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CARACTERÍSTICAS PRIMORDIAIS EPISTEMOLÓGICAS DA

DOMINAÇÃO SOCIAL QUE FUNDAMENTOU ESTRUTURALMENTE


A DESIGUALDADE SOCIAL BRASILEIRA

Leandro Barros Ribeiro1

RESUMO
Em todas as sociedades humanas existiram e existem formas de dominação e exploração de
determinados grupos sobre outros. Neste cenário, a formação de ideias é muito importante para
legitimar todas as formas de dominação existentes. As classes dominantes, elites detentoras do
poder econômico e político, como grupos privilegiados que são, realizam estratégias propositais para
que desse modo possam criar, reproduzir e legitimar sua dominação social sobre os demais
indivíduos da sociedade. Para que um determinado grupo social possa ser explorado, este precisa
ser convencido da sua inferioridade em relação aos grupos dominantes. Neste propósito, um corpo
de ideias é criado para permear a sociedade como um todo, visando inocular nas pessoas esta noção
de inferioridade. Os grupos sociais privilegiados atuam ativamente e eficientemente contra a
articulação e contra a defesa política consciente das grandes massas excluídas, fazendo uso, para
tal, de seu monopólio privado dos meios de informação e de difusão do conhecimento. Procurou-se,
através de revisão de literatura pautada nas publicações que tiveram como foco de atenção o tema
da dominação social, fundamentar, epistemologicamente, a origem da criação de estruturas de
vulnerabilidade e de desigualdade social, que foram efetivamente aplicadas no Brasil. Constatou-se
que a ideologia utilizada como instrumento de dominação social é fortemente originada na criação e
manutenção da divisão da sociedade brasileira em castas (classes) distintas, contraditórias e em
permanente luta. Através da manutenção, por parte das elites do poder, de uma socialização familiar
e escolar imensamente prejudicadas e precarizadas na classe dos trabalhadores e na classe dos
marginalizados e excluídos, vai ocorrendo a reprodução, nestas classes, de vários privilégios
negativos, de geração a geração. Conclui-se que para concretizar seus objetivos de dominação, as
classes dominantes brasileiras não titubeiam em utilizar da violência extrema, da manipulação da
religião, de dificultar ao máximo a ascensão social dos indivíduos pertencentes às classes populares
e de incentivar e fazer uso cotidiano do racismo estrutural como base das relações de exploração
social, aprendidas como instrução social e transmitidas eficientemente no processo de socialização,
desde a infância.

Palavras-chave: Dominação social. Desigualdade social. Privilégios sociais. Racismo estrutural.

1 INTRODUÇÃO

Esta investigação foi realizada com base em leituras de contextos e cenários


complexos, que enfatizaram situações peculiares. Assim mesmo, a partir de uma
experiência cognitiva propiciada pela imersão nas obras de autores e autoras que
analisaram com profundidade o fenômeno da dominação social, foi possível dizer
que, desde nossa perspectiva, é bastante difícil, para a maioria das pessoas, viver
na América Latina e no Brasil. Este é um continente reconhecido como o mais
desigual do mundo, de acordo com dados divulgados em várias publicações do

1
Bacharel em Sociologia. professorleandro.ribeiro@gmail.com
1
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Por sua vez, trata-
se de um enorme país marcado pela intensa desigualdade social e pela divisão de
pessoas e grupos em classes sociais bastante distintas e com acesso diferencial a
recursos e privilégios.
Este trabalho acadêmico parte da crítica da ciência social conservadora
imperante até hoje no Brasil, que se apresenta como o fundamento último da
dominação material e efetiva -que a grotesca divisão da riqueza social entre as
pessoas demonstra tão bem- das classes dos privilégios na sociedade. A dominação
social, material e concreta de todos os dias só é efetiva e tende a se eternizar se é
capaz de se justificar e convencer. E, justamente, produzir este convencimento é
precisamente o trabalho de intelectuais das elites no mundo moderno, substituindo
os padres, pastores e lideranças religiosas do passado.
Esta memória é um breve relato das principais ideias dominantes e de sua
institucionalização, que tiveram condições de serem “capturadas” neste processo de
estudos através do uso dos ensinamentos sociológicos de um dos maiores
pensadores da humanidade, o alemão Max Weber. Weber defendia que examinar o
indivíduo e a sua intencionalidade poderia ajudar a compreender os
comportamentos individuais, de grupos e de instituições.
Através de uma revisão de literatura, objetivou-se documentar quais seriam as
características sociológicas da epistemologia das práticas de dominação social que
fundamentaram, de forma estrutural, a situação peculiar de desigualdade social e de
vulnerabilidade da sociedade brasileira. Para tal, foram empregados os principais
direcionamentos técnicos da Sociologia Compreensiva organizada por Max Weber,
na intenção de determinar qual seria o sentido das ações sociais examinadas, ou
seja, compreender por que os indivíduos/agentes realizavam determinados
comportamentos.
O objetivo primordial deste trabalho foi compreender por que existiam classes
positivamente privilegiadas, por um lado, e classes negativamente privilegiadas, por
outro. A intenção motivacional estava baseada, fundamentalmente, em analisar de
onde surgiram e quais seriam as estratégias empregadas pelos sujeitos na história
para constituir toda uma hierarquia social, que permitiam a reprodução de
comportamentos também diferencialmente apropriados, criando determinadas
“categorias de sujeitos”, em uma gradação de “gente” até “subgente”.

2
Desta forma, tornou-se possível compreender como o preconceito e a
discriminação raciais, no modo segundo o qual se manifestam no Brasil, se explicam
diferentemente, segundo se considere a organização da sociedade senhorial e
escravocrata; os efeitos da lentidão com que negros e mulatos foram incorporados
ao sistema de classes; ou os complexos de valores, atitudes e orientações de
comportamentos vinculados aos estilos de vida dos diversos segmentos sociais ou
dos vários grupos étnicos e raciais, mais ou menos determinados por situações de
classes, consolidadas ou não.
Por razões que ficarão claras no decorrer da leitura deste documento, foi
defendida uma desconstrução conceitual de determinadas justificações, que
aparecem como algo “natural”, e não como algo construído socialmente, ao
privilegiar positivamente alguns e estigmatizar outros. A relevância de nossa
intenção acadêmica reside nos esforços de se fazer perceber as ambiguidades
constitutivas das ideias dominantes (a ideologia) e tentar demonstrar o potencial de
chance, de mudança, de aprendizados coletivos possíveis nesses contextos de luta
de classes.
Assim compreendemos o dever da Ciência da Sociologia, que estuda a
complexidade da vida social, a interação do indivíduo com a sociedade, as relações
que ele mantém, a sua inserção na coletividade, e o dever também das teorias
críticas no mundo, especialmente a Teoria Social Crítica com foco nas periferias, nos
marginalizados e excluídos.

2 DESENVOLVIMENTO

2.1. As bases metodológicas desta investigação

Com a preocupação de apresentar, com maior nível de detalhamento, a


principal referência metodológica utilizada nesta investigação, julgamos ser
necessária a abordagem de alguns pontos fundamentais do método organizado por
Max Weber. Buscando garantir a qualidade do estudo realizado, ao longo de todo o
seu processo, foram aplicados os caminhos metodológicos sugeridos por este
pensador, como a forma mais fidedigna de compreensão de realidades sociais

3
complexas, quando se tem, como no caso em tela, o propósito de verificação dos
sentidos de determinadas condutas e de ações sociais de indivíduos participantes
da sociedade, em contexto histórico específico.
A seguir destacam-se as perspectivas teóricas da sociologia weberiana que
foram utilizadas neste trabalho, que possibilitaram a condução da investigação e a
coleta de dados por meio da revisão de literatura realizada e que, após terem sido
interpretados e analisados de acordo com as premissas de Weber, permitiram
proposições manifestadas como resultados finais.

2.1.2. A sociologia compreensiva de Max Weber

As contribuições do pensamento de Max Weber se inserem historicamente em


fins do século XIX e início do século XX, onde se processavam as primeiras disputas
sobre a metodologia das Ciências Sociais europeias, criando-se um movimento que
buscava fazer uma evidente separação com as Ciências Naturais, que já possuíam
notoriedade de desenvolvimento (TOMAZETTE, 2008). O método compreensivo
proposto por Weber se apresentava como o mais ideal para as Ciências Sociais, em
contraposição ao método explicativo, que era reconhecido como o adequado para as
Ciências Naturais (Idem, 2008).
As Ciências Sociais (ou Ciências do Espírito) se caracterizariam, sobretudo,
pela identificação do sujeito e do objeto, isto é, os “seres humanos como objetos
desta ciência, agentes socialmente competentes, que interpretam o mundo que os
rodeia para melhor agirem nele e sobre ele” (SANTOS, 2003, p. 56). Por sua vez,
explica o autor, nas Ciências Naturais são estudados objetos que são exteriores ao
sujeito, como os animais, planetas, materiais. E ainda, as Ciências Sociais se
caracterizam pela unidade inseparável dos julgamentos de fato e de valor, e pela
necessidade de compreender a significação vivenciada dos fatos sociais, enquanto
que as Ciências Naturais podem se limitar a uma explicação exterior dos
fenômenos, não necessitando compreendê-los (Ibidem, 2003).
Max Weber construiu um programa de pesquisa2 científica onde havia um
núcleo firme, ou seja, uma condição básica que não pudesse ser imediatamente

2
Segundo Imre Lakatos (1983), um programa de pesquisa consiste em um núcleo firme que é
protegido por um cinturão, e desenvolve as heurísticas positiva e negativa. Lakatos chamou de
Programa de Pesquisa Científica ao processo da existência deste núcleo firme, que não poderia ser
4
falsificada, portanto, considerado passível de retransmissão, aceita por convenção
provisória e protegido por um cinturão de teorias, onde aí se desenvolveriam a
heurística positiva e negativa (SCHLUCHTER, 2021). Esta heurística, em outras
palavras, o processo metodologicamente criado com o objetivo de se encontrar
soluções para um dado problema, deveria ter a sua vertente positiva (heurística
positiva) - o que poderia ser refutável, modificado ou aperfeiçoado - e a sua vertente
negativa (heurística negativa) – que seriam as ideias perenes, consideradas
irrefutáveis dentro do programa de pesquisa (Idem, 2021).
Ao contrário de Émile Durkheim e de Karl Marx, Max Weber não buscava a
análise do todo, da sociedade de forma geral, para procurar compreender as suas
partes, ou seja, as pessoas e as instituições; de forma diferenciada, procurava
entender os indivíduos para, a partir de suas condutas e ações, organizar uma
compreensão da sociedade (DA PAIXÃO, 2012). Weber formulou uma sociologia
compreensiva como uma ciência empírica da ação humana, uma sociologia com
toda a rigorosidade necessária de método e de objeto (SCHLUCHTER, 2014).
O núcleo firme do programa de Weber era a Antropologia3 e a sua suposição
era de que: “o homem, como um ser sensorial e sensato, é capaz de conduzir a sua
vida” (SCHLUCHTER, 2021). A sociologia weberiana procurava compreender como
o ator ou agente dava sentido à sua conduta, ou seja, à sua ação social, que poderia
ser racionalmente orientada, uma vez que, para ele, o indivíduo seria sempre
portador de uma intencionalidade (DA PAIXÃO, 2012). Em perspectiva comparada,
Weber procurou analisar as condutas de vida relacionando condições passadas e
modernas, através de uma sociologia interpretativa, tendo como premissa o

imediatamente falsificado, como poderiam sim, serem falsificadas as teorias. Essa combinação de um
núcleo firme e um cinturão de possíveis falsificações constitui o programa de pesquisa
(SCHLUCHTER, 2021).
3
A Antropologia é uma ciência das humanidades que estuda as diferenças entre várias culturas,
povos e grupos sociais, surgindo do encontro do mundo ocidental com os “outros” mundos, das
“descobertas”, feitas pelos europeus (MOSCAL & FRIGO, 2020). Segundo as autoras, a Antropologia,
principalmente a Antropologia social, nasceu do encontro mencionado e do etnocentrismo, mas
buscou superá-lo ao longo de sua história, e ainda procura superar as explicações do senso comum
sobre a diversidade humana. A Antropologia, explicam, entende os seres humanos com
características biológicas e comportamentais em comum, no entanto, busca explicar como vivem de
formas tão distintas, sendo que cada uma destas formas não são, de forma alguma, mais corretas ou
melhores que as outras possíveis. Para Bronislaw Malinowski, o objetivo da Antropologia seria
compreender o funcionamento das instituições e suas relações (políticas, religiosas, morais,
econômicas etc.), que estariam ambas ligadas a um determinado sistema cultural (RIBEIRO, 2016). A
cultura, para Malinowski, teria como finalidade unicamente satisfazer as necessidades humanas
primárias, por isso o foco de análise da Antropologia não deveria ser a cultura em si, mas as
instituições sociais, ou seja, os elementos concretos da cultura, uma vez que são estes que
organizam e regulam a ação humana (Idem, 2016).
5
entendimento de que o indivíduo seria orientado para objetivos com significados
(SCHLUCHTER, 2021).
Max Weber defendia que examinar o indivíduo e a sua intencionalidade poderia
ajudar a compreender os comportamentos individuais, de grupos e de instituições
(DA PAIXÃO, 2012). O método da sociologia compreensiva pregava que a ação do
sujeito deveria ser explicada de maneira compreensiva, ou seja, esta ação deveria
ser significativamente compreendida e, dessa forma, ser causalmente explicada no
seu curso e nos seus efeitos (SCHLUCHTER, 2014). Esta sociologia weberiana
seria uma ciência que pretendia compreender interpretativamente a ação social
(WEBER, 1998).
Os sentidos atribuídos pelo indivíduo à sua ação podem ser muito variados,
sendo, portanto, um ponto chave na sociologia weberiana (DA PAIXÃO, 2012).
Assim sendo, a sociologia compreensiva buscava determinar qual o sentido das
ações sociais, ou seja, compreender por que os indivíduos realizavam determinados
comportamentos (Idem, 2012).
A sociologia compreensiva, como ciência empírica da ação, possuía como
marcas distintivas, a compreensão e a explicação combinadas como “compreensão
explicativa” ou como “explicação compreensiva”, onde o “motivo”, ao mesmo tempo
sendo “justificativa” e “motivação”, poderia ser analisado como “causa”, em outras
palavras, um “motivo significativo” (SCHLUCHTER, 2014). Assim sendo, a
compreensão explicativa seria uma compreensão motivacional da ação social
analisada (Idem, 2014).

2. 1.3. O objeto de estudo da sociologia, na visão de Max Weber


O objeto de estudo da sociologia, para Max Weber, seria a ação do indivíduo
isoladamente considerado, incluindo-se também o omitir ou o permitir,
caracterizados por um sentido (subjetivo) em relação a certos objetos, seja esse
sentido já dado, seja ele intencionado, consciente ou não (SCHLUCHTER, 2014).
Essa relação da ação com objetos inclui entes físicos, culturais e sociais, ou seja,
também outros indivíduos (Idem, 2014). A ação social, na sociologia weberiana, é
uma atitude tomada pelo indivíduo influenciado por outros indivíduos, sendo,
portanto, um comportamento que possui um sentido orientado pela ação dos outros
(DA PAIXÃO, 2012).

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Para apreender um comportamento como ação, o raciocínio causal demanda
que o seu significado seja captado, por mais precário que esse procedimento possa
ser e, dando seguimento à análise deste significado, após a interpretação deve se
seguir a “prova da experiência”, devendo haver sempre uma congruência entre
adequação de sentido e adequação causal (SCHLUCHTER, 2014). A ação social só
ocorre quando o indivíduo atribui um sentido à sua conduta, havendo uma relação
significativa desta conduta com o comportamento dos outros indivíduos, o qual é
levado em consideração no seu ato (DA PAIXÃO, 2012).
A própria sociologia como ciência, para Max Weber, tem a missão de
compreender, significativamente e explicar causalmente, em seu curso e em seus
efeitos, a ação social (SCHLUCHTER, 2014). O objeto de estudo da sociologia, para
Weber, é a captação de sentido destas ações sociais (TOMAZETTE, 2008). O
objetivo primordial da sociologia weberiana, compreensiva, não consiste em explicar
exclusivamente as ações individuais, mas também as formas e os processos de
estruturação social (SCHLUCHTER, 2014).
Tendo, portanto, a ação social destaque básico na Sociologia Compreensiva,
torna-se relevante detalhar suas características mais importantes, o que será feito a
seguir.

