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DOI: 10.1590/1413-812320182310.

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Sexualidades dissidentes: um olhar sobre narrativas identitárias

ARTIGO ARTICLE
e estilo de vida no ciberespaço

Dissident sexualities: an outlook on identity narratives


and lifestyle in cyberspace

Vera Lucia Marques da Silva 1

Abstract The subculture of BDSM (Bondage, Resumo A subcultura BDSM (Bondage, Disci-
Discipline, Domination, Submission, Sadism, plina, Dominação, Submissão, Sadismo, Maso-
Masochism) is organized around dissident erotic quismo) organiza-se em torno de práticas eróticas
practices based on consent. Starting with a net- dissidentes, pautadas no consentimento. A partir
nography survey, this study seeks to understand de uma netnografia, este estudo visa apreender
how adepts of BDSM present themselves from como os adeptos de BDSM se apresentam do ponto
the standpoint of identity in cyberspace. In this de vista identitário no ciberespaço. Neste sentido,
sense, blogs and sites related to BDSM, as well as blogs e sites relacionados ao BDSM foram acom-
social networks, have been observed. Added to this panhados, bem como redes sociais. Somam-se a
material are interviews of adepts in other media. este material, entrevistas de adeptos em outras
Techniques of Saturation Sampling and Discourse mídias. Técnicas de amostragem por saturação e
Analysis were applied. By eroticizing power, they Análise de Discurso foram aplicadas. Ao erotiza-
construct erotic games based on hierarchies, where rem o poder, constroem jogos eróticos pautados em
one individual occupies the role of domination hierarquias, onde um indivíduo ocupa o papel de
and the other of submission. However, beyond a dominação e o outro, de submissão. Todavia, para
mere sexual role, the adepts argue that both dom- além de um mero papel sexual, os adeptos defen-
ination and submission are part of their own na- dem que tanto a dominação quanto a submissão
ture, revealing an essentializing and instituting fazem parte de sua própria natureza, revelando
discourse, which they claim to be a sexual orien- um discurso essencializador ou instaurando o que
tation. From specific scenarios, dress and sexual afirmam ser uma orientação sexual. A partir de
paraphernalia, their practitioners relive their so- cenários, vestimentas e apetrechos sexuais específi-
cial traumas, particularly those involving gender cos, seus praticantes ressignificam traumas sociais,
oppression. In spite of the stigma that is attributed particularmente os que envolvem a opressão de gê-
to the subjects involved, their narratives echo from nero. A despeito do estigma que marca os sujeitos
1
Programa de Pós- some of the pillars of contemporary subjectivity, envolvidos, suas narrativas bebem de alguns dos
Graduação em Saúde such as valuation of experience, of self-develop- pilares da subjetividade contemporânea, dos quais
Pública, Escola Nacional ment, and of the maximization of pleasure. se destaca, a valorização da experiência, do desen-
de Saúde Pública Sérgio
Arouca, Fiocruz. Av. Brasil Key words Eroticism, Sexuality, BDSM volvimento de si e da maximização do prazer.
4036/700, Manguinhos. Palavras-chave Erotismo, Sexualidade, BDSM
21040-361 Rio de Janeiro
RJ Brasil.
veramarques@fiocruz.br
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Silva VLM

Introdução do que Gayle denominou “círculo encantado”3.


No interior deste estão as sexualidades legitima-
Este artigo insere-se no campo da Saúde Coleti- das socialmente e em seu exterior encontram-
va que busca compreender as formas pelas quais se as sexualidades não reprodutivas, homosse-
a sociedade identifica e analisa suas necessidades xuais, fora do casamento, realizadas em lugares
e problemas de saúde, assim como se organiza públicos, entre gerações, pornográficas, sadoma-
para enfrentá-los1. Neste sentido, a Saúde é com- soquistas. Vale ressaltar que estudos acerca destas
preendida em seu sentido amplo, ou seja, como sexualidades, que transcendam a “patologia”, são
um estado de completo bem-estar físico, mental bastante escassos no campo da Saúde Coletiva.
e social. Uma das dimensões de reflexão e atuação A subcultura BDSM pauta-se pelo princípio
deste campo refere-se à Promoção da Saúde. Esta denominado SSC - Seguro, São e Consensual.
age sobre os condicionantes e determinantes so- “Seguro” significa não correr riscos sem as devi-
ciais da saúde (DSS) que se relacionam a fatores das precauções. “São” requer que os praticantes
sociais, econômicos, políticos e culturais, coletivos estejam de posse de todas as faculdades mentais,
e individuais. Por conta disto, os DSS não podem assim como emocional e intelectualmente equili-
ser avaliados somente pelas doenças geradas, pois brados. “Consensual” refere-se à necessidade de
vão além, influenciando todas as dimensões do um acordo prévio entre os envolvidos acerca das
processo de saúde das populações, tanto do pon- práticas que realizarão. A necessidade deste con-
to de vista do indivíduo, quanto da coletividade sentimento exclui, portanto, as práticas de pedo-
na qual ele se insere2. Desta forma, é importante filia, necrofilia e zoofilia.
