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Estratégias de visibilidade artísticas em

ocupação de espaços públicos e a cultura


BDSM.
Gabriela Pereira de Freitas e Pablo Souza
Universidade de Brasília – Faculdade de Comunicação

Resumo Abstract
Este estudo aborda a relação entre o This study addresses the relationship
saber e poder na constituição subjetiva do between knowledge and power in the
sujeito no contexto BDSM, a partir da subjective constitution of the subject in the
cartografia como objetivo de discutir como são BDSM context, based on cartography with the
negociadas a ocupação do espaço público nas aim of discussing how the occupation of public
produções discursivas das identidades sexuais space is negotiated in the discursive
e suas próprias dinâmicas de espacialização na productions of sexual identities and their own
cidade. Com base nos estudos considerados dynamics of spatialization in the city. Based on
pós-estruturalistas o estudo destaca a relação theoretical-methodological studies considered
entre a opressão e a repressão no espaço post-structuralist, the study highlights the
urbano, e como essas dinâmicas sociais e relationship between oppression and repression
políticas são reproduzidas e internalizadas in urban space, and how these social and
pelos indivíduos, e de que forma isso afeta sua political dynamics are reproduced and
subjetividade. O BDSM é utilizado como internalized by individuals, affecting their
objeto de pesquisa, particularmente no que se subjectivity. BDSM is used as a research
refere às narrativas que constituem a object, particularly with regard to the
identidade e fundamentam o estilo de vida dos narratives that constitute the identity and
praticantes. Bem como a importância das underlie the practitioners' lifestyle. As well as
terminologias no universo BDSM, a the importance of terminologies in the BDSM
constituição dos corpos e das subjetividades universe, the constitution of bodies and
nas práticas, e a utilização de vestimenta, subjectivities in practices, and the use of
objetos e símbolos específicos de prazer e a specific clothing, objects and symbols of
frequência a certos lugares e adoção de certas pleasure. as well as going to certain places and
condutas, se caracteriza como uma forma de adopting certain behaviors.
prática de liberdade ao se opor abertamente ao
poder exercido sobre esses sujeitos. Keywords: Biopower, subjective
constitution, cartography, urban space,
Palavras-chave: Subjetividade, Bdsm, sexuality.
cartografia, espaço urbano, sexualidade.
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Introdução
Este estudo aborda o BDSM como um estilo de vida complexo que desafia as normas
de poder estabelecidas. Examina como as manifestações discursivas e identidades sexuais são
influenciadas por agenciamentos urbanos contemporâneos, além das estratégias artísticas que
buscam aumentar a visibilidade dessas identidades. O objetivo é compreender como as
relações de poder e conhecimento afetam as dinâmicas espaciais.

Nesse contexto, os autores pós-estruturalistas desempenham um papel fundamental ao


desafiar as verdades estabelecidas e os modos de vida convencionais. Por meio da análise da
ocupação urbana e da produção de conhecimento relacionado ao erotismo e ao corpo, eles
promovem uma reavaliação crítica desses modelos, ao desconstruir as estruturas de poder
presentes na sociedade. Essa abordagem abre caminho para uma apreensão abrangente das
dinâmicas de poder e conhecimento que permeiam o espaço urbano e assimilam suas como
experiências individuais e coletivas.

A interseção pública entre corpo, sexualidade e espaço neste contexto subversivo


coloca em evidência a necessidade de considerar a dimensão subjetiva, ao desafiar os padrões
e as normas sociais e políticas relacionadas a esse contexto. Conforme proposto por Rolnik
(2007), as dinâmicas sociais e políticas apresentadas são reproduzidas e internalizadas pelos
indivíduos, geradas na assimilação de normas e valores que legitimam relações de poder. A
relação entre opressão e repressão pode ser interpretada como uma estratégia de poder que
valida certos conhecimentos e práticas, especialmente no que diz respeito ao controle e
governança dos corpos no espaço público.