2. 1.4. A ação social em detalhes, objeto da sociologia weberiana

Ação, puramente, seria qualquer conduta humana e ação social pode ser
entendida como uma “ação que, quanto a seu sentido visado pelo agente ou os
agentes, refere-se ao comportamento de outros, orientando-se por este em seu
curso” (WEBER, 1998, p. 3). Já a relação social seria a “conduta de múltiplos
agentes que se orientam reciprocamente em conformidade com um conteúdo do
próprio sentido das suas ações” (AMORIM, 2001, p. 85-86).
A ação especificamente importante para a Sociologia Compreensiva é um
comportamento, no qual: (a) o sentido subjetivamente visado do ator se relaciona
com o comportamento de outros; (b) por meio dele codetermina, em seu curso, a
relação de sentido; (c) cujo sentido subjetivo visado também é explicável de maneira
compreensiva (SCHLUCHTER, 2014, p. 201). A ação social entendida como
comportamento humano é, portanto, o objeto da sociologia, independente de se

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tratar de um fazer interno ou externo, permissão ou omissão, quando e na medida
em que este comportamento esteja interligado com um sentido subjetivo,
representante de determinados valores, validades, que se tornam a causa de uma
ação (Idem, 2014).
Para explicar as ações sociais, segundo Weber, é preciso compreendê-las
como fatos cheios de sentido, isto é, como algo que se relaciona com outros fatos e
somente em função disto é que podem ser compreendidas (TOMAZETTE, 2008).
Assim sendo, pode-se definir, uma vez mais, o método da sociologia compreensiva
como aquele que procura entender (compreender4) o sentido que as ações sociais
de um indivíduo contêm5 e não apenas o aspecto exterior dessas mesmas ações
(Idem, 2008). Para a sociologia weberiana, mais que explicar a realidade social, era
necessário que o pesquisador, fazendo uso de sua subjetividade, pudesse
compreender as motivações individuais, realmente íntimas, dos indivíduos ao agirem
(LACERDA, 2016)
De acordo com Weber, não é possível captar todos os sentidos das ações
sociais em uma realidade social, mas somente uma parte dessa realidade (DA
PAIXÃO, 2012). Complementando, o pensador aponta que não se pode analisar
uma ação social isoladamente, mas sim a partir de seus nexos com outras ações,
nas suas conexões singulares e de maneira relativa (TOMAZETTE, 2008).
A tentativa de compreensão das ações sociais é um processo subjetivo, onde,
sempre, estarão presentes os valores do investigador. Em função deste aspecto,
Weber construiu a “neutralidade axiológica”, para que, neste processo subjetivo de
análise do investigador, não fosse comprometida a objetividade do conhecimento
(DA PAIXÃO, 2012). Veremos, na sequência, do que se trata este constructo.

4
Pode ser entendida como compreensão, a apreensão interpretativa do sentido ou da conexão de
sentido de um fenômeno frequente, a busca por entender quais são as intenções subjetivas dos
agentes. Compreensão é a capacidade de compreender, entender ou assimilar algo, sendo um
processo cognitivo, ou seja, relativo ao conhecimento, onde é necessária a interpretação de
determinada coisa para que seja apreendida pelo indivíduo
(https://www.significados.com.br/compreensao/). Na Sociologia Compreensiva de Max Weber, é
essencial captar o conteúdo, o sentido das ações sociais humanas impresso pelos sujeitos
praticantes (TOMAZETTE, 2008).
5
O conteúdo pode ser compreendido como aquilo que está contido ou encerrado em algo ou aquilo
de que algo é constituído. A oposição conteúdo/forma serve a analogia entre significado (conteúdo) e
significante (forma). A forma de apresentar uma mensagem é a estrutura (é como se diz), o conteúdo,
por sua vez, é a unidade de sentido da mensagem (é aquilo que se diz)
(https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/conteudo).
8
2. 1.5. A neutralidade axiológica
Na obra de Max Weber e, por conseguinte, na sua vida individual, a
neutralidade axiológica6 ou precisamente, a “isenção de valores” (Wertfreiheit)
assume um papel fundamental e, por sinal, onipresente, em seus postulados
teóricos (PEREIRA, 2013). Weber acreditava ser esta uma das características
essenciais do trabalho científico (MATA, 2010).
Na época de Weber, o uso da objetividade em contraposição à subjetividade
era uma aspiração intelectual no campo do positivismo do século XIX e significava a
independência completa dos valores e posições do investigador, denotando,
basicamente, a análise pura de um objeto, sem intermediários (PEREIRA, 2013).
Assim agindo, a compreensão dos fenômenos sociais e políticos, em termos
científicos, só teriam validade a partir do momento em que o cientista social
abnegasse de seus valores e concepções pessoais, realizando uma análise precisa
de um determinado fenômeno, sem mediações e não influenciado por ideologias
(Idem, 2013).
Na conjuntura da época de Max Weber, no contexto histórico-cultural da
República de Weimer na Alemanhã, instaurada logo após a Primeira Guerra
Mundial, havia uma hegemonia das Ciências Naturais e do Positivismo, com as
universidades alemãs sendo impregnadas de ideologias e de profissões de fé em
relação à política e à religião (PEREIRA, 2013). Em função disto, Weber buscou
valorizar um conhecimento objetivo, longe de juízos de valores e comprometido com
a realidade concreta, ou seja, com a neutralidade científica (Idem, 2013).
No entanto, Weber sempre problematizou a ideia de objetividade, colocando-a
em discussão (MATA, 2010). O próprio Max Weber afirmava que a neutralidade
seria impossível nas ações humanas, uma vez que estas sempre são motivadas por
uma razão (racionalismo) (CORRÊA, 2021). Deve-se reconhecer o avanço
intelectual de Max Weber, em sua tentativa, mesmo que cheia de falhas e lacunas
teórico-metodológicas, de defender a isenção de valores, justificando a possibilidade
de distanciamento dos tratamentos convencionais, ingênuos e acríticos, através da
adoção da neutralidade axiológica (PEREIRA, 2013).

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A Axiologia é a Ciência dos Valores ou, mais adiante, um ramo científico que, para além das
questões valorativas, preocupa-se em elaborar um conhecimento, por assim dizer, objetivo.
Analisando a axiologia do ponto de vista prático e não somente teórico, conclui-se, de fato, que é uma
proposta de difícil aplicação (VIANA, 2007).
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No processo subjetivo de investigação da realidade, para não comprometer a
objetividade do conhecimento, segundo Weber, o pesquisador deve “levar em conta
os seus próprios valores” na interpretação das ações sociais, isolando-os,
identificando-os, e não os atribuindo a aqueles que efetivamente praticam a ação
social analisada (DA PAIXÃO, 2012, p. 119). Weber pregava uma separação entre
os valores alimentados pelo investigador e suas conclusões na pesquisa científica,
significando uma contenção dos próprios julgamentos, para que os dados obtidos
permanecessem bem claros, tanto em face de fatos desejados, como daqueles ditos
desconfortáveis (TOMAZETTE, 2008). No propósito de compreender
verdadeiramente a ação dos homens, Weber defendia que o cientista social deveria
evitar a contaminação do conhecimento científico obtido com os “resíduos”
valorativos dele próprio, mantendo um distanciamento com o objeto analisado (Idem,
2008).
Em relação às orientações teórico-práticas da neutralidade axiológica, o próprio
Weber afirmava que não poderia existir qualquer análise objetiva “pura” da vida
cultural, uma vez que seria impossível conseguir independência de certas
perspectivas especiais e parciais que já estariam condicionadas no próprio processo
de escolha do objeto da pesquisa e já vinculadas aos valores do investigador
(TOMAZETTE, 2008). No entanto, segundo Weber, o que se deve buscar é uma
postura que não comprometa os resultados da investigação, ou seja, que não esteja
contaminada com valores pessoais preconcebidos (Idem, 2008). As perguntas da
investigação são, verdadeiramente, oriundas da perspectiva do pesquisador, mas,
as respostas devem constituir-se livres de julgamentos ideológicos (WEBER, 2006).
Como já foi dito anteriormente, Max Weber apontava que a sociedade não é
superior ao indivíduo, ou uma estrutura que se impõe. A realidade social apareceria
como uma “teia” formada pelas relações entre os indivíduos. Na sociologia
compreensiva, caberia ao sociólogo estudar qual é o sentido que o indivíduo confere
à ação que executa, sendo estes sentidos infinitos. Neste processo, não haveria “leis
gerais” que orientariam ou determinariam previamente as interações sociais, uma
vez que estas não existem. (DA PAIXÃO, 2012).
No desenrolar das ações compreensíveis também penetram elementos não
compreensíveis que podem apenas ser observados, segundo Weber
(SCHLUCHTER, 2014). O observador, neste caso, nem sempre pode reconhecer o

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verdadeiro motivo do observado, seja porque os motivos da ação estão ocultos, seja
porque o motivo da ação é inacessível ao próprio observado-ator. Weber, portanto,
privilegia na investigação, as “conexões de sentido racionalmente compreensíveis
da ação” (Idem, 2014, p. 204).
Max Weber entendia a Sociologia como uma ciência que explica porque o
comportamento das pessoas é exatamente de uma forma e de nenhuma outra forma
(SOUZA, 2021a). Este teórico afirmava que as “cabeças” das pessoas poderiam
estar “cheias de ideias”, mas o que importava, para o analista social, era como elas
se comportavam. Como as pessoas estão imersas em uma determinada cultura, e
para Weber, toda cultura tem um racionalismo, ou seja, uma forma de perceber o
mundo nas três dimensões possíveis, quais sejam: em relação à subjetividade, ao
mundo externo e a dimensão moral, as formas como as pessoas se comportam em
relação a essas três formas ou dimensões vão dizer quem elas são (Idem, 2021a).
Para Weber, o ser humano é construído pela sociedade e não um indivíduo
atomizado. As formas como o ser humano percebe o mundo são construções sociais
e para que isto aconteça, é fundamental a interveniência das instituições, que
permitem ao investigador estudar e compreender qual é o racionalismo específico de
cada cultura. Veremos em seguida, o que são as instituições, na visão de Max
Weber.

2. 1.6. As instituições sociais

Para Mario Rainer Lepsius7, as Instituições estão vinculadas às ideias que as


interpretam e legitimam, ao mesmo tempo em que são por elas concretizadas. As
instituições limitam interesses, ao mesmo tempo em que possibilitam sua busca
legitima, sejam estes interesses de natureza material, sejam de natureza ideal,
sejam internos, sejam externos, sejam individuais, sejam coletivos (SCHLUCHTER,
2014). Na visão de Max Weber, as instituições são modos de agir consolidados na
sociedade (DA PAIXÃO, 2012).

7
O Prof. Dr. Mario Rainer Lepsius (1928-2014) foi catedrático na Universidade de Heidelberg,
especialista na obra de Max Weber, que costumava apresentar nas suas conferências, os contornos
gerais do paradigma weberiano, destacando o seu caráter tridimensional (ação, estrutura e cultura) e
sua dimensão histórico-processual, centrada no processo de racionalização
(https://periodicos.ufsc.br/index.php/emtese/article/view/74803).
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As instituições conectam ideias e interesses na medida em que criam espaços
legítimos de ação nos quais os interesses podem afluir e em cujos limites eles são
homogeneizados ou, pelo menos, canalizados (LEPSIUS, 2021). Max Weber
também compreendia as instituições como mediação de ideias e interesses, que
criam determinadas “imagens de mundos” (SCHLUCHTER, 2014, p. 58).
A sociologia weberiana engloba a ação social, a estruturação de mecanismos
de coordenação dessa ação e os contextos de sentido que as orientam, tratando-se
de uma perspectiva complexa (LEPSIUS, 2021). A tridimensionalidade ação-
estrutura-cultura não pode ser confundida com uma análise de múltiplos níveis
concebida de forma linear e hierárquica. No nível do “ator social”, a ação social
ocorre em um contexto estruturado e em referência a certas representações de
valor; o nível da “coordenação da ação” é composto por regras, organizações,
associações e as instituições, e relaciona-se tanto com contextos de sentido que os
legitimam quanto com a ação social e; por fim, o nível das “representações culturais
de valor” engloba múltiplas combinações de ideias de valor que orientam, como
princípios seletivos, formas de orientação da ação e legitimam as ordens sociais
(Idem, 2021).
Para finalizar esta seção onde apontamos os principais referenciais conceituais
e metodológicos, organizados por Max Weber, que foram utilizados para fortalecer
os esforços cognitivos desta investigação, mencionaremos a seguir, de forma
resumida, o modelo explicativo da ligação macro-micro-macro, onde este pensador
fundamentou o seu individualismo metodológico para explicar os fenômenos
macroestruturais da sociedade.

2. 1.7 A ligação macro-micro-macro no método da Sociologia Compreensiva

O sociólogo estadunidense James Coleman8 defendeu que o estudo de Max


Weber, “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, escrito em 1904-1905 e

8
James Samuel Coleman foi um sociólogo nascido nos Estados Unidos, fundador da revista
Rationality and Sociology e presidente da American Sociological Association, conhecido sobre tudo,
pelo desenvolvimento da Teoria da Eleição Racional. Coleman se definia como “individualista
metodológico”, admitindo que a Sociologia deveria centrar-se nos sistemas sociais, e insistindo que a
explicação destes estariam em fatores essencialmente individuais. Coleman desenvolveu a ideia
básica de eleição racional, afirmando que as pessoas atuam intencionalmente em busca de uma
meta, e, para alcançá-la, utilizam alguns recursos, que são definidos como todas as coisas sobre as
quais os atores (agentes) possuem controle (https://es.wikipedia.org/wiki/James_Samuel_Coleman).
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revisto em 1920, pode ser considerado um modelo explicativo viável na Ciência
Sociológica, por fazer a necessária ligação “macro-micro-macro” (SCHLUCHTER,
2021). Com este estudo e usando desta metodologia, Weber foi bem sucedido
aderindo ao Individualismo Metodológico para explicar os fenômenos
macroestruturais na sociedade (Idem, 2021).
Esta metodologia possui algumas premissas importantes, sendo as principais
apontadas a seguir (SCHLUCHTER, 2021; DA PAIXÃO, 2012):
a) para escapar dos “problemas de fundo” envolvidos na compreensão das
ações, Weber privilegia o esquema interpretativo de tipo racional final9, pragmática e
objetiva, na qual os atores se encontram, em outras palavras, as “conexões de
sentido racionalmente compreensíveis das ações” (SCHLUCHTER, 2021, p. 204).
b) para Weber, o indivíduo é sempre portador de uma racionalidade, em maior
ou menor grau, uma vez que ele atribui sentido à sua ação. A ação, portanto, é
dotada de intencionalidade.
c) no entanto, Weber também admite as interpretações psicológicas, ou seja,
em relação ao ator da ação vai haver uma racionalidade subjetiva final e uma
racionalidade subjetiva valorativa. Junto da compreensão pragmática vai existir a
compreensão psicológica, com motivos racionais e motivos irracionais.
d) o indivíduo age levando em consideração o comportamento dos outros e as
normas sociais institucionalizadas na sociedade (formais e informais10).
e) a legitimidade ou legitimação é o processo de obedecer às normas sociais
institucionalizadas, formais e informais, guiando o comportamento (conduta) pela
existência delas, em função do temor pela punição que elas impõem e em função do
convencimento de que elas são verdadeiras.
f) as pessoas que exercem a dominação, ou seja, que conseguem impor a sua
vontade, que contam com a obediência daqueles que teoricamente devem
obedecer, são capazes de ditar as normas sociais, institucionalizando-as, por fim,
legitimando-as.

9
Na Sociologia Compreensiva de Max Weber, existem os “Tipos Ideais” que são teorizações,
idealizações, construções mentais feitas pelo investigador para a análise das ações sociais. A “ação
social racional com relação a fins” é aquela onde o indivíduo age tendo em vista os meios mais
adequados para alcançar os fins desejados, de forma racional (DA PAIXÃO, 2012).
10
As normas formais são as leis, as normas informais são os costumes. Os indivíduos produzem
leis e costumes, sendo orientados por ambos, e ainda, sendo produtores e produtos das normas
sociais. As normas sociais formais produzem o modo de agir em sociedade, ou seja, com base nas
leis. As normas sociais informais produzem o modo de agir em comunidade, com base nos costumes
(DA PAIXÃO, 2012).
13
g) Weber demonstrou que a cultura possui uma força viável a fim de fazer
surgir novas culturas que interajam com as estruturas. Esta combinação foi possível
de ser analisada através da sua visão de “Afinidade Eletiva11”. Para Weber, não é a
cultura que produz a estrutura, nem a estrutura que produz a cultura. Elas possuem
causas independentes e interdependentes, ou seja, afinidades eletivas. Sempre
deve ser necessário fazer uso da a análise bilateral e não unilateral.
h) Max Weber chamou de “Racionalização”, “Secularização” ou
“Desencantamento do Mundo” ao processo da Sociedade Moderna, na sua ordem
social, na organização da vida com base nas normas sociais institucionalizadas, de
abandono das concepções mágicas, tradicionais, religiosas, acríticas, para adesão
às formas baseadas no conhecimento técnico, científico e burocratizado para
alcançar os fins desejados.
A racionalização, segundo Max Weber, pode ser positiva, quando torna a
sociedade mais organizada e inteligível para as pessoas ou negativa, quando
exagera no número de regras e normas, quando inibe a criatividade e a
inventividade dos indivíduos, retirando sua autonomia e aprisionando os sujeitos em
uma “jaula de ferro”, ou seja, ao simples cumprimento de regras, perdendo o sentido
das ações e a liberdade (DA PAIXÃO, 2012).
O modelo explicativo “macro-micro-macro”, adotado por Max Weber, onde
estão presentes as premissas descritas anteriormente, pode ser resumido na
imagem nº 1 a seguir.