atentar-se para os mecanismos de produção das Apesar de algumas de suas práticas, como a
iniquidades. Isto inclui olhar para as iniquidades do sadomasoquismo erótico, serem consideradas
que, porventura, possam ser geradas por diagnós- pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Trans-
ticos patologizantes que estigmatizam indivíduos. tornos Mentais, ou, no original em inglês, Diag-
Neste sentido, este trabalho objetiva conhecer nostic and Statistical Manual of Mental Disorders
a subcultura BDSM no Brasil no espaço virtual, (DSM)4, como patológicas, percebe-se que o gru-
particularmente no que se refere às narrativas po se organiza a partir da defesa da Saúde como
que constituem sua(s) identidade(s) e funda- princípio básico de suas práticas. No Brasil, ao
mentam seu estilo de vida. BDSM é um acrôni- menos até 2015, esta defesa ainda não se consti-
mo que deve ser lido sempre em pares, ou seja, tuía em uma agenda política pela despatologiza-
BD significa Bondage e Disciplina, DS, Domina- ção destas práticas, o que já acontece em outros
ção e Submissão, e SM, Sadomasoquismo. Vale países do mundo, inclusive nos Estados Unidos.
esclarecer, ainda que de forma sucinta, do que se Em 2013, uma nova revisão do DSM foi lançada.
tratam estas práticas. A preparação desta revisão se fez a partir da cons-
Bondage ou imobilização é realizada, em ge- tituição de grupos de pesquisadores de diferentes
ral, com o uso de cordas, algemas ou correntes. partes do mundo, que foram incumbidos, cada
Os praticantes podem fazer uso de roupas es- qual, de rever grupos de transtornos específicos.
peciais, capazes de constranger movimentos do O grupo responsável pela revisão dos transtornos
corpo ou mesmo apertá-lo. Vendas, mordaças parafílicos, ao fim de seu trabalho, apresentou
e capuzes também são comuns e se destinam à uma série de argumentos, pautados nos resulta-
restrição dos sentidos. Há diversas técnicas de dos de diversas pesquisas, em defesa da despato-
amarração do corpo, entre elas, o shibari japonês, logização do sadomasoquismo erótico, conforme
muito semelhante ao origami. Bondage e discipli- Reiersol e Skeid5. No entanto, seu parecer não foi
na relacionam-se a fantasias eróticas que envol- acolhido pela Associação Americana de Psiquia-
vem castigos e punições. O par “D” e “S” envolve tria, permanecendo, portanto, no DSM.
fantasias de dominação e submissão por meio de Este Manual, cuja primeira edição ocorreu em
humilhação e violação. Ao longo desta pesquisa 1952, tem origem no famoso compêndio Psycho-
verificou-se que o par DS é central e nomeia seus pathia Sexualis do psiquiatra Krafft-Ebbing, pu-
praticantes a partir da posição que ocupam nos blicado em 1886. Krafft-Ebbing escreve no bojo
jogos eróticos como dominadores ou submissos. da preocupação da medicina a respeito das “per-
Por fim, tem-se as práticas de sadomasoquismo, versões” sexuais que tem início com o minucioso
que agregam atividades que se utilizam de dor estudo acerca da homossexualidade6. O discurso
para obter estímulos eróticos.  sexual médico nessa época era profundamente
Tratam-se, portanto, de sexualidades consi- moralista e sexista, segundo Leite Júnior7, e for-
deradas dissidentes, ou seja, que estão à margem temente centralizado na reprodução. O gozo era
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desvalorizado até mesmo para fins de procria- Vale ressaltar que o campo da Medicina e das
ção: afinal, bastava ao homem um breve gozo e, ciências Psi perpassam o campo da Saúde Coleti-
à mulher, este era totalmente dispensável. O que va, na medida em que este se constitui a partir de
ia além disso, sem justificação biológica, passou a práticas e saberes interdisciplinares voltados para
ser enquadrado como perversão. No hall das per- a promoção, a prevenção e o cuidado da saúde
versões, surge o sadismo e o masoquismo. Cabe da população. Esta amplitude demanda interdis-
ressaltar que até este momento histórico, tanto o ciplinaridade para, por meio dela, tentar compre-
sofrimento físico quanto o mental eram cultua- ender os processos sociais de produção da saúde/
dos pela tradição judaico-cristã, não sendo consi- doença. É a partir desta compreensão que a aná-
derados, portanto, nem pecado, nem doença. lise aqui proposta se desenvolve. Por isto, deixa-se
O termo sadismo encontra sua inspiração na a alcunha do patológico para buscar a origem da
obra literária do Marquês de Sade, significando subcultura BDSM.