No contexto urbano, a interação micropolítica tem um impacto significativo na


percepção e experiência pessoal, revelando a seletiva validação de certos conhecimentos
como estratégia de poder. Seguindo as ideias de Foucault, compreendemos que o poder se
manifesta em relações microfísicas de conflito social, onde o discurso desempenha um papel
central na construção da verdade em questões de poder, conhecimento e sexualidade. Essa
influência do poder, presente nos indivíduos, afeta profundamente como eles percebem e
vivenciam seu ambiente. Essa perspectiva oferece uma abordagem importante para
compreender como conhecimentos específicos são legitimados e estabelecem estratégias de
poder distintas.
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Neste cenário, encontram- se os praticantes de BDSM, que constituem o objeto de


estudo e observação desta pesquisa, particularmente no que se refere às narrativas que
constituem sua(s) identidade(s) e fundamentam seu estilo de vida. BDSM é um acrônimo que
deve ser lido sempre em pares, ou seja, BD significa Bondage e Disciplina, DS, Dominação e
Submissão, e SM, Sadomasoquismo. O conceito de sexualidade ainda é erroneamente
confundido com perversões ou desvios sexuais. Entretanto, pensar essas práticas como de
cuidado de si ou um encontro fortuito entre saberes buscando romper com a norma, também
se está refletindo sobre as possibilidades de subjetivação dos corpos como uma forma de
resistência ao modelo hegemônico de sexualidade. Esse modelo rotulou aqueles que
desafiaram a matriz sexual definida por Butler (2003). A constituição subjetiva nesse processo
ocorre por meio de dinâmicas, com frequência em determinados lugares e adoção de
comportamentos específicos.

Em 1886, Krafft-Ebing catalogou comportamentos sexuais desviantes, incluindo o


"masoquismo", posteriormente classificado como parafilia. O termo "perversão" foi
substituído pela mais científica “parafilia” devido ao seu caráter moralmente carregado. Freud
expandiu o conceito de masoquismo, vendo-o como sintoma patológico, forma de perversão e
função estruturante do eu. Leituras pós-freudianas consideram o masoquismo como modo de
subjetivação para lidar com o desamparo. No BDSM, os termos sadismo e masoquismo foram
popularizados, mas substituídos por "parafilia" devido à sua carga moral. A terminologia é
essencial para identificar desejos e práticas fetichistas, envolvendo a constituição dos corpos e
das subjetividades com o uso de vestimentas, objetos e símbolos específicos.

A estigmatização de certas práticas sexuais, classificadas como transtornos parafílicos


por Freud, Lacan e outros profissionais da psicologia e psicanálise, ainda que a definição do
transtorno fetichista não difira significativamente das categorias parafílicas relacionadas a
crimes sexuais, algumas dessas práticas permanecem enquadradas como transtornos no DSM-
5. Tal circunstância dificulta a aceitação social e a busca por uma percepção saudável, nesse
sentido em contrapartida evitando o uso de termos psiquiátricos negativos optando por
designar suas práticas como BDSM1. Essa escolha reflete a busca por uma subjetividade não

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BDSM" é usado para se referir a práticas sexuais que não são patologizantes, mas envolvimento dor/prazer,
dominação/submissão, e podem incluir sexo genital. As relações BDSM diferem da sexualidade convencional,
pois não são centradas na penetração/genitalidade, mas sim em luxuosas performances que envolvem objetos e
vestimentas. "Couro" é um termo em desuso, enquanto "cena" é usado para descrever a comunidade e os locais
frequentados pelos praticantes de BDSM.
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conformista e resistência entendida como um processo de descolonização, no qual os


indivíduos se apropriam de seus próprios territórios e rejeitam as categorias de normalidade e
patologia impostas externamente.

A ênfase no aspecto lúdico no BDSM simbólica, indicando que as atividades são


encenações consensuais e não violência real. Reforçadas por elementos teatrais e
performáticos, ao estabelecer o princípio ‘’SSC’’ (São, Seguro e consensual) enfatizando que
não são violência real. Essa fantasia permite a subversão de hierarquias e revela as
contradições da ordem social, servindo como modelo para abordagens sociais e institucionais.
O BDSM tem uma estrutura hierárquica com papéis específicos, como Dominador(a),
submisso(a), escravo(a), Mestre/Mistress, Mentor e Deusas/Rainhas. As relações D/s são
marcadas por assimetria de poder, onde o Dominador(a) é venerado e o submisso(a) renuncia
à liberdade para servir. As relações SM envolvem papéis de Top/sádico e botton/masoquista.