11
A Afinidade Eletiva é um constructo criado por Max Weber através do qual ele afirma que não é a
interpretação da causa de dois fenômenos que causam um ao outro. A afinidade é um tipo de
correlação entre dois fenômenos. A correlação não causa a interpretação. Os dois fenômenos podem
surgir juntos, mas isso não significa que um fenômeno foi causador do outro (SCHLUCHTER, 2021).
A noção central para a interpretação dessa complexa multicausalidade dos fenômenos, através dos
principais elementos da conduta prática, analisados pela afinidade eletiva (Wahlverwandschaft), está
presente no “tratamento das relações de reciprocidade entre as diversas esferas da sociedade, sem
reduzir uma como simples função de outras”. Ao invés de necessidades ou funções refere-se Weber
sempre a “chances” ou “probabilidades” (SOUZA, 2021b, p. 64).
14
Imagem 1 – Descrição resumida do modelo de explicação da formação dos fenômenos macro-
estruturais a partir da análise aprofundada dos processos micro-estruturais, segundo Max Weber.
Fonte: elaboração própria a partir dos estudos de Wolfgang Schluchter (2014).

A partir das descrições da imagem nº 1, pode-se desenvolver a seguinte


explicação do modelo teórico de Max Weber sobre como se formam, no decorrer dos
contextos históricos, os fenômenos institucionais macroestruturais nas sociedades e,
como eles podem ser analisados sociologicamente (SCHLUCHTER, 2021, 2014):
- a relação existente entre dois fenômenos macroestruturais não é direta. O
estudo desta relação é alcançada através da análise microestrutural.
- é preciso desviar, do nível macro para o nível micro e, depois, do nível micro
novamente para o nível macro.
- é preciso formular um “problema de análise”, em três passos: (1º) definir a
situação, que é a ligação macro-micro, onde há uma cultura 1, um contexto de
sentido 1, que figuram uma ordem social 1 e uma estrutura macrossocial 1. A
ligação macro-micro é realizada por meio da internalização e pela sanção das
pessoas, de atores, de agências. No processo de socialização e educação, são
gerados certos valores em seus adeptos; (2º) é preciso selecionar um curso de
ação, que é a ligação micro-micro, onde o ator ou agente, atores e agentes,
apresentam motivações, tipos de condução da vida (conduta) em coletividade.
Indivíduos com certos valores citados no passo 1º adotam certos tipos de orientação
para o comportamento (conduta) como um “dever de vocação”; (3º) a ligação micro-

15
macro é representada por uma nova legitimação, necessária para um novo
cancelamento e para que uma nova apropriação dos meios de produção e coisas do
tipo, possam ser alcançadas. Certas orientações para o comportamento, citadas no
passo 2º, da parte dos indivíduos, com diversas ações combinadas, ajudam a trazer
uma organização na sociedade. Com as novas condutas legitimadas, há a formação
de uma cultura 2, um contexto de sentido 2, que figuram uma ordem social 2 e uma
estrutura macrossocial 2, havendo uma multiplicidade de ações nestes fenômenos
macro.
Segundo Weber, o ator ou agência é o ponto fundamental para a conexão
entre o nível macro, em primeiro nível (cultura 1; estrutura macrossocial 1) com o
nível macro, em segundo nível (cultura 2; estrutura macrossocial 2) (SCHLUCHTER,
2021). Os atores mediam as relações macro-macro, em outras palavras, os
fenômenos estruturais, fenômenos estes mediados, como dito, na forma de atores,
sejam eles indivíduos ou coletividades, ou de estratos de classe, ou de classes
inteiras. Os atores são, portanto, tomadores de decisão e perseguem seus
interesses pessoais, fazendo isso, até certo ponto, de uma forma racional. (Idem,
2014).
É importante destacar aqui, que qualquer ação do ator tem não apenas
consequências intencionais, mas também consequências não intencionais ou
imprevistas. Isso pode promover tanto o bem comum, como destruí-lo. E ainda, os
planos dos atores nunca se materializam totalmente (WEBER, 2006).
A Sociologia Compreensiva de Max Weber visa oferecer explicações baseadas
no estudo aprofundado a nível microestrutural, no contexto de análises de múltiplos
níveis e bilaterais (como se dá o controle, como se processa a dominação,
institucional e estrutural) (SCHLUCHTER, 2021). Estes múltiplos níveis são inter-
relacionados em macro e micro, pela ação de atores que possuem orientação e são
capazes de coordenação12 (Idem, 2021).

12
Para Max Weber, dois ou mais atores estão conectados entre si, por modos de coordenação da
ação, realizando interações, pelas formas de usos, costumes, interesses e crenças na validade e na
verdade. Por sinal, a dominação sempre vai estar conectada à crença na validade. (SCHLUCHTER,
2021).
16
2.2. A utilização dos referenciais da Sociologia Compreensiva para investigar
as características primordiais epistemológicas da dominação social que
fundamentou, de forma estrutural, a desigualdade social brasileira

Foi visto, nos apontamentos anteriores, que no estudo do racionalismo de


Weber, é preciso separar o que é “mais importante” e o que é “secundário”, ou seja,
para que a análise social-científica do investigador possa ser realizada com eficácia,
precisa haver uma hierarquização de importância entre o principal e o secundário
(SOUZA, 2021a). O racionalismo vai possibilitar compreender, a partir da
hierarquização construída pelas culturas, as formas de comportamento das pessoas
no mundo (Idem, 2021a).
A partir da perspectiva da Sociologia Compreensiva de Max Weber, pretendeu-
se, com este estudo, lançar mão de seus principais constructos para compreender
os principais elementos das condutas práticas de determinados atores da sociedade
brasileira, que criaram e legitimaram fortes processos estruturados de dominação e
exploração de uns indivíduos sobre os outros, ao longo do processo histórico. Não
almejando esgotar os conhecimentos possíveis de serem captados e apresentá-los
somente nesta revisão de literatura, a presente investigação foi construída e pautada
nas publicações que tiveram como foco de atenção o tema da dominação social, que
fundamentou a criação de estruturas de desigualdade social, efetivamente aplicadas
no Brasil.
Alocando-se dentro de um paradigma crítico e construtivista, tendo como
enfoque geral de tipo qualitativo, com finalidade aplicada, o texto construído neste
trabalho, bibliográfico e descritivo, esmerou-se na obtenção de fontes imersas na
Teoria da Ação Social Crítica (RODRÍGUEZ GÓMEZ et al., 1999 apud GARCÍA DE
CERETTO & GIACOBBE, 2009), alicerçada em autores e autoras decoloniais,
brasileiros e estrangeiros. Esforçando-se por manter a neutralidade axiológica dentro
de limites academicamente e eticamente toleráveis, o estudo realizado pautou-se na
aplicação do método da Sociologia Compreensiva, a partir dos relatos das
produções bibliográficas examinadas, o que permitiu analisar, de forma orientada,
não somente as ações individuais dos sujeitos-atores, mas também as formas e os
processos que originaram contextos culturais duradouros e longevos de estruturação
social e de dominação.

17
Como núcleo firme desta investigação apresentou-se o “processo primordial
de dominação social criador de desigualdades sociais”. Nos materiais literários
estudados, objetivou-se captar quais os significados e sentidos das ações sociais
(intenções) realizadas pelos atores-agentes (indivíduos, grupos e instituições)
relatadas pelos autores das obras, em um esforço de interpretar e compreender os
seus comportamentos: porque agiram assim? quais foram as orientações recebidas
e de onde vieram? qual seria o raciocínio causal possível de ser organizado na
leitura das tramas sociais? E, por fim, pretendeu-se explicar, de maneira
compreensiva, os resultados encontrados.
A seguir, apresenta-se a materialização destes esforços.

3 A DOMINAÇÃO SOCIAL

Em todas as sociedades humanas existiram e existem formas de dominação e


exploração de determinados grupos sobre outros. Neste cenário, a formação de
ideias é muito importante para legitimar todas as formas de dominação existentes
(SOUZA, 2021a). As classes dominantes, detentoras do poder econômico e político,
como grupos privilegiados que são, realizam estratégias propositais para que desse
modo possam criar, reproduzir e legitimar sua dominação social (SOUZA, 2021c).
Segundo o sociólogo Jessé Souza (2021a), Max Weber compreendeu que,
para que um determinado grupo social possa ser explorado, este precisa ser
convencido da sua inferioridade em relação aos grupos dominantes. Neste
propósito, explica, um corpo de ideias é criado para permear a sociedade como um
todo, visando inocular nas pessoas esta noção de inferioridade. Os grupos sociais
privilegiados atuam ativamente e eficientemente contra a articulação e contra a
defesa política consciente das grandes massas excluídas, fazendo uso, para tal, de
seu monopólio privado dos meios de informação e de difusão do conhecimento
(SOUZA, 2021c).
Os seres humanos são formados por instituições, ou seja, são montados pela
força e pelas influências de instituições que representam práticas sociais que se
repetem e apontam em uma direção específica em relação à adoção de
determinados comportamentos (SOUZA, 2021a). As práticas sociais não são

18
genéticas, são comportamentos aprendidos, são práticas de sujeição, como afirmou
Weber, transmitidas por instituições importantes e decisivas, como a família, a
escola, o Estado, que vão tornar os indivíduos sociáveis para que tenham algumas
possibilidades de atuação no mundo (Idem, 2021a). Daí surge a importância
fundamental de perceber como as ideias são criadas e qual o seu papel na forma
como a sociedade vai definir seu caminho específico. Não apenas a mídia, mas
também os indivíduos e as classes sociais vão definir sua ação prática,
comportamental, quer tenham ou não consciência disso, a partir desse mesmo
repositório de ideias criadas. Por conta disso, quem controla a produção das ideias
dominantes, tem o poder de controlar o mundo (SOUZA, 2019).
Os valores subjetivos das ideias criam teorias e é preciso fazer com que as
pessoas as aceitem e, para tal, estas devem suscitar sentimentos de identificação
destas pessoas com as teorias propostas (PARETO, 1984). Segundo o autor, a
utilidade social das teorias é a busca pelo controle e manutenção da ordem social,
como forças de persuasão, em favor das elites dominantes ou os estratos
superiores.
O sucesso de um sistema político qualquer depende, em grande medida, da
existência de um grau significativo de congruência entre as instituições concretas
(formais) e os valores, crenças e atitudes políticas (instituições informais) partilhadas
pelos cidadãos (GIMENES, 2014). No plano subjetivo, explica o autor, é fundamental
que ocorra a adesão dos indivíduos, no plano normativo, ao sistema político vigente,
sendo necessária uma larga margem de legitimidade para o correto funcionamento
do sistema político de interesse.
Procuramos, neste estudo, identificar impressões sobre a gênese da
dominação social que originou a dominação histórica das classes dominantes sobre
a grande maioria da população brasileira, a partir do apontamento de vários autores
e autoras. Nesse sentido, cabe mencionar, como ponto de partida, que o Brasil não
forma uma comunidade política verdadeiramente nacional, pois a maioria das
pessoas está excluída da participação efetiva e eficiente dos direitos civis e políticos
(NASCIMENTO, 2016). Segundo este autor, o Brasil também não é uma sociedade
democrática, pois o poder está institucionalmente concentrado no topo das classes
possuidoras do dinheiro, da articulação política e da criação das ideias ideológicas e
hegemônicas.

19
As elites também influenciam na reprodução das crenças através do controle
das instituições chave e de poder, determinando a conduta dessas mesmas
instituições, disseminando mudanças em parcelas da sociedade, ou seja, as de seu
interesse imediato (GIMENES, 2014). Dessa forma, expõe o autor, as elites
econômicas e políticas são capazes de conduzir à incorporação de determinadas
crenças, pelo prestígio que possuem. Os valores e concepções políticas transmitidas
pelas pessoas que possuem posição de destaque na sociedade são mais facilmente
assimilados pelos cidadãos médios, tornando as elites importantes personagens na
elaboração de difusão dos elementos que compõem a cultura política de um grupo
ou uma nação (Idem, 2014).
Para Gaetano Mosca (1992), a classe política é uma minoria organizada que
monopoliza os recursos de poder e os utiliza em benefício próprio, além de exercer
todas as funções políticas e a utilização das formas de controle para influenciar
decisões políticas, enquanto a massa é constituída por indivíduos dominados, que
não dispõem da posse dos meios de governo e se constituem uma maioria
desorganizada, portanto, enfraquecida. Quanto mais vasto é um grupo tornado
vulnerável, maiores serão as suas discrepâncias e maiores serão as possibilidades
de domínio por parte dos grupos organizados e fortes política-economicamente
(GIMENES, 2014).
Dando sequência ao texto, serão discutidas as principais formas que foram
empregadas historicamente pelas elites para construírem e manterem a sua
dominação social sobre alguns grupos que foram tornados marginalizados,
diminuídos em sua importância, excluídos e empobrecidos, em todas as dimensões
da vida. Na visão de diversos autores e autoras, a existência de interesses comuns
das elites de pequenos grupos são motivos primordiais pelos quais elas sempre se
organizaram de forma coesa e coordenada, em minorias, para o exercício e
manutenção de seu poder: para o monopólio sobre o poder político; para manter a
hereditariedade familiar (transmissão de conhecimento, bens e relações pessoais);
para preservar a estabilidade; e, para estabelecer, permanentemente, o
convencimento da sociedade (através da construção de crenças) sobre a
necessidade de todos acreditarem na necessidade de sua continuidade no poder.

20
Neste sentido apresentado, Mosca (1992) enfatizou que toda sociedade
humana se divide em uma minoria que governa e uma maioria que é governada,
sendo a minoria responsável pela condução da História, à sua maneira.
Começaremos, na sequência, a elencar as diversas formas estratégicas de
dominação de determinados grupos sociais sobre outros, abordando primeiramente
as mais antigas (e talvez as mais poderosas) de todas: a religião e a natureza.

3.1 A dominação social através da criação de leis divinas religiosas e leis da


natureza

Em seus estudos, Max Weber percebeu que durante dois mil anos (entre 1.000
a.c. e 1000 d.c.) surgiram no mundo as grandes religiões, que significaram uma
forma peculiar e singular de perceber o mundo, um racionalismo diferenciado e
específico de compreender este mundo (SOUZA, 2021a). As grandes religiões
fundaram grandes culturas, que, em realidade, limitaram as possibilidades de
desenvolvimento dos indivíduos em função de suas regras morais (Idem, 2021a).
A religião vai ser a base de todas as “esferas simbólicas” dos indivíduos, ou
seja, a institucionalização das religiões vai organizar as várias “esferas de suas
vidas”, como o direito, a arte, a moralidade, o erotismo etc, que se diferenciaram em
campos específicos e distintos (SOUZA, 2021d). Cada religião mundial específica
vai criar suas próprias respostas sobre as grandes questões existenciais humanas (o
sentido da vida13), absolutizando um ponto de partida em detrimento de vários outros
possíveis e, com isso, cada sociedade vai ter uma compreensão diferenciada do
mundo, a partir de sua própria religiosidade (idem, 2021d).
O conceito de religião provém de religio, vocábulo relacionado com religatio,
que é a substantivação de religare, que significa religar, vincular, atar (CORRÊA,
2021). A condição de ser um indivíduo religioso, portanto, está relacionada a estar
“religado a Deus” e, por conseguinte, subordinar-se à divindade, que é um mito14

13
O sentido da vida para as religiões diz respeito a responder às questões primordiais: de onde
viemos? quem nós somos? para onde iremos? (SOUZA, 2021d).
14
Um mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (astros, Terra, homem, plantas, animais,
fogo, água, ventos, bem, mal, morte etc) (CHAUÍ, 2013). O mito é uma intuição compreensiva da
realidade, uma forma espontânea de o homem situar-se no mundo. As raízes do mito não se acham
nas explicações exclusivamente racionais, mas na realidade vivida, portanto, pré-reflexiva, das
emoções e da afetividade (ARANHA & MARTINS, 1993). Segundo Bronislaw Kasper Malinowski
(s.d.), o mito cumpre uma função intimamente ligada à natureza da tradição e da continuidade, com a
21
(Idem, 2021). Neste sentido, a base da qual se constitui a religião é o mito, ou como
afirma Geertz:

A religião é um sistema de símbolos que atua para estabelecer


poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos
homens através da formulação de conceitos de uma ordem de
existência geral e vestindo essas concepções com tal aura de
fatualidade que as disposições e motivações parecem singularmente
realistas (1978, p. 104-105).

