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Norbert Elias e John Scotson, em seu livro “Os Estabelecidos e os Outsiders: Sociologia

das Relações de Poder a Partir de uma Pequena Comunidade” analisam as estruturas do


preconceito das estigmatizações sociais para além de estruturas pré-concebidas no ideário dos
indivíduos, dando atenção às práticas que servem como motores dos interesses de um grupo em
relação a outro e demonstrando as maneiras com as quais as relações de poder entre grupos
vistos como socialmente distintos se apresentam na realidade.
Os autores analisam as “normas” ou “regras” de socialização e as relações de poder
presentes em uma comunidade inglesa composta por três zonas que não possuem diferenças
“visíveis”, mas se distinguem com relação as suas práticas de socialização e a maneira como
estabelecem suas relações uns com os outros, onde há a manifestação de preconceitos,
discriminações e exclusão entre os grupos.
Há, entre os grupos, a presença de uma espécie de “moral”, um discurso de defesa dos
costumes compreendidos como corretos no contexto do grupo em que os indivíduos se
apresentam, o que leva a formulação e disseminação por parte destes de uma imagem negativa
(fundamentada no papel sociológico da fofoca) dos outsiders.
Entende-se, portanto, que a dinâmica dos "estabelecidos e outsiders" constitui uma
abordagem teórica, uma postura epistemológica que busca explicar e compreender as potenciais
diferenças de integração entre grupos aparentemente semelhantes em uma pequena
comunidade. Essa abordagem tem como objetivo investigar as interações sociais entre esses
grupos, a fim de compreender as relações de poder estabelecidas nessa região, levando em
consideração as normas de socialização que cada grupo internaliza.
Norbert Elias propõe uma análise minuciosa dessas interações sociais para identificar
como os diferentes grupos da comunidade lidam com a violência, tanto física quanto simbólica.
Ele busca compreender como esses grupos estabelecem relações de poder e como as normas de
socialização influenciam essas relações.
O que, inicialmente, era um trabalho que buscava entender os desníveis de delinquência
juvenil e violência se tornou, à medida que o estudo avançou, uma análise sobre a influência
das relações de poder subjacentes, que iam além do estereótipo óbvio da violência: para
compreender plenamente os desníveis de delinquência juvenil e violência na comunidade, era
necessário analisar as relações de poder latentes que permeavam as interações sociais. Essas
relações de poder não se limitavam apenas aos atos de violência física, mas também se
manifestavam em formas mais sutis, como nas normas sociais, nos preconceitos e nas estruturas
de poder.
Os gráficos e dados disponíveis para os autores do estudo constataram que não havia
diferenças significativas entre as duas zonas que justificassem a disparidade de status entre os
moradores, exceto pelo fato de a ocupação das áreas ter ocorrido em momentos temporais
distintos.
Essa observação preliminar sugeriu que o tempo de ocupação das áreas estava
relacionado à formação de grupos, à internalização de normas sociais específicas e à reprodução
de relações de poder desiguais na comunidade. Passou-se, então, a refletir sobre a relação de
poder presente naquela comunidade e a forma como isso influenciava na sua constituição: não
havendo distribuição uniforme de poder, ficou evidente que as opiniões dos outros membros do
grupo social influenciavam as atitudes e opiniões de um indivíduo.
Percebeu-se, então, que havia uma pressão social (sobre a Zona 2) que tinha como
objetivo controlar o comportamento dos indivíduos quanto a Zona 3, manifestada no nível das
relações sociais: construiu-se uma imagem depreciativa dos indivíduos da Zona 3, disseminada
pela comunidade de forma ágil e que contribuiu para a diferenciação social e a reprodução de
relações de poder desiguais.
Essa descoberta revelou que a construção e a propagação de estereótipos e preconceitos
não ocorreram de forma aleatória, mas foram influenciadas pela estrutura social preexistente na
Zona 2. A pressão social exercida pelos indivíduos estabelecidos nessa zona contribuiu para a
marginalização e a exclusão dos moradores da Zona 3, reforçando a dinâmica de poder
assimétrica.
Elias observou que os indivíduos da Zona 2 generalizavam as depreciações em relação
aos indivíduos da Zona 3, assim como as imagens positivas dos indivíduos da sua própria zona.
Essa generalização era impulsionada principalmente por meio de fofocas, que se fortaleciam
nas configurações sociais presentes na comunidade. Com isso, muitos moradores da Zona 3
acabavam internalizando os estigmas sociais lançados contra eles, passando a acreditar e a
adotar comportamentos de acordo com esses estigmas.
Nesse contexto, as relações de poder são caracterizadas por uma interdependência entre
os indivíduos e pelas possibilidades de alternativas que eles têm para seguir. Essas relações
refletem como as configurações sociais impõem limitações aos indivíduos que residem na
terceira zona, sujeitos a restrições e opressões devido à sua posição social inferiorizada em
relação aos moradores das zonas estabelecidas, sujeitando-se a internalização de estigmas.
Quanto a violência, inicialmente o foco do estudo, concluiu-se que dentro da
comunidade estudada, crianças e adolescentes que eram considerados outsiders eram alvo de
desprezo e tratados com frieza pelos colegas que eram considerados "respeitáveis" na