No BDSM, as narrativas que moldam a identidade e suas condutas são vistas como
uma forma de resistência ao cis-heteropatriarcado, caracterizado pela liberdade e diminuição
da alteridade. Teóricos como Foucault (1982), apoiam essa visão, entendendo o BDSM como
uma forma prática de liberdade, opondo-se ao poder exercido sobre os praticantes. Essa
resistência questiona a coerência histórica dos discursos estabelecidos e se apresenta como
uma força motriz ao desestabiliza e assegurar o lugar da subversão. A compreensão da
sexualidade no BDSM vai além dos estereótipos, reconhecendo o prazer como uma força
transcendente. O BDSM é visto como um teatro íntimo, baseado em um contrato de
igualdade, desvinculando-se das matrizes que formaram como sujeitos e agentes fixos da lei
que os antecederam.

Metodologia
A pesquisa baseada no pós-estruturalismo, realizada na cidade de Brasília, teve como
propósito compreender as reivindicações dos corpos dissidentes e seus lugares de existência,
bem como investigar como a cartografia interfere nos imaginários desses sujeitos pela cidade.
Ao adotar uma abordagem qualitativa baseada no pós-estruturalismo, este projeto de pesquisa
científica utilizou a análise discursiva e cartográfica como principais técnicas de investigação
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para compreender as reivindicações dos corpos dissidentes e suas relações com os espaços
ocupados pela comunidade BDSM.

A análise discursiva foi conduzida por meio do exame de narrativas, relatos de


experiências e discursos presentes na literatura e em fontes relevantes sobre o BDSM,
permitindo a compreensão dos discursos e significados atribuídos a esse estilo de vida.
Complementarmente, a análise cartográfica consistiu na identificação e mapeamento dos
espaços ocupados pela comunidade BDSM, considerando sua relação com as práticas e
vivências da sexualidade, o que contribuiu para entender como os espaços influenciam as
dinâmicas e abrigam essa comunidade.

Para embasar a análise e interpretação dos dados coletados, a pesquisa fundamentou-se


em teorias e conceitos de Foucault, Deleuze e outros estudiosos relevantes. Essas perspectivas
permitiram uma compreensão aprofundada das relações entre poder, sexualidade, espaço e
identidade, especialmente no contexto das dissidências sexuais e de gênero. No entanto,
observou-se que a vigilância, enquanto forma de poder disciplinar, pode ser utilizada como
um instrumento de exclusão e promoção de desigualdades sociais, principalmente para
aqueles que não se enquadram nos padrões binários de gênero.

Para atingir esse objetivo, foram conduzidas entrevistas semiestruturadas com


praticantes do BDSM, além de observações em oficinas e eventos relacionados às práticas. A
seleção dos participantes considerou a diferença de gênero, teve em uma amostra de seis
participantes, sendo três mulheres e três homens, todos com idades entre 25 e 35 anos. As
entrevistas abordam questões relacionadas à experiência no BDSM em eventos e festas no
espaço público, à percepção do próprio corpo e à relação com a sociedade.

A análise dos dados coletados teve como objetivo promover uma reflexão crítica sobre
as formas de controle, exclusão e resistência presentes na sociedade contemporânea,
especialmente no que se refere às práticas fetichistas. Nesse sentido, a cartografia
desempenhou um papel fundamental, sendo uma metodologia teórico-metodológica
alternativa com aplicações em diversos campos, como a Psicanálise e a Comunicação.

Influenciada pela filosofia de Deleuze e Guattari, a cartografia adotou uma abordagem


processual, acompanhando os fluxos e evitando a separação entre objeto e sujeito. Ao
explorar as particularidades de diferentes territórios, essa abordagem criou uma área dinâmica
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de estudo, destacando a importância das conexões e da multiplicidade, desafiando as


motivações tradicionais e proporcionando uma compreensão flexível das dinâmicas sociais.

