certa entidades externas tem que ver com as RA’s, que
devem inclusivamente participar nas negociações de convenções internacionais que se
repercutam nessas mesmas regiões, em que haja um interesse relevante da região no
quadro da celebração dessa convenção – nexo de conexão entre a convenção e aquilo que é
o âmbito regional ou, fora do âmbito regional, aquilo que diga respeito diretamente à
região. Desta forma, a região não se limita a dar um parecer, mas deve poder participar na
negociação, que, em regra, far-se-á através da designação de um técnico que integre a
delegação portuguesa e que proceda a essa mesma negociação internacional. A falta de
participação da RA pode envolver a inconstitucionalidade formal da convenção, embora
sem prejuízo do n.2º do art.277º.

3. Fase constitutiva
Envolve uma modificação do status jurídico da convenção na ordem interna, ou seja, diz
respeito ao processo de vinculação do Estado a essa convenção.

O primeiro momento desse processo de vinculação, sem a qual a expressão do


consentimento do Estado não pode ser nada, tem que ver com a aprovação da convenção
internacional, a qual pode ser feita pelo Governo ou pela AR.

No que toca aos tratados internacionais, o órgão competente para aprovar os tratados
internacionais, atualmente, é exclusivamente a AR. Há matéria que são reserva necessária
de tratado, ou seja, se as convenções negociadas, a sua aprovação pela AR deve revestir a
forma de tratado, sendo as matérias que constam do art.161º/i) da CRP (áreas essenciais
de soberania: retificação de fronteiras, questões de natureza militar, organizações
internacionais), não podem revestir a forma de acordo internacional e são da reserva
exclusiva de competência da AR.
A AR também pode aprovar tratados sobre outras matérias, nomeadamente sobre as
matérias que correspondem á sua reserva de competência legislativa, ou seja, as matérias
que estão elencadas para o exercício da função legislativa, nos art. 164.º e 165.º, podem
assumir a forma de tratado internacional, mas isso não é obrigatório. A AR pode aprová-
las (só a AR), mas pode conferir-lhes a forma de acordo internacional.

A regra geral é que a aprovação ocorre por maioria simples, que é a maioria estipulada
para as deliberações em órgãos colegiais.

Coloca-se um problema que nunca foi devidamente solucionado: saber no que toca à
aprovação de convenções internacionais que integrem a reserva de lei orgânica ou de lei

86
Direito Internacional Público Mariana Esteves

aprovada por maioria de 2/3 , se a AR deverá aprovar essas convenções por idêntica
maioria. A CRP não diz nada sobre a matéria, pelo que dir-se-ia, numa interpretação literal,
que a AR pode aprovar uma matéria respeitante à temática de uma lei orgânica por
maioria simples.

Todavia, há quem entenda que a maioria deve ser a mesma, porque senão há uma situação
muito paradoxal. Na situação anterior, uma minoria na AR pode contornar as regras de
maiorias qualificadas. O regente entende que, por uma questão de coerência lógica, estas
convenções que incidem sobre reserva de lei orgânica e reserva de lei aprovada de 2/3,
devem ser aprovados pela mesma maioria. Isto é uma matéria controvertida e não
resolvida ainda.

Aprovados os tratados internacionais, os mesmo são submetidos ao PR, nos termos do art.
135.º/b), para serem ratificados. A ratificação é um ato livre do PR, pelo que este é livre de
não ratificar uma convenção internacional, por razoes políticas e mérito, pelo que isso
equivale a um “veto absoluto” não superável por maioria qualificada. Todavia, a prática
demonstra que os PR’s, todos eles têm praticamente, desde o início da III República,
ratificado as convenções internacionais aprovadas sob a forma de tratado internacional.

Volvida a ratificação, a convenção estará apta para produzir os seus efeitos jurídicos
relativos à vinculação do Estado português. Se se tratar de um tratado multilateral,
subsequentemente à ratificação, o Estado português apresenta no depositário os
instrumentos de adesão a essa convenção; se for uma convenção bilateral, a convenção
entrará em vigor depois da data nela prevista e depois da sua publicação.
No que toca aos acordos internacionais, a AR tem competência para aprovar convenções
internacionais sobre as matérias da sua reserva legislativa relativa e absoluta (arts. 164º e
165º) sob a forma de acordo internacional, excetuando-se as matérias do art. 161/i), na
primeira norma. Para lá da competência da AR para a aprovação de acordos, temos a
também a competência do governo para os poder aprovar. O art. 197º/1/c) da CRP
confere ao Governo a possibilidade de aprovar acordos internacionais sobre as matérias
que não são da reserva da competência da AR (todas as matérias que estão elencadas na i)
do art. 161º). Isto corresponde, no plano legislativo, às matérias da esfera concorrencial,
isto é, todas as matérias que não são reserva de competência da AR (matérias
remanescentes).

Há aqui um conjunto de cláusulas, da conjugação do art. 161º/i) e do art.197º/1/c),


relativas à atribuição de competências em matéria de aprovação de convenções
internacionais, das quais resulta uma espécie de separação ou de disjunção.
Há uma possibilidade de comunicação de competências que está prevista nestes dois
preceitos. O Governo pode abdicar da competência de aprovar um determinado acordo
internacional sobre determinada matéria remanescente e o pode deferir essa competência
para a AR, ou seja, pode chamar a AR para o exercício dessa competência que tinha sido
cometida ao governo, que a aprovará, em regra, sobre a forma d acordo – ex: matéria de
natureza sensível.

Os acordos internacionais são aprovados ou pela AR ou pelo Governo, em razão da matéria


e da competência dos órgãos, e são remetidos ao PR para um controlo de mérito. No que
toca aos acordos internacionais, o PR não procede à sua ratificação, mas sim à sua
assinatura (art.134º/b)).

87
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Há uma querela, que já se encontra doutrinariamente ultrapassada, sobre se o PR está ou


não obrigado a assinar os acordos internacionais. Havia uma teoria proveniente do Estado
Novo, que era sustentada pelos Professores André Gonçalves Pereira e Fausto Quadros, no
sentido de que o PR seria obrigado a assinar os acordos internacionais. Houve mesmo
quem sustentasse, examinando o n.2º do art.8º da CRP, “os tratados e os acordos nacionais
(…) vigoram na ordem interna depois da sua ratificação ou aprovação”, que é uma
expressão, no entendimento do regente, erradamente contida naquilo que devia ser “e
aprovação”, mas a expressão “ou aprovação”, dá ideia, efetiva e equivocada, de que um
acordo internacional bastaria ter sido aprovado pelo Governo ou pela AR, para que possa
produzir os seus efeitos jurídicos no sentido de obrigar/vincular o PR a assinar. Isso é algo
que não poderia nunca ocorrer, por força da constituição, que nos diz, com enorme
clareza, no art.137º que a falta de promulgação ou de assinatura, de um ato jurídico-
público, pelo PR, acarreta a sua inexistência jurídica, isto é, um acordo que não tivesse sido
assinado pelo PR seria inexistente, não produziria qualquer efeito.

Se o PR não apuser a sua assinatura isso equivale a uma não ratificação, o ato nunca
poderia ter inexistência jurídica. Desta forma, o PR não é obrigado a assinar, sendo livre de
assinar ou não assinar. O regime da assinatura é um regime idêntico ao da ratificação,
sendo que uma não assinatura equivale a um veto absoluto.
Quanto a prazos para a assinatura e a ratificação, apesar de haver várias teses,
nomeadamente a do Professor Jorge Miranda (no que toca à AR, o prazo deve ser de vinte
dias, porque é aquele fixado para as leis), o facto é que, como diz o Professor Gomes
Canotilho e o Professor Vital Moreira, não existem prazos para o PR poder assinar acordos
ou para ratificar tratados. Pode exceder este prazo, sendo que a prática é que os
Presidentes excedem esse prazo: há acordos que já foram assinados depois de quarenta
dias (Governo) e 20 dias (AR).

Não há prazos constitucionais para este ato de controlo mérito presidencial.

4. Fase da eficácia interna


O art. 119º/1/b) refere-se à necessidade das convenções internacionais serem publicadas
no DR para que possam produzir os seus efeitos jurídicos, realidade que está articulada
com o n.2º do art.8º.
Questão que envolveu um debate doutrinal intenso, mas também um debate que chegou
ao TC, envolvendo algumas diferenças de opinião entre o regente e o Professor Jorge Reis
Novais.
Depois de diversas revisões constitucionais, nomeadamente a de 1997, começou a surgir o
entendimento segundo o qual o PR não podia confrontar-se com uma situação em que o
Parlamento escolhesse livremente a forma a dar às convenções internacionais, ou de
tratado ou de acordo internacional. Isto porque há uma velha tese, que depois ganhou
espaço, segundo a qual a reserva material de tratado não se deveria circunscrever às
matérias que figuram no art.161º/i), mas devia abarcar também outras matérias,
nomeadamente as matérias remanescentes, as matérias correspondentes aos domínios de
concorrência legislativa entre o Parlamento e Governo, que a constituição atribui
explicitamente ao Governo para a aprovação sob a forma de acordo internacional. Segundo
esta tese, toda a disciplina primária ou inovadora, mesmo de matérias remanescentes,
deveria poder ser reguladas pelo Parlamento sob a forma de tratado. Esta tese foi
defendida pelo Professor Jorge Miranda.

88
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Uma interpretação desta natureza alargaria extraordinariamente a reserva de


competência da AR, não só as matérias remetidas pelo art. 161º/i), mas também
implicitamente todas as restantes matérias remanescentes na qual a AR estabelecesse uma
disciplina inovadora. O Governo, quando muito, poderia aprovar acordos internacionais
sobre essas matérias, mas complementares ou de execução desses tratados aprovados
pelo Parlamento.
Esta tese foi depois sustentada durante a presidência de Jorge Sampaio, pela razão de
que o PR tinha o seguinte entendimento: enquanto nos tratados podia recusar a
ratificação, já nos acordos internacionais, havia a velha tese (defendida pelo manual),
segundo a qual ele estaria obrigado a assinar. Ele entendeu que esta situação seria
inaceitável, sobretudo, no que toca à própria AR. Esta poderia escolher livremente e pode,
se uma determinada matéria da sua competência é aprovada por um tratado ou por
acordo. Se fosse aprovada por tratado, o PR poderia recusar a ratificação, se fosse
aprovada por um acordo, o PR estaria vinculado a assinar. O PR entendeu que dar ao
Parlamento essa faculdade era inaceitável, de manipulação de fortes, além de entender
que deveria poder recusar a assinatura das convenções sujeitas à aprovação do próprio
Governo.

A querela deve lugar a propósito de uma convenção internacional entre Portugal e o Chile,
sobre segurança social. O PR entendeu que essa convenção internacional era uma
convenção que não deveria ser aprovada por acordo internacional pelo Governo e deveria
integrar a reserva do tratado, porque havia uma disciplina inovadora em matéria de
segurança social, constante da Convenção, pelo que deveria constar de tratado e,
consequentemente, ser aprovada pela AR.

A questão foi levada ao TC, que “atirou para o lado”, com o Acórdão 494/99, tendo como
presidente o TC, o Professor Mota Pinto, em que há páginas e páginas sobre o regime da
celebração de tratados e de acordos internacionais, antes e depois da CRP de 1976 – é um
verdadeiro tratado. Quando se chega à parte mais decisiva, o relator do acórdão dá razão à
Presidência do Conselho, mas por um argumento lateral: mesmo que houvesse essa
primariedade, ela não se aplicaria no caso concreto, porque esta disciplina do acordo entre
Portugal e o Chile, não é inovadora, mas sim secundária e concretizadora. Não deu razão à
Presidência da República, mas não respondeu à questão principal.

Não há nenhuma reserva especial de tratado conexa à disciplina de determinada matéria,


pelo que tal não tem procedimento:
1. Não tem qualquer amparo na constituição e lesão das regras explícitas de
separação de competências para a aprovação de convenções internacionais – Não
pode uma interpretação constitucional, sem uma credencial habilitante que não
existe, esvaziar o Governo de um acervo importante de competências que
explicitamente a constituição lhe comete (interpretação inconstitucional e
derrogatória da alínea c) do art. 197.º).
2. A relação entre tratado e acordo é a mesma relação estabelecida entre lei e
regulamento (posição do Professor Jorge Miranda) – Isso não ocorre no plano do
DIP. Os acordos internacionais não têm uma hierarquia inferior aos tratados
internacionais.
3. Elemento de debilidade na ratio da sustentação da posição do PR Jorge Sampaio
(reserva material de tratado relativamente às disciplinas primárias) – o argumento
do PR baseava-se na tese segundo a qual o PR estava obrigado a assinar os acordos
internacionais. Hoje em dia, uma pluralidade de opiniões, incluindo o Professor

89
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Gomes Canotilho e Jorge Miranda, de que o PR não é obrigado a assinar acordos e


que pode recusar a assinatura. Este argumento retira completamente a razão de
ser do PR Jorge Sampaio.
Solução que revela maior conformidade com a CRP: O Governo é livre para aprovar
acordos internacionais, sejam eles de disciplina primária ou subprimária, desde que não se
trate de matérias que não tenham sido atribuídas à reserva exclusiva de competências da
AR.

Fiscalização da constitucionalidade do DIP

1. As normas consuetudinárias são suscetíveis de fiscalização?

O Professor Jorge Miranda entende que não serão suscetíveis de fiscalização.


O regente tem uma opinião totalmente diferente: obviamente não serão suscetíveis de
fiscalização preventiva, mas nada impede que possam ser fiscalizadas em fiscalização
concreta ou fiscalização sucessiva. Claro que o costume é uma realidade imaterial, mas na
medida em que haja, por exemplo, um ato administrativo que se sustente numa norma
consuetudinária, independentemente da questão da legalidade formal, é sempre possível
impugnar o critério material de decisão que está previsto por trás do ato, ou seja, essa
norma consuetudinária. Imaginemos também que possa haver uma norma
consuetudinária que influenciou o conteúdo de uma lei, ao impugnar-se em fiscalização
abstrata sucessiva a lei, e se essa lei se subordina a um costume, é possível controlar a
constitucionalidade do costume. Quando se diz que um costume não pode ser fiscalizado,
realmente é difícil de fiscalizar diretamente um costume, sobretudo em atos
administrativos e atos regulamentares que têm de ter sempre uma lei por de trás.
Contudo, pode haver uma lei que incorpore um costume e que, nomeadamente, possa
dizer no seu preambulo (diga-se um decreto-lei), que este resulta, obedece e harmoniza-se
com um costume geral ou regional que se consolidou sobre essa matéria. Como um
costume, tal como qualquer norma de Direito internacional, faz parte da ordem interna e
deve ter precedência sobre a lei, se há uma lei que incorpora um costume é perfeitamente
possível, impugnando a inconstitucionalidade da lei, impugnar simultaneamente o seu
parâmetro de referê0ncia que a lei incorpora, que é um costume.

Assim, o costume é passível de controlo e, sendo o costume norma, é clara a CRP no âmbito
da fiscalização sucessiva abstrata e concreta que todas as normas que integram a ordem
jurídica portuguesa, podem ser objeto de fiscalização, quer concreta, quer abstrata
sucessiva. O costume não é uma exceção. Isto não significa que seja normal que o costume
seja objeto da fiscalização da constitucionalidade (pode ter acontecido num caso pontual).
Mas o que não é possível dizer, em tese, é que o costume está excluído da garantia da
constituição e da ação da justiça constitucional.

2. Fiscalização da constitucionalidade do Direito comunitário derivado:


diretivas, regulamentos, decisões

No que toca às diretivas, para serem controladas elas necessitam de ser incorporadas em
tese no Direito interno. Claro que se tivermos uma diretiva self executing, ou seja, uma
diretiva regulamentar que volvido o prazo dado para a sua transposição se verifica que

90
Direito Internacional Público Mariana Esteves

esse prazo não foi observado e não houve transposição, na medida em que se entenda,
como já entenderam tribunais portugueses, que a diretiva se for demasiado detalha ou
pormenorizada produzir efeitos diretos verticais (obrigar o ordenamento interno,
desbancando leis ordinárias portuguesas contrárias), então, nessa circunstância, a diretiva
será passível de fiscalização da constitucionalidade. Conforme os artigos 280.º e 281.º,
trata-se de uma norma que se aplica na ordem interna portuguesa e, como tal, pode ser
objeto de controlo.

O mesmo se diga e relação aos regulamentos e às decisões.

Mesmo uma leitura exagerada do n.º 4 do art. 8º da CRP, que nos diga que o Direito da
União Europeia só é suscetível de ser objeto de controlo de constitucionalidade, se colocar
em causa os princípios fundamentais de um Estado de Direito, obviamente que, mesmo
nessa leitura restritiva, haveria sempre a intervenção do TC se alguém invocasse a
violação desses princípios fundamentais do Estado de Direito. Como essa limitação não
ocorre, dir-se-á que todos os atos de Direito comunitário derivado, que violem ou não
princípios do Estado de Direito democrático, se forem contrários à constituição, podem ser
julgados inconstitucionais.

3. Fiscalização da constitucionalidade das convenções internacionais: tratados


e acordos internacionais

A fiscalização preventiva da constitucionalidade é aquela que é exercida, quer pelo PR,


quer pelos representantes da República, interessando-nos os poderes do PR, que se
reduzem á faculdade de quando confrontado com uma lei ou um decreto-lei para
promulgação ou com uma convenção internacional sob a forma de acordo para assinatura,
ou perante uma convenção internacional sob a forma de tratado para ratificação, o PR
pode optar, se tiver dúvidas de constitucionalidade, por requerer a fiscalização. Se
discordar da oportunidade política do ato, o PR pode recusar a assinatura ou a
promulgação, o que significa um veto absoluto. Havendo dúvidas de constitucionalidade, o
PR deve optar pela fiscalização.

A fiscalização que se pode exercer é a fiscalização, por regra, abstrata sucessiva


(fiscalização cirúrgica), mas no que toca a convenções internacionais faz mais sentido que
o PR exerça uma fiscalização preventiva, porque se houver uma inconstitucionalidade
significativa e se essa inconstitucionalidade for pronunciada pelo TC, não há possibilidade
da convenção ser assinada ou ratificada, em princípio. Numa circunstância dessa natureza,
a não ser que haja uma deliberação parlamentar própria, o Estado português não se
vinculará, em princípio, a essa mesma convenção.

Existem formas de superação do problema, nomeadamente através da formulação de


reservas, mas precisamente a fiscalização preventiva dá espaço a que haja uma
renegociação do tratado, sobretudo se ele for um tratado bilateral, ou a formulação de
reservas, tratando-se um tratado multilateral onde é sempre mais difícil renegociar as
disposições normativas da convenção.

No que toca à fiscalização preventiva, o n.1º do art. 278º, diz-nos que o PR pode requerer
ao TC fiscalização preventiva de qualquer norma constante de tratado internacional que
lhe tenha sido submetido para ratificação e também de decreto que lhe tenha sido enviado
para ser assinado sob a forma de acordo internacional. Aquilo que se pode dizer é que a
norma que estamos a examinar é uma norma completa e isenta de dúvidas, mas não é

91
Direito Internacional Público Mariana Esteves

totalmente isenta de dúvidas. Parece claro que os tratados internacionais que podem ser
objeto de fiscalização preventiva, como consta do artigo anterior, bem como acordos
internacionais aprovados pelo Governo, sucede, todavia, que os acordos internacionais
que são aprovados pela AR são aprovado sob a forma de resolução e não sob a forma de
decreto, como está previsto no mesmo artigo, portanto, falta aqui qualquer coisa.

Os acordos internacionais aprovados pela AR, que também os pode aprovar de acordo com
o art. 161.º, eles são aprovados sob a forma de resolução parlamentar e não sob a forma de
decreto, então dir-se-ia numa interpretação literal que o PR pode fiscalizar tratados
(enviados para ratificação), acordos aprovados pelo Governo e sob a forma de decreto
(que o PR deve assinar), mas não poderia exercer a fiscalização preventiva sobre
resoluções da AR que aprovem acordos internacionais, na medida em que não há aqui
menção às resoluções. Haveria aqui uma situação em que o PR estaria precludido de o
fazer, mas não é assim.
É claramente uma lacuna, devido a uma falha regulatória do legislador constitucional, não
faria nenhum sentido, seria irracional, que podendo ser fiscalizados os tratados aprovados
por resolução da AR, não pudessem ser fiscalizados os acordos, sendo fiscalizáveis os
acordos aprovados por decreto por parte do governo, não pudessem ser fiscalizados os
acordos aprovados por resolução parlamentar.
Portanto, faz-se aqui uma interpretação extensiva, com um retoque no elemento literal, em
que a doutrina coincide toda, no sentido de entender que a expressão “decreto” não
significa textualmente e apenas um decreto formal do governo, mas decreto em sentido
amplo, ou seja, sinónimo de diploma, um diploma que lhe tenha sido enviado para
assinatura, diploma esse que contém um acordo internacional. Portanto, valerá quer para
os acordos do Governo, quer para os acordos da AR, que tenham sido aprovados por um e
por outro, pelo que, aqui, a forma de resolução é de desconsiderar porque senão teríamos
uma lacuna, que conduziria a um resultado desigualitário e até absurdo.