uma aberração horrível da devassidão, um siste- Em sua análise acerca da relação sadoma-
ma monstruoso e antissocial que afronta a natu- soquista de um casal vitoriano e a forma como
reza7. Já o termo masoquismo surge da obra lite- dramatizaram as mudanças sociais de sua época,
rária de Sacher-Masoch. A partir do século XIX, McClintock8 situa o nascimento da subcultura
ambos os termos passaram a definir sexualida- sadomasoquista na Europa por volta do fim do
des consideradas desviantes do padrão normal, século XVIII, com a emergência da era indus-
ou seja, relações genitais heterossexuais entre trial. No entanto, os jornalistas Brame et al.9,
adultos. Esses “desvios” ao longo do século XX se que produziram um amplo levantamento acerca
transformaram em patologias e, posteriormen- das práticas sexuais que envolvem a dominação
te, em transtornos mentais. Vale ressaltar que o e a submissão, relatam o surgimento do BDSM,
sadismo próprio da filosofia de Sade nada tem a tal como se expressa e articula hoje, tendo iní-
ver com o sadismo praticado pelo grupo BDSM, cio entre as décadas de 1940 e 1950 nos Estados
uma vez que aquele defendia que o prazer de- Unidos, por meio de um grupo de homens gays
veria ser conquistado à força, nunca de forma que se intitulavam “Movimento Leather”. Os Le-
consensual, como defendido no BDSM. Já no athers adotavam uma estética marcada pelo uso
masoquismo de Sacher-Masoch, cabe à mulher, a do couro e comungavam de princípios militares
posição de dominadora, que, no entanto, deve ser e disciplinares oriundos da carreira militar de
treinada e estar à altura do escravo. Já nas rela- vários deles, buscando recriar a camaradagem, o
ções BDSM, a posição de dominação não possui risco e a adrenalina experimentada na Segunda
gênero, podendo, portanto, ser desempenhada Guerra Mundial. Rubin e Butler10 esclarecem que
por homens ou mulheres. Interessante o fato de leather é uma categoria ampla que congrega ho-
que, quando Krafft-Ebing publica em 1886 a pri- mens gays com práticas distintas: sadomasoquis-
meira edição de seu compêndio, o sadismo tor- tas, praticantes de penetração anal com o punho,
na-se a forma patológica da tendência masculina fetichistas e homens gays másculos que preferem
à dominação e o masoquismo transforma-se em parceiros masculinos.
seu oposto e vai apontar para a tendência pato- Uma das maiores referências do cenário sa-
lógica de submissão da mulher. A mulher, que era domasoquista norte-americano, Califia11 revela
dominadora na obra literária de Sacher-Masoch, a história do sadomasoquismo lésbico em São
torna- se a submissa patológica em um “passe de Francisco, dos anos 1960 ao início da década de
mágica”. Inclusive, a relação de casos de maso- 1980. Seu relato denuncia a luta do grupo pelo
quistas apresentados em seu livro revela o pre- respeito às suas práticas e as tensões entre o gru-
domínio de homens: de um total de 37 casos, 33 po e as feministas antipornografia, assim como
são de homens e 4 de mulheres. Esse predomínio com o meio homossexual.
de homens masoquistas levou o autor a concluir Já o sadomasoquismo heterossexual, ainda
que se tratavam de homens “parcialmente afe- conforme Rubin, organizou-se por quase todo esse
minados” e que o masoquismo era uma forma período em torno de anúncios sexuais, dominação
rudimentar de “antipatia sexual”. Com isso, esses profissional e alguns clubes sociais privados. Para
casos acabaram por se tornar clinicamente mais esse grupo, o leather era um fetiche inserido em
importantes que o sadismo, pois transgrediam um imaginário de elementos predominantemen-
a regra de que é o homem naturalmente quem te femininos, e os poucos caracteres masculinos
domina a mulher, e parecia na época haver um existentes, geralmente, eram efeminados. Weiss12
número enorme de masoquistas, principalmen- data o surgimento de comunidades fetichistas, de
te nas grandes cidades. bondage e de spanking (técnica erótica de disci-
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plinamento que faz uso de palmadas, por exem- O segundo ponto refere-se à seleção do con-
plo) também na década de 1950. Segundo ela, em teúdo a ser examinado. Os blogues e sites visita-
diversos lugares dos EUA, esses grupos, predomi- dos foram escolhidos a partir das duas primeiras
nantemente formados por heterossexuais, perma- páginas de sugestões apresentadas pelo aplicativo
necem separados da comunidade BDSM. de busca do Google, uma vez que, teoricamente,
No Brasil, os primeiros clubes sadomasoquis- são os mais visitados da internet. Em tal busca,
tas surgem anos depois. Segundo Leite Júnior7 palavras-chave como “BDSM”, “dominação” e
podem ser datados a partir da década de 1980. “submissão”, por exemplo, foram utilizadas. Apli-
Existem hoje os munches (sem tradução para o cou-se na coleta de material empírico a técnica
português), que são reuniões informais promo- de amostragem por saturação e em sua análise,
vidas por praticantes do BDSM para conhecer a técnica de Análise de Discurso, conforme Mi-
pessoas novas, inclusive as “curiosas” – aquelas nayo15 em referência a Pêcheux, uma vez que se
interessadas em informações –, e as festas, algu- comunga da ideia de que o sentido de uma pala-
mas já tradicionais, que reúnem o grupo, sendo vra não existe por si mesmo. Todavia, revela po-
que a cidade de São Paulo parece ser o local bra- sições ideológicas em jogo no processo sócio-his-
sileiro de maior badalação. Esboçadas algumas tórico, no qual as relações são produzidas.