A produção de conhecimento cartográfico foi concebida como um processo não linear,


guiado pelo debate e percurso metodológico desenvolvido pelo pesquisador ao se envolver
com o objeto de estudo. O cartógrafo, nesse sentido, habita um território diferente,
processando novos conhecimentos e estabelecendo um novo processo de produção de
conhecimento. Além disso, a pesquisa cartográfica foi além da simples coleta de dados,
buscando atualizar virtualidades e compreender as interrelações e conexões do objeto de
estudo com o mundo. Essa abordagem pode superar a lógica linear e estática, revelando as
dinâmicas, fluxos e intensidades presentes no objeto de pesquisa.

A experiência cartográfica aprofundou o modo de olhar e fazer pesquisa,


desmistificando fórmulas prontas e tornando visíveis os caminhos trilhados e as múltiplas
perspectivas que emergiram ao longo do estudo. Em suma, a cartografia como método de
estudo se fundamentou na filosofia da multiplicidade, adotando uma perspectiva inventiva e
não linear para compreender ampla e dinamicamente o objeto em estudo.

Entre as marcas narrativas e ocupações


Mapear a história da cultura BDSM e sua comunidade pode ser desafiador devido à
escassez de trabalhos produzidos sobre o tema e à limitada disponibilidade de fontes em todo
o mundo, o que dificulta a criação de um percurso linear. Nesse sentido, é necessário
concentrar-se nos relatos de experiências de diferentes grupos como parte da narrativa
histórica. Ao abandonar essa noção linear como um ordenado de fatos baseado em fontes
legítimas numa temporalidade sequencial ou dialética e produtora de "verdades", trazem
perspectivas de sobrevivência ao fundarem um conjunto de imagens de resistência. De acordo
com Foucault, os eventos históricos são construções discursivas e narrativas, levando-nos a
uma temporalidade híbrida de sedimentação e perversão. A imagem sobrevivente dos
modelos BDSM desafia a cronologia histórica e surge a partir dos testemunhos de
performances que rompem com a norma.

A análise e discussão da sexualidade no contexto do BDSM revela a interconexão


entre narrativas e espaços ocupados. Ao investigar as influências históricas desse universo, é
possível compreender como a comunidade BDSM representa e expressa suas vivências por
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meio de fluxos e encontros nos quais as fronteiras se dissolvem, as diferenças se entrelaçam e


a diversidade se manifesta. Deleuze argumenta que os espaços organizados em conformidade
normativa passam por transformações quando novas formas de expressão e práticas que
evolvem o corpo e seus sentidos emergem. Esse processo desencadeia uma
desterritorialização, pressupõe eixos e orientações pelos quais se desenvolve inovação dentro
das frestas que esses indivíduos ocupam sua agência e reafirmando a importância da liberdade
e consentimento nas relações do corpo.

Enquanto Freud e Krafft-Ebing debatiam as pulsões sádicas e masoquistas e


consideravam fetiches ou como exceções à norma, Deleuze propõe o conceito de rizoma, um
modelo de pensamento que valoriza conexões múltiplas, não hierárquicas. Destaca-se a
importância de compreender poder, repressão na sexualidade, analisar como discurso e
controle social influenciam condutas e prazer cotidiano, rejeitando visões reducionistas.
Assim, é possível reinterpretar práticas sadomasoquistas, reconhecendo agência e importância
da liberdade e consentimento nas relações eróticas.