Assim, todas as convenções internacionais são suscetíveis de fiscalização preventiva da


constitucionalidade.

Se a convenção internacional, nomeadamente, se os tratados forem julgados


internacionais pelo TC, existirá uma pronúncia no sentido dessa inconstitucionalidade e o
PR não poderá retificá-los, sendo algo que a constituição clarifica no que toca ao n.4º do
art.269º. Assim, tal como acontece na fiscalização preventiva de atos legislativos, no que
toca à fiscalização preventiva de tratados, o que se verifica é que o tribunal pronuncia-se
pela inconstitucionalidade e há várias opções:
1. A AR pode renunciar o tratado;
2. A AR pode desistir de aprovar o tratado;
3. A AR pode, em articulação com o Governo, formular uma reserva;
4. A AR pode reaprovar a convenção internacional por uma maioria qualificada,
superando a decisão do TC e permitindo ao PR poder optar, a título final, por
ratificar ou não ratificar por razões políticas – o que ele não pode é ratificar sem
que a AR tenha procedido à reaprovação por maioria qualificada.

Importa sublinhar a problemática das reservas. Na hipótese da convenção internacional


não ser renegociada, pode haver uma situação em que a inconstitucionalidade ajuizada
pelo TC recai sobre uma norma especial. Aí. o Estado português pode, se o tratado o
permitir e se não houver objeções fundamentadas de outras partes, formular uma reserva,
no sentido dessa mesma norma não se aplicar na ordem interna portuguesa ou se aplicar

92
Direito Internacional Público Mariana Esteves

com uma outra interpretação diferente e vinculativa para depois o Estado português
poder consentir ou formular o seu consentimento relativamente à convenção, portanto,
uma reserva modificativa, uma reserva de conteúdo interpretativo sem ser uma mera
declaração interpretativa ou uma reserva de pura e simples não aplicabilidade dessa
mesma norma na ordem interna.

Ocorrendo a admissibilidade dessa situação, diremos que um novo diploma reaprovado


com a reserva, por parte da AR, será presente ao PR e este poderá optar de novo por
fiscalizar a constitucionalidade ou ratificar o tratado.

A fiscalização preventiva permite de alguma maneira estas opções de decisão diferentes


por parte da AR e, em última instância, o Governo (embora a palavra final seja da AR).

Relativamente aos acordos internacionais, os acordos que são aprovados pelo Governo, se
houver uma pronúncia no sentido da sua inconstitucionalidade, aquilo que pode acontecer
é:

1. O Governo desiste deles;


2. O Governo renegoceia a convenção, neste caso, o acordo internacional;
3. O Governo formula uma reserva, não aplicando na ordem interna a disposição
inconstitucional, sendo que um novo diploma com reserva será enviado ao PR para
assinatura.

Outra querela que se coloca tem que ver com os acordos internacionais aprovados pela
AR. De facto, eles estão amalgamados juntamente com os atos legislativos, quanto aos
efeitos da decisão, no n.2º do art.269.º da CRP: “o decreto não poderá ser promulgado ou
assinado – tratando-se de um acordo, vale a assinatura – sem que o órgão que o tiver
aprovado expurgue a norma inconstitucional – não é fácil num acordo internacional, não
se podendo expurgar unilateralmente, pelo que o expurgo deve ser entendido como uma
renegociação do tratado ou como a formulação de uma reserva”. Dir-se-ia que tratando-se
de um acordo internacional aprovado pela AR, tal como sucede nos tratados, poderia a
haver a opção de o diploma, depois de ter sido julgado inconstitucional, ser reaprovado
pela AR, depois desta maioria qualificada.

Há um setor na doutrina, onde milita o professor Jorge Miranda – o professor desconfia ser
este o setor maioritário, que entende que esta disposição (possibilidade de
reaprovação)não se aplica aos acordos aprovados pela AR, porque o preceito fala em
“decreto” e os acordos aprovados pela AR são-no pela forma de resolução e não sob a
forma de decreto. Neste caso, a AR não poderia usar o instituto da reaprovação, para
superar a decisão de inconstitucional do TC.

O professor não concorda com este entendimento, porque:


1. A AR, relativamente a um conjunto muito vasto de matérias, nos termos do
art.161º/i), é livre para conferir a forma de tratado ou acordoa esse bloco vasto de
matérias, está na sua disponibilidade, pelo que seria absurdo que a mesma matéria
aprovada sob a forma de tratado possa implicar, em caso de decisão de
inconstitucionalidade, uma deliberação reversiva de natureza parlamentar, mas se
essa mesma convenção tiver a forma de acordo, isso já não pode suceder. Tal
parece anacrónica: uma diferente forma do mesmo conteúdo possa dar origem a
soluções distintas.

93
Direito Internacional Público Mariana Esteves

2. Problema de identidade de razão e paralelismo com o regime do 278º, onde se


conclui que os acordos aprovados por resolução da AR possam ser fiscalizados, a
forma de resolução específica não seja tomada em consideração e a expressão
“decreto” valha como sinónimo de diploma, englobando um decerto em sentido
estrito do governo ou uma resolução da AR, o regente pergunta porque é que a
mesma solução, por identidade de razão ou paralelismo, não deve ocorrer neste
n.2º. Obviamente que deve ocorrer, por isso, quando se fala aqui no “decreto”, a
expressão decreto deve ser tida como ”diploma” em sentido amplo, abrangendo,
quer os decretos em sentido estrito do governo, quer as resoluções da AR para
aprovação de acordos.

Torna-se complicado o facto deste regime, cada vez mais, esmaecer a distinção entre
acordos e tratados. Isso deve-se a sucessivas revisões constitucionais feitas, por vezes, a
eito que foram fazendo esbater a distinção entre estes dois tipos de convenção
internacional e foram fazendo essa aproximação, por vezes, sem consciência, daquilo que
estavam a fazer.

No que respeita à fiscalização abstrata sucessiva e concreta, não há muito a dizer:

1. Na fiscalização concreta, uma convenção internacional pode ser desaplicada se


entrar em desconformidade com a constituição. Existe a alínea um pouco estranha
i) do n.º1 do art. 70.º da Lei do TC, que nos diz que numa situação em que uma
convenção internacional leve à desaplicação de uma lei, com a qual entre em
contraste, deve haver um recurso para o TC, por parte do MP ou dos particulares –
isto aplicaria uma ofensa indireta ao n.2º do art. 8.º da CRP. Devia ser o contrário, a
admissibilidade desse mesmo recurso devia fundamentar-se no facto de uma lei
entrar em desconformidade com a convenção e não o contrário. O preceito
também prevê a possibilidade de interposição desse recurso se a aplicação de uma
determinada norma da convenção internacional, puser em causa jurisprudência já
firmada pelo TC sobre a matéria. nestas situações, não haverá
inconstitucionalidade, mas sim um problema de saber qual a lei ou qual a norma
que irá prevalecer sobre a outra.

2. Relativamente à fiscalização abstrata sucessiva, uma convenção internacional pode


ser impugnada junto do TC, sendo que se este declarar a inconstitucionalidade da
norma impugnada, ela será invalidade e, por regra, será expulsa da ordem jurídica,
o que coloca problemas claros de cumprimento da convenção. Nesta situação, o
Estado entra em incumprimento, a não ser que invoque junto do outro Estado ou
outros Estados, ao abrigo do art. 46.º da Convenção de Viena, que há uma violação
manifesta de uma disposição de competência ínsita na nossa CRP, deposição essa
que deve ter uma importância fundamental. Só nesse caso é que, por violação do
seu Direito interno, o Estado português poderia invocar a nulidade da convenção
ou a nulidade da expressão do seu consentimento em relação a essa convenção, no
caso desta ser multilateral. Todavia, devemos ver com atenção o art. 277 º que nos
diz que “a inconstitucionalidade orgânica ou formal de tratados internacionais
regularmente ratificados não impede a aplicação das suas normas na ordem
jurídica portuguesa, desde que tais normas sejam aplicadas na ordem jurídica da
outra parte salvo se tal inconstitucionalidade resultar da violação de uma
disposição fundamental”. Em primeiro lugar, trata-se de uma norma que se aplica
apenas em sede de fiscalização abstrata sucessiva (as normas já estão em vigor na

94
Direito Internacional Público Mariana Esteves

ordem jurídica interna e em condições de produzir os seus efeitos jurídicos –


“regularmente ratificados”). Em segundo lugar, aparentemente esta norma aplica-
se apenas a tratados, embora haja uma corrente, na qual o regente se inclui, que
tem entre outros expoentes o Professor Sérvulo Correia, que entende que a norma
deve ser alargada também a acordos internacionais, porque, por exemplo, no que
toca às convenções internacionais, aprovadas pela AR, em que esta tem latitude
para conferir uma forma ou outra a uma pluralidade muito vasta de convenções
respeitantes a matéria da sua competência, não faz sentido se houver vícios na
convenção que possam gerar irregularidade que essa possa proceder em caso de
tratado, mas não em caso de acordo internacional – interpretação extensiva aos
acordos, embora o preceito fale apenas em tratados. Em terceiro lugar, este artigo
aplica-se também em convenções internacionais cujas normas padecerem em dois
tipos de inconstitucionalidade: inconstitucionalidade formal e
inconstitucionalidade orgânica. Isto significa que o artigo não se aplica nos casos
em que houver vícios de natureza material. Outra questão de aplicabilidade do
artigo é o facto das normas viciadas sejam aplicáveis também na ordem jurídicos
da outra parte ou outros Estados, ou seja, deve haver um princípio de
reciprocidade. O último requisito, muito importante, é que os vícios não sejam
graves, ou seja, que os vícios orgânicos e formais não violem uma disposição tida
como essencial ou como fundamental. Se estes requisitos se cumularem, verifica-se
que normas julgadas inconstitucionais e que, em regra, deveriam ser inválidas,
portanto, depois da declaração deviam ser expulsas do ordenamento português e
não produzir qualquer efeito, essas normas não serão tidas como inválidas, mas
como meramente irregulares, sendo que como irregulares, apesar de viciadas, elas
podem produzir os seus efeitos jurídicos na ordem interna. A irregularidade é o
menos grave dos desvalores clássicos do ato inconstitucional. Pode aplicar apenas
responsabilidade interna de quem praticou o ato, nomeadamente disciplinar ou
política. Temos a invalidade que é o desvalor regra de todos os atos
inconstitucionais, que é n.3º do art.3º da CRP e temos a inexistência jurídica que se
reserva para vícios mais graves (falta absoluta de forma, coação, usurpação de
poderes) e os casos que a CRP prevê, entre os quais a falta de assinatura ou, por
identidade de razão, a falta de promulgação ou ratificação de atos jurídicos. Aqui
temos o único caso em que a constituição prevê, não significa que a dogmática não
aceite outros, em matéria da aplicação do desvalor da irregularidade. Esta
disposição foi consagrada porque é complicado para a ordem jurídica portuguesa
incorrer em incumprimento de uma convenção internacional, porque ela foi
declarada inconstitucional relativamente às suas normas, se essa
inconstitucionalidade é pouco relevante, colocando-se em causa as relações
internacionais, o pacto sunt servanda, o Estado poderá ser obrigado a indemnizar
incorrendo em irresponsabilidade, por uma inconstitucionalidade menor
declarada pelo TC. Salvaguarda-se esta situação e o que resulta aqui, em suma, é
que um tratado e um acordo (para o regente) regularmente ratificado ou assinado
– ou seja, se houver vícios na ratificação ou assinatura a disposição não se aplica –
que tenham vícios orgânicos e formais – inconstitucionalidade materiais estão de
fora, ainda que sejam consideradas as mais graves – que se aplique na ordem
jurídica da outra parte, também no que toca a todo o seu preceituado, e em que a
inconstitucionalidade não seja grave, – não seja violadas disposições fundamentais
– nessas circunstâncias, a convenção internacional produzirá os seus efeitos
jurídicos, apesar de se encontrar viciada.

95
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Esta disposição resolve o problema das convenções internacionais violadoras de Direito


interno, à luz do art.46º da Convenção de Viena? Não resolve, porque deixa de fora as
inconstitucionalidades materiais – nessa situação não há nada fazer, o Estado português
entra em responsabilidade internacional. No que toca às inconstitucionalidades orgânicas,
esta situação permite que a constituição, se for uma inconstitucionalidade ou uma
disposição fundamental, resolva o problema e a Convenção de Viena tem também maior
latitude e se houver uma declaração de inconstitucionalidade de natureza orgânica, por
vício de norma de competência, abarcar disposições fundamentais e for manifesta, aí
permite que o Estado português possa invocar a inconstitucionalidade. Se for uma
inconstitucionalidade formal, de natureza grave, o Estado português, entra em
incumprimento, pois é uma situação que não é ressalvada nem na Convenção de Viena,
nem neste preceito do art. 277º/2.º.
Há dúvidas sobre o que a inconstitucionalidade orgânica ou formal que resulte da violação
de uma disposição fundamental. Há diversos entendimentos:

1. Se for uma convenção internacional que exigiria por identidade de razão com as
leis correspondentes, em tese, audiência obrigatória de sindicatos (por dizer
respeito a matéria laboral ou da Segurança Social) e os sindicatos não forem
ouvidos, podemos entender que esta é uma violação de uma disposição não
fundamental.
2. O professor entende que, se houver violação da regra que impõe a participação das
RA’s relativamente a convenções que lhes respeitem, essa participação que não
implica poderes de decisão, mas poderes de intervenção, de proposta ou de
auscultação, também não constitui a violação de uma disposição fundamental, pelo
que justifica a aplicação do regime da irregularidade e que a norma, apesar de
viciada, produza os seus efeitos jurídicos.
3. Situações mais graves, como a falta absoluta de forma ou preterição de regras
fundamentais de procedimento, por exemplo, a convenção é aprovada na
generalidade e enviada para o PR para assinatura ou ratificação, sem ser aprovada
em votação final global, isso implica uma violação grave de uma regra de forma,
porque não há uma deliberação constitutiva da AR; da mesma forma, se a matéria
for da competência da AR e tiver sido aprovada por acordo internacional
tramitado pelo Governo, temos uma inconstitucionalidade orgânica que põe em
causa uma disposição fundamental, pois o Governo apropriou-se de competências
normativas constitucionalmente atribuídas à AR e vice-versa, embora aqui possa
haver uma nova tramitação.

Aula 9 – 10/11/2020

Responsabilidade no Direito Internacional

Nesta matéria o regime da responsabilidade internacional é relativamente unificado e tem


especificidades relativamente à responsabilidade no direito interno.

Apesar do regime da responsabilidade ser antigo e ter vários precedentes na esfera do


direito internacional, a sua codificação é recente. Existe um projeto de artigos da comissão
de Direito internacional sobre a responsabilidade por facto internacional ilícito adotada
em 2002 e anexa a resolução 56/83 da Assembleia Geral das Nações Unidas, sendo já um
grande avanço.

96
Direito Internacional Público Mariana Esteves

A conferência de Genebra de 1930 não conseguiu adotar um projeto de convenção face às


divergências entre os participantes, pelo que houve um certo atraso numa primeira
tentativa de codificação do regime da responsabilidade; foi a comissão internacional que a
partir de 1955, com base essencialmente no relatório do Professor Garcia Amador, que
empreenderam a tarefa de codificar o regime da responsabilidade e essa codificação
termina em 1966, num primeiro projeto de artigos da Comissão de Direito Internacional,
que não reuniu grande consenso. O projeto definitivo acabou, apesar de tudo, por reunir
um consenso maior.

Para além deste projeto da Comissão de Direito Internacional, encontramos no domínio da


responsabilidade internacional algumas situações de codificação. A IV Convenção de Haia
de 1907 estabelecia um regime para os atos cometidos pelas forças armadas em
campanha. Existem diversas convenções relativas ao transporte de materiais nucleares,
como a Convenção de Bruxelas de 25 de maio de 1962 e a Convenção de Viena de 19 de
maior de 1963. Existe ainda os tratados de 27 de janeiro e 29 de março de 1972 sobre a
responsabilidade pelos danos resultantes do lançamento de satélites, bem como a
convenção de Bruxelas de 29 de novembro de 1969 relativamente à reparação dos danos
devido à poluição do mar por hidrocarbonetos.

Também no domínio das organizações internacionais tem havido um reforço de


codificação e em 2002 a Comissão de Direito Internacional nomeou o Professor Gaia
relator especial da questão relativamente às organizações internacionais.

Há uma diferença entre o regime da responsabilidade e os regimes de Direito


Internacional.

Um dos aspetos que caracteriza a responsabilidade internacional e que é mencionado


também por Nguyen Quoc Dinh é de que, em princípio, a responsabilidade é uma
responsabilidade objetiva e que se baseia essencialmente num facto, ou seja, por um lado,
prescinde parcialmente do critério da culpa- embora aqui haja algumas nuances entre os
diferentes casos internacionais que abordaram a questão – , por outro lado, pode até
prescindir do prejuízo. Portanto, dois dos requisitos que habitualmente encontramos no
Direito Interno relativamente ao regime da responsabilidade sofrem aqui uma particular
deformação e encontramos, essencialmente, como elementos centrais o facto ilícito e a
imputabilidade ou o nexo de causalidade.

Na verdade, a centralidade do facto prescinde eventualmente de prejuízos. Numa conceção


clássica seria necessário, para haver responsabilidade, haver um prejuízo na esfera
internacional, mas isso tinha que ver com uma visão do Direito internacional que
prescindia do conceito mais institucional de comunidade internacional e da existência de
uma verdadeira ordem pública internacional, que hoje sabemos que é plenamente
reconhecida, designadamente na esteira do reconhecimento do ius cogens, no quadro da
Convenção de Viena sobre o direito dos tratados.

Segundo o projeto de ? do professor Robert Lago, ele considerou que o facto


internacionalmente ilícito é condição necessária e suficiente, desde que imputável ao
Estado, para o incumprimento da responsabilidade, ou seja, como explica o professor
Nguyen Quoc Dinh, o Estado decorre em responsabilidade independentemente das suas
eventuais consequências, e isso é toda uma revolução metodológica e teórica sobre o
conceito da responsabilidade e que é uma decorrência de uma visão solidarista da
comunidade internacional.

97
Direito Internacional Público Mariana Esteves

O fundamento principal da responsabilidade é então a ilicitude, o que não significa que


também não possam existir condições específicas de responsabilidade por atos lícitos.

Não se adotou a visão, por exemplo, dos autores da escola sociológica, que afirma o
fundamento da responsabilidade deve ser o risco, isto é, o risco das atividades cometidas
na esfera internacional. Esta questão tem sido debatida, nomeadamente pela Comissão de
Direito Internacional, mas não é esse o fundamento principal.
O facto gerador é o facto internacionalmente ilícito que gera a responsabilidade.

Antes desse facto podemos ainda identificar uma questão prévia, que é a existência de uma
obrigação internacional.
Melcom Shaw não inicia a responsabilidade com o facto ilícito, entendo que há uma ligação
necessária entre a irresponsabilidade de um direito, pelo que começa pela existência desse
mesmo direito, citando o caso da zona espanhola de Marrocos.
Nota: consultar apontamentos avulsos

Aula 10 – 17/11/2020
Sujeitos de DIP

O que é um sujeito de DIP? É toda a entidade que nos termos de normas do direito
internacional seja titular de direitos e se encontre também submetido a deveres ou
obrigações.

Há uma diferença entre capacidade jurídica internacional e personalidade jurídica


internacional. Os sujeitos têm necessariamente personalidade jurídica, pelo que podem
ser titulares de direitos, deveres e obrigações, mas nem todos têm uma capacidade de
exercício plena (faculdade de poderem agir no âmbito da sociedade internacional através
de condutas reguladas pelo mesmo direito internacional ou, em alguns casos, a capacidade
de produzirem direito internacional). No que toca à capacidade de exercício existe uma
diferença muito significativa entre sujeitos de direito internacional.