linhas que permitem entender a partir de que A este trabalho de pesquisa na internet, de-
grupos sexuais o BDSM atual se constitui, sigo senvolvido ao longo dos anos de 2013 a 2015,
caminho apresentando a metodologia utilizada somou-se a revisão bibliográfica de material pu-
nesta pesquisa. blicado em âmbito nacional e nos EUA. Algumas
entrevistas de praticantes em outros meios, como
revistas e jornais, também foram secundaria-
Metodologia mente consideradas na análise. Esse esforço obje-
tivou cotejar algumas informações e a linguagem
O conteúdo empírico analisado neste artigo é utilizada, a fim de conhecer mais amplamente o
parte de etnografia virtual desenvolvida para mi- universo BDSM, tal como se expressa no mundo
nha tese de doutoramento13. O material que ora virtual.
é apresentado, de domínio público e irrestrito, Acerca de pesquisas no espaço virtual, é pre-
pautou-se nas seguintes atividades: a) acompa- ciso considerar que a internet se tornou um im-
nhamento de blogues e sites nacionais; e b) ob- portante meio de comunicação mundial, disse-
servação de páginas das redes sociais Facebook minando informações e estreitando laços entre
e FetLife – sendo esta última uma rede específica pessoas e diferentes culturas. Contudo, quando
de praticantes BDSM. Desta forma, certas carac- as práticas estudadas e seus sujeitos são marca-
terísticas próprias da linguagem escrita destes das pelo estigma, a internet se apresenta como
espaços podem ser percebidas, ou seja, ora a lin- um locus de estudo por excelência graças ao alto
guagem é mais coloquial e abreviada, típica das grau de anonimato que envolve os internautas.
páginas de redes socais, ora melhor escrita, me- Este é o caso do BDSM. Sendo uma subcultura
lhor controlada, como em blogues que visam ex- marcada pelo estigma, na qual a guarda de um
plicitamente promover uma maior compreensão segredo comum congrega seus praticantes, po-
das práticas BDSM entre adeptos e interessados. de-se inferir a importância do ciberespaço tanto
Dois esclarecimentos se fazem mister. para o fortalecimento do grupo e a disseminação
O primeiro diz respeito à questão do respei- de seu estilo de vida, quanto para a viabilização
to à ética na pesquisa. A Resolução número 510, desta pesquisa.
de 07 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Outro aspecto relevante diz respeito à adap-
Saúde14, preconiza que pesquisas que utilizam in- tação do método etnográfico para o ambiente
formações de domínio público estão desobriga- virtual. A etnografia virtual também tem sido
das de registro e avaliação por Comitês de Ética chamada de netnografia. Este neologismo, se-
em Pesquisa, bem como pela Comissão Nacional gundo Fragoso et al.16, foi cunhado na década de
de Ética em Pesquisa. O trabalho ora proposto 1990 e popularizado por Kozinets em seu traba-
está amparado, portanto, por esta determinação. lho sobre fãs. No Brasil, as discussões de Sá no
No entanto, a fim de assegurar o total anonimato início dos anos 2000 começaram o debate sobre
dos usuários, ainda que reconhecendo que estes as aplicações da netnografia. Para o autor, a uti-
façam uso de apelidos no espaço virtual, optou- lização deste termo marca a existência de natu-
se por nomeá-los apenas pelo termo “Adepto”, rezas distintas e adaptações entre a etnografia
seguido de letra alfabética. presencial e as experiências online, ainda que se
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considere que as interações sociais virtualizadas ticas sexuais que configuram um “estilo de vida”,
são indissociáveis dos contextos onde ocorrem16. merece destaque a reflexão de Giddens19 acerca
Desta forma, para dar conta dos objetivos da escolha pessoal que está implícita no estilo de
delineados para este artigo, sua organização se vida. Conforme salienta o autor, um estilo de vida
constitui em três partes. Na primeira, objetiva-se pode ser definido como um conjunto de práti-
perscrutar como o BDSM se apresenta no ciberes- cas, em alguma medida, integradas, rotinizadas,
paço de uma perspectiva identitária, tanto como incorporadas nos modos, por exemplo, de vestir,
grupo, quanto acerca das personas que o formam. comer, encontrar pessoas, e que dão forma ma-
Posteriormente, alguns elementos das narrativas terial a uma narrativa reflexiva particular da au-
reflexivas que embasam o estilo de vida BDSM toidentidade do indivíduo que o adota. Implica,
são abordados relacionando-as com aspectos es- portanto, em uma escolha dentro de várias ou-
pecíficos da contemporaneidade. Na terceira e úl- tras opções possíveis. O estilo de vida é “adotado”
tima parte deste trabalho, as palavras finais. e não “outorgado”, o que provavelmente explica a
existência dos dois importantes instrumentos do
BDSM e a apresentação de si BDSM analisados por Zilli, dicionário e manual,
ambos a serviço da divulgação de um estilo de
Atualmente, o BDSM está fortemente presen- vida que, assim como outros, pode ser adotado.