Para Max Weber, a religião é mais uma forma de legitimar privilégios para uma
determinada classe social, em diversas dimensões: políticas, sociais, econômicas
etc. Segundo ele, “a religião deve responder, de modo convincente, as questões
existenciais e de necessidades humanas, ao mesmo tempo em que deve legitimar
privilégios dos grupos que serão os suportes desta religiosidade” (SOUZA, 2021d).
Neste sentido, o autor explica que é criada toda uma estrutura hierárquica de
dominação de determinados grupos sobre outros, baseada nos pressupostos da
religião adotada.
No Ocidente e no Oriente, as religiões criaram versões específicas que
explicaram a criação das classes sociais e sua hierarquia, colocando indivíduos e
grupos em posições de dominação e de subordinação, por “designo dos deuses”, de
forma incontestável e eterna (WILKERSON, 2021). De acordo com a autora, através
das religiões, foi estabelecida uma legitimação da dominação de povos mais
poderosos sobre outros, licenciando o uso da escravização, de injustiças, de
atrocidades e de violência diversas em nome dos deuses e da natureza.
As religiões orientais impessoalizaram as divindades, que foram inscritas nas
coisas e na natureza, ao passo que as religiões ocidentais pessoalizaram as
divindades, que foram representadas por pessoas (SOUZA, 2021d). O autor explica
que, no ocidente, portanto, sendo as divindades uma pessoa, por “mandamentos de
conduta” que ela impunha para os seguidores de uma determinada religião, ocorreu
uma tensão ética entre a mensagem religiosa imputada e o mundo, surgindo a
disciplina pessoal como necessária para a conquista da “salvação”. A dimensão
moral era direcionada pela religião, determinando como deveriam ser os

atitude humana em relação ao passado. O autor afirma que a função do mito é reforçar as tradições,
dando-lhes valor e prestígio, unindo-as às mais altas, melhores e mais sobrenaturais realidades dos
acontecimentos iniciais (https://www.netmundi.org/filosofia/2019/antropologia-da-religiao-introducao-
e-principais-autores/).
22
comportamentos humanos. Pode-se afirmar, consequentemente, que não existiu
nenhum movimento posterior de dominação secular15 que não tenha sido
influenciado por questões religiosas no mundo (Idem, 2021d).
A força coletiva e impessoal da religião foi também analisada por Émile
Durkheim, que afirmou a sua sobreposição às consciências individuais. Portanto, ele
atestou que a religião foi sempre utilizada como uma força exterior que se impunha
aos homens, submetendo-os a uma certa moralidade (CORRÊA, 2021). Na maioria
das vezes, explicou Durkheim, a religião não foi empregada para fazer o indivíduo
pensar ou para enriquecer o seu conhecimento, mas possui como premissa uma
função moralizante e de regulação do seu convívio com os outros indivíduos (Idem,
2021).
A partir da Idade Média, os intérpretes do Velho Testamento cristão, por
exemplo, descreveram como “malditos16” todos os seres humanos que possuíam a
pele escura, que deveriam ser condenados à escravização, segundo os emissários
dos deuses, por conta de seus pecados cometidos no passado (WILKERSON,
2021). A Igreja Católica, de acordo com os estudos do Professor Abidas Nascimento

15
A secularização ou o “desencantamento do mundo” foi a transformação ou passagem de coisas,
fatos, pessoas, crenças e instituições, que estavam sob o domínio religioso, para o regime leigo
(SOUZA, 2021d). O “encantamento do mundo” foi a magicização do mundo, onde havia agentes
muito especiais, com poderes extra-cotidianos, os magos e a presença de círculos de representações
mágico-religiosas deste mundo existente. Para Max Weber, o mundo era um jardim mágico, em
relação ao qual, no relacionamento com o além-mundo, foram utilizadas de coerção e de
manipulação. O grande processo histórico de desencantamento do mundo se iniciou com a profecia
do judaísmo antigo que, em associação com o pensamento científico helênico, descartou todos os
meios mágicos de busca de salvação como superstições e sacrilégios, encontrando seu término no
protestantismo ascético (SCHLUCHTER, 2014).
16
A “Maldição de Cam” diz respeito às palavras descritas em textos sagrados do Velho Testamento,
do mundo ocidental. Segundo as escrituras, houve um grande dilúvio, abriram-se janelas do céu e as
fontes das profundezas. Por instruções divinas, Noé e seus filhos sobreviveram às águas do dilúvio
numa arca, durante mais de quarenta dias e quarenta noites, e a partir daí Noé se assentou em terra.
Seus filhos eram Sem, Cam e Jafé, que se tornaram progenitores de toda a humanidade. Em certa
ocasião, Noé plantou uma vinha e, mais tarde, tomou o vinho do fruto da vinha. Embriagou-se e
deitou-se nu dentro de sua tenda. Cam, que teria um filho chamado Canaã, entrou por acaso na
tenda, viu a nudez do pai e contou aos dois irmãos lá fora. Sem e Jafé pegaram um manto e puseram
nos ombros, entraram na tenda e cobriram a nudez do pai. Estavam com o rosto virado para o outro
lado, para não ver o pai despido. Quando Noé despertou da embriaguez e soube o que Cam havia
feito, amaldiçoou Canaã, o filho de Cam, e as gerações seguintes, dizendo: “Maldito seja Canaã! Que
ele seja, para seus irmãos, o último dos escravos!”. A história de Cam vendo a nudez de Noé foi
transmitida ao longo dos milênios. Os filhos de Sem, Cam e Jafé se espalharam pelos continentes,
dizia-se, Sem para o Oriente, Cam para o Sul e Jafé para o Ocidente. A partir da Idade Média, alguns
intérpretes do Velho Testamento descreveram Cam com pele negra e traduziram a maldição de Noé
contra ele como uma maldição contra todos os seres humanos de pele escura, as pessoas que,
segundo os europeus diziam a si mesmos, haviam sido condenadas à escravização pelo emissário
de Deus, o próprio Noé. Os colonizadores invocaram a passagem bíblica para condenar os filhos de
Cam e justificar o sequestro e a escravização de milhões de seres humanos e a violência contra eles.
(WILKERSON, 2021, p. 111-112).
23
(2016), foi a pedra angular para a instituição da escravidão no mundo, com toda a
sua brutalidade. Os missionários cristãos, assim como os protestantes, tiveram papel
ativo na escravização, apoiando a crueldade e o terror como a principal ideologia a
serviço do opressor, empregada no tráfico negreiro e suas decorrências (Idem,
2016).
Complementando a necessidade ideológica da construção da dominação, o
cristianismo enfatizou o sofrimento das pessoas, valorizando-o (SOUZA, 2021d).
Em outras palavras, explica o autor, a experiência do sofrimento foi destacada e
valorizada como a mais importante por essa religião e, com o aumento do número
de sofredores no mundo, justamente aqueles explorados e dominados, também
ocorreu um aumento da possibilidade de convencimento a partir de uma mensagem
religiosa direcionada aos que sofrem, procurando convencê-los de que eles seriam
“melhores do que os ricos”. Desta forma, com a valorização da pobreza e da
simplicidade, foi sendo criado um culto ao “vitimismo” nas pessoas fiéis, favorecendo
a dominação da elite sobre elas (CORRÊA, 2021).
De início, o que definia a posição das pessoas nas colônias não era a raça
como a conhecemos, mas justamente a religião, sendo o cristianismo europeu a
principal fonte de distinção (WILKERSON, 2021). A religião cristã condenou
primeiramente os povos indígenas e depois os africanos sequestrados da África
(considerados não cristãos) à escravidão eterna, a se posicionarem no escalão mais
baixo da hierarquia, antes que o conceito de raça tivesse se cristalizado para servir
como justificativa para a degradação total que se seguiria (Idem, 2021).
O cristianismo adotado nos movimentos de colonização europeu pelo mundo
afora, nada colaborava para a “civilização” dos povos originários (CÉSAIRE, 2020).
Na realidade, explica o autor, a chamada civilização europeia, civilização ocidental,
moldada por séculos de governos burgueses, elaborou a seguinte equação
desonesta e violenta: cristianismo era igual à civilização dos brancos europeus e,
paganismo era igual à selvageria de índios, negros e amarelos. A colonização
desumanizava os povos dos territórios invadidos, sendo fundamentada no desprezo
pelo nativo, considerado “coisa”, passível de ser escravizada e justificada por este
mesmo desprezo. O colonizador via os nativos como animais, tratando-os assim
(Idem, 2020).

24
Conforme mencionado anteriormente, com a secularização, o racionalismo
ocidental (racionalismo para dominação do mundo), para Max Weber, foi sendo
construído paulatinamente pelo advento do cristianismo e, especialmente depois,
pelo protestantismo. A ciência começa a “superar” a religiosidade, a moralidade
passa a ser relacionada à comunidade humana e não às divindades e o mundo
passa a ser hedonista, individualista e consumista, fornecendo outras bases para
novas formas de construção e manutenção da dominação social por parte das elites
(Idem, 2021d).

3.2 A dominação social através da violência e do terror

O uso da violência nos processos de dominação de determinados grupos


sociais sobre outros sempre esteve presente na história da humanidade. Desde a
Antiguidade Clássica até os dias atuais, o emprego de procedimentos de sujeição de
indivíduos situados em grupos mais vulneráveis, através de estratégias de terror e
de violência extrema, foi o principal mecanismo de dominação daqueles indivíduos
que possuíam poder econômico, político e social.
A elite detentora do poder econômico e político nos diferentes países do mundo
sempre procurou legitimar a sua dominação sobre as classes sociais ou camadas
sociais consideradas como inferiores fazendo uso de diversas estratégias baseadas
na violência e na desconsideração das pessoas subalternas como sendo indivíduos
merecedores de respeito e dignidade. Ao contrário, houve sempre a instalação de
uma “soberania” falsa, onde, na realidade, foi construído um poder elitista capaz de
julgar e estabelecer condições para o domínio da vida das pessoas, não vistas como
sujeitos de direitos, controlando todas as suas possibilidades existenciais.
De acordo com Grada Kilomba (2019), fazendo menção a Bell Hooks, sujeitos
são aqueles que “têm o direito de definir suas próprias realidades, estabelecer suas
próprias identidades e de nomear as suas histórias” (1989, p. 42). Com o uso da
violência como mecanismo de manipulação das pessoas, estas passam a não ser
consideradas sujeitos. Deste modo, passam a ser consideradas simples “objetos”,
entrando na categoria “daqueles que sua realidade é definida por outros, cujas
identidades são criadas por outros (Idem, 1989, p. 42). A desconsideração das

25
pessoas como sujeitos e a sua transformação em objetos utilitários descartáveis foi
a base ideológica dos pensamentos elitistas e violentos dos colonizadores.
A colonização que adotou a plantation (plantação) como sistema de exploração
utilizado entre os séculos XV e XIX, principalmente nas colônias europeias nas
Américas, consistia em quatro características principais, segundo Kilomba (2019):
(a) uso de grandes latifúndios; (b) monocultura; (c) trabalho de pessoas
escravizadas e, (d) exportação das riquezas para a metrópole na Europa. Foi um
sistema baseado em uma estrutura social de dominação centrada na figura do
proprietário do latifúndio, tratado como “senhor”, que tinha o poder de controlar tudo
e todos ao seu redor, fazendo uso de extrema violência e da instalação permanente
do terror (Idem, 2019). A violência constituía a forma original do direito e a exceção
proporcionava a estrutura da soberania (MBEMBE, 2018).
O aprendizado do uso da violência nas colônias foi expandido para todas as
esferas da vida, ou seja, nas relações familiares, nas relações comerciais e de
trabalho, na administração dos Estados e nas relações cotidianas entre as pessoas.
A elite burguesa detentora do poder aprendeu que, para sustentar a colonização, o
uso da força violenta deveria ser sempre empregada, que a indução à barbárie ao
povo dominado deveria ser aceita, povo este que deveria ser desumanizado
(CÉSAIRE, 2020). A dominação nas colônias foi fundamentada no desprezo pelo
nativo e justificada por este mesmo desprezo. O colonizador viu o nativo como um
animal, sendo treinado para tratá-lo como um animal, se transformando, ele mesmo,
em animal, para “tirar o peso da consciência” (Idem, 2020, p. 23).
A ocupação colonial significou apreensão, demarcação e afirmação do controle
físico e geográfico (territorialização), produzindo fronteiras, hierarquias, zonas,
enclaves, classificações de pessoas em diferentes categorias, extração de recursos
e a produção de imaginários culturais (MBEMBE, 2018). A soberania significava
ocupação, a instituição de direitos diferentes para diferentes “categorias de pessoas”
para fins diferentes no interior de um mesmo espaço, onde o colonizado era
relegado a uma terceira zona, entre o estatuto de sujeito e objeto (Idem, 2018).
Entre colonizador e colonizado só havia espaço para o trabalho forçado, a
intimidação, a pressão, a força, a brutalidade, a crueldade, o sadismo, o choque, o
estupro, a imposição cultural, o desprezo, a desconfiança, o necrotério, a presunção,
a grosseria, a produção de elites descerebradas e das massas populares aviltadas

26
(CÉSAIRE, 2020). Como herança histórica da colonização, transmitida por várias
gerações, não houve a construção de verdadeiras relações humanas, somente a
perpetuação de relações de dominação e de submissão, explica o autor. Um tipo
específico de soberania foi criado, espelhada no modelo escravocrata, onde a
gênese das ideias estava baseada na “capacidade de definir quem importa e quem
não importa, quem é descartável e quem não é” (MBEMBE, 2018, p. 41).
Com o uso permanente da violência e do terror, com violações físicas e
psicológicas constantes e duradouras, as classes sociais dominantes esperam
prevenir a resistência dos dominados. Pessoas são alimentadas de ódio e desprezo,
que devem ser direcionados aos subalternizados, como forma de tentar “provar”
uma superioridade artificial das elites, cometendo crueldades ou em consentimento
com quem as comete (WILKERSON, 2021).
Por sua vez, dando continuidade ao processo, as pessoas das classes
populares, dominadas e dependentes, são constantemente “lembradas” do poder
absoluto das elites, pela vivência cotidiana das diversas formas de violências
concretas e simbólicas a elas dirigidas. De forma estrategicamente planejada,
inteligentemente são inculcados nos indivíduos dominados o medo, o complexo de
inferioridade, o tremor, o “ajoelhar-se”, o desespero e o servilismo (CÉSAIRE, 2020).

3.3 A dominação social através da construção das castas

A casta é uma arquitetura artificial da hierarquia humana, um código


subconsciente de instruções utilizado para manter determinada ordem social
(WILKERSON, 2021). O sistema de castas, segundo a autora, é uma construção
artificial do valor humano, fixada e arraigada, estabelecendo uma suposta
supremacia de um grupo contra a suposta inferioridade de outros, com base na
ancestralidade e em traços muitas vezes inalteráveis, traços que seriam neutros no
plano abstrato, mas que recebem um significado de vida ou de morte de acordo com
uma hierarquia que favorece a casta dominante concebida pelos antepassados. Este
sistema de castas, explica, utiliza de limites bastante rígidos, na maioria das vezes
arbitrários, para manter os grupos criados separados, diferenciados uns dos outros e
em seus respectivos lugares.

27
Ocorre uma hierarquização de princípios de classificação e de desclassificação
social segundo critérios morais avaliativos, que são utilizados para criar grupos
diferenciados de indivíduos (SOUZA, 2021c). As diferentes versões ou arranjos de
castas se baseiam na estigmatização dos supostos indivíduos inferiores a fim de
justificar a desumanização necessária para manter na base as pessoas de
classificação mais baixa, juntamente com os protocolos para a vigência dessa ordem
(WILKERSON, 2021).
Ainda segundo a autora Isabel Wilkerson, a hierarquia de castas está
relacionada ao poder17, determinando quais grupos o terão ou não, está relacionada
aos recursos escassos, determinando quais grupos serão merecedores deles ou
não, adquirindo-os e controlando-os ou não, e está também relacionada ao respeito,
autoridade e os pressupostos de competência, determinando a quem poderão ser
concedidos ou não.

3.4 A dominação social através da hereditariedade

Foi demonstrado anteriormente que um sistema de castas é capaz de perdurar


porque muitas vezes é justificado em nome da ancestralidade e também pode estar
ancorado em função da vontade de divindades, originando-se da interpretação de
textos sagrados ou de pretensas leis da natureza, reforçado por culturas e sendo
transmitido ao longo das gerações. Alicerçando ainda mais o sistema de
estratificação social das castas, existe o determinante baseado na hereditariedade.
Os supostos fatores hereditários são determinantes das estruturas das
relações sociais, para o “fazer político”, e não algo apenas presente nas estruturas
sociais. Na sociedade baseada nas castas, cada indivíduo, ao nascer, recebe uma
atribuição de nível e papel a cumprir, perpétuo (WILKERSON, 2021). De acordo com
a autora, as pessoas nascem em uma determinada casta e nela permanecerão por
toda a vida e pela vida dos seus descendentes.
Trata-se, portanto, de uma hierarquia social determinada pelo nascimento,
considerada imutável, mesmo pelas futuras realizações dos sujeitos em vida, sendo
assim, injusta (Idem, 2021). Esta situação torna petrificada a possibilidade de

17
Poder é a manipulação de recursos para que sejam alcançados resultados desejados, sendo que
este poder está presente nos grupos e nos indivíduos que são capazes de realmente tomar as
decisões (LACERDA, 2016).
28
ascensão social dos indivíduos, uma vez que todo privilégio fático, segundo o
sociólogo Jessé Souza (2021a), em qualquer sociedade, principalmente a
capitalista, vai estar montado de acordo com os tipos de relações pessoais
existentes, que irão propiciar ou não determinados acessos a recursos, que vão
estar diferencialmente disponíveis de acordo com cada classe social.
O esforço e o mérito das pessoas, que podem proporcionar riqueza e acesso à
determinadas classes socioeconômicas em um nível hierárquico acima, ainda assim,
quando realizado, não irão retirar os indivíduos de sua “posição de casta original”,
afirma a autora Isabel Wilkerson (2021). Por mais que as pessoas classificadas
anteriormente em uma determinada casta, transmitida supostamente por
hereditariedade familiar, enriqueçam e conquistem espaços sociais e econômicos
diferentes e melhores, não serão reconhecidos como pertencentes às castas
dominantes e superiores.