Alguns, como é o caso do Estado Soberano e de certas organizações internacionais, que


têm capacidade plena para agirem no plano do direito internacional, que envolve três
tipos de podes:

• Ius tractum – Faculdade de celebrar convenções internacionais


• Ius bellum – Faculdade de exercem o classicamente designado por direito da
guerra, mas com a entrada em vigor da Carta das Nações Unidas, começou a ser
reconhecido como o direito de desenvolver ações militares em legítima defesa;
• Ius legationis – Faculdade de abrirem missões ou legações diplomáticas junto de
outros de direito internacional

No tempo que corre, o Estado Soberano não é exatamente o Estado Moderno que nasceu
depois da paz de Vestefália. Com o termo da Guerra dos Trinta Anos, o Papado perdeu a
sua influência como uma espécie de Organização das Nações Unidas, no âmbito das
Repúblicas Cristãs, portanto, os Estados afirmaram a sua separação à Igreja, reafirmaram
nesses dois tratados, conforme a Paz de Vestefália, que a soberania para além de estar
agregada ao príncipe é uma qualidade do poder do próprio Estado (a soberania passa a
ficar ligada ao Estado em sentido próprio), o território fica definido através de fronteiras

98
Direito Internacional Público Mariana Esteves

determinadas e os Estados são considerados formalmente como entidades iguais nas suas
prerrogativas e não devem poder interferir/imiscuir-se nos assuntos internos uns dos
outros, caiem os últimos elementos residuais do feudalismo, que implicavam relações
cruzadas de dependência – de vassalagem – entre Estados.

O Estado nascido na Paz de Vestefália era um Estado comerciante e guerreiro, muitas


vezes, a guerra era a continuação normal da política por outros meios e esta situação
originou um acerta hierarquia internacional, com guerras, as últimas das quais foram
travadas no século XX (além da guerra franco-prussiana no século XIX), guerras de grande
escala foram a I e II Guerra Mundial, sendo que a partir do momento que se entendeu que
guerras deste tamanho não afetavam apenas a Europa, mas a Humanidade, criou-se a ONU,
que sucedeu a uma ineficaz Sociedade das Nações, passando os Estados a limitar
dimensões/diâmetros extremos da sua soberania, nomeadamente através do Direito da
Guerra – a Carta das Nações Unidas impos que o ius bellici se reduzisse à legítima defesa,
em caso de agressão. Daí iniciou-se um período de cooperação entre os Estados a nível de
organizações internacionais, que são associações de Estados, e algumas dessas
organizações, como é o caso da União Europeia, são organizações de natureza
supranacional, pelo que os Estados que delas fazem parte, como sucedia com as antigas
confederações, limitam o âmbito da sua soberania em diversas áreas, a qual é colocada em
comum ou partilhada ou atribuída a estruturas de uma organização internacional
supranacional, além das características que atualmente imperam da globalização
económica e dos tratados internacional em matéria de clima ou comércio, que a soberania
dos Estados já não é exatamente o que era no período imediatamente posterior à Paz de
Vestefália.

Os Estados têm a soberania plena, mas esta não significa que possam, de alguma forma,
desenvolver no plano internacional as ações que muito bem entenderem.

A regionalização, ou seja, a criação de blocos de organizações internacionais em que


Estados de uma determinada região, associam-se e criam uma organização para a defesa
de interesses comuns – caso do Conselho da Europa, da União Europeia, da CEI (reúne a
Rússia e outros países europeus da Ásia central) – , todos esses aspetos passam a limitar
um pouco certo tipo de atuações externas dos Estados, bem como a supranacionalidade
anteriormente referida.

Quer o Estado soberano, quer certas organizações internacionais são entidades com
soberania plena, são sujeitos de DIP com soberania plena.
Claro que relativamente a Estados, nem todos se encontram nesta situação: existem
Estados com soberania limitada.

Também nem todas as organizações internacionais são sujeitos de DIP com características
de plenitude, sendo que isto dependerá daquilo que dispuser o tratado constitutivo dessa
organização internacional. Obviamente que se falarmos da OMS, ela não tem a faculdade
de exercer o direito de guerra. Outras organizações, aliás a sua maioria, não dispõem dessa
faculdade, havendo, ainda assim, algumas que têm, tais como a ONU, a União Europeia, a
CEI, NATO tendo um pilar de defesa, podendo exercer atividades no domínio militar.

Se uma organização internacional reúne estas três características é um sujeito de DIP com
capacidades plenas. Outras que reúnam apenas alguns atributos, o Conselho da Europa,
por exemplo, são organizações de capacidade limitada.

99
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Para além dos sujeitos de DIP com capacidade plena, temos também um pluralidade de
sujeitos com capacidade limitada, logo à partida, as organizações internacional como
acabamos de examinar, mas também outras figura, como é o caso de Estados de soberania
diminuída, veja-se o caso dos protetorados: figura antiga que sucedeu aos Estados
vassalos, sendo que o Império Otomano tinha-os no século XVIII e XIX, significando que
um Estado suserano que tinha um poder vinculante de supraordenação em relação a
Estados que dele dependiam, os Estados vassalos; neste regime subsequente há um Estado
protetor e um Estado protegido, o primeiro garante que o Estado protegido em caso de
ameaça será defendido pelas suas forças militares, que também lhe poderá dar assistência
no plano da segurança., mas em contrapartida o segundo assume perante o anterior
algumas obrigações, nomeadamente a possibilidade de facultar bases militares e a sua
política externa e de defesa serão condicionadas por orientações ou mesmo injunções por
parte da entidade protetora; o regime internacional do protetorado é muito vaso, tendo o
último sido o regime britânico sobre o sultanato do Brunei, em 1985, se tornou
plenamente independente, sendo este um protetorado de Direito; houve vários
protetorados célebres, como o caso do Egipto que assumiu uma relação de dependência
em relação ao Reino Unido, o caso do protetorado espanhol e francês sobre Marrocos, bem
como vários protetorados britânicos no Golfo Pérsico. O regime formal de protetorado,
hoje em dia, é pouco comum, mas há um regime material de protetorado, ou seja, Estados
que sem serem designados protetorados operam juridicamente como Estados protegidos.
É o caso, por exemplo, da Bósnia Herzegovina, que é um Estado dos Balcãs que fazia parte
da antiga República comunista da Jugoslávia, que era constituída por três comunidades
ético-culturais – muçulmana, croata e sérvia – sendo que a quando da sua desintegração e
de declarações de independência de algumas Repúblicas, sucede que a República da
Bósnia Herzegovina, depois de ter declarado independência, viu-se a braços com uma
guerra civil entre estas comunidades, que terminou com uma convenção internacional da
NATO, da ONU, da Organização de Segurança e de Cooperação da Europa, da Organização
Russa, uma intervenção internacional liderada pelos EUA. Que terminou com um conflito
militar, impôs uma paz forçada que envolveu o envio de forças militares e daqui resultou
um Estado regido por uma constituição que, todavia, foi uma constituição outorgada por
sujeitos de DIP exteriores ao Estado – Acordos de Daten, estabeleceram u conjunto de
obrigações e em anexo constava uma lei fundamental, uma constituição que passou a reger
os destinos da Bósnia, criando uma situação jurídica de protetorado.
Há outras situações em que certos Estados, por tratado, confiam a sua defesa ou
componentes da sua defesa e aspetos da sua política externo a outros Estado, como é o
caso do Mónaco que tem um tratado com França, havendo situações desta natureza com
microestados, os chamados Estados exíguos, como é o caso do Liechtenstein.

Há ainda terceiras situações, que são situações de facto e não de direito, em que um
determinado Estado não é um protetorado, mas opera quase como um protetorado, com
sucede com o Kosovo, cuja independência ocorreu por grande pressão da União Europeia.

Além destes Estados com soberania limitada ou diminuída, temos também a considerar os
beligerantes e insurretos. A figura do beligerante perdeu-se, há muito tempo, quase
completamente. O beligerante era uma entidade composta por forças que procuravam,
num determinado Estado, derrubar o poder político e, não conseguindo, dominavam uma
parte do território desse Estado e desencadeavam ações armadas contra o poder central. O
reconhecimento desse força político-militar que dominava alguma parte do território
como beligerante, significava que essa entidade era considerada um sujeito de Direito

100
Direito Internacional Público Mariana Esteves

internacional com capacidade limitada, na medida em que, do reconhecimento como


beligerante, resultava um conjunto de efeitos a saber:

1. Violações de convenções internacionais que o Estado onde o conflito armado


corria pudessem ter lugar em território dominado pelo beligerante, o poder
central não seria responsável por essa mesma violação.
2. Danos, crimes ou outros tipo de situações danosas que para terceiros Estados ou
pessoas de terceiros Estados que ocorressem no território dominado pelo
beligerante, daqui resultava que o Governo do Estado não seria tornado
responsável, a nível de quadro jurídico da responsabilidade internacional, pelo
ressarcimento indemnizatório desses mesmos danos ou por incumprimento de
obrigações, desde que elas ocorressem no território dominado pelo beligerante.
3. O quadro de beligerância permitia a aplicação do Direito Humanitário de Guerra ao
próprio beligerante, tornando-se corresponsável pelo tratamento humanitário
dado a prisioneiros de guerra e a obrigações de respeito civis. tinha capacidade
jurídica limitada de celebrar tratados que regulassem um conflito ou que
pusessem termo ao conflito militar.

Esta figura, todavia, extinguia-se no insurreto. O insurreto consiste numa força armada,
que podemos identificar como uma força de guerrilha, que podendo ou não dominar
parcelas de um determinado território de um Estado, desencadeava ações armadas num
quadro de um conflito político ou separatista. Os insurretos não eram considerados
propriamente sujeito de DIP, embora houvesse uma tentativa de que as suas condutas
pudessem ser objeto de uma vinculação pelo menos às Convenções de Genebra sobre o
Direito Humanitário da Guerra, sobretudo depois de uma decisão do Conselho de
Segurança nesse sentido.
O tempo e a evolução, independentemente do que digam os manuais, da comunidade
internacional levou a que a figura do beligerante entrasse em obsolescência. Embora haja
pontualmente fenómenos que possam ser mais recentes no século XX, as últimas situações
em que uma determinada entidade foi reconhecida como beligerante ocorreram até à II
Guerra Mundial. Por exemplo, no sul de Espanha, vários Estados europeus reconheceram
às forças militares e à junta presidida pelo General Franco, que em Espanha se revoltou
contra o governo republicano e passou a dominar uma parte do território espanhol até ao
final da guerra, representava um poder militar muito relevante, pelo que houve o
reconhecimento, por parte de diversos governos, dessa parcela de Espanha dominada pela
Junta a qualidade de beligerante, tendo um conjunto de consequências relevantes em
termos de atos jurídicos que foram decididos por esses mesmo poder militar e que
impactaram em cidadãos e bens de terceiros Estados. A partir dessa data, o
reconhecimento como beligerante passou a ser raro ou quase inexistente, mesmo em
situações que uma força militar/rebelde dominava até a maioria do território de um
determinado Estado – ex.: Ásia do Sudeste, guerras do Vietname, do Camboja e do Laos – o
estatuto de beligerante não era claro, porque um Estado que reconhece aos rebeldes a
natureza de beligerante exime-se de responsabilidade de atos relativamente a crimes ou
danos que ocorram no território dominados por aqueles, mas esse reconhecimento está a
legitimar o inimigo, chegando a considerar que terceiros Estados que reconheçam essa
natureza de beligerante estão a legitimar o adversário e estão a interferir nos assuntos
internos.
Pelo contrário, a figura do insurreto ganhou força. Atualmente um insurreto que domine
parte do território de um determinado Estado ou mesmo que não domine, mas faça
incursões relevantes, pode ser reconhecido como sujeito de DIP. Logo à partida, tem um

101
Direito Internacional Público Mariana Esteves

conjunto de obrigações: o Direito Humanitário da Guerra das quatro Convenções de


Genebra é lhes aplicado por deliberação da ONU, pelo que estão sujeitos a certo tipo de
vínculos e se cometerem crimes contra a Humanidade/de Guerra podem ser julgados em
tribunais internacionais – já aconteceu relativamente a crimes cometidos por forças
insurgentes na Serra Leoa.

Por outro lado, foi reconhecido, muitas vezes, a movimentos insurgentes, rebeldes ou
insurretos a possibilidade de se sentarem à mesa de conferencias internacionais
destinadas a por termos ao conflito e também a assinarem e rubricarem tratados de paz
destinados a por termo precisamente a esse tipo de guerras ou de conflitos armados. Por
exemplo, durante os anos 50/60/70/80 – mais de 40 anos – a América Latina foi assolada
por movimentos de revolta essencialmente patrocinados por forças comunistas, a União
Soviética e Cuba em particular, depois dos anos 60, contra os governos que eram apoiados
pelos EUA. As guerrilhas duraram muito tempo, estando espalhada nas Honduras, na
Guatemala, em El Salvador, na Nicarágua (onde passou a haver uma guerrilha de direita –
a Contra) e a América Central transformou-se numa zona intermitente de conflitos e de
violações serias de parte em parte dos direitos humanos.

Com o termo da Guerra Fria, com a queda do Muro de Berlim, criaram-se condições para
que houvesse uma paz na América Central. Fizeram-se as conferencias de Esquípulas –
Esquípulas I e Esquípulas II – que juntaram os Estados da região, além de organizações
internacionais, juntando também elementos de guerrilha das diversas tendências. Muitos
desses de movimentos de guerrilha transforam-se em partidos, os governos aceitaram
legitimar a legalização desses novos partidos, como apor termo a algumas unidades mais
violentas do exército que anteriormente combatiam a guerrilha. Esses movimentos
exerceram o seu poder de assinatura ou vinculação a convenções internacionais, ou seja,
numa palavra, exerceram o chamado ius tractum. Verificou-se mais tarde, há alguns anos,
que na Colômbia mediante uma mediação cubana, o Governo colombiano e a SPAR, que
era a mais poderosa força guerrilha marxista, assinaram também um tratado de paz que
deu origem ao termo da luta armada e à legalização da SPAR. Quando esta se legalizou
num partido, sendo uma formação de força marxista dominista que cometeu crimes da
pior espécie durante a guerra travada na Colômbia, sendo forças governamentais
conservadoras que, muitas vezes, desenvolvem crimes e violações sérias de Direitos
Humanos, a par da guerrilha, cometendo crimes abomináveis: colocação de bombas em
lugares públicos que mataram civis inocentes; raptos de empresários e pessoas de classe
média que, mais tarde, eram detidos pelas forças de guerrilha, exigindo-se o resgate para a
sua libertação, que quando não ocorria resultava na execução e tortura dessas mesmas
pessoas. Não passavam de malfeitores ideológicos, que quando foram convertidos em
partido político tiveram uma votação ridícula e, de acordo com o tratado de paz,
independentemente da votação teriam sempre uma quota de deputados, porque se
tivessem obtido mandatos parlamentares apenas em função da votação que obtiveram,
provavelmente elegeriam um ou dois deputados. Aí a Colômbia acabou por mostrar o que
achava claramente desse seu movimento libertador. Este acordo foi recente e mostrou que
as SPAR efetivamente se converteram num sujeito de direito internacional com
capacidade para a celebração de tratados, mostrando também que os movimentos ditos
insurretos são, de facto, hoje em dia, sujeitos de direito internacional, ocupando o antigo
lugar do beligerante.
Também temos governos de exílio e movimentos de libertação nacional.
os movimentos de libertação nacional são essencialmente movimentos políticos ou
político-militares que defendem a independência de uma parcela de um território de um

102
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Estado em relação a esse mesmo Estado, por razões, muitas vezes, ligadas a entidades
étnicas, linguísticas ou culturais. Não basta haver um partido separatista, ou seja, forças
políticas legais separatistas, como é, por exemplo, o Partido Nacionalista Escocês ou várias
forças politicas da Catalunha, como a Convergência e União e a Esquerda Republicana
Catalã, para que eles possam ser considerados movimentos de libertação. Estes, pelo
contrário, são movimentos que atuam na ilegalidade, defendem a independência através
de um processo de luta e, ainda que não seja necessário em todas as situações, mas na
maior parte delas recorre à ação armada e à guerrilha para defender as causas que
reivindica, nomeadamente a independência de um território.
Estes movimentos ditos de libertação tornaram-se conhecidos sobretudo durante o
movimento de descolonização, a partir dos anos 50/60 e da Conferência de Bandung que
reconheceu aos povos ditos dominados colonialmente a possibilidade de se emanciparem
e autodeterminarem, escolhendo a independência, várias potências coloniais, entre as
quais se encontrava Portugal, que entendia que os seus territórios do Ultramar não eram
colonias, mas províncias ultramarinas, e França, na Argélia. Surgiram, então, estes
movimentos separatistas armados que desencadearam lutas que envolveram, mais tarde,
as Nações Unidas. Os movimentos de guerrilha passaram a alcançar um estatuto superior a
partir do momento em que uma parte da comunidade internacional e, nalguns casos, as
Nações Unidas lhes reconheceu o estatuto de movimentos de libertação.

Qual é a diferença entre um movimento de guerrilha meramente separatista e um


movimento de libertação? O estatuto político de movimento de libertação significou, por
exemplo, na Organização de Unidade Africana, a possibilidade desses movimentos fazerem
parte da organização e terem institucionalmente apoio de natureza diplomática e de
natureza financeira. Mais tarde, no âmbito das Nações Unidas, criou-se um comité de
descolonização, chamado Comité dos 24, que passou a patrocinar os movimentos ditos
anticoloniais e o reconhecimento pela Assembleia Geral da possibilidade destes
movimentos serem reconhecidos pelo Comité dos 24 como movimentos de libertação e
poderem, como aconteceu mais tarde, figurar como observadores da ONU, constituía uma
forma de legitimação política destas forças e, portanto, isso significava um espécie de
“abre-te sésamo” para forças que tinham pouco impacto. Isto implicava poderem observar
e interferir, de algum modo, em aspetos relacionados com a organização de sessões de
órgãos das Nações Unidas, de apresentarem aí as suas reivindicações e, no fundo, de serem
legitimados no que toca à sua luta. Efetivamente, no que toca a Portugal, o único
movimento de libertação que tinha alguma expressão territorial era o PAIGC, na Guiné,
dado que, aquando da Revolução do 25 de Abril, nenhum outro movimento, dominava
permanentemente qualquer parcela do território português do ultramar.
De qualquer forma, como se verificou, a continuação da luta armada por muito tempo, deu
origem a que, mais tarde, os Estados estivessem reconhecido a independência dos novos
territórios – em Portugal, sucedeu-se após a revolução do 25 de Abril – e a natureza deste
movimentos como sujeitos de Direito internacional com capacidade limitada, exprimiu-se
através de não só a possibilidade de criarem representações diplomáticas ou
paradiplomáticas do ius legation – o direito da guerra já era exercido através das ações
armadas – mas também o direito de tratado acabou por ser plasmado limitadamente,
sendo que os únicos tratados que estes movimentos podiam celebrar seriam tratados que
pudessem por termo à luta armada e pudessem implicar um processo regulado de
independência dos territórios. Assim sucedeu, por exemplo, a França celebrou com a
Frente Nacional de Libertação da Argélia os acordos de Évian para a independência deste
território, ainda sob a égide do General de Gaulle, e Portugal celebrou acordos para a

103
Direito Internacional Público Mariana Esteves

independência da Guiné e de São Tomé e Príncipe, os acordos de Argel, sendo que em São
Tomé e Príncipe o movimento de libertação em causa nem sequer podia recorrer à luta
armada, não tinha possibilidade, sendo um movimento de libertação sem a dimensão
militar mas houve outros acordos, como os que deram origem à independência de Angola,
o acordo do Alvor, e a independência de Moçambique, que foi o acordo de Moussaka,
celebrados entre o Estado português e esses ditos movimentos de libertação.
Conclusão: os movimentos de libertação são movimentos com capacidade limitada, que
têm um ius tractum limitado, um ius bellis efetivo; quanto ao poder de criação de missões
diplomáticas isso depende, sendo que a partir do momento que a ONU passou a dar algum
palco a esses movimentos, alguns deles criaram pequenas representações.