te no ciberespaço, local onde pode trocar expe- Além dos aspectos acima identificados por
riências, conversar, buscar parceiros entre si, de Zilli17, é possível acrescentar outro elemento a
forma mais livre, uma vez que se sente protegido essa listagem: conscientes do estigma social, for-
pelo anonimato dos apelidos utilizados na inter- jado pela alcunha do patológico, e da possibili-
net em salas de bate-papo e redes sociais. Tal ape- dade de uso da identificação BDSM por pessoas
lido cumpre também, nesse caso, a função de si- mal intencionadas de fora do grupo, os manuais
nalizar as preferências sexuais do praticante. As- costumam oferecer orientações voltadas especi-
sim, nomes como DOM EXPER SP, Masoquista ficamente para iniciantes. Essas orientações refe-
SP (H), Papai Severo SP, podem ser encontrados, rem-se tanto à busca por parceiros, e parece se
indicando não só o papel desempenhado dentro ocupar em facilitar a diferenciação entre o que o
da subcultura BDSM, como também sua locali- grupo considera “verdadeiros” e “falsos” adeptos,
zação geográfica e sexo. Curiosamente, a despeito quanto à definição das próprias identidades que
de em sua origem o BDSM envolver praticantes compõem o grupo.
gays, no Brasil, particularmente nos limites do Desta forma, em um post publicado pelo
ciberespaço pesquisado, eles raramente foram Adepto A, uma série de características que aju-
localizados. Um olhar mais atento é capaz de dis- dam à identificar um verdadeiro dominador são
cernir também a presença de adeptos, propria- listadas, entre elas tem-se que este estimula a/o
mente ditos, mas também de neófitos, aqueles submissa/o a buscar sempre mais informações;
que estão apenas conhecendo pessoas do meio, respeita a/o “serva/o”; sabe receber e dar prazer;
algumas práticas, ritos etc. Nesse sentido, a inter- é sincero. Esse detalhamento, portanto, que pre-
net oferece uma grande riqueza de material in- tende esclarecer os iniciantes e curiosos acerca do
formativo e pedagógico acerca dos elementos que BDSM, busca tanto se distanciar de visões pre-
envolvem o universo BDSM. Segundo Zilli17,18, conceituosas, quanto separar os verdadeiros dos
que também se debruçou sobre a presença do falsos adeptos. A informação esclarecida, por-
BDSM na internet, esse material se organiza em tanto, contida nos manuais, é vista como uma
um formato classificado como Manual. Os “ma- importante estratégia de proteção dos grupos de
nuais” caracterizam-se por afirmar, por exemplo: BDSM, e está associada ao controle social que o
a) o BDSM como um conjunto de práticas se- próprio meio exerce sobre si, assunto que será
xuais relacionadas a um “estilo de vida”; abordado mais adiante.
b) a necessidade de manter um bem-estar fí- Os manuais BDSM deixam claro que as rela-
sico e psicológico para o exercício dessas práticas ções DS são marcadas por uma erótica em torno
de forma segura e consentida; da forte assimetria de poder entre os envolvidos,
c) a preocupação com o estigma de perversão na qual se tem, por um lado, aquele que detém o
sexual e consequente busca por dialogar com a poder na relação e como tal deverá ser venerado,
psiquiatria para fins de legitimação de suas prá- respeitado e obedecido. Por outro lado, há aque-
ticas. le que se despoja de sua liberdade e autonomia
A respeito do item a) elencado por Zilli, no para servir ao detentor do poder. As posições de
qual a sigla BDSM designa uma reunião de prá- dominação e submissão são pensadas pelo grupo
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como parte da identidade de cada sujeito. A do- Ao longo dessa pesquisa, obtive acesso a ape-
minação está na natureza do dominador, assim nas uma fala de um switcher, que foi entrevistado
como a submissão faz parte da essência da pessoa no documentário Algolagnia21. Ele denuncia o
que se submete. desconforto que suas preferências eróticas cau-
Neste jogo tão fixo, entretanto, surge também sam ao meio. É possível que este desconforto se
a figura dos switchers, que se alternam entre po- justifique porque o BDSM se pauta na domina-
sições de dominação e submissão em momentos ção e na submissão como elementos excludentes
diferentes com os mesmos parceiros ou não. O da essência de cada indivíduo. A partir dessa es-
Adepto B é contundente ao afirmar que os swit- sência, cada adepto assume a posição correspon-
chers não são parte do BDSM e sim parte de uma dente na hierarquia.