A teoria cartográfica enfatiza o mapeamento e compreensão das complexas relações


entre elementos e territórios. No contexto da comunidade Leather do BDSM, sua formação e
consolidação estão enraizadas na luta pelos direitos de igualdade entre pessoas do mesmo
sexo, resultando em uma identidade vibrante e dinâmica, especialmente nas áreas urbanas. A
relação estabelecida pela comunidade com o reconhecimento dos espaços pode ser associada
à concepção de heterotopia de Foucault, espaços que existem além das estruturas normativas
da sociedade, onde diferentes regras e práticas são estabelecidas. Os espaços ocupados pela
comunidade Leather podem ser entendidos como heterotópicos, representando territórios onde
as normas sociais convencionais são desafiadas e reconfiguradas

O declínio subsequente da cultura clássica do BDSM trouxe desafios significativos


devido a políticas de higienização, incêndios criminosos e disseminação de doenças
sexualmente transmissíveis. No entanto, a comunidade BDSM demonstra resiliência e
capacidade de evolução. Deleuze, em sua teoria do rizoma, destaca a interconectividade e a
capacidade de adaptação das comunidades, o que se aplica à persistência do BDSM. A
abordagem cartográfica permite explorar as formas de resistência e estratégias adotadas pela
comunidade para se manter e florescer, mesmo diante da obsessão social das normas
consideradas hetero, cristãs e normativas.
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A comunidade BDSM enfrenta restrições e exclusão de corpos dissidentes devido à


repressão sexual e à lógica heterossexual. O discurso ético estigmatiza e reprime os desejos,
negando a diversidade. Foucault destaca a importância de questionar essas restrições e
promover uma cidade livre. Espaços abjetos permitem a expressão livre, mas críticas
conservadoras reforçam a marginalização. O BDSM, ao estabelecer uma relação afetiva com
o espaço, empodera e libera os indivíduos das normas sociais, potencializando seus desejos.
Essa libertação ocorre ao se deslocar das matrizes sociais e ao reconhecer-se como sujeito
consciente das cláusulas do sistema.

Suely Rolnik (2007), discute que os corpos ‘’desviantes’’ são responsáveis por
reconfigurar e ocupar esses espaços nos centros urbanos em que as identidades sexuais são
exercidas, negociadas e organizadas espacialmente nos centros urbanos onde essa presença e a
rejeição do gozo único se revela como fundamental para a produção de uma cidade mais
diversa e inclusiva pelo seu Modus operandi e sua redistribuição intencional do poder.

A emancipação do corpo como fonte de poder e prazer, desafiando as dinâmicas de


controle e opressão social, é discutida por Foucault em "Vigiar e Punir". Ele destaca que o
poder não é centralizado, mas permeia todas as relações sociais, influenciando a disciplina e
regulação dos corpos. No contexto capitalista, a exploração dos corpos como recursos
subjugados a fins lucrativos, resultando na redução da autonomia e liberdade individual.
Butler argumenta que a repressão dos desejos sexuais e práticas não convencionais é imposta
por uma sociedade conservadora e religiosa, ressaltando a importância de reconhecer
diferentes práticas como forma de resistência e emancipação.

Conforme definido por Deleuze, a territorialidade envolve o estabelecimento de


fronteiras e espaços defendidos por um grupo ou indivíduos. Nas festas BDSM, esses espaços
designados funcionam como territórios nos quais os participantes têm a oportunidade de
socializar e se envolver em atividades específicas. Por exemplo, há uma área dedicada às
práticas que oferece equipamentos para amarrar ou restringir os participantes, permitindo a
exploração de seus desejos e a participação em dinâmicas de poder consensuais. O
consentimento e o respeito aos limites são princípios fundamentais tanto para jogadores
quanto para observadores, que circulam pelo território mapeado, desenvolvendo sua
percepção dos limites e da privacidade dos outros. Essas práticas coletivas, alinhadas com a
ênfase na subjetivação e exploração de novos territórios físicos e simbólicos, na criação de
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modos alternativos de existência, promovem um ambiente propício para a troca de