Também há a considerar os governos no exílio são executivo ou governos de Estados que


foram muitas vezes invadidos ou que experimentam uma determinada revolução em que o
governo legal, não podendo manter-se no respetivo território e assegurar o poder político,
por falta de condições, partem para outros país e criam uma estrutura no exílio, criam um
executivo na capital de um outro Estado. Isso sucedeu no contexto da II Guerra Mundial
quando os governos polaco, holandês e belga, tendo esses Estados sido invadidos pelas
forças alemãs do III Reich, partiram para Londres onde criaram os governos no exílio

Em tese, os governos do exílio para serem reconhecidos como sujeitos de direito


internacional, isto é, têm o direito de celebrar tratados, o direito de delegação e
supostamente terão direito de guerra, no sentido de para se reconhecer um governo como
sendo de exílio, ele deve dominar uma parte do território. Essa situação nalguns casos é
ficcional porque independentemente na dependência de um governo do exílio haver
forças, militares ou de guerrilha, isto não quer dizer que essas forças possam controlar
uma parte do território, isso não sucedia com o governo holandês ou polaco no exílio,
havia efetivamente forças militares ou de guerrilha afetas a esses governos, mas eles
durante a ocupação alemã não dominavam nenhuma parcela. Noutras situações sim. Por
exemplo, no governo no exílio francês, o General de Gaulle, era depois suportado nos
territórios ultramarinos ou coloniais franceses por outros generais que dominavam esses
territórios coloniais. No Afeganistão, onde se criou um governo no exílio, havia uma parte
do território que estava, durante o regime teocrático dos talibãs, afeta ao governo no exílio
e em que forças soviéticas e forças ligadas aos talibãs, que se sucederam à ocupação
soviética, nunca dominaram essa parcela do território.

O indivíduo também é sujeito em DIP com uma capacidade limitadíssima. Ele


essencialmente é titular de direitos, nomeadamente direitos de natureza ligados à tutela
dos Direitos Fundamentais, sendo titular de Direitos Humanos (não se fala de Direitos
Fundamentais em DIP) regulados por tratado, e a sua capacidade de exercício é
particularmente limitada, muitas vezes, ligada a petições e a queixas – o professor
interessa-se particularmente pela responsabilidade criminal no DIP: para além de ser
sujeito de direitos, é também destinatário de deveres e obrigações, pelo que não pode
cometer crimes de guerra, contra a paz e contra a Humanidade, sendo que se o fizer pode
ser responsabilizado criminalmente. Esta questão já evoluiu tendo sido criados tribunais
internacionais ad oque, pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, para julgar este
tipo de crimes (entre os quais o genocídio), que foram objeto de julgamento relativamente
ao conflito da antiga Jugoslávia, no Tribunal da Haia, e os crimes da mesma natureza que
foram cometidos no Ruanda e Burrundi, foram objeto também de julgamento num
tribunal ad oque, criado na Tanzânia. Mais tarde, através do Tratado de Roma, criou-se o
Tribunal Penal Internacional que, todavia, revela uma grande ineficiência pela simples
razão de que este tratado é exaustivo no que toca aos crimes que estão tipificados, mas

104
Direito Internacional Público Mariana Esteves

também ao processo criminal, mas que tem uma debilidade resultante do facto dos EUA,
da Rússia, da China, de Israel e vários Estados árabes não terem assinado a convenção. Os
EUA, a Rússia e Israel temeram sempre que políticos seus, comandantes militares ou até
militares individualmente considerados, pudessem ser sujeitos a julgamento num tribunal
internacional. A convenção tem um alcance limitado, mas é um primeiro passo para a
efetivação da responsabilização do indivíduo pela prática de crimes que relevam para o
DIP – direito penal internacional.

Reconhecimento do Estado e reconhecimento do Governo


O Estado é sujeito de DIP, mas existem coletividades territoriais que se podem arvorar ao
estatuto de Estado sem ter efetivamente, por exemplo, elementos constitutivos da
realidade estadual.
Coloca-se o problema de saber como é que essas entidades podem ser ou não
reconhecidos como um Estado pelos outros sujeitos de DIP?

Uma outra realidade diferente é relativamente a Estados já reconhecidos como parte da


sociedade internacional, haver eventualmente uma mudança brusca, revolucionária, num
quadro de rutura do respetivo governo e se problematizar o reconhecimento desse mesmo
governo pelos governos dos restantes Estados e das estruturas diretivas das organizações
internacionais.

O reconhecimento é um ato jurídico unilateral livre ou tendencialmente livre, no seu


sentido positivo, ou seja, os Estados e as organizações internacionais não são obrigadas a
reconhecer uma determinada coletividade territorial como Estado – têm a faculdade de
não reconhecer.

Em certas circunstâncias, pode haver um condicionamento ao reconhecimento no sentido


do não reconhecimento. A ONU, nomeadamente, e as organizações regionais, como a UE,
estabeleceram um conjunto de condições para o reconhecimento ou certas proibições de
reconhecimento de uma determinada coletividade como Estado.
O ato de reconhecimento produz efeitos jurídicos, mas é, por natureza, um ato político,
baseado em juízos de mérito, sem prejuízo desse ato político se poder basear num
conjunto de pressupostos quer de facto, quer de direito.
O reconhecimento pode assumir natureza constitutiva ou natureza declarativa. Um
reconhecimento, por regra, é de natureza declarativa, isto é, há uma declaração em que se
atesta uma determinada realidade, nomeadamente que uma coletividade territorial tem os
elementos típicos ou prototípicos da estadualidade. Nalguns casos, o reconhecimento pode
ser constitutivo, ou seja, mesmo que a comunidade territorial não tenha esses elementos
constitutivos, por razoes políticas, pode justificar-se essa decisão de reconhecer.
O reconhecimento faz o Estado que reconhece à coletividade territorial reconhecida,
atestar que esta tem um povo, em sentido jurídico, um território (com fronteiras
delimitadas) e um poder político soberano. Aqui há um quadro de efetividade – critério da
efetividade - , que é esse mesmo poder político soberano deve exercer uma relação de
domínio sobre o correspondente território, daí que estes elementos, são elementos
fundamentais e existenciais, pois está-se aqui a testar uma situação de natureza fáctica e
também jurídica.

105
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Há um pode que domina um território, com efetividade (critério fundamental) e existe


uma comunidade populacional que tem ou passou a ter um vínculo jurídico com esse
mesmo Estado, que é o vínculo da nacionalidade.
Não há efeitos de maior relativamente ao reconhecimento de Estado, claro que é
particularmente importante uma comunidade territorial ser legitimada pela via do
reconhecimento, porque o facto de outros Estados dizerem que estamos perante uma nova
comunidade territorial, justifica interna e externamente a nova coletividade e o seu poder
político.

Sendo o reconhecimento um ato essencialmente declarativo – atesta-se uma situação de


facto, que mais tarde terá consequências jurídicas –, existem situações excecionais de
reconhecimento com eficácia constitutiva, ou seja, reconhecimento ou proibição dele.

Significa que do ato de não reconhecimento resultam efeitos de natureza proibitiva ou


condicional:

1. Efeitos jurídicos específicos e determinantes no surgimento ou não de uma nova


coletividade estadual – Temos o caso do reconhecimento proibido. Houve
situações na ONU, nomeadamente do Conselho de Segurança, que proibiram, por
exemplo, o reconhecimento da Rodésia (atual Zimbabué), por violação da Carta da
ONU, resultando ainda na aplicação de sanções, bem como o reconhecimento dos
Bantustões, na. Quem reconheça, isto é, um membro da ONU que viole estas
decisões do Conselho de Segurança, sujeita-se mais tarde a sanções ao abrigo do
Capítulo VII.

2. Formas de reconhecimento condicionado – Quando caiu o Muro de Berlim e surgiu


na Europa Central uma pluralidade de novos Estados que declararam
independência e faziam parte da antiga União Soviética, alguns Estados resultaram
dos acordos de Minsk, surgindo também outros Estados na Europa resultantes da
desintegração da Jugoslávia e Estados autoproclamados, como a Chechénia no
Cáucaso. Faca a tanto Estado que de repente despontaram e podiam reivindicar a
sua independência futura à UE, precisamente a Comunidade Europeia em 1991,
estabeleceu orientações muito estritas para o reconhecimento de novos
Estados, não só para integrar a União, mas o próprio reconhecimento destas novas
coletividades. Este movimento de autodeterminação que ocorre em 1991,
implicaria vários riscos para a UE:

a. Os Estados autoproclamados que violassem o princípio do utopocidet juris,


isto é, as novas fronteiras deviam coincidir com anteriores fronteiras
desses territórios enquanto territórios autónomos dentro de um
determinado Estado, havendo o risco de haver Estados que nascem em
conflito territorial.
b. Risco de parte destes novos Estados serem regidos por regimes ditatoriais
que apresentavam problemas graves na sua coexistência com Estados
democráticos na UE.
c. Risco do contágio, na medida em que fazer este movimento de
autodeterminação poder dar ideias a comunidades populacionais na
própria UE para desenvolverem atuações separatistas e reivindicarem
também a autodeterminação (impacto em Itália, com a Liga Norte;
separatistas escoceses; Catalunha e País Basco em Espanha; Bélgica). O
aparecimento deste tipo de situações levou a UE a precatar-se e a criar

106
Direito Internacional Público Mariana Esteves

condições para o reconhecimento de novos Estados na Europa e na antiga


União Soviética

Entre essas condições para o reconhecimento encontrava-se:


1. O respeito pelo princípio do utopocidet juris – os novos Estados deveriam ter
fronteiras relativamente estáveis, não ter diferentes fronteiriços e essas fronteiras
deviam coincidir com a delimitação do território dessas mesmas coletividades
enquanto antigos Estados federados ou regiões-
2. Serem regimes democráticos que aceitassem a Carta da OSAC, no âmbito dos
Acordos de Paris, bem como a Carta da ONU, que foi serem Estados que aceitassem
princípios gerais de DIP, como a não interferência nos assuntos internos e
resolução pacífica de conflitos.

Estes condicionamentos que foram colocados, acabaram por ser um filtro, pelo que a UE,
com base nestes condicionantes, não reconheceu, por exemplo, a independência
Transnístria, por ter posto em causa o princípio do utopocidet juris, bem como a
independência da Chechénia.
Mesmo antes das Nações Unidas, houve sempre orientações diplomáticas de certos
Estados – o caso dos EUA –, no sentido de criar critérios para o não reconhecimento de um
Estado que nasce em condições determinadas. Foi chamada a doutrina Stimson, criada a
propósito da Manchúria. Stimson estabeleceu um conjunto de condições, em que os EUA
não reconheceram a Manchúria, na base de um conjunto de critérios:

O critério dominante era que não se deve reconhecer um Estado que tenha sido criado
ficcionalmente ou artificialmente, num quadro de separatismo relativamente a outro
Estado no qual este território se incluía, desde que essa independência tenha sido
objeto de um ato de força de um terceiro Estado. Assim, o movimento de
autodeterminação de um Estado tem de ser um movimento genuíno, independentemente
de ser apoiado ou não, deve resultar de uma força espontânea de uma determinada
comunidade populacional no interior de um Estado. Isto significa que certo tipo de
potencias não podem criar protetorados, ou seja, forçar através de uma intervenção
militar, num outro Estado, o separatismo de uma determinada região.

Esta doutrina foi aceite por muitos Estados e deu origem a uma prática internacional.
Os EUA não são, todavia, o melhor ordenamento jurídico para sustentar ou defender uma
doutrina desta natureza, porque eles próprios criaram, por exemplo, no Panamá, Estados-
fictícios através de movimentos separatistas, apoiando um outro lado na situação da
Manchúria, havendo uma situação de dois pesos e duas medidas.

A doutrina Stimson foi discutida, bem como esta ideia que pontifica na EU, bem como na
ONU, que é o não reconhecer a independência de territórios não coloniais
(autodeterminação interna) – reconhecimento proibido. Para haver o reconhecimento da
independência de um novo território dentro de um Estado, perfeitamente reconhecido
como tal nas Nações Unidas, é necessário que haja um critério que é a aceitação do próprio
governo central do quadro de independência do novo território que fazia parte desse
mesmo Estado – exemplo: território da Eritreia, na Etiópia, reconhecido na ONU, depois da
Etiópia reconhecer a sua independência; “Divórcio de veludo” na República
Checoslováquia; referendos no caso da Escócia e do Canadá, cujo resultado foi “não”;
declarações de independência na Catalunha.

É necessário uma base de legalidade para esse mesmo reconhecimento

107
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Temos também a questão da doutrina Stimson, de Estados que intervêm noutros para
potenciarem a independência de parcelas do seu território – questão colocada
recentemente a propósito do território do Kosovo, antiga província de um dos Estados da
Jugoslávia, que nasceu faticamente debaixo das baionetas da NATO.

Esta questão subiu ao TIJ, mas aí, numa perspetiva um pouco farisaica, este disse que nada
no DIP proibia declarações de independência, pelo que a questão da doutrina de Stimson,
que é o pressuposto de tudo isso, morreu aí.

Esta decisão do TIJ, que foi, no entendimento de CBM, infeliz e mal fundamentada, acabou
por ser uma espada de dois gumes, porque mais tarde, quando a Federação Russa
interveio na Crimeia, invocou esta decisão como fundamento para a independência e
depois incorporação da Crimeia no território russo.
Esta desconsideração por parte do TIJ em relação à doutrina Stimson, fez com que outros
Estados imitassem a NATO, em defesa dos seus próprios interesses, fazendo intervenções
que geraram a independência fictícia de outros territórios.
Esta são situações excecionais de proibição de reconhecimento ou de condicionamento ao
reconhecimento de novos Estados independentes

Aula 11 – 24/11/2020

Reconhecimento de Governos

Dimensão mais política que o reconhecimento de Estados.


Os governos habitualmente reconhecem estados e abstêm-se de fazer considerações sobre
o reconhecimento de novos governos que muitas vezes chegam ao poder pela via de
rutura ou revolucionária.
Reconhecimento de governo mais problemática, não só em momentos de rutura
revolucionária- ascende novo poder que pode levantar reticências em muitos outros
governos dos estados em emitir um ato que possa legitimá-los. Mas é nesses momentos de
rutura ou em guerras civis, em que 2 governos civis reivindicam o poder em determinados
estados. Tendência contemporânea, apesar das exceções- estados reconhecem outros
Estados e abstêm-se de fazer considerações quanto ao reconhecimento de Governos.
Existem situações parecidas com o que ocorre com os estados, de declarações de
organizações internacionais com peso, como união europeia, da ONU, no sentido de
estabelecerem ou recomendações ou mesmo resoluções proibitivas do estabelecimento de
certo tipo de governos.

Reconhecimento de governo- ato usualmente livre dos Estados, mas com resoluções das
organizações internacionais que proíbem o reconhecimento de certos governos, passa a
assumir um caráter condicional e constitutivo relativamente àquilo que os Estados-
membros dessas organizações podem ou não reconhecer. Por outro lado, mesmo sem esse
caráter imperativo, se uma organização internacional como a ONU reconhece um dado
Governo e não reconhece outro, isso não pode deixar de ter peso na legitimação desse
mesmo poder.

108
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Reconhecimento de Governos em DIP – Ato unilateral através do qual um órgão


competente de um Estado ou admite que um conjunto de pessoas que assumiram o poder
noutro Estado têm a faculdade de o representar como instituições soberanas ou pelo
menos o podem representar nas relações recíprocas entre os 2 Estados:

Ato jurídico unilateral, em regra livre, dotado de conteúdo político, e com carácter
autónomo pois por regra não depende de prévia convenção internacional que estipule
critérios de reconhecimento, isto sem prejuízo de ter de respeitar um ato jurídico
unilateral e ai deixar de ser autónomo. EX: nações unidas estabelecerem critérios
proibitivos de reconhecimento; mas nenhum estado é obrigado a reconhecer. Linguagem
utilizada relevante quanto ao facto de se entender que o governo de um estado reconhece
o governo de outro estado- linguagem decisiva.

Será que o governo do Estado A reconheceu efetivamente o Governo do Estado B?


reconheceu precariamente? Linguagem importante, e essencialmente política.

Diversidade das expressões do reconhecimento - Há declarações solenes, declarações


escritas, declarações orais à imprensa, notas verbais, telegramas e até tweets. Temos aqui
um conjunto de atos que podem contribuir para o reconhecimento explicito.

Formas de reconhecimento implícito: como troca de embaixador, que pode ter um peso
considerável e ser interpretada como uma forma de reconhecimento, embora nem todos
entendam que assim seja.

Quer para o reconhecimento expresso ou implícito: critério da efetividade-critério mais


objetivo. Centra-se na concertação de que um determinado poder político exerce um
domínio efetivo sobre a totalidade ou a parte mais relevante de um determinado
território. EX: se um Governo tem um domínio real sobre a maioria do território,
dominando o aparelho de Estado, controlando a população, o critério da efetividade pesa
no ato de reconhecimento. Nomeadamente quando há governos reais.

A prática diz-nos que os atos de reconhecimento não têm de ser atos de simples
reconhecimento. Pode haver reconhecimentos condicionados: sujeitos a condição e com a
possibilidade da sua retirada. A doutrina divide-se muito, mas o REGENTE acha que há
reconhecimentos condicionados e sujeitos ou a alterações fundamentais de circunstâncias
ou outro tipo de modificações que podem justificar a sua revogação, a sua retirada e
muitas vezes reconhecimentos sujeitos a uma condição.

Muitas vezes os Governos que surgem de um quadro revolucionário, podem ser


reconhecidos outros Governos como executivos da iura (de direito) e executivos de facto.
Ordinariamente, quando havia um movimento revolucionário e um poder que podia
dominar a situação, vários Estados reconheciam esse Governo como um Governo de facto,
mas ainda não como um Governo de direito. Isso só ocorria quando esse mesmo poder
passasse a ter uma institucionalidade própria e a dominar a situação política.

A doutrina que impera relativamente ao reconhecimento é a doutrina da efetividade.


Houve 2 grandes correntes doutrinárias: doutrina da legitimidade e doutrina da
efetividade. A doutrina da legitimidade entende à justificação do poder.

Mais tarde nasceu a Doutrina Tobar- só se deveriam nascer governos nascidos de eleições
democráticas. Esta doutrina Tobar foi seguida por outra doutrina defendida nos EUA-
doutrina Wilson, também favorável ao reconhecimento baseada na legitimidade
democrática.

109
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Mas a doutrina que se impos foi a da efetividade- o aparelho do Estado controla-se o


território, as forças armadas exercessem um poder que envolvesse uma aceitação mínima
por parte da população. Atualmente pontifica a doutrina da efetividade (ou Estrada), sem
prejuízo de em certas circunstâncias, por razoes políticas ou ligadas a resoluções das
organizações internacionais, pode pontificar a doutrina da legitimidade.

O reconhecimento pode ser relevante nos dias de hoje. Mas pode não ser bem assim, o
regente acha que o reconhecimento ainda tem relevância.

Os tribunais costumam seguir aquilo que é determinado pelos respetivos Governos.

Países continentais como Portugal e frança- doutrina da efetividade quanto à ação dos
tribunais- têm em conta o reconhecimento ou não dos Estado onde os tribunais decidiam,
mas os tribunais podem atender a outros fatores como a efetividade- quando há
controvérsias como sobre titularidade de patrimónios, os tribunais podem atender sobre
quem tem o domínio efetivo e comprovado sobre o território de um determinado estado,
qual dos Governos é que tem, havendo 2 governos rivais. Se as declarações de
reconhecimento do Governo do próprio Estado coincidiram com essa mesma efetividade,
tudo se tornará mais fácil.

Matéria semiadormecida e que passou a ter relevância mais recente devido à problemática
da existência de Governos rivais.
Domínio de sujeitos de DIP analisados na especialidade

Estados – Sujeitos de DIP com capacidade plena. Outros sujeitos de DIP como
protetorados, movimentos insurretos, etc., tinham capacidade limitada. Em relação às
organizações internacionais, algumas têm capacidade plena, aquelas que tivessem: direito
de celebrar tratados- ius tractum, direito de defesa- ius belum; e direito de representação
diplomática – ius legations. Enquanto outras, não tendo estas três capacidades, não teriam
essa capacidade plena.

O que é uma organização internacional? Consiste num sujeito de DIP que resulta da
associação de sujeitos de DIP, em regra Estados. Portanto, estados associam-se, para
constituir um outro sujeito de DIP que visa prosseguir objetivos comuns a todos eles. Para
esse efeito, teriam uma entidade personalizada- com personalidade jurídica e capacidade
de exercício-, com instituições própria- órgãos específicos, e que se encontra regida por
normas internacionais, logo à partida o tratado institutivo da organização.