“camada caótica dos fetiches”, na qual tudo é per- O desejo intenso de manter a ordem, seja ela
mitido. Há também aqueles que, como Adepto qual for, faz eco à necessidade de ordem que todas
C, entendem que ser switcher é também algo da as sociedades apresentam e que foi tão contuden-
essência de determinados indivíduos, e por isso, temente explicitada pelo trabalho de Douglas22.
requer respeito. A desconfiança sentida por quem ou pelo que
Ninguém escolhe ser switcher, ou é, ou não é. representa ambiguidade social está relacionada à
Pode ser que a descoberta desta vertente aconteça necessidade social de manter a ordem, o que sig-
em momentos diferentes da vida, mas[,] por prin- nifica requerer que cada um e cada coisa tenha o
cípio[,] esta natureza é inata. Embora a existên- seu lugar claramente definido na estrutura social.
cia de um(a) switcher seja uma realidade, não há Categorias fluidas, como a dos switchers, incor-
consenso quanto a sua aceitação no meio BDSM. poram o medo social do que está fora da ordem e
Ainda existe preconceito quando alguém se assume por isso, comumente, são deslegitimadas.
switcher, sobretudo quando esta figura é masculi- Dominadores, submissos e switchers eis as
na. Os preconceitos mais comuns são: do homem personas que povoam o universo BDSM. Para
switcher, geralmente está associado, de forma pe- além de meras posições em um jogo erótico, a
jorativa à bissexualidade, ou questionam a sua dominação ou submissão é parte da essência
capacidade de dominar, uma vez que “quem se de cada um, segundo seus adeptos, ao mesmo
submete não sabe dominar”. Já a mulher switcher tempo em que nem todas as pessoas a possuem.
é vista como aquela que domina seus escravos(as) Neste sentido, a essência ganha conotação de
e até mesmo o seu ou sua Dono(a). Esta rejeição já orientação sexual ainda que requeira um apren-
foi pior em anos passados, observa-se uma evolu- dizado. O alinhamento entre orientação sexual
ção no sentido de aceitar melhor esta forma de se e aprendizado e o pertencimento ao grupo (que
viver o SM. será trabalhado no próximo subitem) conferem
A partir desta explicação dos preconceitos ao indivíduo autenticidade em sua prática sexual.
que recaem sobre homens e mulheres switchers, Considerando os riscos envolvidos nas práticas
pode-se reconhecer o peso que os papéis de do- BDSM, mister se faz discernir os verdadeiros dos
minação e submissão possuem na hierarquia de falsos dominadores. Cabe agora perscrutar al-
poder BDSM. Entre os homens, o papel de sub- guns elementos contidos nas narrativas reflexivas
missão é mais forte que o de dominação, mar- do grupo que permeiam o estilo de vida BDSM.
cando-o de tal forma que não se crê possível que
um submisso em uma performance possa ser um BDSM: Um estilo marcado pelo cuidado
dominador em outra. Já entre as mulheres, é o com o corpo e o fortalecimento do self
papel de dominação que prevalece, impedindo-a
de ser uma submissa. Essa combinação é extre- Retomando o pensamento de Giddens19, “es-
mamente interessante, pois subverte o sistema tilo de vida” diz respeito a um conjunto de prá-
dos papéis “ativo”, associado ao homem, e “passi- ticas, de certa forma, integradas, rotinizadas, que
vo”, à mulher. É como se, quando se é capaz de ex- envolvem os modos de vestir e comer, por exem-
perimentar uma condição diferente daquilo que plo, e que se constituem como base material para
foi socialmente reconhecido, esse rompimento uma narrativa reflexiva singular da autoidentida-
possua uma força tal que inviabiliza um “retor- de do sujeito que o adota. É sobre esta narrativa
no” ao que era esperado. Por esse mecanismo, particular que se pretende debruçar aqui tentan-
os preconceitos contra os switchers acabam por do depreender sua articulação com o imaginário
reiterar a hierarquia dos papéis “ativo” e “passi- específico da contemporaneidade.
vo” ainda em vigor na sociedade, e que tão bem Produzir-se como um “estilo de vida” permite
foram abordados por Misse20. ao BDSM também constituir-se como uma sub-
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cultura18,23,24, na qual essas sexualidades dissiden- rece denunciar o prazer pelo risco, pelo perigo.
tes podem se expressar, defendendo o cuidado do Prazer e perigo estão sempre implicados nessas
corpo e o fortalecimento do self, o que forja um práticas26. Essa vigilância mútua pode conduzir
erotismo politicamente correto, como proposto à expulsão de indivíduos cujas condutas possam
por Gregori25, que pretende atenuar os traços e prejudicar adeptos ou o grupo como um todo.