3.5 A dominação social através da pureza e da endogamia

Uma das funções da segregação no modelo de castas, por parte da elite dos
dominadores, é preservar o que chamaram de a “pureza” de seu sangue. A
“branquitude” estava entre os bens mais importantes que uma pessoa poderia
reivindicar, sendo o “passaporte” para as castas dominantes (WILKERSON, 2021).
De acordo com a autora, dentro das castas superiores, os indivíduos eleitos
deveriam concordar com um pacto tácito e silencioso para se distanciarem das
pessoas consideradas como pertencentes às castas inferiores, fazendo uso de
desdém, desprezo e até mesmo de violência.
A distância construída propositalmente entre os grupos dominantes e os grupos
dominados funciona como um instrumento prévio para a banalização da indiferença
e para a autorização dos atos repugnantes demandados pelas elites controladoras
(MBEMBE, 2020). O distanciamento passa a ser sustentado por uma estrutura, uma
gigantesca obra de escravização econômica e biológica, legitimando atos racistas
como uma declaração arbitrária e originária de superioridade de um grupo de seres
humanos sobre outros (Idem, 2020).
O sistema de castas acredita na pureza das camadas dominantes e possui
medo de sua conspurcação (sujeira, mancha, desonra, imundície) que poderia ser

29
causada pelas pessoas das castas inferiores, ou seja, acreditando-se em um
suposto “absolutismo racial”, qualquer mínima gota de sangue africano, asiático ou
indígena, conspurcaria a pureza do indivíduo situado em uma casta superior
(WILKERSON, 2021). Portanto, explica a autora, manter as castas separadas seria
uma necessidade e, para isto, seria preciso “vedar a linhagem” daqueles que estão
situados no escalão superior. A endogamia seria então, a invocação de
procedimentos capazes de restringir mostras de interesse romântico, relações
sexuais e casamentos somente à pessoas de mesma casta, mantendo afinidades
dentro de cada parte do sistema, criando um bloqueio na empatia e nas
identificações inter-castas (Idem, 2021).
As pessoas das castas dominantes endogâmicas veem aqueles considerados
inferiores não somente como sub-humanos, mas também como inimigos
ameaçadores que precisam ser combatidos. Segundo Achille Mbembe (2020), a
“luta contra o inimigo” ou contra o “objeto perturbador”, que na verdade nunca
existiu, não existe e nunca existirá, pois se trata de uma invenção, um círculo
alucinatório, porém bastante cativante, é utilizada para legitimar uma suposta
necessidade de segregar e manter o “povo ameaçador”, potencial conspurcador,
devidamente enclausurado e controlado.

3.6 A dominação social através das hierarquias do gosto estético

Segundo o sociólogo Pierre Boudieu, todas as sociedades não são igualitárias,


elas criam e exercem desigualdades, opressão e dominação, frequentemente
fazendo uso de formas invisíveis de manipulação (SOUZA, 2021a). Uma destas
formas de distinção produzidas historicamente para diferenciar e classificar pessoas
e grupos é o gosto estético, capaz de produzir todo um jogo social de aparências e
falsidades (Idem, 2021a).
A disposição estética é a manifestação de um sistema de disposições que
produzem os condicionamentos sociais associados a uma classe particular de
condições de existência, unindo todos aqueles que são o produto de condições
semelhantes e distinguindo-os de todos os outros (BOURDIEU, 2011). Os gostos
(as preferências manifestadas dos sujeitos) são a afirmação prática de uma

30
diferença inevitável, explica o autor. A aversão pelos estilos de vida diferentes, de
acordo com Boudieu, é uma das mais fortes barreiras entre as classes sociais.
Historicamente, as produções artísticas oriundas das classes sociais
consideradas inferiores sempre foram analisadas como sendo de mau gosto ou de
baixa qualidade, uma vez que não satisfaziam os requisitos fundamentais que
seriam exigidos para uma “criação artística” (NASCIMENTO, 2016). Estas criações
artísticas padronizadas, explica o autor, sempre tiveram como base percepções
aristocráticas e racistas, notadamente referenciadas unicamente em padrões
europeus.
As necessidades culturais são o produto da educação e todas as práticas
culturais e as preferências em matéria de literatura, pintura, música e artes estão
estreitamente associadas ao nível de instrução (escolaridade e estudos) e,
secundariamente, à classe social de origem (BOURDIEU, 2011). Segundo o autor,
a influência da origem social (classe ou casta) é marcadamente fundamental em
relação às diferentes práticas culturais, quando outras variáveis de influência são
semelhantes. Portanto, os gostos estéticos funcionam como autênticos marcadores
privilegiados das classes sociais de origem, conclui Bourdieu.
O gosto estético está intimamente relacionado às pessoas e classes sociais
que possuem, supostamente, qualidades e características superiores ligadas ao
espírito (estética, moralidade e inteligência), ao passo que outras classes vão estar
relacionadas ao corpo, portanto consideradas inferiorizadas e animalizadas
(SOUZA, 2021a). Os gostos estéticos funcionam como parâmetros de avaliação e
julgamento do mundo, influenciando as subjetividades. Pessoas de bom gosto vão
ser consideradas superiores e pessoas de mau gosto serão classificadas como
inferiores. Isto vai ajudar na montagem de classes sociais distintas, criando uma
hierarquia moral baseada nos gostos das pessoas (estilo de vida), beneficiando os
privilégios das elites e explorando as classes populares e trabalhadoras,
consideradas inferiores (Idem, 2021a).
Toda a obra legítima tende a impor, de fato, as normas de sua própria
percepção (BOURDIEU, 2011). Existem os objetos que foram socialmente
designados como “obras de arte”, com uma intenção propriamente estética,
preferencialmente, em sua forma e não em sua função, explica o autor. A arte,
portanto, é capaz de dividir o público em duas castas: aqueles que a compreendem

31
e aqueles que não a compreendem. Uma minoria, dotada de “dons especiais”
adquiridos pelo capital cultural (as elites) é capaz de dialogar com a arte, os demais
(classes populares e marginalizadas), são imputados ao “obscuro sentimento de
inferioridade”, já que são “indignos dos sacramentos artísticos” (Idem, p. 34).

3.7 A dominação social através da construção ideológica das identidades


nacionais

A realidade social não é facilmente compreensível cotidianamente pelas


pessoas, ou seja, o mundo social, em sua complexidade, não é transparente aos
olhos das pessoas, afirma Souza (2015). Existem ideias dominantes que são
compartilhadas e repetidas por quase todos, que, na verdade, selecionam e
distorcem o que deve ser visto e escondem o que não deve ser percebido, afirma o
autor. Existe o interesse em “mentir” sobre como o mundo social realmente é e
funciona, na intenção de que privilégios de classe, mesmo aqueles mais injustos,
como os que são transmitidos por herança, sejam aceitos por todos da sociedade,
ou seja, que estes privilégios sejam legitimados, consentidos até mesmo pela
parcela da população que foi totalmente excluída de todos os privilégios possíveis.
No distante passado, o privilégio era aberto e religiosamente motivado. Aqueles
sujeitos “eleitos” pelo divino, possuidores de “sangue azul”, eram legitimados a
possuírem acesso a todos os bens e recursos escassos existentes. Com o advento
do racionalismo ocidental, denominado por Max Weber como “racionalismo para a
dominação do mundo” externo, a ciência passa a superar a religião enquanto fonte
de conhecimentos em busca de desenvolvimento (SOUZA, 2021a). Neste
movimento histórico, tem importância fundamental o protestantismo, que vai ser a
gênese de uma nova visão de mundo. Antigas condutas pessoais que tramitavam
segundo uma “ética tradicional”, onde não havia preocupações com o trabalho em
uma perspectiva de lucro por meio de produções excedentes, com as pessoas
trabalhando somente o suficiente para garantirem suas necessidades de
subsistência e de sua família, foram alteradas fortemente, com a adoção de desejos
de acumulação de riquezas (Idem, 2021a). Na sociedade moderna, com o
surgimento do capitalismo, os privilégios injustos não podiam mais aparecer como
privilégios, mas como “mérito pessoal” pelos esforços diferenciais de indivíduos mais

32
capazes, sendo, portanto, supostamente justificáveis e merecidos, portanto,
inquestionáveis (CHAUÍ, 2022; SOUZA, 2015).
A civilização ocidental vai ser considerada, pela burguesia, superior à
civilização oriental, possuindo uma superioridade científica, moral, religiosa a ela,
tida como “exótica” (CÉSAIRE, 2020, p. 65). O próprio conceito de “civilização”,
segundo Norbert Elias, é um conceito europeu para legitimar sua dominação no
mundo como supostamente superiores (SOUZA, 2021d). Os povos colonizados
serão, por conseguinte, “educados”, preparados psicologicamente para se
reconhecerem como inferiores e dependentes, com um complexo de dependência.
Com a formação dos Estados Nacionais e a civilidade burguesa, foi criado um
processo disciplinador nos indivíduos, que deveria ser incorporado por todos. Este
controle dos comportamentos, alertando para o que deveria ou não ser moralmente
aceito, foi criando distinções entre as pessoas, através do processo de socialização
familiar e depois escolar (SOUZA, 2021d). As concepções morais implícitas,
inarticuladas, irão determinar as condutas pessoais no mundo moderno através de
sua incorporação, formando uma hierarquia moral, explica o autor. As regras morais
mais amplas é que irão determinar os julgamentos individuais. A avaliação do
mundo, portanto, será feita por todos, cotidianamente, baseada em concepções
morais na maioria das vezes inarticuladas e irrefletidas.
O mundo social passa a ser constantemente distorcido e falseado, com todos
os privilégios e interesses econômicos e políticos, de posse das classes sociais mais
bem colocadas na casta, ficando invisibilizados a todos das classes exploradas,
através do uso cotidiano e rotineiro de manobras ideológicas de manipulação e
alienação. A reprodução de todos os privilégios injustos ao longo do tempo vai
depender do convencimento e da manifestação de uma violência simbólica,
perpetrada com o consentimento mudo dos excluídos e marginalizados, e também
por parte da classe média, e não através da violência física e militar explícita
utilizada no passado (SOUZA, 2015). A casta supostamente superior vai lançar aos
habitantes das posições inferiores a necessidade de lutarem uns contra os outros,
criando a ilusão de que concorrem apenas entre si (WILKERSON, 2021).
As ideias dominantes, em qualquer sociedade, são as ideias da elite dominante
que, com seu poder econômico, é capaz de produzi-las e divulgá-las amplamente
(através dos jornais, das editoras, das universidades, das televisões, da internet, dos

33
partidos políticos), procurando incorporá-las nos indivíduos (SOUZA, 2021a). Os
donos do poder vão construir ideologias18 capazes de legitimar a sua exploração e
dominação. A “soberania” existente, notadamente de fachada, vai procurar, de
alguma forma ou de outra, legitimar a sua autoridade imposta, criando os
imaginários culturais (identidades, tradição, religiosidade, divindades, ciência,
conhecimentos fragmentados e rasos) necessários à sua dominação (MBEMBE,
2018). Grupos sociais privilegiados irão atuar contra a articulação e a defesa política
e consciente de grandes massas de pessoas excluídas, fazendo uso de monopólios
privados de informação e da difusão do conhecimento. O sistema de castas
necessita da desigualdade para se manter e prosperar, assim como dos
mecanismos criadores dos sentimentos de inveja, de falsas rivalidades e disputas
para manter a hierarquia e suas justificações arbitrárias e artificiais (WILKERSON,
2021).
De acordo com Achille Mbembe (2020), citando Freud, a massa é excitada
apenas por estímulos desmedidos. Desta forma, quem quiser influir sobre ela, não
necessita medir logicamente os argumentos; deve pintar com as imagens mais
fortes, exagerar e sempre repetir a mesma coisa. Seguindo estes princípios, sempre
foram criadas, de forma ideológica, determinadas “identidades nacionais”, por parte
das elites dominantes, buscando legitimar sua dominação segundo cenários
artificiais de cultura e normalidade. Há uma noção historicamente construída e
culturalmente contingente de personalidade e de condução de vida que vai separar e
unir, por vínculos de solidariedade e preconceitos, pessoas e grupos sociais
superiores e inferiores, segundo critérios inscritos na lógica opaca e intransparente
de funcionamento de Estado e de mercado (SOUZA, 2006).
Na criação das identidades nacionais, Estado e mercado, a partir de seus
estímulos específicos à ação que estabelecem as “chances de vida” de qualquer
indivíduo ou classe social, decidem, de forma opaca, quem são os “classificados” e
18
Pode-se compreender como ideologia o “sistema ordenado de ideias e representações e das
normas e regras como algo separado e independente das condições materiais, visto que para seus
produtores –os teóricos, os ideólogos, os intelectuais- não estão diretamente vinculados à produção
material das condições de existência” (CHAUÍ, 2008). De acordo com a autora, as ideias da ideologia
aparecem como produzidas somente pelo pensamento, porque os seus pensadores estão
distanciados da produção material. As ideias não aparecem como produtos do pensamento de
homens determinados, mas como entidades autônomas descobertas por tais homens. A ideologia é
uma produção das elites dominantes, através de seus intelectuais, que buscam ocultar a realidade
como ela é, buscando criar e manter privilégios exclusivos, de forma arbitrária e injusta, mantendo a
maior parte das pessoas na alienação e em condições de serem subjugadas e exploradas por esta
própria elite. A ideologia, portanto, são as ideias das classes dominantes (CHAUÍ, 2022, 2008).
34
os “desclassificados” sociais. Os ditos classificados serão aqueles que conseguirão
se adaptar às demandas implícitas e conseguirão melhores empregos, salários e
prestígio relativo, ao passo que os desclassificados serão aqueles sujeitos que, por
não atenderem às demandas estabelecidas, receberão baixos salários, terão acesso
aos piores empregos, e irão gozar de baixo respeito social (Idem, 2006).
As sociedades modernas são integradas socialmente de duas maneiras
distintas e complementares, segundo Souza (2006): (1ª) por vínculos inconscientes
aos agentes, através de consensos pré-reflexivos que são atualizados por práticas
institucionais e sociais; (2ª) por vínculos conscientes, ainda que em medida variável,
através de consensos refletidos, compartilhados por todos os membros de uma
sociedade. O tema das identidades nacionais está incluído nos vínculos conscientes,
aponta o autor. A identidade nacional é um suporte de narrativas e práticas morais
amplas e abrangentes, criadora de um “imaginário social”, ou seja, um conjunto de
interpretações que permitem compreender o sentido e a especificidade de
determinada experiência histórica e coletiva. Este conjunto de interpretações é
capaz de transfigurar a realidade de modo a provê-la de sentido moral e espiritual
para os indivíduos e grupos sociais que compõem uma sociedade particular, explica
Jessé Souza.
Acontece que, na formação planejada desta ideologia concretizada em
“identidade nacional”, os grupos sociais dominantes produzem uma hierarquia moral,
ainda que geralmente implícita, encoberta e opaca, não tematizada, que ajuda no
processo de dominação, conquistando o senso comum, criando distinções entre os
indivíduos desta sociedade e até mesmo entre os países (CHAUÍ, 2022, 2008;
SOUZA, 2021c, 2021e, 2020, 2019, 2018, 2006). Fazendo uso de teorias
pseudocientíficas, baseadas em aspectos emocionais e subjetivos, com critérios
descabidos e arbitrários, as elites, através de seus intelectuais, criam explicações
falsas procurando justificar o seu acesso a privilégios positivos e, ao mesmo tempo,
buscam convencer as pessoas das demais castas, supostamente consideradas
seres inferiores, e sociedades inteiras de determinados países, principalmente dos
globalmente periféricos, que elas não possuem, por merecimento, face à sua
incompetência, direito a usufruírem dos mesmos bens e recursos.