Como nasceram? No séc. XIX, através de comissões administrativas para a gestão de bens
comuns, nomeadamente as comissões fluviais no Reno e no Danúbio, formados por vários
Estados que se associaram para criar órgãos destinados a regular a navegabilidade em rios
que cruzassem diversos estados. Também as uniões administrativas e aduaneiras, uniões
alfandegárias entre Estados para que se pudesses reduzir as tarifas na circulação de
mercadorias, envolveram muitas vezes a génese dessas entidades, com órgãos próprios.
Estas associações desenvolveram-se, começaram a proliferar na passagem do séc. XIX para
o séc. XX, criaram-se organizações relevantes como a união postal internacional, Estados
que se associaram para o uso de telégrafo como meio de comunicação, e sociedade das
nações- criada na sequência da vitória dos Aliados na I guerra mundial, destinada a
imepdir eclosão de novos conflitos, o que fracassou porque não conseguiu impedir a
ocorrência da II guerra mundial; funcionava por unanimidade. Estados como URSS e EUA
não ratificaram o tratado da sociedade das nações.

110
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Posteriormente, a ONU foi criada na sequência da vitória aliada na II guerra mundial e a


partir daí multiplicaram-se exponencialmente as organizações internacionais. 1945-
marco para o grande desenvolvimento das organizações internacionais e hoje em dia fala-
se de regionalização quando os estados, em função de certas áreas geográficas ou de
interesses, se começam a associar. EX: na Europa temos a união europeia e o Conselho da
Europa; união africana. Há uma certa regionalização geográfica em blocos. NATO- em
função da defesa coletiva, associa não só estados europeus, mas também americanos.

As modalidades de instituição das organizações em regra baseiam-se na sua criação por


tratado multilateral. Todavia, há situações em que as organizações são criadas por ato
jurídico unilateral de outras organizações- como a OMS, criada por resolução da ONU; por
outro lado, há organizações que foram criadas no âmbito de conferencias internacionais-
como a organização de segurança e cooperação na Europa.

Tipologia das organizações internacionais


Critério da estrutura jurídica

•Organizações intergovernamentais: concedem maior protagonismo à soberania dos


Estados; por regra, não existe limitação/transferência da soberania dos Estados, em favor
da organização. Os Estados associam-se e os representantes dos Estados acedem aos
órgãos dessa organização internacional como representantes dos Estados. EX: Conselho de
Segurança das Nações unidas- membros permanentes e membros eleitos, que atuam em
defesa dos interesses dos respetivos Estados e seguem as instruções diplomáticas das
respetivas chancelarias. Visam estabelecer relações de coordenação entre as diversas
soberanias, tendo em vista a prossecução de interesses coletivos comuns. O processo de
decisão é, em regra por unanimidade, ou pode ocorrer por maioria qualificada- pela
necessidade de tomar decisões de forma ágil e sem bloqueios;

•Organizações supranacionais: associações de Estados que limitam a respetiva


soberania para a delegar na organização internacional. Temos relações de
superordenação- os órgãos da organização internacional têm a faculdade de emitir atos
jurídicos unilaterais que vinculam todos os Estados e que limitam a respetiva soberania. O
nº6 do art. 7º da CRP diz-nos que no âmbito da construção jurídica europeia, o estado
português aceita colocar em comum um conjunto de competências que serão exercidas ou
conjuntamente ou pela própria União Europeia. A União Europeia é uma associação de
Estados de natureza supranacional porque os Estados limitam a sua soberania e delegam
faculdades da mesma na União e fazem-nos através de tratados institutivos, o que não
impede que os Estados possam sair da organização, entrando em recesso relativamente ao
tratado institutivo, como aconteceu com o caso do Reino Unido, cuja saída da União
Europeia ainda não se encontra totalmente comtemplada. Por outro lado, nas
organizações supranacionais existem órgãos próprios da entidade em que os membros,
apesar de oriundos dos diversos dos Estados, quando assumem o cargo não o fazem em
obediência às instruções ou orientações das respetivas chancelarias, exercendo esse
mesmo cargo com independência e com observância das regras que constarem do tratado
institutivo da organização.

111
Direito Internacional Público Mariana Esteves

É difícil dizer que as organizações intergovernamentais ou supranacionais podem existir


em estado martirologicamente puro. EX: ONU, que é uma organização intergovernamental,
em que a assembleia geral das nações unidas é composta por representados dos Estados, o
mesmo com o Conselho de Segurança; mas existem situações de supranacionalidade nesta
organização intergovernamental, há elementos impuros: casos do secretário geral, que age
em nome da organização- não está subordinado a orientações do Governo português; e
existem certo tipo de deliberações dos órgãos- Conselho de segurança- que têm caráter
obrigatório para os Estados e produzem diretamente os seus efeitos jurídicos, o que é um
elemento típico da supranacionalidade. Portanto, ONU organização intergovernamental,
com elementos supranacionais. O mesmo sucede com a União europeia ao contrário: é
uma organização supranacional, com elementos intergovernamentais. EX: no conselho
europeu ou conselho económico-financeiro onde está o ministro das finanças, no que toca
ao conselho europeu os representantes dos Estados, enquanto tomem decisões coletivas,
recebem instruções dos respetivos estados, para defesa dos seus interesses, sem prejuízo
de depois a deliberação ser imputada a toda a organização. Portanto, a União Europeia é
uma organização supranacional com alguns elementos impuros de
intergovernamentalidade.

Critério do objeto

•Organizações de fins gerais: fins políticos, de defesa, de cooperação económica e


cultural. EX: ONU, União Europeia.
•Outras organizações que são tendencialmente de fins políticos, como o Conselho da
Europa, nomeadamente na tutela de direitos fundamentais, organizações de fins militares,
como a NATO e foi o caso de Pacto de Varsóvia (liderado pela União Soviética),
organizações de fins de natureza jurídico-económico: OCDE; organizações de fins sociais:
como OMS e organização internacional do trabalho.

Critério do espaço e do âmbito espacial ou territorial de atuação:

•Organizações universais: Associam todos os Estados que compõe a sociedade


internacional. EX: ONU;
•Organizações regionais: Têm uma componente geográfica. EX: união europeia, união
africana.

ONU

A expressão Nações Unidas muitos pensaram que poderia significar todos os membros da
Sociedade internacional, mas não- principais aliados que combateram eixo durante a II
Guerra Mundial- EUA, União soviética, reino unido frança e china eram as nações unidas.
Criada por estes estados através da assinatura da Carta das Nações Unidas em 1945 e os
objetivos da carta- preservar os povos do flagelo da guerra, reafirmar a fé nos direitos
fundamentais, criar condições de justiça e de respeito pelos tratados fundamentais e
promover o progresso social e as condições devidas das pessoas em liberdade: preâmbulo,
com 2 princípios ligados à paz e proibição do uso da força como forma de resolução dos
conflitos.

112
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Depois de assinada, outros Estados aderiram. Atualmente, integra quase todos os estados
soberanos da Sociedade Internacional. Houve um alargamento.

Quais os fins e os princípios da carta? Presente na carta das Nações Unidas

Era. 1º/1- manter a paz e a segurança internacionais e tomar coletivamente medidas


efetivas para evitar ameaças da paz, reprimir atos de agressão ou evitar ruturas da paz.
Artigo importante, pois, nações unidas contam com uma força militar de intervenção
fornecida pelos estados- capacetes azuis. Assim, as nações unidas não só podem tomar
ações destinadas a evitar a rutura da paz por via diplomática, através de sanções ou
reprimir também atos de agressão, através de sanções, muitas vezes também através de
forças militares.
Para além de medidas efetivadas tomadas para evitar atos de agressão, manter a paz,
utilizar os meios pacíficos para a resolução de conflitos- como a mediação, bons ofícios,
arbitragem etc para sem o uso da força reprimir litígios entre os Estados de acordo com o
DIP aplicável. Fazer aquilo que a SDN não conseguir fazer entre as 2 guerras.
Desenvolver relações amistosas entre os Estados na base do princípio da igualdade, da
autodeterminação dos povos (decidir o seu próprio destino, para povos coloniais). 2
aspetos importantes que são definidos no nº2: igualdade de direitos entre os estados e
garante o princípio de autodeterminação dos povos.

Objetivo económico-social: conseguir uma cooperação internacional para resolver


problemas de caráter económico, cultural, social, humanitário.
Outro objetivo: o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais, sem
discriminação de raça, língua etc. Isto nem sempre é garantido pois das nações unidas
fazem partes regimes ditatoriais, regimes autoritários etc. Todos devem, em tese, respeitar
os direitos humanos e as liberdades fundamentais, o que não sucede em muitos casos.
Pacto dos direitos político e dos direitos sociais.

Outro objetivo: as nações unidas serem um centro impulsionador de harmonização, de


objetivos comuns.

Sendo estes os fins da ONU, esta pauta-se também por princípios.

Princípios positivados no art. 2º:


- Princípio da igualdade dos seus membros: assembleia geral das nações unidas podem
todos nomear até 5 representantes, mas é uma igualdade semântica devido às relações de
força. Conselho de segurança-desigualdade nos membros permanentes- EUA, Rússia,
China, Reino Unidos e França- todos têm um voto, mas o seu voto conta mais sendo que se
votarem contra, o voto negativo de um dos membros permanentes significa um veto-
poder de impedimento.
- Princípio de boa fé: devem cumprir exigências e obrigações constantes da carta;

- Resolução de controvérsias por meios pacíficos: arbitragem, vias políticas como


mediação, inquérito de conciliação
-Paz, segurança e justiça internacional são princípios de ordem publica internacional que
todos os membros devem seguir.

113
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Todos os membros devem dar assistência necessária às nações unidas e devem abster-se
de dar auxílio a qualquer estado contra o qual as nações unidas agirem.

-Princípio de não ingerência da organização nos assuntos que dependam essencialmente


da jurisdição de um Estado- nº5. Há assuntos essencialmente internas que as nações
unidas estão inibidas de se imiscuir- direito penal, regimes políticos etc. Mas a expressão é
um pouco ambivalente e as nações unidas têm interferido em assuntos internos dos
estados.

Membros da organização:
- Membros originários: 5 estados que assinaram a carta se s. Francisco em 1945

- Estados que foram sendo admitidos

Admissibilidade dos estados- art. 4º/1: a admissão como membro da ONU fica aberta a
todos os Estados amantes da paz que aceitarem as obrigações. Convenção aberta e que
aceitarem obrigações dela constantes.
Assembleia delibera por maioria de 2/3, por proposta do Conselho de Segurança.

Os membros que entram, também podem ser suspensos ou expulsos- art. 5º. Se houver
sanções, ações preventivas tomadas pelo Conselho de Segurança, há possibilidade dos
membros da assembleia geral poderem ser alvo de sanções- como retirada de certos
direitos, por exemplo direito de voto na assembleia geral- esta suspensão dos direitos no
todo ou em parte que decorre por proposta do conselho de segurança, e de uma
deliberação favorável da Assembleia Geral também tomada por 2/3. Estas situações são
extremas.

Com ações coercitivas ou com sanções pode haver situações em que um membro das
nações unidas viola persistentemente os princípios e obrigações da carta- se isso suceder
esse membro pode ser expulso: situação extrema. A mesma maioria.

Órgãos da ONU- previstos no art. 7º

•Assembleia Geral: constituída por todos os membros das nações unidos, órgão plenário e
colegial; cada membro não deve ter mais do que 5 representantes na assembleia e cada
membro só tem direito a 1 voto. Quais as atribuições das nações unidas? É o órgão
principal da ONU? Não. Embora segundo o 10º possa discutir quaisquer questões ou
assuntos que estiverem no fim da carta, com exceção do art. 12º, que é muito importante-
se a assembleia geral estiver a discutir determinada matéria e o conselho segurança
resolver intervir, a assembleia geral suspende a sua intervenção nessa mesma questão.
Art. 10º- assembleia geral pode fazer recomendações aos membros das nações unidas e ao
conselho de segurança- órgão limitada pois não se trata de deliberações com efeitos
jurídicos constitutivos, mas sim recomendações- não têm efeito vinculativo. Mas não é
bem assim por existem recomendações sucessivas. Criação de um direito consuetudinário
de descolonização baseado na ideia de que as recomendações criaram princípios e regras
que passaram a ser assumidas por muitos estados com a convicção de obrigatoriedade no
futuro. Art. 11º- manutenção da paz. Art. 12º- enquanto o conselho de segurança estiver a

114
Direito Internacional Público Mariana Esteves

exercer as funções que a carta que atribui, a assembleia geral não pode fazer nenhuma
recomendação a esse respeito. art. 3º- elenco das recomendações que a assembleia geral
pode fazer.
Critérios de deliberação e de votação: art. 18º/2- as decisões da assembleia geral de
questões importantes são tomadas por maioria de 2/3. Há um elenco que parece ser
exemplificativo. Estas questões compreenderão- para la da lista apresentada, poderá
haver outras questões. As elencadas são recomendações relativas à manutenção da paz,
eleição dos membros não permanentes do conselho de segurança. Art. 17º- a assembleia
geral aprovará o orçamento da organização. Decisões sobre outras questões- aprovadas
por maioria dos membros presentes e votantes, isto é, maioria simples. Pode haver outros
assuntos, e daí a lista exemplificativa do nº2, passíveis de ser aprovadas por maioria de
2/3 e a assembleia assim decide fazê-lo. Os restantes, tomados à pluralidade de votos. Ter
em conta o art. 19º da carta das nações unidas, que não parece ser muito aplicado.
Quanto às suas reuniões: a assembleia reúne-se em sessões anuais regulares e depois em
sessões especiais para os quais pode ser convocado, que são exigidas pelas circunstâncias.
Estas sessões especiais, em função de problema emergente, serão convocadas pelo
secretário geral ou a pedido do Conselho de segurança ou a pedido de uma maioria de
membros. Cada sessão anual terá o seu Presidente- art. 21º.
•Conselho de Segurança: composto por 15 membros, dos quais 5 permanentes e 10
eleitos- art. 13º. 5 membros: EUA, federação russa, china, reino unido e frança- membros
permanentes, potenciais vitoriosas na II guerra mundial. Depois a assembleia geral das
nações unidas elege os outros 10 membros. Necessidade de distribuição geográfica
equitativa destes membros não permanentes, que são eleitos por períodos de 2 anos.
Nenhum membro não permanente que termine o seu mandato pode ser reeleito para o
período subsequente. Cada membro do conselho de segurança terá 1 representante. Art.
24º- visa assegurar a ação por parte das nações unidas relativamente a controvérsias e
litígios essenciais- função na manutenção da paz e agirá de acordo com os princípios e
obrigações da carta. os membros das nações unidas devem concordar e aceitar as
resoluções do conselho de segurança, especialmente as tomadas ao abrigo co Cap. VII.

Aqui não é veto se for uma questão fundamental. Maioria de 9 membros em 15. Em todos
os outros assuntos que não sejam procedimentais, diz o nº3 do art. 27º, são tomadas pelo
voto afirmativo de 9 membros, incluindo o voto de todos os membros permanentes.
Literalmente, se um dos membros permanentes não votar favoravelmente, isso equivalerá
a um veto- nº3. Mas as coisas não são exatamente assim. A prática tem revelado que eles
se podem abster, não necessitante de voto positivo. A abstenção não vale como veto-
costume derrogatório de uma convenção internacional.
O que é uma questão procedimental e o que são as outras questões todas que exigem que
nenhum dos membros permanentes veto? Isto depende de uma deliberação do conselho,
que não pode ter veto dos membros permanentes. Poderíamos chegar ao ponto de
considerar uma questão procedimental só para “fugir” ao veto. Logo a deliberação que
identifica uma questão como procedimental ou não, pode ser objeto ela própria de um
veto dos membros permanentes. A sua vontade pesa porque têm possibilidade de vetar
essa deliberação inclusiva da matéria como sendo meramente procedimental. Temos um
duplo veto: os membros permanentes vetam primeiro em caso de dúvida se uma questão é
ou não procedimental e não o sendo, na medida em que haja uma deliberação sobre as
mesmas, os membros permanentes exercerão o seu voto, que se for negativo redondeará
num veto.

115
Direito Internacional Público Mariana Esteves

•Conselho económico e social

•Conselho de tutela- já não tem funções.


•Um tribunal internacional de justiça- sede na Haia.

•Secretariado geral, sem prejuízo da criação de outros atos órgãos subsidiários- por vezes
existem práticas que geram costume e que passa a ter efeito integrativo e complementar
dos tratados, menção a um secretariado: dá ideia que se trata de um órgão puramente
administrativo e gestionário da ONU. Mas não é assim. A pratica demonstrou o surgimento
de um órgão que já esta presente na Carta mas não está aqui enumerado: secretário geral
das nações unidas- gere a administração das nações unidas mas papel relevante como
mediador de conflitos internacional e órgão que coloca assuntos na agenda de outos
órgãos da ONU. A expressão secretariado que aqui está deve ser substituída pela
expressão secretário geral.

Legítima defesa – Única possibilidade de uso da força, no âmbito da carta das nações
unidas.

Aula 12 – 01/12/2020
Conselho de Segurança e as suas competências

Verificamos que de acordo com o art. 24.º da Carta das Nações Unidas, o Conselho de
Segurança tem a principal responsabilidade da manutenção da paz e da segurança
internacionais.

Pela comparação entre o Conselho de Segurança e a Assembleia Geral, pelo pretexto das
competências que são atribuídas a um e outros órgãos, verificamos também que nalgumas
matérias mais sensíveis foi atribuído ao Conselho de Segurança alguma preponderância,
veja-se, por exemplo, a posição do Conselho de Segurança na definição do estatuto, seja de
novos membros, seja na suspensão de direitos de membros da organização, seja mesmo na
expulsão de membros da Organização das Nações Unidas, nos arts.º 4.º a 6.º da Carta é
notória a posição privilegiada do Conselho de Segurança também no que diz respeito à
revisão da Carta das Nações Unidas. Aí, nos arts. 108.º a 109.º da Carta é especialmente
notória a prevalência do Conselho de Segurança exigindo-se voto favorável dos membros
permanentes do Conselho de Segurança para as revisões à Carta.
Uma outra solução normativa da Carta que diz respeito à introdução de uma posição de
salvaguarda do Conselho de Segurança face à Assembleia Geral, é a que se encontra no art.
12.º da Carta. De acordo com este artigo, enquanto o Conselho de Segurança estiver a
exercer a relação a qualquer controvérsia ou situação as funções que lhe são atribuídas na
presente carta, a Assembleia Geral não fará nenhuma recomendação a respeito dessa
controvérsia ou situação, a menos que o Conselho de Segurança o solicite (n.º1). Esta
solução obviamente visa salvaguardar a liberdade de discussão e deliberação do Conselho
de Segurança, mas conheceu em 1950, na célebre resolução “Unidos para a paz”, na
resolução 377 da Assembleia Geral, uma restrição, permitindo-se à Assembleia Geral, caso
o Conselho de Segurança não consiga exercer as responsabilidades em matéria da
manutenção da paz e da segurança internacionais, devido, designadamente, à falta de

116
Direito Internacional Público Mariana Esteves

unanimidade entre os membros permanentes, sempre que pareça existir uma ameaça à paz
ou ato de agressão, a Assembleia Geral encarregar-se-á imediatamente da questão, tendo
em vista a adoção de recomendações adequadas aos membros para a adoção de medida
coletivas incluindo o uso da força, quando necessária, para manter ou reestabelecer a paz e
a segurança internacionais.