conteúdos violentos envolvidos nas práticas sa- Trata-se, portanto, de um mecanismo de auto-
domasoquistas. proteção e defesa, regulação e controle, bastante
Um dos elementos do imaginário BDSM faz difundido no meio28,29, mas também um elemen-
referência à noção da prática sexual como técnica to do rito de reconhecimento social. Nesse sen-
corporal, conforme Gregori26, cuja finalidade é o tido, a pesquisadora Weiss12 chega a afirmar que
desenvolvimento interior dos envolvidos. Weiss12 uma pessoa só se torna realmente praticante de
vê o BDSM como técnica ou habilidade e como BDSM quando participa de uma comunidade so-
visão de mundo; “técnica de si”. Isso pode ser per- cial, sexual e educacional, que ensina técnicas de
cebido na fala do Adepto C, um sádico assumido: autocontrole ao lado de cordas de bondage e ha-
Em minha fantasia, a prática das sessões [...] bilidades de amarração. Esse compromisso com
São situações difíceis, mas ao vivê-las a escrava tem a comunidade é uma forma de pertencimento
condição de expandir seus limites, além de torna- social, que diferencia o BDSM como uma comu-
rem-se mais próximas a mim, já que me dá especial nidade de prática. Entretanto, no exercício desse
prazer, no contexto da fantasia, ver as pessoas que controle, a autora percebe ambiguidade no dis-
amo sofrer. É uma forma significativa de cresci- curso do grupo: por um lado, defende um pro-
mento para todas as partes e em todos os sentidos, jeto de autocontrole; por outro, exerce um acen-
pois entendo que o SM só se fortalece em comuni- tuado controle externo sobre seus participantes.
dade. Em “O império dos sentidos”, Duarte30 pro-
O “crescimento” dos envolvidos, defendido põe o que denominou de “dispositivo de sensibi-
pelo Adepto C, está associado à superação de lidade”, do qual ressaltou três aspectos: a perfecti-
padrões ou conceitos previamente estabeleci- bilidade, a experiência e o fisicalismo. A perfecti-
dos acerca da sexualidade. Está ligado também a bilidade está associada à capacidade própria à es-
um desenvolvimento individual de acordo com pécie humana de aperfeiçoamento contínuo, de
o papel que cada um desempenha no universo progresso, que implica o uso sistemático da razão
BDSM, ou seja, de dominação ou submissão. As- para o avanço do ser humano sobre o mundo.
sim, pode-se falar sobre um “crescimento como A perfectibilidade requer a experimentação do
escravo” ou um “crescimento no estilo de vida mundo exterior. A razão viceja por meio do con-
FemDom” (dominação realizada por mulhe- tato sensorial dos sujeitos com o mundo. É por
res), por exemplo. Logo, “crescimento” sinaliza a meio dos sentidos que a espécie humana constrói
existência de conhecimentos e experiências que novas formas de se relacionar com o exterior a
requerem o engajamento no meio para que se- fim de promover seu desenvolvimento. Como
jam adquiridos. O “crescimento”, que propicia a bem pontua o autor, os sentidos estão na base
autorrealização, contém também a promessa psi- da razão tanto quanto na da ‘imaginação’ ou das
cológica e política de felicidade. O “crescimento” ‘emoções’ e ‘paixões’. Assim, o fato cognitivo da
é para todos, conforme afirmação do Adepto C, ‘experiência’ é também fato emocional. Perfecti-
mas essa categoria aparece com mais recorrên- bilidade e experiência estão intimamente relacio-
cia no discurso acerca da submissão, por conta nadas, já que não é possível o desenvolvimento
da exigência de superação de tabus, preconceitos, humano sem a experimentação do mundo.
limites físicos e psíquicos. Diante do exposto, é possível reconhecer na
A superação de limites e o progresso de sua ideia de “crescimento”, tão propalada no universo
persona BDSM enquanto tal encontram no meio BDSM, uma profunda relação com o fenômeno
sua confirmação, que também exerce controle da perfectibilidade defendido por Duarte, uma
sobre os envolvidos, assegurando o respeito aos vez que está associada à superação dos limi-
princípios estabelecidos, entre eles, o SSC. Outro tes humanos, sejam eles físicos, psicológicos ou
lema comum nessa comunidade é “[m]achucar emocionais. Embora os limites do submisso de-
sem maldade (ou danos)”27. Esta regra parece cir- vam sempre ser respeitados, cabe aos dominado-
cunscrever o ato de infligir dor dentro dos limites res buscar lentamente promover nos submissos o
do outro, por isso não machuca, para que ambos desejo de superar as barreiras impostas por me-
obtenham prazer. Ainda assim, sinaliza uma vi- dos, traumas, preconceitos, ajudando-os a liber-
vência sempre no limite da fronteira, o que pa- tar-se dos mesmos; a exploração das interações;
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a redefinição dos limites da dor e do prazer com se submete, constituindo-se em uma orientação
a mudança da concepção de onde começa um e sexual. Por conta disto, os switchers, que ora as-
termina o outro. sumem o papel de dominadores ora de submis-
Por fim, o fisicalismo completa um “quadro sos, são vistos com desconfiança. Ao contrário
aproximativo” entre as formas modernas da se- do que comumente se imagina, alguns adeptos
xualidade e da sensualidade. Nas palavras de Du- defendem que é a pessoa submissa que detém
arte30: o poder de definir os limites da prática. Afinal,
O fisicalismo, como teoria da pessoa, é uma re- os submissos neste meio possuem agência em
volução cosmológica, uma transformação crucial suas relações, estabelecendo consensualmente
que ocorre também nesse período, decorrente da se- com seus potenciais dominadores a forma como
paração radical entre o corpo e o espírito (expressa, desejam ser submetidos. A primeira vista, pode-
por exemplo, na filosofia de Descartes) e graças à ria-se afirmar que a hierarquia BDSM subverte
qual se passa a poder considerar a corporalidade sutilmente as tradicionais posições de poder. No
humana como dotada de uma lógica própria, que entanto, dominador e submisso devem ser apre-
deve ser descoberta e que tem implicações imedia- endidos sempre de forma relacional, um forma
tas sobre a condição humana. Na verdade, é a con- o outro em um ciclo contínuo, sendo, no fundo,
sideração da corporalidade em si, como dimensão difícil dizer quem domina e quem se submete. O
autoexplicativa do humano, que se pode chamar peso do chicote liga a mão que o empunha ao
propriamente de fisicalismo. corpo que o recebe. 