experiências, aprendizado mútuo e fortalecimento da comunidade, ao permitir a construção de
relacionamentos sustentáveis além vivência enriquecedora dentro desse meio. A resistência e
a territorialidade revelam um papel importante contra os esforços do sistema em silenciar as
possibilidades de prazer e controle. Embora festas como a Lust2 sejam mencionadas como
exemplos centralizadores, é destacada a necessidade de construir uma comunidade que vá
além de talvez uma simples exorcização de desejos e demônios, buscando uma abordagem
mais abrangente.
A partir das perspectivas de Deleuze e Foucault, compreender-se que os espaços
direcionados as práticas apesar de ser influenciados por uma dimensão comerciail e
organizacional, permite à comunidade compartilhar desejos, práticas e discutir coletivamente.
Essas interações têm aspectos positivos, como festas (play parties), eventos com
performances, oficinas e encontros de prática livre, além de sessões temáticas., mas também
implicam responsabilidade e sustentam uma economia relacionada à aquisição de
equipamentos e participação em eventos temáticos.
Na cartografia das organizações consideradas eróticas e dissidentes, numa abordagem
não-representacional, podemos compreender os espaços organizacionais da sociedade
situados à margem, relacionam-se diretamente como um fenômeno reflexo da expressão de
resistência socialmente construído da sexualidade. A experiencia dessa multiplicidade
enfatiza a captura intensa das relações que os atravessam e surgem como uma catarse
transgressiva dos limites espaciais se revela como uma fonte de prazer. o que torna difícil
controle e o silenciamento, abrindo um leque de possibilidades para a existência da expressão.
Nesse emaranhado rizomático, o prazer floresce como um devir constante e indomável.

Por sua vez, o conceito de heterotopias como lugares concretos que possuem uma
função específica e estão fora do espaço habitual constitui-se como espaços de exceção,
abrindo possibilidades de vivências e experiências diversas. Ambas as abordagens desafiam
as concepções tradicionais de espaço e rompem com as representações fixas e
unidimensionais. Tanto a cartografia quanto as heterotopias buscam explorar a multiplicidade,
a complexidade e a diversidade presentes nos territórios.

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A Lust é uma festa brasiliense que surgiu em 2018, inspirada nas baladas selvagens da Europa, especialmente
no Kit Kat Club em Berlim. Com um clima libertário, a festa promove a livre expressão da sexualidade e permite
que o uso de roupas seja opcional. Além disso, destaca-se pela música eletrônica e apresentações teatrais, muitas
vezes com cunho político, características do universo underground.
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Diante disso, ao explorar as múltiplas dimensões e relações presentes nas heterotopias,


revelando as conexões e os fluxos que as tornam espaços heterogêneos, é possível
ressignificar utopicamente os modos de vida. Essa ressignificação ocorre por meio de rupturas
proporcionadas por esses espaços, que oferecem exemplos claros dessa transformação.
proporcionando uma visão mais rica e múltipla do real.

A partir das análises discursivas do meio BDSM, que envolvem atividades sexuais e
estilos de vida alternativos que exploram poder, controle e prazer através de jogos de
dominância e submissão, este artigo traz a importância de um ruído necessário para uma
escuta essencial do próprio erótico permitindo assim uma compreensão política da
sexualidade como sujeitos. Conforme afirmado por Bataille. O erótico se revela para aqueles
que ultrapassam os limites das sexualidades convencionais e se aventuram em territórios
muitas vezes conflitantes com a verdade sexual. A relação entre nossa sexualidade padrão e a
subversiva é notavelmente tensa e quase inalcançável.

Resultados
Este estudo buscou investigar as ocorrências e experiências de indivíduos engajados
em práticas BDSM, a fim de compreender melhor as motivações, significados e impactos
dessas vivências. Os participantes forneceram respostas valiosas, destacando diversos
aspectos relacionados a esse contexto. Quando questionados sobre a definição do BDSM, os
emocionados expressaram uma visão comum. Eles descrevem o BDSM como uma prática que
promove o autoconhecimento, o empoderamento sexual e o jogo consensual. Além disso,
enfatizaram a exploração de desejos, limites e formas originais de se relacionar.