comunidade. O estigma e o tratamento cruel eram mais intensos em relação a esses jovens
outsiders do que em relação aos seus pais.
Isso ocorria porque os jovens "respeitáveis" temiam que os "maus exemplos" dados
pelos outsiders influenciassem negativamente sua própria moral e comportamento. A defesa de
uma "boa moral" para os jovens considerados "respeitáveis" justificava o temor e a rejeição em
relação aos outsiders.
Essa construção negativa da imagem dos jovens da Zona 3, censurados e muitas vezes
rejeitados, somado ao pouco controle, realizado principalmente pelos seus pais, que muitas
vezes trabalhavam e tinham pouco tempo para dedicar a eles, resultava em uma pouca
supervisão das atividades e comportamentos dos jovens e propiciava a realização de más
condutas como reação.
Por outro lado, na Zona 2, devido à existência de uma configuração social mais
complexa, o controle sobre os indivíduos, incluindo os jovens, era mais amplo e abrangente.
Além do controle exercido pelos pais, havia influências e supervisão em várias esferas da vida
social do indivíduo, como na escola, igreja, vizinhos e outros contextos.
Os estabelecidos na comunidade estudada compartilhavam hábitos comuns e estavam
inseridos em uma rede de tradições, crenças e hábitos sedimentados. Essa coesão era reforçada
pela linha de parentesco, o que contribuía para a criação de uma identidade coletiva e para a
interação social entre os membros estabelecidos.
Por outro lado, os outsiders, ao contrário dos estabelecidos, eram pessoas diferentes
entre si, provenientes de lugares distintos e sem uma interligação entre si. Suas tradições,
hábitos e crenças também eram diferentes uns dos outros e dos estabelecidos. Essa diversidade
dificultava a criação e o estabelecimento de uma rede de interação forte entre os outsiders.
A falta de conexões sociais e de tradições compartilhadas entre os outsiders limitava a
criação de laços sociais fortes e a formação de uma identidade coletiva: eles não possuíam a
mesma coesão e unidade social encontrada entre os estabelecidos, o que os colocava em uma
posição de marginalidade e exclusão na comunidade.
A violência, nesse caso, pode ser vista como um fato social (nos moldes da compreensão
durkheimiana), não podendo ser vista isoladamente, mas devendo ser compreendida dentro de
um contexto mais amplo, considerando as dinâmicas sociais, as relações de poder e as normas
estabelecidas na comunidade.
Norbert Elias observou que as fantasias coletivas do ideal de eu e do ideal de nós são
influenciadas pelo coletivo. Em um grupo coeso, essas instâncias do eu representam
experiências pessoais dentro de um processo grupal, enquanto a imagem do nós e o ideal do nós
são versões pessoais de fantasias coletivas.
O trabalho de Elias é de suma importância para a Sociologia na medida em que sinaliza
que as dinâmicas de estigmatização e competição entre grupos está enraizada nas relações
sociais e no desejo de preservar e fortalecer a identidade e o poder do grupo ao qual pertencem.
Grupos estabelecidos podem temer a ascensão de outsiders, pois isso poderia ameaçar sua
posição social, recursos e influência dentro da comunidade. Portanto, eles buscam limitar o
crescimento e o potencial de outros grupos, mantendo um senso de segurança e proteção para
si mesmos.
Essa análise destaca como a formação de estereótipos, a estigmatização e a competição
entre grupos são mecanismos que surgem em várias sociedades humanas. Esses fenômenos
estão enraizados na busca por sobrevivência e no desejo de preservar o poder e a identidade do
próprio grupo, mesmo que isso ocorra às custas da marginalização e da exclusão de outros
grupos.
Por fim, conclui-se que nas relações de poder estão intrinsecamente ligadas às
configurações sociais e às interações entre os indivíduos. A distribuição de poder não é
uniforme, e sim influenciada por normas de socialização, estruturas de controle e dinâmicas
sociais.
Grupos estabelecidos e outsiders em uma comunidade, nos quais a diferenciação de
status e a reprodução de desigualdades são observadas, possuem normas de socialização
distintas, o que influencia seu comportamento e posição social. Aqueles que estão dentro do
grupo estabelecido geralmente têm acesso a recursos, privilégios e prestígio, enquanto os
outsiders enfrentam marginalização, exclusão e estigmatização.
As ações e escolhas de um indivíduo são influenciadas pelas ações e escolhas dos outros
membros do grupo social. As configurações sociais e as interações entre os grupos estabelecem
limites e possibilidades para os indivíduos, moldando suas trajetórias e oportunidades.
Elias trouxe à noção de desigualdade e relações de poder uma dimensão compreensiva
que leva em conta as disparidades de status, acesso a recursos e influência entre os grupos
estabelecidos e os outsiders. Essas desigualdades são moldadas pelas configurações sociais,
pelas normas de socialização, pelas interdependências sociais e pela complexidade e influência
desses fatores na reprodução das desigualdades sociais e nas relações de poder.

Referências
Rahmeier, L. (2012). Os Estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder
a partir de uma pequena comunidade. Revista Entreideias: Educação, Cultura E Sociedade.
Martins, L. G. (2021). ARTIGO - “Os estabelecidos e os outsiders”: Um convite para
repensar heranças Histórico-sociológicas. Simbiótica. Revista Eletrônica

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