35
3.8 – A dominação social através da desumanização e do genocídio

Normalmente, as análises tradicionais nas ciências políticas situam a soberania


como os limites do Estado-Nação, das instituições habilitadas pela autoridade do
Estado ou as redes e instituições supranacionais. Mas, segundo Achille Mbembe
(2018), para uma visão realista do controle exercido pelo poder elitista, torna-se
necessário um distanciamento objetivo, compreendendo que, na realidade, existe
um “biopoder”, como apontado por Michel Foucault, considerado como “aquele
domínio da vida sobre o qual o poder estabeleceu o controle” (MBEMBE, 2018, p. 5-
6). A partir desta compreensão, pode-se entender que o “poder soberano” tem a
capacidade de exercer controle sobre a mortalidade e de definir a vida, explica este
autor. Sendo assim, a expressão máxima da soberania residirá, em grande medida,
no poder e na capacidade de ditar quem poderá viver e quem deverá morrer. Matar
ou deixar viver vão constituir os limites da soberania, sendo seus atributos
fundamentais.
A sociedade dominante capitalista, apoiada nas teorias neoliberais, possui a
seguinte “doutrina”, de acordo com Aimé Césaire (2020): aspira-se não a igualdade,
mas a dominação. Desde os grandes movimentos globais europeus de colonização,
a mentalidade dos dominadores foi a de que os países de “raça estrangeira” teriam
que se tornar países de servos, agrícolas ou de trabalhadores industriais,
dependentes de seus direcionamentos e fornecedores de riquezas para as
metrópoles. De acordo com este autor, nunca houve a intenção de eliminar a
desigualdade entre os homens, mas de ampliá-la e torná-la uma lei inalterável.
Na perspectiva tradicional, a expressão máxima da soberania seria a produção
de normas gerais por um determinado corpo (povo) composto por homens e
mulheres realmente livres e iguais, imersos em uma política definida por um projeto
de autonomia e de realização de acordos em uma coletividade, mediante
comunicação e reconhecimento (MBEMBE, 2018). Neste sentido ideológico, os
sujeitos participantes, homens e mulheres, seriam considerados completos, capazes
de autoconhecimento, de autoconsciência e de autorrepresentação (Idem, 2018).
Mas, ao contrário do que foi apresentado no cenário anterior por Mbembe, as
nações colonizadoras, em realidade civilizações doentes, moralmente atingidas por
sadismo e crueldade, justificam a dominação e apoiam a barbárie, manifestando

36
apreço pela voluptuosidade sádica dos prazeres da matança e do massacre
(CÉSAIRE, 2020). Trata-se de uma manobra de alienação e de engodo intelectual e
prático, baseada na criação de um “romance da soberania”, estimulando a crença de
que os sujeitos, nos países colonizados, são os principais autores controladores de
seus próprios significados (MBEMBE, 2018). Na realidade, desde as práticas da
escravidão até os dias atuais, aponta Abdias Nascimento (2016), as populações
colonizadas têm sofrido um genocídio sistemático institucionalizado, silencioso e
estrutural, com especial destaque para as populações indígenas e negras.
A colonização empregada na América Latina desumanizou os homens, sendo
fundamentada no desprezo e justificada por este mesmo desprezo e pela crueldade,
animalizando os indivíduos nativos e o povo negro escravizado (CÉSAIRE, 2020).
Foi aplicada (e continua sendo) uma forma de soberania cujo projeto central não era
a luta pela autonomia do sujeito, mas a “instrumentalização generalizada da
existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações”, ou
seja, a “necropolítica” (MBEMBE, 2018, p. 10-11).
A mentalidade colonial continua presente nos dias atuais, mesmo no tempo do
repovoamento e da globalização do mundo, atuando sob a égide do militarismo e do
capital especulativo extrativo, fortalecendo um tempo de saída da democracia
(MBEMBE, 2020). A guerra se inscreveu como fim e como necessidade para as
elites econômicas e políticas. Na colonização e com o tráfico de escravos negros, a
plantation não era apenas um dispositivo econômico, mas uma vida vivida de acordo
com princípios preconceituosos e raciais, afirma este autor. Da mesma forma, sob
outras “máscaras”, continuamos na contemporaneidade vendo as elites se utilizando
da depredação humana, dos homicídios, do genocídio19 biológico, cultural,
linguístico e religioso dos povos nativos, da extração de riquezas naturais dos países
periféricos e da criação e manutenção de uma massa gigantesca de grupos sociais
subalternos, destinados à pobreza e ao clientelismo assistencialista (Idem, 2020).

19
Podemos entender genocídio como o “uso de medidas deliberadas e sistemáticas (como morte,
injúria corporal e mental, impossíveis condições de vida, prevenção de nascimentos), calculadas para
o extermínio de um grupo racial, político ou cultural ou para destruir a língua, a religião ou a cultural
de um grupo” (Webster´s third new internacional dictionary of the english language. Springfield: G & C
Merriam, 1967) e como a “recusa do direito de existência a grupos humanos inteiros, pela
exterminação de seus indivíduos, desintegração de suas instituições políticas, sociais, culturais,
linguísticas e de seus sentimentos nacionais e religiosos” (Dicionário Escolar do Professor. Ministério
da Educação e Cultura: Brasília, 1963). Estas referências foram coletadas no livro do Professor
Abdias Nascimento, “O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado”, descrito
neste trabalho.
37
A máscara do silenciamento planejado por parte das elites dominantes vai
implementar, portanto, um senso de mudez e de medo, representando o
colonialismo como um todo, simbolizando políticas sádicas de conquista e
dominação, fazendo uso de regimes brutais de “apagamento” e silenciamento dos
nativos e povos escravizados (KILOMBA, 2019). Desumanizar outro ser humano não
é apenas declarar que ele não é humano, mas é um processo, uma programação,
onde se procura aplicar, a grupos inteiros, um estigma, uma mácula (WILKERSON,
2021). Com a desumanização do grupo estará feito o trabalho de desumanização,
de genocídio, de todos os indivíduos que o compõem, explica a autora. Desta forma,
os próprios integrantes do grupo, pela força da dominação que lhes é aplicada,
passam a ser convencidos de que não são humanos e sim, merecedores de seu
sofrimento (Idem, 2021).

3.9 A dominação social através da produção e manutenção da pobreza

Todo domínio social de fato tem de ser legitimado simbolicamente por ideias,
as quais precisam dar a impressão de que são científicas e objetivas para terem
prestígio no mundo moderno (SOUZA, 2018). Nos dias atuais, expõe este autor,
existe uma eficácia prática do preconceito (no fundo, racismo) que divide o mundo
entre pessoas de maior e de menor valor. Todas as sociedades modernas, sejam
centrais ou periféricas, operam segundo os mesmos princípios morais que
classificam e desclassificam os indivíduos e as classes sociais (Idem, 2018).
As elites internacionais e também as elites brasileiras, partilham deste
posicionamento político e operam para que estas divisões morais sejam criadas e
mantidas, uma vez que não aceitam, inegociavelmente, a humanização do
capitalismo, com a diminuição das desigualdades sociais que ele provoca
(FAGNANI, 2021). De acordo com este autor, tratando especificamente do Brasil, a
presença das desigualdades sociais reflete opções de governo, tornando o país uma
“procissão de desigualdades estruturais” (educacionais, habitacionais, de
saneamento básico, na área da saúde, segurança pública, trabalho e renda etc).
O capitalismo não se resume somente às trocas de mercadorias ou ao fluxo
econômico de capitais, mas também a toda uma hierarquia moral e política que vai
direcionar as relações sociais entre o centro e a periferia das sociedades

38
capitalistas, sendo, efetivamente, a gênese de uma gramática da vida social como
um todo, estabelecendo uma dimensão simbólica que é materializada na vida
cotidiana das pessoas, tornando opaca a dominação das elites (SOUZA, 2018). Este
tipo de capitalismo aplicado no mundo todo, que “bebe da fonte do neoliberalismo”,
necessita da existência da desigualdade social, com a criação de toda uma grande
parcela de indivíduos e grupos explorados, incentiva o consumo exacerbado e
enaltece o hedonismo, para funcionar adequadamente segundo seus propósitos,
explica o autor.
As defasagens educacionais, de condições de saúde e de acesso aos
inúmeros recursos existentes no Brasil, presentes na sociedade de hoje em dia,
estratificada segundo a noção de casta, são heranças funcionais da época colonial
brasileira, onde a ausência de direitos civis políticos e sociais foram a matriz da
formação das classes populares, historicamente exploradas pelas elites (FAGNANI,
2021). Efetivamente pode-se apontar, de forma historicamente científica, que os
inúmeros problemas sociais brasileiros contemporâneos possuem suas raízes mais
profundas na sociedade escravocrata do passado colonial (Idem, 2021).
A desigualdade social brasileira foi naturalizada durante todo o processo de
modernização do país, uma vez que o debate sobre a sua existência sempre esteve
travado sob o signo da fragmentação do conhecimento e da fragmentação da
percepção da realidade, defende o sociólogo Jessé Souza (2006). Segundo este
autor, o foco foi os seus efeitos na sociedade e suas consequências, mas nunca as
causas e as suas raízes mais profundas.
Abordando, portanto, com mais profundidade a questão histórica da produção
da grande massa de indivíduos pobres no Brasil, podemos apontar alguns fatos
decisivos. Com a desagregação do regime escravocrata e senhorial brasileiro, os
antigos escravos foram deixados sem assistência e garantias que os protegessem
na transição para o sistema de trabalho livre, não dispondo de meios materiais e
morais para realizar essa proeza nos quadros da economia competitiva
(FERNANDES, 1965). Os donos de escravos foram eximidos da responsabilidade
pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja Católica ou
qualquer outra instituição assumissem encargos para preparar os ex-escravizados
para o novo regime de organização da vida e do trabalho (Idem, 1965).

39
Teve início a miséria dos ditos “desclassificados”, produzida objetivamente não
apenas sob a forma de miséria econômica, mas também sob a forma de miséria
emocional, existencial e política (SOUZA, 2006). A criação e a reprodução em larga
escala das classes marginalizadas, formada principalmente por negros e mulatos,
envolveu a produção das pré-condições morais, culturais e políticas da
marginalidade (Idem, 2006).
Com a abolição da escravidão, os negros e mulatos foram expostos a um
mundo social que se organizou para os segmentos privilegiados da raça branca
dominante (FERNANDES, 2007). Segundo este autor, os negros e mestiços
permaneceram condenados a um mundo que não foi estruturado para tratá-los como
seres humanos e como “iguais”. A ordem social competitiva instaurada no fim do
Segundo Império e durante a Primeira República manteve os modelos de
comportamento de dominação patrimonialista da sociedade de castas brasileira
(FERNANDES, 1965). Era uma sociedade de classes com privilégios para os
estratos brancos dominantes, ou seja, para os fazendeiros agrários (coronelismo),
aberta somente para quem tinha poderes e dinheiro. A mobilidade social só foi
possível para os imigrantes europeus e para segmentos cultos ou semi-instruídos
das populações de origem nacional (Idem, 1965). Ocorreu uma perpetuação de uma
cultura racista como herança, atuando agora de forma disfarçada, mascarada e
dissimulada, com uma disposição para “esquecer o passado” e para “deixar que as
coisas se resolvessem por si mesmas” (FERNANDES, 2007, p. 42-43).
A naturalização da desigualdade social e a produção de “subcidadãos”, de uma
“subgente” como um fenômeno de massa nos países periféricos como o Brasil, é o
resultado, portanto, de um efetivo processo de modernização de grandes proporções
iniciada no século XIX (SOUZA, 2006). A produção e a manutenção de indivíduos
pobres, vivendo na miséria e à mercê dos arranjos políticos, sociais e econômicos
das elites, são efetivadas eficaz e concretamente pelo abandono proposital que criou
as condições perversas de eternização de um modo de ser e de viver precário,
constrangendo grupos a uma vida marginal e humilhante à margem da sociedade
incluída (Idem, 2006).
Na contemporaneidade, segundo o economista Joseph Stiglitz (2021), o poder
de mercado é traduzido em poder político, onde as grandes corporações atuam
comprando influências que aumentam ainda mais seu poder e seu lucro. Estas

40
manobras enfraquecem sindicatos e a política correta de competição, protegendo
apenas o sistema bancário extrativo, mas continuando a explorar o cidadão comum,
que fica desprotegido e sem condições de se desenvolver, uma vez que gasta quase
toda a sua renda para sobreviver (Idem, 2021).
Cabe mencionar que, de acordo com Ladislau Dowbor (2021), a partir de certo
grau ou patamar de desigualdade social e econômica, não há política ou democracia
que realmente funcione, independentemente do sistema político adotado pelo país.
A desigualdade social extrema trava o desenvolvimento de forma geral e ampla, e,
especialmente, destrói a economia do país (Idem, 2021).

3.10 A dominação social através da divisão do trabalho segundo a posição do


indivíduo na hierarquia de classes

Em um sistema de castas, a base econômica de sustentação é a casta inferior,


que deve ser mantida com baixo nível de inteligência e com baixa qualificação
(WILKERSON, 2021). As tarefas básicas necessárias para o funcionamento da
sociedade precisam ser executadas, mesmo contra a vontade, pelas pessoas que
estão situadas nas castas ou classes sociais inferiores, explica a autora. São estes
os serviços mais sujos, degradantes e indesejáveis.
No Brasil, especificamente, também como uma herança do período
escravocrata e pós-abolição formal dos escravizados, os negros e mulatos foram
eliminados das posições que ocupavam no artesanato urbano pré-capitalista ou no
comércio de miudezas e de serviços, sendo confinados às tarefas ou ocupações
brutas, mal remuneradas e degradantes (FERNANDES, 1965). As mudanças na
estrutura social que ocorreram na sociedade brasileira desde a abolição da
escravidão até os dias atuais não tiveram efeitos profundos sobre a concentração
racial da riqueza, do prestígio social e do poder. Os negros, mulatos e mestiços
foram alocados aos estratos das pessoas mais pobres, que não partilhavam (ou
partilhavam muito pouco) das tendências do desenvolvimento econômico e da
mudança socioestrutural (FERNANDES, 2007).
As pessoas das classes sociais superiores e dominantes abominam cumprir
tarefas que consideram abaixo de sua posição e se esforçam com todos os meios
para que as condições que possam melhorar a vida das pessoas das castas

41
inferiores, as subordinadas, sejam vedadas (WILKERSON, 2021). Para estas
pessoas, denuncia a autora, devem ficar reservados os trabalhos essencialmente
musculares, animalizados, como os trabalhos domésticos, de limpeza, agrícolas e
de serviços às classes dominantes.
O sociólogo Florestan Fernandes (1965) apontou, mencionando sobre esta
situação da vedação proposital de oportunidades para um caminho de classificação
econômica, social e de inclusão no proletariado para os negros e mulatos no período
pós-abolição da escravidão, que a estes somente restavam-lhes a incorporação
gradual à escória do operariado urbano em crescimento no país, o ócio dissimulado,
uma vagabundagem sistemática e a prática de criminalidades fortuitas. Todo o
processo vigente não ocorria no sentido de converter o escravizado ou liberto em
“trabalhador livre”, mas de substituir o negro pelo branco, importado da Europa, que
vinha de regiões assoladas pela miséria e pela falta de emprego em seu país de
origem (Idem, 1965).
O ódio à classe dos marginalizados e excluídos, quase todos negros e
mestiços, explica a vida política e econômica arcaica e odiosa do Brasil, onde as
relações de dominação entre as classes sociais são baseadas na reprodução de
privilégios de nascimento e permanecem invisíveis para a maioria das pessoas
(SOUZA, 2020). A espoliação secular caminha pelo tempo. Os indivíduos das
classes populares, tornados marginalizados, não estando preparados para a suposta
“liberdade do capitalismo”, não possuindo os atributos psicossociais, cognitivos e
morais dos “homens livres trabalhadores”, vão continuar sendo escravos da
ignorância, perpetuando a sua servidão inferior também através de seus filhos, sem
a capacidade de pensar e agir, sem liberdade intelectual e moral, sem a capacidade
de compreender a dura realidade da vida que lhes foi imposta injustamente pelas
elites dominantes (FERNANDES, 1965). Por fim, o objetivo mais importante vai
continuar a ser transformar o cidadão em um ser alienado e consumidor, polarizado
e individualista, evitando a todo custo a formação de uma unidade de classe popular
e trabalhadora, que poderia vir a formar o sujeito como um agente político
consciente e autônomo (SOUZA, 2020).

42
3.11 A dominação social através da criação e manutenção da ignorância e
da alienação

Uma vez mais cabe mencionar as palavras de Souza (2019, p. 26), quando
descreve que, “quem controla a produção das ideias dominantes controla o mundo,
e também por isso, as ideias dominantes são sempre produto das elites
dominantes”. Segundo o autor, é necessário para quem domina e quer continuar
dominando, se apropriar da produção de ideias para interpretar e justificar tudo o
que acontece de acordo com seus interesses.
Realizando uma análise histórica baseada no que foi apontado anteriormente,
pode-se afirmar que a relação entre as classes sociais brasileiras e a justificação
simbólica da dominação social como um todo, implicou uma continuidade da
escravidão, com a criação e a manutenção de uma grande massa de indivíduos
excluídos das precondições necessárias à vivência no ambiente capitalista
competitivo de forma qualificada e igualitária (a “ralé de novos escravos”), sendo
uma ação arquitetada pelas elites retrógadas do país, mesmo com o advento do
trabalho livre e do sufrágio universal (SOUZA, 2020). As mencionadas elites
dominantes no Brasil, comandadas por outras elites estrangeiras, se enriquecem
pelo trabalho de intermediação econômica e política de processos de exploração da
parte da sociedade situada nas castas inferiores, que devem ser mantidas sempre
em estados deploráveis de precarização em todas as dimensões da vida, afirma
este autor.
Segundo os estudos do sociólogo Noam Chomsky (2021), em seu movimento
histórico de imperialismo global, os Estados Unidos da América foram e continuam
sendo um dos principais países estrangeiros a interferir nas questões políticas,
econômicas e sociais das nações dependentes, em especial na América Latina e
também no Brasil. Os Estados Unidos, aponta Chomsky, na maioria das vezes usam
uma retórica defensiva na maior parte do mundo, como uma falsa justificativa para
as suas intervenções, que buscam manter as populações dos países periféricos em
situações de ignorância e alienação, facilitando a exploração econômica de suas
empresas.
De acordo com o economista Joseph Stiglitz (2021), existem duas maneiras
principais de um país crescer: criando riqueza através da inovação e do

43
conhecimento ou tomando a riqueza de outros países (modelo colonial). Na
economia moderna, os países dominantes usam de estratégias mais sutis, explica
este autor, utilizando corporações oligárquicas que exercem grande poder de
mercado; provocando a diminuição da renda nacional que vai para os trabalhadores;
permitindo práticas abusivas no setor financeiro; concedendo empréstimos abusivos;
usando de corrupção sistemática e, criando e mantendo as grandes massas
populares em condições de desigualdade de oportunidades em educação, saúde e
emprego, desorganizados enquanto grupo de trabalhadores, tendo acesso a falsas
informações, dependentes de políticas reducionistas de transferência de renda e
sem condições de refletir, racionalmente e criticamente, sobre a situação em que se
encontram. O sistema econômico atual (desde a década de 1970) está em conflito
com os valores mais elevados, produzindo ganância, egoísmo, torpeza moral e
disposição para explorar os outros. Isto vem minando a coesão social, a confiança
individual e até mesmo o desempenho econômico do país como um todo, aponta o
autor.