A maioria dos participantes considerou o BDSM mais como um hobby do que um


estilo de vida integral. Devido a restrições de tempo, eles concordaram em praticar BDSM em
média seis horas por semana. Essa limitação de tempo pode impactar a intensidade e
frequência das práticas. Eles também discutiram a possibilidade de o BDSM ser uma forma de
emancipação do corpo. Eles acreditam que, ao explorar prazeres além das funções biológicas
básicas, o BDSM permite uma afirmação da própria humanidade. A prática é vista como uma
oportunidade de conhecer e desafiar os próprios limites, tanto fisicamente quanto
espiritualmente.
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A percepção da sociedade em relação ao BDSM foi considerada predominantemente


negativa pelos participantes. Eles observaram que muitas pessoas têm uma visão errônea,
estigmatizada e baseada na falta de conhecimento sobre o assunto. Essa falta de compreensão
leva a julgamentos precipitados e preconceito em relação às práticas BDSM. Quanto às
motivações para praticar BDSM, os aprenderam destacaram o prazer como o fator principal.
A oportunidade de experimentar satisfeito e experiente que não são encontrados em
experiências sexuais convencionais foi citado como um dos principais atrativos.

Os participantes concordaram que o BDSM pode ser tanto exploratório quanto


abusivo. Eles reconhecem que, embora muitas práticas BDSM sejam saudáveis, respeitosas e
consensuais, existem casos em que ocorrem abusos ou comportamentos perigosos. Essa
dualidade ressalta a importância do conhecimento, da responsabilidade e do respeito mútuo
dentro das práticas BDSM. Para divulgar o BDSM de forma segura e saudável, os
encorajados mencionaram a importância do boca a boca e das indicações de pessoas que
seguem para iniciantes. Além disso, eles destacaram que assuntos jornalísticos responsáveis,
que apresentam o BDSM de maneira informativa e mencionam profissionais e comunidades
acolhedoras, contribuíram para uma divulgação mais segura.

Em relação à vivência do BDSM, os participantes mencionaram que a prática pode ser


tanto individual quanto coletiva. Eles oferecem a oportunidade de explorar suas fantasias e
desejos de forma solitária, bem como a possibilidade de compartilhar experiências com outros
praticantes. Mencionaram também a existência de locais e eventos em suas cidades que
oferecem condições propícias para encontros e práticas relacionadas ao BDSM.

Quanto à participação em comunidades BDSM, os experimentaram experiências


diversas. Embora viver em comunidade possa apresentar desafios, muitos destacam a
oportunidade de conhecer pessoas maravilhosas e aprender com elas, mesmo que nem todos
os relacionamentos se tornem amizades duradouras. Os participantes sugeriram diversas
formas de organização e discussão coletiva dentro da comunidade BDSM. Eles mencionaram
festas, eventos com performances, oficinas, encontros de prática livre e sessões temáticas
como meios eficazes de promover diálogos enriquecedores e compartilhar conhecimento.

Em conclusão, essa análise das respostas se mostrou expressiva sobre o BDSM. Os


destaquem o autoconhecimento, o empoderamento e o prazer como aspectos positivos, mas
também reconheceram os desafios e os riscos envolvidos. Esses resultados podem contribuir
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para uma melhor compreensão do BDSM por profissionais de saúde, educadores e


investigadores, além de auxiliar a comunidade BDSM na busca por práticas mais seguras e
saudáveis.

Considerações finais
Podemos considerar o erótico como um domínio que emerge quando nos lançamos
sobre o abismo situado entre a consciência de nosso eu e o caos de nossos desejos mais
intensos. Essa dimensão constitui uma força de resistência da arte, que se encontra no
encontro entre saberes e nos movimentos imprevisíveis, ao abraçar o corpo livre e incorporar
a experiência tanto na concepção quanto na vivência como uma forma de performance,
contrapondo-se às normas impostas pelo universo dos chamados "normais".

Apesar dos elementos do BDSM apresentarem uma linha de fuga, não estamos livres
dos dispositivos que facilitam o agenciamento do poder. Aprendemos a buscar a normalidade
e adotar posturas corretas para evitar punições e obter credenciais, limitando-nos aos formatos
restritos das dinâmicas heterossexuais e a uma hierarquia linear de papéis. Entretanto, essa
filosofia corpográfica se diferencia ao promover a equivalência dos corpos, a liberdade do
desejo e a redistribuição intencional do poder. Ao estudar os comportamentos diante de novas
formas de viver, falar, pensar e explorar a sexualidade, identificamos que a sexualidade
considerada "normal" também é um teatro. Nesse contexto, ao interditar as diferenças de
poder historicamente construídas para manter a dominação, emerge um lugar de poder
relativamente submisso e civilizador, buscando controlar e direcionar o desejo.