Da mesma forma que a perfectibilidade e a O ciberespaço não produziu o BDSM, mas,
experiência são dimensões da vivência BDSM, sem dúvida, alargou os horizontes de seus adep-
o fisicalismo também está presente e pode ser tos, permitindo a comunicação e a troca de in-
percebido, por exemplo, na busca por um prazer formações com praticantes do mundo inteiro e
erótico, muitas vezes não genital, pela exploração promovendo seu estilo de vida. O BDSM, como
da mente (dominação psicológica e emocional) e subcultura, pode ser pensado da perspecti-
do corpo, permitindo a descoberta de novas for- va de Duarte30, que reconhece, na combinação
mas de se viver a sexualidade. do dispositivo da sensibilidade, terreno profícuo
Em vista disso, pode-se afirmar que perfecti- para o surgimento de novos comportamentos se-
bilidade, experiência e fisicalismo se congregam xuais, entre os quais se pode incluir o BDSM. Es-
nas práticas BDSM. Tanto Gregori31,32, que vem ses novos comportamentos, tal como já acontece
desenvolvendo pesquisas a respeito de práticas no BDSM, decorrem da incitação à sensibilidade
sexuais, limites da sexualidade e violência, quan- em um sentido amplo, um estilo de vida que pri-
to Zilli18, que analisou o discurso de legitimação vilegia o novo em detrimento ao “tradicional”, o
das práticas BDSM na internet, observam que as acelerado desenvolvimento de tecnologias volta-
práticas BDSM revelam certo cálculo racional do das para o corpo (dos brinquedos sexuais a técni-
uso do prazer para maximizar sua intensidade e cas de amarração do corpo, por exemplo), o que
minimizar os riscos decorrentes dessas práticas. inclui a otimização do uso do corpo (o sexo que
O SSC revela-se mais um instrumento dessa ló- transcende os órgãos genitais; os limites físicos e
gica e reforça um erotismo politicamente correto psíquicos, que precisam ser paulatinamente su-
embebido em um imaginário tão caro à Contem- perados para o crescimento dos submissos). 
poraneidade. É certo que esta subcultura encontra conflu-
ência com outros paradigmas da Contempora-
neidade, como a busca pelo máximo desenvolvi-
Considerações finais mento da potencialidade de cada um, por meio
do autoconhecimento e do autodesenvolvimento
Os praticantes de BDSM demonstram no cibe- e o uso da razão na experimentação do mundo
respaço a preocupação em definir e esclarecer atrelada à exacerbação da sensorialidade. A des-
seus princípios, identidades e práticas, a fim de peito, portanto, do estigma que recai sobre o gru-
afastar pessoas mal intencionadas de seu meio. O po, este quadro de análise parece indicar que as
BDSM organiza-se a partir de uma rígida hierar- práticas BDSM, ao menos no que diz respeito a
quia, na qual as posições de dominação e submis- como se apresentam virtualmente, estão inseri-
são eróticas são pensadas pelo grupo como parte das por completo entre os pilares da subjetivida-
da identidade de cada sujeito. Ou seja, a domina- de contemporânea.
ção está na natureza do dominador, assim como Retomando o tema para o campo da Saúde
a submissão faz parte da essência da pessoa que Coletiva, propõe-se o aprofundamento do olhar
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Ciência & Saúde Coletiva, 23(10):3309-3318, 2018


científico não apenas sobre a subcultura BDSM, dação de despatologização apresentada por Reier-
mas também sobre as diversas sexualidades dis- sol e Skeid5 foi ignorada pela Associação America-
sidentes, haja vista a escassez de pesquisas nesta na de Psiquiatria). Com estas pesquisas, espera-se
temática. Neste sentido, sugere-se também inves- a promoção da saúde, com o fim de iniquidades
tigar os malefícios que as definições de patologia decorrentes de diagnósticos médicos/psi, atraves-
implicam na saúde daqueles que a recebem (parti- sados por moralidades que não cabem mais em
cularmente o sadomasoquismo, já que a recomen- um tempo que clama pelo respeito à diversidade.

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Artigo apresentado em 31/01/2018


Aprovado em 06/03/2018
Versão final apresentada em 03/07/2018

CC BY Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons

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