Esta solução da resolução da Assembleia Geral, de 3 de novembro de 1950, visava


precisamente superar as situações em que, pelo exercício do direito de veto, não fosse
possível ao Conselho de Segurança determinar a adoção de medidas necessárias para a
manutenção da paz e da segurança internacionais. No entanto, esta possibilidade da
Assembleia Geral atuar, designadamente discutindo e deliberando relativamente a este tipo
de controvérsias, e possibilitando inclusivamente a recomendação de medidas que
passassem também possivelmente pelo uso da força aos membros da organização, mantem
sempre o carácter de recomendação, ou seja, a Assembleia Geral nunca pode adotar
medidas com um carácter vinculativo para os membros, ao contrário do que acontece com
as resoluções do Conselho de Segurança nestas matérias, por força do art. 25.º
designadamente. De acordo com este artigo, determina-se a eficácia externa destas
resoluções do Conselho de Segurança nas matérias do capítulo VII. No entanto,
relativamente à natureza jurídica das resoluções do Conselho de Segurança, verificamos
que, se em relação ao capítulo VII conseguimos encontrar, designadamente articulando o
art. 25.º com a solução prevista no art. 39.º, que estabelece que o Conselho de Segurança
fará recomendações ou decidirá as medidas a adotar, designadamente nos arts. 36.º, 37.º e
38.º do capítulo VI, ou seja, capítulo relativo à resolução pacífica de conflitos. A atuação do
Conselho de Segurança parece ser reconduzida essencialmente para a elaboração de
recomendações às partes. É isso que lê nos arts. 36.º, 37.º e 38.º.
No entanto, o parecer consultivo do TIJ, de 21 de junho de 1971, relativo ao caso da presença
da África do Sul na Namíbia, considerou que a redação do art. 25.º não impede a atribuição
de valor vinculativo às resoluções do Conselho de Segurança fora das matérias do capítulo
VII, ou seja, das matérias que dizem respeito à ação em caso de ameaça à paz, rutura da paz
ou atos de agressão.

A praxis do Conselho de Segurança parece acompanhar também este entendimento do TIJ,


ou seja, na prática do Conselho de Segurança é usual que o Conselho não dissocie os seus
poderes a título de uma ou outra competência, ou seja, evitando fazer referências nas
resoluções aos capítulos diferentes – ao capítulo VII ou ao capítulo VI – como
enquadramento de referência da resolução, o que também permite perceber, por parte do
Conselho de Segurança, tendencialmente uma maior reserva na limitação dos efeitos
jurídicos das suas próprias resoluções e, portanto, indiscutivelmente, nos termos da Carta,
designadamente conjugando o art. 25.º com o art.º 39.º e também com o art. 43.º da Carta
das Nações Unidas, retira-se indiscutivelmente esse carácter obrigatório das resoluções do
Conselho de Segurança nas matérias do capítulo VII, mas também, de acordo com a
interpretação dada pelo TIJ no parecer consultivo de 1971 no caso Namíbia e pela própria
prática tendencial do Conselho de Segurança na caracterização faz próprias resoluções, não
se entende precludido o eventual carácter vinculativo das vinculações do Conselho de
Segurança noutras matérias que não estritamente as do capítulo VII.

No que diz respeito, no entanto, à ação do Conselho de Segurança no âmbito do capítulo VI,
no que diz respeito á solução pacífica de conflitos, temos no art. 33.º que há um
compromisso das partes dos Estados-membros da Organização das Nações Unidas, em
recorrerem aos meios de resolução pacífica das controvérsias, indicando-se no art. 33.º
designadamente a negociação, a mediação, a conciliação, a arbitragem, a via judicial e outros

117
Direito Internacional Público Mariana Esteves

mecanismos, e que, nos termos do n.º2 deste mesmo artigo 33.º, o Conselho de Segurança
pode recomendar às partes que recorram/adotem qualquer um desses mecanismos para
resolver a controvérsia em causa.
Nos termos do art. 34.º, são atribuídos poderes de inquérito ao Conselho de Segurança, que
são particularmente importantes para que possa aferir designadamente se a controvérsia
em causa implica eventualmente a existência de uma ameaça à paz ou uma rutura da paz e
da segurança internacionais, permitindo, por essa via, que o poder de apreciação de
controvérsias por parte do Conselho de Segurança possa determinar uma ação também no
âmbito do capítulo VII, caso se verifiquem os pressupostos dessa atuação.
De acordo com o art. 36.º e, portanto, ainda no âmbito do capítulo VI, o Conselho de
Segurança pode recomendar os processos ou métodos de solução mais adequados às partes
e pode mesmo, nos termos dos arts. 37.º e 38.º, fazer recomendações às partes sobre a
solução da controvérsia ela mesma, adotando aqui ou adquirindo aqui, se quisermos,
funções de mediador e conciliador. Já no que respeita ao capítulo VII, isto é, á manutenção
da paz e às situações de ameaça à paz, rutura da paz ou a atos de agressão, o que
encontramos é uma posição diferente do Conselho de Segurança ou pelo menos uma posição
assumidamente distinta da atuação do Conselho de Segurança, não só no âmbito do regime
da Carta, mas também comparando com o que decorria do anterior regime vigente no
âmbito do Pacto da Sociedade das Nações.

Aqui, de facto, no âmbito do capítulo VII encontramos um desenvolvimento mais substancial


no que diz respeito à definição de sistemas internacionais de segurança coletiva. Agora sim
conseguimos encontrar no âmbito da Carta das Nações Unidas, ao contrário do que
resultava do Pacto da Sociedade das Nações, a constituição de um efetivo sistema de
segurança coletivo, de natureza defensiva, em que que cada Estado assume o compromisso
de prestar apoio à decisão coletiva de se opor a um Estado culpado de agressão ou ameaça
à paz de acordo também com um juízo coletivo.

Na Carta é notório a moderação do princípio da igualdade dos Estados, comparando com o


que sucedia no âmbito do Pacto da Sociedade das Nações. De facto, na negociação do
estatuto do Conselho de Segurança, quer na conferência Dumbarton Oaks de 1944, quer na
Conferência de Ialta da qual saem indicações para os Estados presentes na conferência de
São Francisco em 1945, há uma clara preocupação em assegurar a efetividade da função do
Conselho de Segurança atribuído, designadamente um estatuto diferenciado aos membros
permanentes, não só através do reconhecimento de uma responsabilidade acrescida na
manutenção da paz, no período do pós-guerra, mas fazendo atribuir a essa mesma
responsabilidade acrescida um estatuto claramente diferenciado, designadamente por
força da introdução de um mecanismo do veto e, em particular, do duplo veto, nos termos
do art. 27.º e, mais especificamente, do art. 27.º/n.º3 da Carta. Esta foi uma solução que saiu
de Ialta diretamente para a Conferência de São Francisco: assegurar o poder de veto aos
membros permanentes do Conselho de Segurança, implicava também assegurar que estes
membros permanentes podem estar ao abrigo das sanções coletivas determinadas no
capítulo VII da Carta.

Esta posição dos membros permanentes do Conselho de Segurança é importante se


atendermos ao processo que está previsto no capítulo VII, para o tipo de medidas a adotar
no âmbito deste mesmo capítulo, e que começam, desde logo, com o reconhecimento de um
poder de constatação que consta do art. 39.º do mesmo capítulo VII, onde se lê que o
Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, rutura da paz
ou ato de agressão e fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas, de

118
Direito Internacional Público Mariana Esteves

acordo com os arts. 41.º e 42.º, a fim de manter ou restabelecer a paz e a segurança
internacionais. Aqui, temos, desde logo, que a determinação da ameaça à paz, da rutura da
paz ou de um ato de agressão constitui essencialmente este poder que é atribuído ao
Conselho de Segurança, este poder de definir o pressuposto que é a existência de uma
situação, ameaça à paz ou um ato de agressão.

Convém ter em conta, mais uma vez, a praxis do Conselho de Segurança, porque o Conselho
de Segurança é extremamente cauteloso na identificação de situações de agressão, mesmo
quando elas parecem mais óbvias, ao contrário de um uso mais alargado, mais extensivo das
situações de ameaça à paz. Portanto, há uma maior reserva do Conselho de Segurança em
identificar situações de agressão, por contraposição à situação que dá também maior
margem de apreciação e de decisão, que é a de uma situação de ameaça à paz. Este
comportamento não é alheio às consequências jurídicas da identificação de um ato de
agressão. O art. 39.º distingue também o tipo de atuação que o Conselho de Segurança
adotará na sequência desta constatação, em que se distingue as recomendações da decisão
de medidas, nos termos ou do art. 41.º ou do art. 42.º.
Importa ainda, antes de passarmos aos artigos subsequentes, referir que esta atuação do
Conselho de Segurança, da constatação destas situações de ameaça à paz, rutura da paz ou
ato de agressão e a decisão de adotar medidas ou de fazer recomendações às partes, não se
esgota no âmbito dos Estados-membros da Organização das Nações Unidas. Há que ter em
conta aqui o disposto no n.º 6 do art. 2.º, portanto, a responsabilidade das Nações Unidas
nesta matéria e, muito particularmente, do Conselho de Segurança de acordo com a
distribuição de competências e poderes que a Carta determina efeitos externos ao próprio
núcleo dos membros das Nações Unidas.

Os artigos 41.º e 42.º distinguem-se essencialmente pela natureza das medidas: medidas
que não impliquem o uso da força, no caso do art. 41.º, medidas que impliquem o uso da
força, no caso do art. 42.º.

O art. 40.º estabelece a possibilidade para a adoção de medidas provisórias, sendo que nesse
caso se refere que o Conselho de Segurança poderá instar as partes interessadas a aceitar
as medidas provisórias. Isto não significa que a natureza jurídica destas decisões não seja
também vinculativa e, portanto, há aqui esta definição no art. 40.º de uma maior latitude e
de uma maior possibilidade daquilo que é recomendado à partes interessadas
designadamente aceitar as medidas provisórias que pareçam necessárias ao Conselho de
Segurança ou aconselháveis de serem adotadas, sendo que tais medidas provisórias não
prejudicarão os direitos ou pretensões, nem a situação das partes interessadas e, portanto,
mais uma vez, temos a dualidade que também encontramos no art. 39.º, a fim de evitar que
a situação se agrave, o Conselho de Segurança poderá, antes de fazer as recomendações ou
decidir recomendar às partes a adoção de medidas provisorias, e aqui, neste caso, temos
uma natureza distinta do tipo de decisão de imposição que está prevista no art. 39.º, a par
da possibilidade de fazer recomendações.
No art. 41.º temos medidas que, sem envolver o emprego das forças armadas, deverão ser
tomadas para tornar efetivas as decisões do Conselho de Segurança. Este artigo deve ser
lido em conjugação com o art. 25.º e, designadamente, com o art. 43.º, que estabelece o
compromisso dos Estados contribuírem para a manutenção da paz e da segurança
internacionais, proporcionando ao Conselho de Segurança os meios mais necessários,
designadamente, os meios que dizem respeito á disponibilidade de forças armadas,
assistência e inclusive direitos de passagem necessário para a manutenção da paz e da
segurança internacionais. No âmbito do capítulo VII há um conjunto de disposições que

119
Direito Internacional Público Mariana Esteves

devem ser articuladas com o art. 25.º e donde se retira a natureza impositiva/vinculativa
das resoluções do Conselho de Segurança. Característico do ar. 41.º, destas medidas que não
envolvem o emprego das forças armadas, é a noção de rompimento das relações, seja das
relações económicas, seja o rompimento das comunicações/telecomunicações, prevendo-
se aqui a interrupção dos meios de ligação ferroviários, marítimos, aéreos, postais,
telegráficos ou de outra qualquer espécie, o que está em causa é o corte das comunicações,
e o rompimento das relações diplomáticas.

No art. 42.º temos essa medida diferenciada que demonstra a possibilidade do recurso à
força e, designadamente, a meios militares para manter ou reestabelecer a paz e a segurança
internacionais. A título não taxativo é enunciado no final do art. 42.º o tipo de ação que pode
estar em causa e, portanto, que poderá compreender demonstrações, bloqueios e outras
operações por meio de forças aéreas, navais ou terrestes dos membros das Nações Unidas.
O art. 43.º é importante porque estabelece esta obrigação de os Estados-membros
contribuírem para a efetividade das medidas que são decididas pelo Conselho de Segurança
e devem contribuir, como foi anteriormente referido, com a disponibilização de forças
armadas, assistência, facilidades incluindo os direitos de passagem, mas isso é feito de
acordo com convenções e, portanto, está previsto que essa disponibilização seja feita a
pedido do Conselho de Segurança e, por outro lado, em conformidade com um acordo ou
acordos especiais.

Esta solução implica um avanço importante face ao regime da Sociedade das Nações, é
precisamente um dos problemas de efetividade da ação do Conselho no âmbito do Pacto da
Sociedade das Nações e, portanto, agora há não só a possibilidade da adoção ou da decisão
de medidas de natureza militar, mas ao contrário do que acontecia no Pacto da Sociedade
das Nações em que a adoção das medidas militares era exclusivamente facultativa para os
Estados, aqui, a Carta avança na possibilidade da organização, não só recomendar, mas
também decidir este tipo de medidas, mas ela própria ela aplicar a força neste caso por via
das forças e dos meios que são disponibilizados pelos Estados, como previsto no art. 43.º.
Ainda assim, o que ficou estabelecido, representa também um compromisso em relação à
posição dos Estados face à Organização das Nações Unidas, porque é necessário que haja
aqui este acordo ou acordos especiais com os Estados, de forma a definir os termos em que
a disponibilização destes meios é feita.

Refira-se também que, nos termos do art. 45.º, ou seja, naquilo que diz respeito à
necessidade de assegurar a efetividade das medidas urgentes, ou seja, para assegurar que é
possível a adoção imediata de medidas militares urgentes que os Estados devem manter
contingentes miliares que possam ser utilizados imediatamente, sendo que, no entanto, a
definição desses contingentes, bem como os termos dos planos de ação combinada, devem
ser também definidos e são definidos pelo Conselho de Segurança e pelo Comité do Estado
Maior, mas também deverão ser feitos dentro dos limites estabelecidos no acordo ou
acordos especiais a que se refere o art. 43.º, portanto, há sempre aqui esta remissão a asre
feita.

Importa também olhar para a salvaguarda que é feita no art. 50.º, que respeita à salvaguarda
de Estados terceiros que possam ser afetados pelas medidas preventivas ou coercivas
decididas pelo Conselho de Segurança. Está em causa designadamente Estados que sofram
no plano económico com as medidas que sejam adotadas. Interessante aqui também é que
esta salvaguarda prevista no art. 50.º, destina-se a Estados-membros ou a Estados não
membros das Nações Unidas, portanto, qualquer Estado incluindo um Estado não-membro
das Nações Unidas, tem esta posição aqui relativamente salvaguardada quanto aos efeitos

120
Direito Internacional Público Mariana Esteves

designadamente económicos das medidas adotadas e leia-se, se um Estado for objeto de


medidas preventivas ou coercivas tomadas pelo Conselho de Segurança, qualquer outro
Estado, quer seja membro ou não das Nações Unidas, que enfrente dificuldades económicas
especiais resultantes da execução daquelas medidas, terá o direito de consultar o Conselho
de Segurança, no respeito à solução dos problemas identificados. Portanto, há aqui esta
possibilidade de interação com o Conselho de Segurança, para tentar solucionar os
problemas económicos especialmente resultantes da adoção deste tipo de medidas.

Já no que respeita à conclusão do capítulo VII, um capítulo que diz respeito à atividade/ação
atribuída ou prevista ao Conselho de Segurança, no que diz respeito à manutenção da paz
em circunstâncias de ameaça à paz, rutura da paz ou atos de agressão, é interessante que
tenha ficado aqui, nesta posição sistemática, este resquício último do ius belli dos Estados,
ou seja, o capítulo VII encerra com esta formulação no art. 51.º de que nada na presente
carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de
ocorre um ataque aramado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de
Segurança tenho tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança
internacionais.

É interessante esta colocação da previsão do direito da legítima defesa precisamente porque


a ação prevista e atribuída ao Conselho de Segurança, na utilização da força para a
manutenção da paz e da segurança internacionais, poderia colidir com a perceção do ius
belli dos Estados, sobretudo tendo em atenção o princípio disposto no art. 2.º/n.º4 da Carta
das Nações Unidas, segundo o qual os membros deverão abster-se nas suas relações
internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer seja contra a integridade
territorial ou independência de um Estado, quer seja de qualquer outro modo incompatível
com os objetivos das Nações Unidas. Este princípio geral que está aqui enunciado no n.º4
do art. 2.º e que implica também uma obrigação erga omnes, que, portanto, permite a
extensão da atuação do Conselho de Segurança para lá da atuação dos membros da
Organização das Nações Unidas, resultando isso também duma forma mais mediata do n.º6
deste mesmo artigo, é interessante atentar na redação do art. 51.º.

A versão portuguesa deste artigo da Carta das Nações Unidas refere-se aqui a um “direito
inerente de legítima defesa”. Aqui, a versão portuguesa acompanha mais de perto a versão
inglesa em que se fala de “inherent right of self-defense”, ao contrário do texto francês da
Carta que se refere a um “direito natural da legítima defesa”. A opção aqui pela qualificação
deste direito não é inocente, talvez a preferência pelo termo “direito inerente de legítima
defesa”, pareça menos complicado ou comprometedor, pelo menos do ponto de vista
jusfilosófico face a esta referência que encontramos na versão francesa a um “direito natural
de legítima defesa”, mas, seja como for, ele remete nesta qualificação que é feita do direito
de legítima defesa para a perceção de que a figura é anterior ao texto da carta, mas
sobretudo que a natureza do art. 51.º poderá estar condicionada precisamente pelo
reconhecimento da construção jurídica de natureza costumeira da figura da legítima defesa.

O art. 51.º é entendido como uma exceção designadamente ao princípio enunciado no art.
2.º/n.º4 que corresponde a este compromisso ou obrigação de abstenção do uso da força
nas relações internacionais. Portanto, este art. 51.º austa de ser o direito de legítima defesa
individual ou coletiva está-se sempre a referir ao uso da força por parte dos Estados a título
individual, ou seja, a referência à legítima defesa coletiva não deve ser confundida com o
uso da força em termos coletivos pela Organização das Nações Unidas. O que está em causa
nesta referência à legítima defesa coletiva é a chamada legítima defesa de terceiro e,

121
Direito Internacional Público Mariana Esteves

portanto, este mecanismo do art. 51.º está aqui colocado e colocado nestes termos
precisamente para diferenciar a utilização da força por parte dos Estados a título individual
distinto da utilização da força por mandato do Conselho de Segurança das Nações Unidas e,
portanto, no exercício da força por decisão da organização aplicada pela organização por
via dos Estados.

Este direito inerente de legítima defesa representa aquilo que no Direito vigente será a
manifestação admissível do ius belli do direito do uso da força nas relações internacionais
que é historicamente construído como uma prerrogativa de soberania do Estado,
juntamente com o ius tractum, o direito de celebrar convenções internacionais, e o ius
legation, o direito de estabelecer ligação diplomática.

Esta definição da legítima defesa enquanto figura essencial na doutrina jurídica


internacional sobre o uso da força tem uma longa história. A identificação desde logo da
legítima defesa como um direito natural existe no contexto da teorização da guerra justa,
que é uma construção escolástica medieval, embora também tenha raízes anteriores, mas a
construção jurídica da legítima defesa enquanto figura que habilita ao uso da força nas
relações internacionais por parte de um soberano é uma construção escolástica que
considera a legítima defesa como uma guerra justa por natureza, daí esta referência ao
direito natural e à figura da legítima defesa como uma atuação justa por natureza, remete
para uma característica desta doutrina, que é uma doutrina medieval, mas que vai ser
fundamental para a definição doutrina do direito da guerra na primeira escola do Direito
das Gentes moderno, ou seja, do Direito Internacional moderno, que é a segunda escolástica,
que adota esta construção baseada num critério de justiça material da atuação, juntamente
com outros pressupostos que poderíamos considerar de natureza mais formal ou
procedimental, mas essencialmente se considera, e isto já representa uma limitação do
ponto de vista doutrinário, ao uso da força por parte do soberano, considera que só são
lícitas, juridicamente admissíveis, as guerras que forem justas. Entre as guerras que são
justas – guerras prosseguidas em legítima defesa ou para reparação de um dano ilicitamente
produzido – a legítima defesa aparece unanimemente como a guerra justa por natureza. Há
uma limitação histórica desta doutrina, que a Idade Moderna vai acentuar essencialmente e
depois a partir da Idade Contemporânea, bem como no século de ouro do DIP clássico, o
século XIX, estão mais acentuados, por via de uma evolução histórica, os elementos mais
positivistas e formalistas do direito da guerra e chegamos ao quadro estabelecido no Pacto
da Sociedade das Nações, a um primeiro quadro jurídico de limitação do direito da guerra,
no Direito Internacional contemporâneo.

Não significa que do ponto de vista filosófico, do ponto de vista doutrinário do DIP, não
houvesse uma tradição histórica mais longa de condenação do uso da força e de tentativa
de limitação do uso da força nas relações internacionais, mas no Direito Internacional, na
ordem jurídica vigente, é com o Pacto da Sociedade das Nações que temos uma primeira
experiência, embora muito limitada no alcance dos efeitos, de rejeição do uso da força. Essa
disposição encontra-se essencialmente no art. 10.º do Pacto da Sociedade das Nações que
estabelece esta rejeição da guerra de agressão.