Ao rejeitarmos o caminho convencional singular do desejo cultural e questionarmos as


verdades ligadas a um único tipo de prazer, somos capazes de experimentar uma alegria
escatológica ao explorar livremente todos os fluidos e desejos na experiência mais ampla e
intensa possível. Isso se alinha com a visão rizomatica, que busca explorar as multiplicidades
e conexões sem seguir uma sequência predefinida. um domínio natural, que se manifesta na
experiência da transgressão, pode ser vivenciado por meio do encontro entre conhecimentos e
práticas não lineares.Embora não se reduza à vestimenta a imposição de determinados modos
de viver, sentir e existir no mundo como se fossem os únicos possíveis contribui para a
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construção de uma monocultura sexual e afetiva3, refletindo a forma como concebemos nossa
subjetividade. Como resultado, observamos que a heterocissexualidade como mecanismo é
apenas uma entre várias possibilidades, mas é tratada como a única verdadeira, estabelecendo
uma monocultura simbólica que define se concordamos ou não com práticas sexuais e
afetivas, muitas vezes às custas da repressão dos afetos e da destruição dos espaços onde o
corpo é visto como inimigo da mente. O avanço das imposições em nossas imaginações e
pensamentos também resulta em vigilância e punição, tornando até mesmo o ato de imaginar
uma infração.

A sexualidade moderna está fundamentada na obrigação de transformar o sexo em um


discurso pautado pelas regras da ciência da confissão ou pela ortopedia moral, 4onde o
erotismo contudo, visto como algo subversivo ancorada na racionalidade moderna. No
entanto, a experiência da transgressão vivenciada desafia a ideia de autossuficiência e expõe
as feridas e traumas que impactam nossas subjetividades. As narrativas discursivas
contemporâneas do BDSM são exemplos reveladores desse fenômeno, ilustrando a natureza
do rizoma, em que a identidade não se limita apenas às raízes, mas também às relações.

Isso ocorre porque o pensamento errante é simultaneamente um pensamento relativo,


transmitido e relatado. Ao contrário da situação de exílio, a errância implica na negação de
qualquer polo fixo e a abertura para múltiplas relações, ultrapassando as imposições das
potências econômicas e as pressões culturais. Ela se opõe legitimamente ao totalitarismo das
monoculturas afetivas e à autorização simbólica, ao reconhecer a dimensão política do sexual
e considerar os sujeitos como agentes políticos reais capazes de pensar coletivamente e
intervir na busca por sua reparação.

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O conceito de "Monocultura" foi desenvolvido pela autora Geni Núñez e está relacionado à uniformidade de
pensamento e perspectivas que prevalecem em certos contextos sociais, culturais e políticos. Núñez propõe uma
analogia ambiental para abordar a exclusividade nos relacionamentos afetivos. "A monocultura só existe quando
há negação da diversidade. A monogamia também se enquadra nesse aspecto, mas direciona outras formas de
relacionamento. A visão colonial cria vários binarismos, impactando nisso. A autora menciona a ideologia
colonial, ao se referir ao que denomina como sistema de organizado em diversos eixos, como a monocultura da
fé (no monoteísmo cristão), a monocultura dos afetos (na monogamia), a monocultura da sexualidade (no
monossexismo) e a monocultura da terra. A imposição do "Um" na monocultura antagoniza com o princípio da
floresta, que necessariamente é múltiplo" (NÚÑEZ, 2021).

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Michel Foucault, Vigiar e punir: história da violência nas prisões, Petrópolis, Vozes,1987.
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Referências
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transtornos mentais: DSM-5. 5a ed. Porto Alegre: Artmed, 2014.
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