3.12 A dominação social através da ocultação da divisão das classes sociais

Existem vários conceitos de classe social. Segundo os estudos de Jessé Souza


(2021e), o mais comum de todos, defendido pelas elites dominantes, é o conceito
criado pelos economistas liberais. O conceito liberal de classe social está centrado
no indivíduo, paradoxalmente secundarizando a classe. Nesta concepção, a
sociedade é entendida como um amontoado de indivíduos somente. Estes
indivíduos são divididos em “classes sociais” de acordo apenas com a sua
“capacidade econômica, ou de renda”, ou seja, pela quantidade de dinheiro que
possuem e são capazes de obter com seu trabalho. Sendo assim, explica Souza, a
renda individual passa a ser o único parâmetro de distinção de classe, não
considerando a história familiar e as heranças afetivas e culturais das pessoas. Os
indivíduos são distribuídos em classes A, B, C, D, E etc, de acordo com o seu
quantitativo de renda, não explicando as verdadeiras origens das diferenças de
classe. Esta versão conceitual de classe social considera o “ponto de partida” de

44
todas as pessoas como “igual”, baseando-se na meritocracia20, como justificativa
das desigualdades existentes na sociedade.
O conceito marxista de classe social, discute Jessé Souza, vai colocar o
trabalho como um dos aspectos mais importantes da vida dos sujeitos, sendo motivo
de orgulho e considerado como uma de suas principais fontes de reconhecimento
social. Marx, em sua fase adulta, vai continuar com a ideia da importância deste
reconhecimento por parte do trabalhador, mas somente por si mesmo, abandonando
a noção de “reconhecimento pelos outros indivíduos”, dando mais importância a uma
noção utilitarista do trabalho, pressupondo que o trabalhador vai buscar,
unicamente, se apropriar dos meios de produção, ter bons salários, com interesses,
portanto, meramente econômicos. A divisão de classes seria entre a burguesia,
dona dos meios de produção e os trabalhadores, que vendem a sua força de
trabalho para se incluir na sociedade. Na visão de Karl Marx, a riqueza dos
proprietários viria do trabalho excedente não pago aos trabalhadores (a mais-valia),
caracterizando-se como uma usurpação privada do fruto do trabalho coletivo.
Na abordagem de Pierre Bourdier, explica Jessé Souza, vai haver uma
percepção de que, na relação dos seres humanos, consigo mesmos e com os
outros, há o predomínio de uma relação pré-reflexiva, onde são introjetadas e
incorporadas nos sujeitos, pelas transmissões familiares, os “gostos” dos pais e
cuidadores, através da socialização. São linguagens não refletivas, pré-cognitivas,
que vão criar “simpatias” e “antipatias” inconscientes nos indivíduos, fortemente
instauradas na socialização primária, ou seja, a familiar. Posteriormente, a escola e
a vida comunitária irão contribuir com esta socialização, de forma secundária.
Bourdier vai chamar as pré-disposições para os comportamentos aprendidos na
socialização de habitus21, o que vai implicar num conhecimento peculiar do mundo e

20
A meritocracia significa um sistema de governo em que os postos de responsabilidade se
adjudicam em função dos méritos pessoais (RAE, 2021). A origem etimológica da palavra
meritocracia vem do latim meritum, que significa mérito, acompanhada do sufixo grego cracía, que
quer dizer poder. Assim, o significado literal da meritocracia seria “poder do mérito”. Portanto, de
acordo com a definição, o processo de desenvolvimento e crescimento profissional e social de uma
pessoa seria uma simples consequência de seus esforços e dedicações. As melhores posições
hierárquicas estariam condicionadas às pessoas que apresentassem os melhores valores
educacionais, morais e com melhores capacidades técnicas em determinadas áreas
(https://www.significados.com.br/meritocracia/). De acordo com Jessé Souza, a meritocracia esconde
o fato de que as classes sociais são, na realidade, os principais instrumentos que permitem
reproduzir privilégios visíveis e invisíveis no tempo, sendo a “renda diferencial” dos indivíduos e das
famílias, somente o elemento mais retratado e o mais visível entre todos (SOUZA, 2021e).
21
O habitus é um conjunto de crenças, de referências, de técnicas, hierarquias, que se torna, ao
mesmo tempo, condição de funcionamento em um determinado campo de atuação, e também
45
uma posterior forma de manifestação neste mesmo mundo, determinando a
construção de classes sociais específicas, unidas por este habitus de classe, com
suas dimensões morais e valorativas. As classes sociais, portanto, para Bourdier, se
formam simbolicamente, a partir de ideias e valores que são incorporados a elas
através dos processos de socialização, possuindo, cada uma delas, características
socioculturais específicas.
De acordo com Marilena Chauí (2022), a ideologia burguesa elitista procura a
todo o momento tornar invisível a divisão entre as classes sociais, procurando fazer
com que as pessoas entendam que as frações de classe na realidade não existem,
e que há somente um Estado-Nação, onde todos, individualmente, são tratados
iguais, com os mesmos privilégios e com as mesmas oportunidades. Utilizando-se
de pressupostos baseados na meritocracia individual e nos conceitos neoliberais de
competição e de competência, as classes dominantes procuram fazer com que os
sujeitos pertencentes às classes inferiores aceitem que a sua condição de
marginalidade e exclusão é fruto apenas de sua própria incompetência e ignorância,
afirma a autora.
O sociólogo Jessé Souza (2021e) entende que a classe social é, na realidade,
a produção de indivíduos diferentemente aparelhados (com as pré-condições),
desde o nascimento, para todas as dimensões da vida e para a competição social,
de acordo com os tipos de privilégios (positivos ou negativos) a que têm acesso, que
vão sendo transmitidos pela socialização familiar e escolar, principalmente. No
Brasil, segundo o autor, há uma generalização liberal onde o indivíduo marginalizado
é percebido como se fosse alguém com as mesmas capacidades disposicionais do
indivíduo da classe média (SOUZA, 2006). Nesse sentido, há um entendimento de
que o miserável e sua miséria são aspectos “contingentes” e “fortuitos”, um mero
acaso do destino. Complementa o autor apontando que, a classe dominante, na
intenção de manter as demais classes alienadas e apáticas frente à sua exploração
econômica e política, procura transmitir a noção de que esta situação de absoluta
privação seria “facilmente reversível”, bastando para isso uma ajuda passageira do
Estado para que os cidadãos, antes marginalizados, possam andar com as próprias

produto deste funcionamento (BOURDIER, 2003). Segundo o autor, o habitus significa um sistema de
disposições adquiridas pela aprendizagem implícita ou explícita, que funciona como um sistema de
esquemas geradores de estratégias, que podem estar objetivamente em conformidade com os
interesses objetivos de seus autores, sem ter sido expressamente concebidos com esta finalidade.
46
pernas rumo ao seu desenvolvimento. Esta continua sendo a lógica das políticas de
assistência social no Brasil, que não modificam as condições estruturais de
dominação, atuando apenas como paliativos emergenciais para os mais pobres.
As condições contemporâneas, para os indivíduos dominados pelas elites,
reproduzem, com outros contextos, o cenário pós-abolição formal da escravidão no
Brasil. Os negros e mulatos libertos da escravidão viveram em suas castas
específicas dentro das cidades, mas não progrediram com elas e através delas
(FERNANDES, 1965). Ficaram excluídos, dispersos pelos bairros periféricos,
somente partilhando em comum uma existência árdua, obscura e muitas vezes
deletéria, vivendo o estado de anomia social transplantado do cativeiro (Idem, 1965).
Esta vida de parasitismo, antes nas senzalas, foi transportada em terríveis
proporções, para os aglomerados urbanos, médios e grandes, causando
desorganização das personalidades, da cultura e das sociedades. De acordo com
Souza (2021e), a criação e a manutenção de uma classe social de marginalizados e
excluídos, indivíduos tornados vulneráveis, desamparados, des-centralizados, em
condição de desvantagem, de instabilidade, de perigo e de dano é um projeto
político intencional, por parte da elite e da classe média branca brasileira, sendo
uma necessidade primordial do capitalismo extrativo.
Portanto, é de interesse da elite dominante a ocultação da existência das
classes sociais no Brasil, fundamentalmente formadas no modelo de castas
hierarquizadas e de acordo com a divisão de privilégios injustamente distribuídos.
Na realidade, explica Jessé Souza, a divisão de classes no Brasil demonstra haver
uma hierarquia baseada na “composição racial”, nos traços fenotipicamente visíveis
da cor da pele dos indivíduos, conforme descrito na imagem número dois:

47
Imagem 2 – Representação das classes sociais brasileira e a cor da pele dos indivíduos
componentes, de acordo com os estudos de Souza (2021e, 2021c, 2021a, 2018).
Fonte: elaboração própria a partir dos estudos mencionados.

A representação apresentada expõe que, segundo Souza (2021e, 2021c,


2021a, 2018), a elite (0,1% da população brasileira) é formada exclusivamente por
pessoas brancas, ou seja, 100% de sua composição racial. Logo abaixo está a
classe média (19,9% da população), onde encontramos que 90% é formada por
indivíduos brancos e 10% se encontra composta por pessoas negras ou mestiças.
Imediatamente abaixo está localizada a classe trabalhadora precária brasileira
(cerca de 40% da população), onde identificamos que 10% de sua composição racial
é composta por indivíduos brancos ou mestiços e cerca de 90% é formada por
pessoa negras. E, por fim, na última posição da classificação social brasileira está a
classe dos marginalizados e excluídos dos privilégios positivos (em torno de 40% da
população), onde reconhecemos que cerca de 1% de sua composição racial é
formada por indivíduos brancos ou mestiços e cerca de 99% é composta por
pessoas negras.
Os dados apresentados anteriormente demonstram, na prática, as intenções
das elites do mercado e do Estado em produzirem alguns tipos de seres humanos
necessários, historicamente programados para serem hierarquizados em classes
sociais de acordo com seus imperativos funcionais. É produzida uma hierarquia que
é capaz de fabricar “classificados e desclassificados” sob uma aparência de
48
naturalidade e neutralidade pela suposta ação de desempenhos individuais
diferenciais, ou seja, pelo mérito (CHAUÍ, 2022; WILKERSON, 2021; SOUZA, 2018,
2006; FERNANDES, 2007, 1965). Há um compromisso secular firmado entre as
elites brancas, que deixam em abandono toda uma “ralé de novos escravos”,
totalmente despreparada para enfrentar as condições socioeconômicas do
capitalismo.

3.13 A dominação social através da manutenção dos déficits de socialização


familiar e escolar

Vimos em momentos anteriores deste trabalho que a sociedade, através da


atuação de suas instituições, cria determinados tipos de sujeitos, a partir de
privilégios positivos e negativos que lhes são cedidos ao longo da vida. A
sociabilidade, portanto, é influenciada pelo nível de permeabilidade permitido entre
as classes sociais em determinada sociedade, criando distinções e certos “tipos de
gente” (SOUZA, 2021d). A própria formação da classe social está intimamente
ligada ao acesso dos indivíduos pertencentes, a privilégios positivos ou negativos
(FERNANDES, 2007).
Para o sucesso do capitalismo extrativo controlado pelas elites do poder, é
importante e primordial, que seja criada e devidamente mantida desta forma, uma
“classe-raça” sem nenhuma chance de desenvolvimento no mundo contemporâneo
(SOUZA, 2021e, 2020, 2006; FERNANDES, 2007, 1965). As pessoas das castas
dominantes veem e tratam aqueles considerados inferiores não só como sub-
humanos que devem ser explorados, mas também como “inimigos” ameaçadores
que precisam ser combatidos (WILKERSON, 2021).
O combate aos supostos inimigos e o seu controle comportamental e cognitivo
é feito, dentre várias maneiras, pela manutenção de seu despreparo reflexivo e
atitudinal frente ao mundo competitivo. Este despreparo foi cotidianamente e
historicamente reproduzido na socialização familiar brasileira (invisibilizada), criando
uma classe-raça (composta fundamentalmente por negros e mestiços) marginalizada
e excluída das riquezas objetivas e subjetivas da nação, mantida pauperizada e
fragmentada pela miséria e o descaso (SOUZA, 2021a).

49
Na luta de classes brasileira, as pessoas partem de pontos enormemente
distintos, de acordo com o acesso ou não a determinados privilégios. A dominação
vigente, baseada no sistema escravocrata, se adaptou à modernidade e aos dias
atuais, mantendo as mesmas prioridades e alianças de classe que já vigoravam no
período da escravidão, com uma “nova roupagem”, mais sofisticada, adaptada ao
capitalismo (Idem, 2021a).
No sistema de castas há o pressuposto e o constante “lembrete” da
superioridade inata da elite dominante e da inferioridade inata das classes
subalternas. Neste sentido, as castas ditas superiores seriam merecedoras do
melhor que haveria em uma sociedade, ao passo que as pessoas das classes
rotuladas como inferiores seriam merecedoras de uma posição servil permanente,
evidentemente subalterna (WILKERSON, 2021). Através das práticas de sujeição,
como uma submissão forçada em todas as dimensões da vida (leis e protocolos
sociais), incutidas com tanta frequência que passam a ser aceitas como uma
verdade subconsciente, os sujeitos rebaixados procuram ser convencidos de sua
inferioridade, aceitando o desrespeito e a exclusão (Idem, 2021; WEBER, 2001).
As classes sociais precisam ser compreendidas mais além de meros interesses
econômicos, mas também com a análise de seus aspectos simbólicos (BOURDIEU,
2003). As classes sociais, evidentemente, se formam simbolicamente, a partir de
ideias e valores que são incorporados a elas através dos processos de socialização.
Para cada classe social, através destes processos, notadamente diferenciados, vai
haver a construção de uma característica sociocultural específica, ou seja, a
composição de um habitus com visões de mundo, formas avaliativas e
classificatórias das situações e coisas, comportamentos, padrões de reprodução
familiar, estilos de vida totalmente peculiares e distintos (Idem, 2011, 2003).
Através da socialização familiar, principalmente, e posteriormente na
socialização escolar, ambas prejudicadas e precarizadas, a classe dos
marginalizados e excluídos reproduz privilégios negativos, de geração a geração,
como a dificuldade de concentração, de pensamento prospectivo, da criação do
gosto pela leitura e pelos estudos, de autocontrole e de disciplina (SOUZA, 2021e).
As pessoas desta classe, portanto, vão sendo “construídas” sem as pré-condições
para realizarem uma incorporação bem sucedida dos conhecimentos exigidos pelo
sistema capitalista, como o trabalho diferencial, produtivo e reconhecido, aponta o

50
autor. Vai existir toda uma manutenção da socialização familiar e escolar precária
como herança de classe para os setores populares e marginalizados.
Trata-se, assim, da produção política intencional da miséria objetiva e subjetiva
de uma grande massa de indivíduos que, por alienação e incompetência técnica e
social programadas, serão manobrados pela elite, sendo classificadas como de
pouco conhecimento útil incorporado, não sendo percebidas como verdadeiros
cidadãos. Esta “gente de segunda categoria”, os subcidadãos, será um grupo,
portanto, condenado aos “trabalhos possíveis”, os serviços que “restam”,
degradantes e mal remunerados, visando apenas a sua sobrevivência cotidiana,
bem ao gosto do capitalismo extrativo liderado pelas elites (SOUZA, 2018).