O problema do Pacto da Sociedade das Nações é que, na verdade, não estabelece um


mecanismo coercivo que permita ou prevenir ou reparar, corrigir a violação desse
compromisso e o máximo que se consegue obter, que é muito característico do processo
estabelecido no Pacto da Sociedade das Nações, é a tentativa de limitar o recurso ao uso da
força através do estabelecimento de uma série de mecanismos de natureza burocrática e

122
Direito Internacional Público Mariana Esteves

quase procedimental que leve à dilação temporal e, pela dilação temporal, tentar dissuadir
do uso da força, mas não há claramente uma restrição jurídica, nem a imposição através de
mecanismos coercivos da proibição do uso da força.

Designadamente o art. 12.º que estabelecia a obrigação das partes de subterem a um litígio
ou a um processo de arbitragem ou a um exame do Conselho da Sociedade das Nações, mas
que previa também a célebre moratória, ou seja, previa que em nenhum caso deverão
recorrer à guerra antes de expirar o prazo de três meses após sentença arbitral ou parecer
do Conselho, o que a contrario implica que se permitia, passados esses três meses, se previa
a possibilidade de haver um recurso à força nas relações internacionais como forma de
tentativa de solução de controvérsias.

Fora do regime do Pacto da Sociedade das Nações, mas no âmbito da vigência da Sociedade
das Nações que encontramos uma primeira prescrição de origem convencional, que se
traduziu no chamado pacto Briand-Kellogg, de 1928. Este pacto, cujo nome se prende com
a associação aos responsáveis pela diplomacia pelos negócios estrangeiros da França e dos
EUA, tem como origem a renovação, em 1927, de um tratado de arbitragem bilateral entre
estes dois países, há uma proposta, no âmbito da renovação deste tratado de arbitragem, de
se incluir uma cláusula de renúncia à guerra nas relações mútuas e, na sequência dessa
proposta, o responsável norte-americano vai propor o alargamento a outros Estados dessa
solução e a celebração de um tratado multilateral de interdição da guerra.

Neste tratado que vai entrar em vigor a 24 de julho de 1929, fica estabelecido o seguinte: as
altas partes contratantes declararam solenemente que condenam o recurso à guerra para a
resolução dos conflitos internacionais, por um lado, e renunciam a ela enquanto
instrumento de política nacional nas suas relações jurídicas mútuas. Esta declaração é
especialmente interessante: por um lado, a condenação do recurso à guerra é feita em
termos muito genéricos, portanto, não há uma distinção do tipo de guerra que estaria aqui
em causa, não há uma limitação da guerra de agressão, a condenação da guerra é genérica e
pode considerar-se, em última instância, poderia estar aqui incluída a guerra defensiva,
porque estamos perante uma declaração dos Estados e uma renúncia mútua à guerra
enquanto instrumento de política nacional nas relações mútuas entre os Estados parte desta
convenção.

Esta renúncia por parte dos Estados dá-nos ainda uma nota voluntarista, tão típica do
direito internacional clássico, muito marcado por esta posição não só do Estado-soberano,
como sujeito de direito internacional e a sua posição não só da teoria das fontes, mas
também no próprio exercício das prerrogativas clássicas da soberania, mas também implica
esta afirmação muito clara de que o que está em causa é ainda uma renúncia voluntária dos
Estados ao recurso à guerra nas relações mútuas.

Este pacto teve uma grande adesão e pode dizer-se que tem efetivamente um alcance
universal, tendo em conta o número de Estados existente à época e, do ponto de vista do
princípio enunciado e da renúncia mútua dos Estados partes à guerra, e à guerra em sentido
genérico como ele é aqui enunciado, é importante como um primeiro momento de
prescrição para lá do que estava previsto no art. 10.º do Pacto da Sociedade das Nações. No
entanto, esta nota muito característica desta posição soberana do Estado na conceção no
direito internacional clássico também se traduz no reverso, que é o não serem estabelecidos
mecanismos de coerção coletiva, que não existiam em termos eficazes no Pacto da
Sociedade das Nações e que também não estão previstos no Pacto Briand-Kellogg, que não
estabelece mecanismos de coerção coletiva para a repressão da violação deste

123
Direito Internacional Público Mariana Esteves

compromisso. Eventualmente para os Estados-partes que fossem também membros da


Sociedade das Nações podia haver o recurso aos mecanismos previstos, designadamente no
art. 16.º, mas que tinham um alcance muito limitado, além de que todos os Estados eram
partes nos dois instrumentos e, portanto, há aqui uma limitação, do ponto de vista da
eficácia, que contrasta com a disposição e a natureza da declaração que é feita.

Quando chegamos à Carta das Nações Unidas há uma perceção clara de que a limitação do
uso da força, que é já assumida historicamente na história recente como um compromisso
internacional de natureza universal, reunindo algum consenso do ponto de vista dos
princípios, é percebido que é necessário criar um mecanismo diferenciado que assegure a
efetividade da solução do princípio que já recolhe consenso na ordem internacional. Isso é
muito visível num mecanismo que é estabelecido, nomeadamente do ponto de vista político,
dos principais atores no conflito mundial e no pós-guerra, garantindo a posição dos
membros permanentes no âmbito do Conselho de Segurança, mas isso é também, a
diferenciação do estatuto dos Estado, o elemento de contrapartida para o estabelecimento
deste sistema novo e que implica uma restrição muito substancial daquilo que são as
prerrogativas do Estado-soberano. Basta ver a dificuldade que tinha sido encontrar, no
âmbito da Sociedade das Nações, para partir de um consenso relativamente ao princípio
para a aplicação de mecanismos efetivamente limitadores da ação do Estado. Por isso, a
solução que se encontra na Carta da Organização das Nações Unidas, leva muito longe esta
restrição do uso da força que se traduz, não só na enunciação dos princípios,
designadamente no art. 2.º/n.º4 e n.º6, mas que conhece estas exceções. Uma delas, que têm
um carácter mais alargado, é o uso da força pela Organização das Nações Unidas, decidida
pelo Conselho de Segurança, no âmbito do capítulo VII, na prossecução dos fins aqui
previstos, e aquilo que está previsto no art. 51.º, que é a legítima defesa, o direito inerente
de legítima defesa, individual ou coletiva.

Se atendermos ao alcance do direito de legítima defesa que está aqui previsto e a


diferenciação nas versões que, no entanto, se encontra sempre num elemento comum que é
o da qualificação do direito da legítima defesa como um direito inerente ou como um direito
natural, significando sempre de qualquer forma, apesar da diferente enunciação, o
reconhecimento de um direito que é prévio, que não resulta da sua criação para os Estados
pela Carta, pelo contrário teria uma natureza declarativa, não constitutiva, no sentido de, no
art. 51.º, se reconhecer a existência desse direito de legítima defesa.

Foi precisamente esse entendimento que o TIJ, no acórdão sobre as atividades militares e
paramilitares no Nicarágua, de 27 de julho de 1986, considerou que esta expressão no art.
51.º, a referência ao direito inerente de legítima defesa, implicava o reconhecimento da
existência de um direito costumeiro do qual tem origem a figura da legítima defesa e,
portanto, este entendimento afirmado pelo TIJ tem como efeito afastar uma interpretação
mais restritiva da legítima defesa que resultaria de um entendimento do art. 51.º, como
tendo uma natureza constitutiva, e que, portanto, restringiria, por um lado, a construção
costumeira da figura, por outro lado, subordinaria a interpretação da legítima defesa e dos
seus pressupostos previsto no art. 51.º à lógica mais restritiva de um mero sistema de
segurança coletiva. É também esse o entendimento que parece resultar do parecer
consultivo do TIJ, de 27 de julho de 1996, sobre a ilicitude da ameaça e do emprego da arma
nuclear de 1926, que reconhece o direito fundamental que tem todo o Estado de sobreviver
e, como tal, o direito de recorrer à legítima defesa, em conformidade com o art. 51.º, quando
essa sobrevivência está em causa.

124
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Portanto, este de parecer de 1996, o TIJ utiliza o termo direito fundamental do Estado para
caracterizar este direito de legítima defesa e, portanto, embora haja esta remissão para a
conformidade do art. 51.º, o reconhecimento constante e, tal como já resultava do acórdão
de 1986, este reconhecimento de um direito costumeiro no qual é originado esta figura da
legítima defesa e depois é reconhecida/declarada no art. 51.º da Carta, levaria aqui a um
entendimento menos restritivo do direito de legítima defesa do que aquele que resultaria
dum carácter constitutivo do art. 51.º.

Quais são os pressupostos da legítima defesa? Olhando para o art. 51.º, desde logo a
ocorrência de um ataque armado – note-se que esta referência ao ataque armado é mais
restritiva do que a referência à ameaça à paz, uma rutura da paz ou mesmo às referências
que são feitas no art. 2.º/n.º4. portanto, o pressuposto designadamente do ato ilícito em
relação ao qual se vai usar a força em legítima defesa, é já aqui restringindo. Não há uma
definição na carta do que se entendeu por ataque armado, sendo que uma tentativa de
definição de ataque armado vai surgir apenas na resolução da Assembleia Geral 3314, de 14
de dezembro de 1974, que tem como principal formalidade a definição do termo “proibição”
para efeitos de identificação do que se entenda por ataque armado, designadamente como
está aqui previsto no art. 51.º.

O anexo à resolução tem o conjunto normativo onde se encontram os critérios para a


definição de ataque armado. O art. 1.º define ataque armado como o emprego da força
armada por um Estado contra a soberania, integridade territorial ou independência política
de outro Estado, de forma incompatível com a Carta das Nações Unida, sendo que aqui a
forma acompanha a formulação do n. º4 do art. 2.º. Esta referência ao emprego da força
armada tem uma intenção marcada de restringir o conceito de agressão a um conceito que
remeta para o uso da força e, portanto, seja também limitado na apreciação do pressuposto,
acompanhando o efeito limitador que se pretende, por um lado, da restrição do uso da força
em termos genéricos, e, por outro lado, da consagração excecional do direito de legítima
defesa, nos termos do art. 51.º, isto porque a doutrina soviética tinha apresentado uma
interpretação alternativa, alargando o âmbito do conceito de agressão, não apenas ao
ataque armado, mas a outras formas de agressão, designadamente por atuação política do
próprio sistema económico, portanto havia aqui uma tentativa de alargar o conceito de
agressão que tem necessariamente como efeito, como qualquer efeito de alargamento dos
pressupostos da legítima defesa, como contrapartida, o alargamento da possibilidade do uso
da força e legítima defesa e, portanto, a interpretação cautelosa e mais restritiva tem
também isso em conta.

Esta definição do art. 1.º da resolução da Assembleia Geral 3314 remete, por um lado, para
este entendimento restritivo do emprego da força armada, e remete, depois, para a ilicitude
dessa força armada de acordo com os critérios do n.º 4 do art. 2.º, portanto, uma ação por
um Estado e contra a soberania, integridade territorial ou independência política de outro
Estado, de forma incompatível com a Carta das Nações Unidas.

O art. 3.º deste anexo à resolução 3314, é interessante porque estabelece uma lista de atos
considerados atos de agressão, sendo que a mesma não é exaustiva ou taxativa, e o art. 4.º
estabelece isso de forma muito clara. De qualquer forma, a lista, ainda que não taxativa, é
útil no sentido de permitir a apreciação de critérios de determinação de um ato de agressão.
A primeira alínea prevê a invasão ou ataque do território de um Estado por parte de outro
Estado, bem como a ocupação ou anexação que deles resultem. A alínea b) prevê como ato
de agressão o bombardeamento ou utilização de quaisquer armas por um Estado contra o

125
Direito Internacional Público Mariana Esteves

território de outro Estado. Também na alínea seguinte, como ato de agressão está previsto
o bloqueio naval, o bloqueio de portos ou das costas de um Estado por parte de outro Estado.
O ataque a forças terrestres, navais ou aéreas ou às frotas navais ou aéreas de um Estado
por parte de um outro Estado. A alínea seguinte prevê o uso de forças armadas de um Estado
que se encontrem no território de outro Estado, na sequência de um acordo com esse
mesmo Estado, mas em que o uso dessas forças armadas se faça em violação das condições
estabelecidas nesse acordo ou para lá do termo da vigência desse mesmo acordo, portanto,
está aqui em causa uma situação em que a presença das forças armadas de um Estado no
território de um outro, decorre de um ato lícito ou de uma situação, à partida lícita,
designadamente por força de um acordo, mas cuja execução se afaste dos termos desse
mesmo acordo e em que a presença e o uso das forças armadas de um Estado no território
de outro Estado, passe a ser feito em violação desse acordo ou para lá da vigência do acordo.
Também a ação de um Estado que permita que o seu território seja usado por um outro
Estado, para perpetrar atos de agressão contra um Estado terceiro e, por fim, o envio por
um Estado ou de grupos armados irregulares ou mercenários para exercer o uso da força
contra um outro Estado, e cujas ações revistam gravidade semelhante aos atos previstos nos
números anteriores deste art. 3.º ou em que haja um envolvimento substancial de um
Estado nas ações desses grupos , no território de um outro Estado.

Como anteriormente se referiu, esta lista não é exaustiva e a própria interpretação desta
descrição de atos que estão aqui previstos também foi objeto de uma interpretação mais
fina. Por exemplo, relativamente à última situação descrita, do envio por parte de um Estado
de grupos armados irregulares ou mercenários para ações no território de um outro Estado
e que tem uma gravidade semelhante à dos números anteriores ou o envolvimento
substancial de um Estado nas atividades desses grupos, o TIJ no acórdão de 1986, relativo
às atividades militares ou paramilitares no Nicarágua, entendeu que o mero envio de
dinheiro, armamento ou apenas algumas manobras militares ou simples existência de
rebeldes, não implicava automaticamente, nem necessariamente, a associação a um ato de
agressão ou qualificação desses atos como atos de agressão, por força desta última alínea.
Portanto, há uma modelação e uma interpretação por parte do TIJ que nos dá uma nota mais
clara, não só da natureza indicativa e não taxativa deste elenco, mas também da necessidade
de, em função de cada caso, aferir o grau de envolvimento de um Estado, nas atividades de
grupos irregulares no território de um outro Estado. Há aqui uma intenção de, mais uma
vez, fazer uma interpretação, mais limitadora, mais restritiva do pressuposto da legítima
defesa que é o ataque armado, neste caso o ato de agressão.

Ainda relativamente à solução que a resolução 3314 da Assembleia Geral, de 1974,


introduziu relativamente à definição de agressão, é interessante referir o art. 7.º, que
estabelece que nada na definição ou no próprio elenco do art. 3.º prejudicará o direito de
autodeterminação dos povos, privados desse direito, designadamente privados por força
desse direito de autodeterminação. Esta salvaguarda do uso da força no exercício do direito
de autodeterminação está perfeita numa resolução de 1974, decorrendo já de uma evolução
da própria ação da Assembleia Geral relativamente ao princípio da autodeterminação e,
mais particularmente, relativamente ao entendimento do uso da força no exercício do
princípio de autodeterminação que vem de uma resolução anterior, de 1970.

Olhando para os restantes pressupostos da legítima defesa, nos termos do art. 51.º, importa
aferir o carácter provisório que é atribuído aqui ao exercício da legítima defesa, ou seja, nos
termos do art. 51.º, nada prejudica o direito inerente de legítima defesa, no caso de ocorrer
um ataque armado, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias

126
Direito Internacional Público Mariana Esteves

para a manutenção da paz e da segurança internacionais. Decorre do art. 51.º, por um lado,
esta obrigação de comunicar ao Conselho de Segurança as medidas tomadas pelos membros
no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho
de Segurança, e há também uma ressalva da própria posição do Conselho de Segurança e
das duas suas competências, porque essas medidas também não deverão atingir a
autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho, para levar em
efeito em qualquer momento a ação que julgar necessária à manutenção ou ao
restabelecimento da paz e da segurança internacionais.

Portanto, há uma obrigação dos Estados, não só de comunicarem imediatamente as suas


ações, mas também de conformarem as suas ações em legítima defesa para não afetarem
esta responsabilidade de autoridade do Conselho de Segurança, mas sobretudo, decorrendo
ainda da primeira frase, há aqui esta natureza provisória ou transitória da atuação em
legítima defesa, porque ela manter-se apenas até que o Conselho de Segurança tenha
tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais.

Há também alguma divergência relativamente à possibilidade de interpretação deste limite


temporal, porque a letra do art. 51.º aponta para isso, mas também a teleologia do mesmo
artigo que se deve interpretar aqui que um Estado pode exercer o direito de legítima defesa
até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias, portanto, não estará
aqui em causa o Conselho de Segurança tomar a discussão da questão per si, não se trata
apenas de exercer o direito de legítima defesa até que o Conselho de Segurança tome a
questão sob análise e discuta as soluções a adotar. Quer a letra, quer a teleologia do art. 51.º
apontam para que o Estado possa exercer o direito de legítima defesa até que tenham sido
efetivamente tomadas medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança
internacionais.

Este carácter provisório e esta necessidade de comunicar ao Conselho de Segurança as


medidas adotadas, remete também para aquilo que é uma característica derivada desta
natureza provisória que é o carácter subsidiário deste direito de legítima defesa. Portanto,
a responsabilidade principal na manutenção da paz e da segurança internacionais está
atribuída ao Conselho de Segurança e a construção do art. 51.º remete para que o Estado
possa exercer o direito de legítima defesa quando é necessário e até que o Conselho de
Segurança adote as medidas necessárias. Desta forma, há aqui, não só um carácter
provisório/transitório, mas também subsidiário do próprio princípio e do próprio direito
de legítima defesa.

Um outro pressuposto da legítima defesa que não está expresso no art. 51.º é o da
proporcionalidade das medidas e, portanto, a proporcionalidade da atuação em legítima
defesa. Mais uma vez estamos perante um pressuposto que decorre da construção
costumeira da legítima defesa, sendo a construção deste princípio escolástica medieval e
muito particularmente no caso da legítima defesa e do uso da força, este é um dos critérios
que encontramos desde muito cedo neste princípio da proporcionalidade no uso da força
designadamente face à agressão que se pretende evitar, reprimir ou reparar deve ser tido
em conta, pelo que apesar de não estar previsto expressamente no art. 51º, este é um
pressuposto do direito de legítima defesa no uso da força que decorre do direito costumeiro
e da construção costumeira do direito de legítima defesa.

Um outro pressuposto que está mais diretamente ligado à primeira formulação, portanto à
ocorrência de um ataque armado, e que suscita bastante discussão, sobretudo atendendo às
circunstâncias sempre em mutação da tecnologia da guerra, tem que ver com a definição do

127
Direito Internacional Público Mariana Esteves

momento, ou seja, o art. 51.º refere que o direito de legítima defesa tem como pressuposto
ocorrer um taque armado e, portanto, isto coloca aqui alguma discussão sobre o que é que
se deve entender como a ocorrência de um ataque armado. Sem dúvida, um ataque armado
em curso, pelo que se estivermos perante um ato de agressão que implique designadamente
um complexo de atos que se prolongam no tempo é mais fácil perceber como nessa situação
haverá indubitavelmente, estando reunidos os outros pressupostos, o legítimo exercício do
direito de legítima de força e o legítimo uso da força com este carácter defensivo. No entanto,
mais dificuldade se coloca na interpretação da antecipação da perceção do perigo,
designadamente do ataque armado, e perceber qual é o critério da antecipação.

Tradicionalmente, atendendo, desde logo, à tradição costumeira da legítima defesa há que


ter em conta que o entendimento clássico da legítima defesa, não só decorrendo da
interpretação ou construção costumeira, mas também da interpretação do art. 51.º à luz
dessa construção costumeira e, portanto, atribuindo ao art. 51.º um carácter declarativo de
reconhecimento dessa figura, é classicamente admitido, com um consenso mais alargado,
não só o uso da força para repelir um ataque em curso, mas também um ataque iminente.
Claro que aqui se coloca a maior dificuldade na distinção do que é um ataque iminente ou
naquilo que já é apenas um juízo de prognose sobre a possibilidade da existência de um
ataque armado.

Esta distinção leva-nos para uma discussão relativamente mais recente sobre a
admissibilidade ou não da legítima defesa preventiva por contraposição à legítima defesa
preemptiva. Esta construção, designadamente esta construção no direito internacional
contemporâneo e o no direito internacional clássico, decorre essencialmente de uma
construção que resulta de um caso que acontece no século XIX, uma situação que vai pôr em
discussão o conceito de legítima defesa e muito particularmente a definição da antecipação
do ataque para agir legitimamente no uso da força, invocando então a legítima defesa, é o
chamado caso Caroline, por referência ao nome de um navio que está envolvido em
atividades de rebelião, designadamente no Canadá, mas havendo aqui uma intervenção de
civis norte-americanos, numa rebelião canadiana contra um navio britânico, e o caso que
ocorre em 1837 vai levar a uma discussão diplomática e a uma troca diplomática entre os
responsáveis norte-americanos e britânicos, que vai prolongar-se durante alguns anos,
dando origem e terminando com o tratado Webster-Ashburton, em 1842. Assim, nesta troca
de correspondência afina-se o critério da legítima defesa e os seus pressupostos, bem como
o que se deve entender por legítima defesa e, sobretudo, para esta definição da possibilidade
de antecipação do juízo e identificação de um ataque iminente, vais estabelecer os critérios
de definição do direito de legítima defesa, no século XIX, no direito internacional clássico,
que são usados no direito internacional no século XX e do século XXI para aferir esta
admissibilidade da antecipação da reação.

No fundo, a legítima defesa preemptiva e esta interpretação mais restritiva da dimensão


preventiva da legítima defesa, é consentânea e, por isso, é classicamente admitida e também
na interpretação mais disseminada do art. 51.º, é admitida porque o que está em causa é a
reação à iminência da agressão, que se destina a evitar a concretização da agressão. Nesse
sentido, está conforme à teleologia do art. 51.º, bem como à construção, não só costumeira,
da legítima defesa, mas também conforme à construção da legítima defesa tal como ela é
plasmada no art. 51.º. O que estaria aqui em causa seria densificar este momento da
ocorrência do ataque armado, permitindo que o Estado possa agir quando é percetível,
designadamente através da deteção de atos preparatórios do/da ataque/agressão, e
quando não há hipótese/alternativa de recurso a outros meios para evitar a agressão,

128
Direito Internacional Público Mariana Esteves

entende-se que o Estado não pode estar obrigado a sofrer a agressão, designadamente a não
proteger os seus cidadãos de uma agressão externa, apenas para acomodar esse
entendimento extremamente restritivo e até contrário à teleologia da legítima defesa, parar
esperar pela ocorrência do ataque e depois, então, poder reagir, sobretudo porque,
atendendo à evolução tecnológica, o momento de dilação entre a preparação do ataque e a
concretização do ataque e o termo do ataque, ser cada vez mais curto e, portanto, a própria
identificação de momentos diferenciados que permitem designadamente a identificação do
ataque em curso vai sendo restringido. Desta forma, a discussão que se colocou sobre uma
interpretação mais alargada da legítima defesa, por forma a incluir também aquilo que não
seria já apenas uma legítima defesa preemptiva, ou seja, uma legítima defesa que se destina
a impedir uma agressão iminente quando há verificação de atos preparatórios, que podem
ser eles próprios impedidos, e quando se verifica que não há já outra forma, senão o uso de
impedir, de impedir que pela consecução dos atos preparatórios se concretize a agressão.

Outra coisa distinta é um entendimento mais alargado deste momento de antecipação para
o uso da força, que invocando a dificuldade cada vez maior em identificar momentos
diferenciados e alargar, de início os atos preparatórios, concretização da agressão e termo
da agressão, possam deixar o Estado, através de uma interpretação restritiva da legítima
defesa, sobretudo deste pressuposto que é o momento da verificação da agressão, pudessem
deixar o Estado sem qualquer possibilidade de reação, porque se o ataque ou se a
preparação da agressão e a concretização da agressão for de tal forma imediata que a partir
do momento em que são iniciados os atos preparatórios, já não pode ser impedida a
agressão e esta uma vez realizada tem um efeito importante e ao mesmo tempo imediato, já
não permitirá depois uma atuação em legítima defesa, sob pena de se poder cair numa
situação de apenas pura retaliação que não seria também permitida à luz do direito vigente
e, designadamente, do direito da Carta. Portanto, a discussão sobre a antecipação desta
verificação do pressuposto da iminência do ataque colocar-nos-ia aqui perante algumas
opções de interpretação.

Tendencialmente maioritária e de acordo com a construção costumeira, bem como a


interpretação clássica maioritária do art. 51.º, admitir-se-ia não só o uso da força para
impedir/reagir a um ataque em curso, mas também a um ataque iminente. Aí, na
identificação do ataque iminente, caberia a legítima defesa preemptiva, aquilo que na
literatura anglo-saxónica é referido como anticipatory self-defense, por contraposição a uma
outra figura já mais alargada, e essa sim que maioritariamente é rejeitada pela doutrina e
pela interpretação mais conforme à letra do art. 51.º e também à teleologia do mesmo artigo,
atendendo à construção restritiva da Carta do direito de uso da força por parte dos Estados,
a título individual, ou seja, uma legítima defesa já não preemptiva, mas sim preventiva, que
não se limitaria já a uma atuação do uso da força para rechaçar um ataque iminente, porque
há verificação de atos preparatórios, porque não há outra possibilidade, não há outros
meios disponíveis para impedir a concretização da agressão – isso seria a legítima defesa
preemptiva –, mas sim um entendimento mais alargado atendendo precisamente a uma
dificuldade, se não mesmo impossibilidade, crescente de distinguir estes vários momentos
e de deixar os Estados numa posição de impossibilidade de atuação, que seria então permitir
esta atuação, este uso da força em legítima defesa preventiva, agora identificando potenciais
sinais de perigo de preparação de uma agressão, mas que não teria ainda atingindo esse
carácter iminente. Esta legítima defesa preventiva entende-se maioritariamente na
doutrina que não é conforme ao direito da Carta, nem à construção costumeira da legítima
defesa, pelo que, maioritariamente, não é atendida como uma atuação lícita no uso da força.

129
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Relativamente ainda à definição da legítima defesa, nos termos do art. 51.º, enquanto
legítima defesa coletiva, como foi anteriormente referido não está em causa a atuação ou o
uso da força coletivo no sentido do uso da força pela Organização das Nações Unidas. O que
está em causa é a atuação em legítima defesa pelos Estados, a título individual, em defesa de
terceiro. Aplicam-se os pressupostos que estão previstos para a legítima defesa, em termos
genéricos no art. 51.º, a necessidade de se verificar um ataque armado, em curso ou
iminente. Neste caso, atendendo à especificidade e à delicadeza desta intervenção, porque
estamos a falar de uma intervenção de um Estado, num território designadamente ou em
relação a um outro Estado que se considera atacado, estando aqui, de facto, em causa a
legítima defesa de terceiro. Aqui relativamente à determinação da ocorrência do ataque
armado é necessário que esse ataque armado corresponda efetivamente a um ataque
armado de natureza internacional. Portanto, não se utilize esta figura para uma intervenção
de um Estado, num conflito que tem uma natureza interna – ex.: rebeliões internas. O que
está em causa, para poder ser invocado a legítima defesa de terceiro, tem de ser um ataque
armado de natureza internacional.

No entanto, há dois pressupostos específicos característicos da legítima defesa de terceiro


que não constam do art. 51.º, mas que resultam do direito costumeiro e da jurisprudência
do TIJ, não só na interpretação do art. 51.º, mas também desse mesmo direito costumeiro
na construção da figura da legítima defesa, neste caso a legítima defesa de terceiro. Uma vez
mais, o TIJ no acórdão de 1986, relativo às atividade militares e paramilitares no Nicarágua,
pronuncia-se a propósito da legítima defesa coletiva ou de terceiro, sobre a necessidade do
consentimento do Estado atacado, ou seja, o Estado que foi atacado e que vai ser defendido
pelo uso da força do Estado que invoca a legítima defesa de terceiro, esse Estado tem de dar
o consentimento à intervenção do Estado que vai usar a força, invocando legítima defesa de
terceiro. O tribunal considera que o consentimento é suficiente, mas necessário, portanto, é
necessário que haja o consentimento, mas é também suficiente que haja o consentimento,
considerando o tribunal que não é necessário a formalização de um pedido de intervenção
em legítima defesa a um outro Estado. Nesse caso, o tribunal considera que é necessário o
consentimento, entende que esta necessidade do consentimento decorre do direito
costumeiro, estando aqui a aplicar a figura da legítima defesa de acordo com esta conceção
que o tribunal manifesta no acórdão de 1986, relativamente não só à origem, mas também
ao alcance no direito vigente da figura da legítima defesa. O TIJ entende ainda que é também
necessário, não só o consentimento, mas que é necessário que o Estado atacado se declare
vítima de um ataque armado, ou seja, não basta que um Estado que vai usar força, invocando
legítima defesa de terceiro, faça essa apreciação a título individual e unilateral. Assim, não
basta que um Estado, perante uma situação entenda que um outro Estado foi atacado e vai
usar do uso da força do direito de legítima defesa de terceiro, é necessário que esse outro
Estado se declare vítima de um ataque armado e que consinta na intervenção em legítima
defesa.

Ainda relativamente ao uso da força nas relações internacionais a título individual, a


resolução 1314, de 1974, designadamente no seu art. 7.º para a definição do conceito de
agressão, sendo que o seu acolhimento relativamente a esse contexto decorre de facto de
uma resolução anterior e de uma prática mais constante da Assembleia Geral, que diz
respeito não só à densificação do princípio da autodeterminação dos povos, mas mais
especificamente ao uso da força neste contexto, que decorre da resolução da Assembleia
Geral 2625, de 24 de outubro de 1970, que estabeleceu o que se pode considerar uma
neutralização da ilicitude do uso da força, designadamente no contexto de rebelião colonial
e da assistência militar que fosse fornecida a esses movimentos por terceiros. Portanto, no

130
Direito Internacional Público Mariana Esteves

âmbito dos movimentos de libertação há uma tomada de posição por parte da Assembleia
Geral, no sentido de não considerar ilícito o uso da força por parte de movimentos que
assumissem o exercício da autodeterminação dos povos e que, portanto, usassem da força
em circunstâncias em que não fosse dado outra possibilidade no exercício da
autodeterminação dos povos, considerando a Assembleia Geral que nessas circunstâncias o
uso da força não seria ilícito, decorrendo isto de algumas soluções interessantes do ponto
de vista jurídico.

Uma delas é, por um lado, considerar que o conflito armado, nestes casos, tem um carácter
internacional e não meramente interno, portanto, no caso do uso da força, por parte desta
rebelião colonial, para o exercício do direito à autodeterminação, estaria em causa não um
conflito de natureza interna, mas sim é reconhecida, pela Assembleia Geral, a natureza
internacional desse conflito. Isto é importante, na medida em que implica que o apoio
fornecido a esses movimentos por Estados terceiros não seja considerado ilícito por
violação do n.º7 do art. 2.º, designadamente por violação do princípio da não ingerência nos
assuntos internos. Com esta solução, internacionalizando esse conflito, reconhecendo a
dimensão internacional do conflito por estar em causa o princípio da autodeterminação dos
povos, permite-se aqui também considerar lícita a participação, o apoio de Estados terceiros
a esses movimentos, sem que essa atuação fosse considerada uma ingerência no domínio
interno do Estado – neste caso, do Estado colonizador. Estes dois elementos conjugados,
permitiriam também que, por sua vez, o Estado colonizador não pudesse invocar, contra os
Estados terceiros que auxiliassem esses movimentos, a legítima defesa designadamente por
haver esse tipo de atuação de um Estado através do auxílio a movimentos internos que
agora não são considerados mais movimentos internos, mas sim movimentos com carácter
internacional e, portanto, bloqueia a reação por uma via, permitindo/considerando lícita a
atuação de Estados terceiros que apoiassem esses movimentos e, por outro lado, se atuação
do Estado terceiro é lícita então não há uma agressão ilícita a que o Estado colonizador
possa reagir em legítima defesa.

Nesta resolução 2625, de 1970, há uma construção que tenta limitar a atuação jurídica dos
Estados colonizadores – isto numa primeira fase.

Posteriormente, a atuação da Assembleia Geral vai ser dirigida à limitação dos apoios ao
Estados colonizadores. Há aqui, por um lado, uma limitação muito grande da atuação
internacional destes Estados, que vêm internacionalizado o conflito, permitindo isso a
atuação de terceiros, e não permite a atuação em legítima defesa desse Estado contra a
atuação dos terceiros, mas há também a consideração como ilícita da atuação de apoio de
assistência por terceiros ao Estado colonizador, isso vai ser considerado uma assistência à
agressão. Há aqui uma evolução na Assembleia Geral relativamente ao contexto e ao
exercício da autodeterminação que tem esta dupla vertente.

Portanto, numa primeira fase dirigida ao estatuto, por um lado, à licitude do uso da força
neste contexto de exercício do direito de autodeterminação, por outro lado,
consequentemente considerar lícita a atuação de terceiros de apoio a esses movimentos,
impedindo a invocação da legítima defesa ou da ingerência como pressuposto de uma
atuação em legítima defesa contra esses Estados terceiros. Mais tarde, uma atuação aos
Estados que apoiem a ação dos Estados colonizadores contra esses movimentos de
libertação. Portanto, nesse contexto e afetando especificamente o caso português, no
contexto histórico, veja-se a resolução 312 do Conselho de Segurança, de 1972, que recusou
a assistência militar do Conselho nos territórios africanos sob administração portuguesa,

131
Direito Internacional Público Mariana Esteves

precisamente porque se considerou que essa a mesma correspondia já a uma violação do


princípio da autodeterminação dos povos, pelo que o Conselho rejeita uma intervenção
militar para salvaguardar o que seria a integridade de um Estado-membro.

Resolução pacifica de conflitos internacionais

Livro da Professora Maria Luísa Duarte


Artigo do Professor Carlos Blanco De Morais sobre o ilícito internacional e o uso da força

Há dois tipos de resolução pacífica de conflitos atendendo fundamentalmente aos meios


de solução, que podem ser:
1. Políticos – Além da negociação e da via diplomática corrente existem outras
formas em que intervêm terceiras entidades, que não apenas as partes em conflito,
que é o caso:
a. Dos bons ofícios – Há duas partes que não falam entre si, porque não
conseguem comunicar ou porque estão de relações diplomáticas suspensas
ou cortadas, sendo necessário que surja um terceiro que tenha a missão
essencialmente, falando com uma parte e com outra, de por as duas partes
a comunicar diretamente ou em negociação, eventualmente no início de
quem se presta a realizar esses bons ofícios, sendo certo que quem
desenvolve a missão de bons ofícios não propõe uma solução para o
conflito, tendo uma função interlocutória (ex. – caso entre Portugal e
Indonésia). O Professor CBM entende que as Nações Unidas passaram a um
estado subsequente que é já uma tarefa de mediação, mas começou como
bons ofícios. O Secretário Geral das Nações Unidas desenvolve com
frequência missões de bons ofícios, mas, muitas vezes, elas são
desenvolvidas por um terceiro Estado, no qual os outros dois Estados que
se encontrem em litígio confiem.
b. Mediação – Há uma entidade que intervém nas mediações propondo
soluções. Não se limite a um papel interlocutório, mas sim a propor e
discutir soluções, podendo esta atividade ser desenvolvida por um Estado
ou por via de uma atuação feita no âmbito das Nações Unidas, pelo
Secretário Geral ou por Alto Representante designado pelo mesmo
Secretário Geral (ex. – caso de Timor)
c. Do inquérito com possibilidade de conciliação – Há um litígio ao qual
sucede um inquérito, que pode ser feito pelas Nações Unidas ou por um
Estado, e depois é proposta uma solução conciliadora entre as partes que
se encontram em conflito (ex. – caso da Bósnia, em 1993, acompanho de
uma recomendação; caso da Somália, em que apenas se verificou um
inquérito)

Há formas mistas: muitas vezes, a mediação e o inquérito encontram-se ligadas entre si.

2. Jurisdicionais – Podem ser de dois tipos:


a. Arbitragem – Os tribunais arbitrais são tribunais, mas são tribunais
especiais porque não se trata de uma via judicial, mas de uma via
jurisdicional por via de um órgão que é composto por membros, que são
escolhidos pelas partes, e depois desses juízes escolhidos pelas partes, que

132
Direito Internacional Público Mariana Esteves

são os árbitros, esses juízes escolhem um juiz presidente. O Professor CBM


entende que estamos, assim, perante uma “estatização” do processo de
designação dos membros do tribunal, que irão deliberar sobre o litígio,
embora haja formas de arbitragem muito diversas: podemos ter um árbitro
único ou podemos ter um tribunal arbitral. Durante muito tempo,
nomeadamente no século XVIII e XIX, a arbitragem era feita através da
designação de um árbitro único e, muitas vezes, esse árbitro era o chefe de
Estado de um país estrangeiro, uma terceira parte relativamente ao
conflito. No fundo, o árbitro único significa que as partes em conflito
cometem a um terceiro Estado aparentemente neutro no conflito a função
de decidir através daquilo que equivale a uma sentença ou um laudo
arbitral a solução do litigio, obviamente com reporte a elementos
normativos de ordem jurídicos, isto é, a regras de Direito Internacional,
sem prejuízo de as partes poderem aceitar que o tribunal decida segundo a
equidade (medida de valor cenrada essencialmente na axiologia da justiça,
em que, muitas vezes, não se aplica o direito normativo decido
anteriormente, portanto, o costume e tratados, mas ajusta-se a decisão à
realidade concreta sobre a qual importa decidir dentro de critérios mais
amplos de justiça, dando isso uma grande discricionariedade ao tribunal
para decidir politicamente ou para dobrar a norma jurídica aos factos) –
ex.: Portugal e Reino Unido. Por outro lado, temos os tribunais arbitrais, em
que cada as partes de cada Estado nomeiam um número par ou impar e o
tribunal fica com um número par, sendo que para haver um desempate, os
árbitros escolhidos, entre si, designam um outro árbitro que presidirá às
sessões do tribunal arbitral. Muitas vezes, havendo dúvidas das suas
competências têm a chamada “competência da competência”, que é a
faculdade de decidir sobre a sua própria competência em caso de dúvida.
Se as partes não tiverem escolhido o direito aplicável no compromisso
arbitral ou tiver havido outra forma de escolha entretanto paralelamente
feita entre as partes, cabe aos árbitros fazê-lo, devendo ainda constar do
compromisso arbitral, se o tribunal pode ou não decidir segundo a
equidade. A arbitragem pode ser facultativa, quando os Estado decidem
submeter um litígio a essa via de resolução de conflitos (as partes fixam
livremente um compromisso arbitral), ou obrigatória, quando está prevista
em tratado
b. Intervenção de tribunais em sentido próprio
i. Tribunais ad oque
ii. Tribunais criados por tratado que servem organizações
internacionais – O tribunal mais importante que julga litígios
entre Estados é o TIJ, que é um órgão das Nações Unidos. Este deve,
em princípio, julgar conflitos relacionados com convenções que
tenham sido registadas nas Nações Unidas (herdeiro do Tribunal
Permanente de Justiça Internacional, que teve uma atividade
relativamente efémera no âmbito de organizações internacionais
que já se extinguiram). Aqui, os juízes não estão a atuar em nome
dos Estados, havendo uma eleição que é feita pela Assembleia Geral
das Nações Unidas e pelo Conselho de Segurança com base em
listagens, ou seja, os juízes não são agentes do Governo. Quem tem
qualidade para requerer são, de acordo com o art. 34.º, parágrafo
1.º do Estatuto do TIJ, Estados-Membros das Nações Unidas.

133
Direito Internacional Público Mariana Esteves

Contudo, para que possa atuar é necessário que haja


consentimento expresso do Estado contra o qual se interpõe uma
determinada ação. Quanto a princípios e tramites processuais há
sempre uma petição apresentada pelo Estado que resolve propor
uma ação. O processo envolve a possibilidade de indeferimento
liminar por parte dos juízes, pois podem não estra presentes os
requisitos processuais que estão no estatuto do TIJ, podendo
também os juízes ainda decidir sobre a competência dos tribunais e
de impedimentos, por exemplo, por terem ligações a uma das
partes. As partes intervêm através de alegações sobre a forma
escrita e oral. Alem disto, o Presidente tem voto de qualidade e o
tribunal decide por maioria, tendo a decisão valor obrigatório e
definitivo.

134

Você também pode gostar