3.14 A dominação social através do racismo

Anteriormente, descrevemos que a casta é uma “gramática invisível”


assimilada desde a infância, que ensina, de forma irrefletida, a atribuição de
pressupostos e valores dentro de uma estrutura hierárquica dos seres humanos. O
sistema de castas, fixo e rígido, coloca as pessoas em polos opostos e atribui
significado aos extremos e às gradações intermediárias, e reforça esses significados
reproduzindo-os nos papéis que eram e são atribuídos a cada casta, sendo ela
autorizada ou obrigada a cumprir.
O uso de características físicas hereditárias para diferenciar capacidades
internas e valores de grupo é, talvez, o meio mais engenhoso já concebido por uma
cultura para gerir e manter um sistema de castas, aponta Isabel Wilkerson (2021). A
raça, ou seja, a cor da pele dos indivíduos, é um agente invisível da força invisível
da casta, sendo traços físicos que receberam um significado arbitrário e se tornaram
um resumo do que a pessoa é. Estes agentes invisíveis são fluidos e superficiais,
sujeitos a redefinições periódicas para atender às necessidades das castas
dominantes ao longo da história. A cor da pele, no entanto, como “divisão social
humana” na criação de categorias, ultrapassa qualquer outra, em intensidade e
subordinação, inclusive a categoria de gênero (Idem, 2021).
O fator racial passou a determinar a posição social, a estratificação social nas
sociedades colonizadas, principalmente a brasileira (NASCIMENTO, 2016). Durante
séculos, o sistema escravocrata desfrutou a fama, sobretudo no estrangeiro, de ser

51
uma instituição “benigna”, de “caráter humano”, graças ao colonialismo português
que adotava formas de comportamento específicas que disfarçavam a violência e a
crueldade. O principal recurso utilizado para isso foi o uso da mentira e da
dissimulação para esconder o saque de terras e povos, a repressão e negação de
culturas e a sustentação da força militar imperialista (Idem, 2016). A Europa
colonizadora é a responsável, perante a comunidade humana, pela maior pilha de
cadáveres da história, afirma Aimé Césaire (2020), sendo desonesta ao legitimar a
posteriori a ação colonizadora pelo “evidente progresso material” realizado em
alguns campos do regime colonial. A escravidão era considerada normal,
comparada à domesticação do cavalo ou do boi, sendo procedimento para uma
“raça inferior” (pretos ou amarelos), que deveria ser confinada a trabalhos
grosseiros, uma vez que somente os indivíduos brancos eram considerados
civilizados (Idem, p. 36).
A casta é anterior ao racismo. O racismo foi uma criação da Idade Moderna. A
casta, como foi demonstrado, reproduz rotinas irrefletidas no cotidiano, padrões de
uma ordem social que existe há tanto tempo que parece ser a verdadeira ordem
natural das coisas. O uso das classificações de raça fortaleceu a ideia de dominação
de castas. Os colonizadores também utilizaram da religião para legitimar e justificar
a “superioridade” da raça branca sobre os negros e índios, como uma “autorização
divina” para o uso sistemático da violência.
O antropólogo Ashley Montagu, em 1942, foi um dos primeiros a afirmar que a
“raça” é uma invenção humana, uma construção social e não biológica utilizada para
alicerçar um desenvolvido sistema de castas baseado na aparência das pessoas
(WILKERSON, 2021). As categorias: “branco”, “negro”, “amarelo”, “vermelho” ou
“pardo” foram criadas na formação do Novo Mundo pelos europeus (data do começo
do tráfico escravo transatlântico) e nesse processo de colonização os seres
humanos foram separados pela aparência, pelo contraste e classificados para
formar um sistema de castas baseado em um conceito novo chamado “raça”, explica
a autora. Estas classificações são interiorizadas, não ditas, não nomeadas, não
reconhecidas (refletidas) pelos cidadãos comuns, que vivem segundo essa
classificação, comportando-se subconscientemente de acordo com ela (Idem, 2021).
Pensamos ver a raça quando encontramos certas diferenças físicas entre as
pessoas, tais como a cor da pele, o formato dos olhos e a textura do cabelo. Mas o

52
que realmente “vemos” são os significados sociais aprendidos, os estereótipos que
foram associados a esses traços físicos, politicamente designados, ligados à
ideologia de raça e por herança histórica que ela nos legou.
A ideia do racismo é criar e manter uma hierarquia e uma desigualdade com
base na formação de gradações de cor de pele (aparência das pessoas) que
possam reforçar determinados papéis estabelecidos (WILKERSON, 2021). É a
concessão ou não de respeito, posição, honra, atenção, privilégios, recursos,
benefício da dúvida e bondade humana a alguém com fundamento no nível ou na
posição que esse alguém, na percepção dos outros, ocupa na sua hierarquia racial
(Idem, 2021).
O racismo é um determinante das estruturas das relações sociais, para o fazer
político concreto, e não “algo” nas estruturas sociais (KILOMBA, p. 71). De acordo
com a autora, no racismo estão presentes, de modo simultâneo, três características:
(a) a construção da diferença: um indivíduo (negro) se “difere” de um grupo (branco)
que tem o poder de se definir como norma (processo de discriminação); (b) as
diferenças construídas estão inseparavelmente ligadas a valores hierárquicos: uso
do estigma, da desonra e da inferioridade, que implicam um processo de
naturalização, aplicado a todos os membros do grupo visto como “problemático”; (c)
o exercício do poder histórico, político, social e econômico para legitimar a
supremacia do grupo considerado dominante e superior (branco).
O racismo é um continuum e não um absoluto, sendo ações depreciativas que
prejudicam um grupo menos poderoso, sendo aprendidas como instrução social e
transmitidas no processo de socialização, desde a infância (WILKERSON, 2021). De
acordo com esta autora, o racismo significa “qualquer ação ou instituição que
escarneça, prejudique, pressuponha ou atribua uma inferioridade ou um estereótipo
a alguém com base na construção de raça” (p. 82). Com a transmissão racista, de
geração em geração, o racismo passa a fazer parte do inconsciente da coletividade
em um país, formando as suas estruturas sociais (FANON, 2020).
Segundo o sociólogo Jessé Souza (2021c), o racismo destrói o núcleo moral do
indivíduo e a sua capacidade de obter reconhecimento social22. Este racismo,

22
O reconhecimento social, de acordo com Axel Honneth (2009), é uma segurança existencial,
geradora de autonomia e de liberdade. Este reconhecimento, afirma o autor, está fundamentado na
autoestima, na autoconfiança e no autorrespeito, sendo o pressuposto para que o indivíduo possa
reconhecer as mesmas necessidades e os mesmos direitos nas outras pessoas.
53
segundo o autor, se traduz em “toda forma de amesquinhar, humilhar e desprezar o
oprimido convencendo-o de sua própria inferioridade, negando-lhe, portanto, o
reconhecimento social de sua humanidade” (p. 132).
No processo de alienação do indivíduo negro pela vivência do racismo, de
acordo com os estudos de Frantz Fanon (2020), há um desconhecimento, por parte
do negro, das realidades econômicas e sociais a ele propositalmente ocultadas. Se
há um complexo de inferioridade, ele resulta de um duplo procedimento, aponta:
econômico, em primeiro lugar; em seguida, por interiorização ou epidermização
dessa inferioridade. Surge, portanto, uma “linha mestra neurótica23” para brancos e
negros. O negro é escravo de sua inferioridade, o branco, por sua vez, é escravo de
sua suposta superioridade. O racismo provoca, então, a formação de estruturas
psíquicas neuróticas nos sujeitos, um desequilíbrio psicossocial, contribuindo para a
criação de psicoses24 patológicas nos indivíduos imersos na sociedade racista
(Idem, 2020).

4 A EXPLICAÇÃO COMPREENSIVA DOS RESULTADOS ENCONTRADOS

Este capítulo do trabalho denota o momento de compartilhar os êxitos e os


fracassos. As descobertas positivas servirão para orientar próximos estudos e os
achados negativos ou insuficientes poderão ser analisados buscando melhorias
futuras nos procedimentos de investigação adotados. Em definitiva, este passo de
reflexão é uma etapa importante que apoiamos no passado para construir o futuro.

23
A literatura psicanalítica aborda que a neurose e a psicose aparecem como estruturas da
personalidade humana, ou seja, como características do ser que direcionam as suas formas de
responder ao mundo (FREUD, 1990). A neurose é resultante de um conflito entre o Ego e o Id (sendo
Id formado e responsável pelo instinto e pulsões primitivas relacionadas ao prazer; e Ego, que
funciona como um princípio de realidade, que media a relação do ser humano com seu ambiente). As
neuroses elucidam os conflitos que surgem no inconsciente, sendo os manifestos de um mal-estar
(que todos poderiam experimentar), mas com a sua não elaboração interna, e isso vai gerar o
impulso em estado de sintoma maior. (Idem, 1990).
24
A psicopatologia é definida como o ramo da ciência que trata da natureza essencial da doença
mental, dentre ela, as suas causas, as mudanças, estruturas e suas formas de manifestação.
Analisada de forma ampla, pode ser conceituada como o conjunto de conhecimentos referentes ao
adoecimento mental do ser humano, que se esforça e cuida especificamente dos sinais e sintomas
produzidos pelos transtornos mentais (DALGALARRONDO, 2008). A psicose é o que aparece do
distúrbio que se assemelha nas relações entre o Ego e o mundo, a presença do objeto principal: a
angústia. Na psicose, a desordem do funcionamento psíquico demonstra uma expulsão de ideias e
pensamentos, e comportamentos próprios, os quais são impostos como não acontecidos, ou de
forma acentuada construída no imaginário do sujeito (FREUD, 1990).
54
Tendo em conta que esta investigação foi conduzida segundo o método da
Sociologia Compreensiva, criada e sustentada por Max Weber, como “núcleo firme”
do estudo focamos no “processo primordial de dominação social criador de
desigualdades sociais”. Com base nos diversos materiais científicos analisados,
objetivamos captar, fazendo uso da neutralidade axiológica, quais seriam os
significados e sentidos das ações sociais (suas intenções) relatadas pelos autores
das obras, que foram interpretadas a partir dos verdadeiros atores-agentes
(indivíduos, grupos e instituições) atuantes na sociedade.
Vimos que a sociologia weberiana procura compreender como o ator ou agente
dá sentido à sua conduta, ou seja, à sua ação social, que pode ser racionalmente
orientada, uma vez que o indivíduo é sempre portador de uma intencionalidade.
Assim sendo, a sociologia compreensiva busca determinar qual o sentido das ações
sociais, ou seja, compreender porque os indivíduos realizam determinados
comportamentos. A compreensão explicativa é uma compreensão motivacional da
ação social analisada.
O método da sociologia compreensiva prega que a ação do sujeito deve ser
explicada de maneira compreensiva, ou seja, esta ação deve ser significativamente
compreendida e, dessa forma, ser causalmente explicada no seu curso e nos seus
efeitos. O objeto de estudo da sociologia, para Weber, é a captação de sentido
destas ações sociais.
Neste momento do estudo, relataremos o esforço desprendido no propósito de
interpretar e compreender os comportamentos dos agentes (pessoas e instituições)
que foram relatados pelos autores das obras científicas estudadas. Pretendemos
explicar, dentro de nossa limitação cognitiva, porque houve tais comportamentos
relatados; quais foram as orientações recebidas e de onde vieram; e quais foram os
mais importantes e primordiais raciocínios causais mobilizadores das relações
sociais empreendidas. E, por fim, pretendemos explicar, objetivamente, de maneira
compreensiva, os resultados encontrados.
Portanto, após a análise aprofundada das obras mencionadas neste texto,
apresentamos as nossas interpretações, na tentativa de explicar, de forma
compreensiva e objetiva, quais foram as principais “características primordiais
epistemológicas da dominação social que fundamentou, estruturalmente, a
desigualdade social brasileira”.

55
4.1 A ação social das classes dominantes brasileiras produzindo ideologias
diversas para legitimar seu poder

O poder e a eficácia da ideologia das classes dominantes aumentam quanto


maior for a sua capacidade para ocultar a origem das divisões sociais em classes e
luta de classes. Através do controle do mercado e do Estado, foi possível
compreender que as elites montam um aparelho de coerção e de repressão social
que lhes permitem exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter-se
às suas regras impostas. A dominação social construída pelas classes dominantes é
capaz de impedir uma reação eficiente e duradoura por parte das classes
subalternizadas, fazendo com que o que é apresentado à sociedade, mesmo que
injusto, se pareça como legal e legítimo, isto é, como “justo”, por merecimento, e
bom.
A dominação de uma classe é substituída pela ideia de interesse geral
encarnado pelo Estado e pelo Mercado. A usurpação dos direitos sociais é
substituída pela representação falsa de ideias tidas como legítimas, justas, boas e
válidas para todos. Em toda a historia brasileira a dominação social se mostrou
altamente eficiente e longeva, somente trocando sua forma de manifestação,
dissimulando estratégias variadas e interconectadas, conforme a necessidade
contextual momentânea, conduzida pelas elites econômicas e políticas.

4.2 A ação social das igrejas no Brasil utilizando da religião como artifício de
dominação das pessoas vulnerabilizadas

No Brasil, algumas igrejas recrutam a maior parte de seus fiéis entre os setores
mais pobres e, especialmente, entre as camadas de baixa escolaridade. Os líderes
religiosos possuem um discurso que atende às demandas e as visões de mundo das
classes sociais marginalizadas e excluídas, criando uma “ética religiosa” que
contribui para o aprendizado moral, político e social destas pessoas.
Como estratégia de dominação, a religião tem adentrado na política, não como
possibilidade de aprendizado coletivo, mas como meio de influência e ocupação de
cargos, fundamentalmente com a proposta de fortalecer as práticas clientelistas e

56
assistencialistas já adotadas. A grande maioria dos fiéis dessas igrejas e seitas, da
classe pobre, se mostra simpática a “lideranças carismáticas” e são os que
sustentam e legitimam atitudes antidemocráticas e expectativas clientelistas, bem
como preconceitos contra grupos étnicos e as ditas “minorias sociais”.
O clientelismo e o populismo são modelos de prática política na América Latina
e no Brasil, próprios das sociedades modernas periféricas, onde a “magia” e a
religião são componentes cognitivos de destaque. O poder de mobilização religioso
sobre as pessoas das classes subalternizadas está relacionado à eficiência do seu
discurso, que é capaz de amenizar privações identitárias e de recursos,
especialmente aquelas construídas na precária socialização familiar. A dominação
social por meio da religiosidade fornece um contexto psicossocial que mitiga
ansiedades e formas depreciativas de autopercepção já incorporadas pelas classes
inferiorizadas, em troca de participação ativa e permanente nas atividades religiosas
oferecidas, retirando a reflexão, a autorresponsabilidade, as possibilidades de
escolhas e a autonomia dos indivíduos.

4.3 A ação social das elites brasileiras utilizando da violência concreta e da


violência simbólica para manter sua dominação

O emprego de procedimentos de sujeição de indivíduos situados em grupos


mais vulneráveis, através de estratégias de terror, de violência extrema e
desrespeito aos direitos humanos sempre foi o principal mecanismo de dominação
daqueles indivíduos que possuem poder econômico, político e social no Brasil. A
elite sempre procurou legitimar a sua dominação sobre as camadas sociais
consideradas como inferiores, fazendo uso de diversas estratégias baseadas na
violência e na desconsideração das pessoas subalternas como sendo indivíduos
merecedores de respeito e dignidade. O uso das forças armadas, seja da polícia
militar, do exército e das milícias, é um exemplo prático de controle autoritário das
forças dominantes no país.
As pessoas das classes populares brasileiras, situadas nas favelas e áreas
abandonadas pelo poder público, dominadas e dependentes, são constantemente
“lembradas” do poder absoluto das elites, pela vivência cotidiana das diversas
formas de violências concretas e simbólicas a elas dirigidas. De forma

57
estrategicamente planejada, são inculcados nos indivíduos dominados o medo, o
complexo de inferioridade, o desespero, a servidão e a apatia. A sociedade brasileira
se mostra, em realidade, uma civilização doente, moralmente atingida por sadismo e
crueldade, que justifica a dominação por parte dos poderosos e apoia a barbárie,
manifestando apreço pela voluptuosidade sádica dos prazeres da matança e do
massacre do povo pobre e marginalizado.

4.4 A ação social das elites dominantes brasileiras criando, propositalmente, a


divisão de classes no país, prioritariamente a dos marginalizados e excluídos

A hierarquização de princípios de classificação e de desclassificação social


segundo critérios morais avaliativos é utilizada para criar grupos diferenciados de
indivíduos no Brasil. As diferentes versões ou arranjos de “castas”, ao modelo
brasileiro, se baseiam na estigmatização dos supostos indivíduos inferiores, a fim de
justificar a desumanização necessária para manter na base as pessoas de
classificação mais baixa, juntamente com os protocolos para a vigência dessa
ordem.
A distância construída propositalmente entre os grupos dominantes e os grupos
dominados funciona como um instrumento prévio para a banalização da indiferença
e para a autorização dos atos repugnantes demandados pelas elites controladoras.
O distanciamento das classes sociais brasileiras é sustentado por uma estrutura,
uma obra de escravização econômica e biológica, legitimando atos racistas contra a
classe de marginalizados e excluídos e contra a classe trabalhadora precária, como
uma declaração arbitrária e originária de superioridade de um grupo de seres
humanos sobre outros (a elite retrógrada).

4.5 A ação social das classes dominantes brasileiras criando, arbitrariamente,


os gostos estéticos valorizados e os desvalorizados

O gosto estético está intimamente relacionado às pessoas e às classes sociais


que possuem, supostamente, qualidades e características superiores, ligadas ao
espírito (estética, moralidade e inteligência), enquanto que outras classes vão estar
relacionadas ao corpo, portanto, consideradas inferiorizadas e animalizadas. A

58
dominação social, neste caso, no Brasil, está atuando quando desconsidera a
cultura, as artes, a música, a literatura, a arquitetura e demais manifestações
artísticas das classes sociais ditas subalternas, considerando-as “atrasadas”,
incultas, “exóticas” e folclóricas, como as das populações afrobrasileiras e indígenas,
ao passo que aquelas de origem europeia, eurocêntricas e próprias da branquitude,
são merecedoras de notoriedade e reconhecimento social.

4.6 A ação social das elites dominantes brasileiras construindo a ideia de povo
brasileiro inconfiável, desonesto e corrupto

A identidade nacional é um suporte de narrativas e práticas morais amplas e


abrangentes, criadora de um “imaginário social”, de um conjunto de interpretações
que permitem compreender o sentido e a especificidade de determinada experiência
histórica e coletiva. No Brasil, ao comando das elites, intelectuais construíram uma
ideia de povo brasileiro que, na realidade, o humilha e degrada. Como a dimensão
moral é a mais importante como estratégia de dominação, o povo brasileiro foi
idealizado nacionalmente como inconfiável, desonesto e corrupto. Instituições
educativas no Brasil foram financiadas durante décadas para produzir intelectuais e
para a formação de ideias para serem espalhadas, disseminadas na sociedade, com
base no racismo cultural vigente (estoque cultural), implícito, como alternativa ao
antigo racismo explícito (pseudocientífico) permitido no passado.
No Brasil, há um projeto político para a construção e manutenção do habitus
precário da classe social mais baixa, marginalizada, excluída, esquecida, e da
classe trabalhadora banalizada, para serem ambas usurpadas e exploradas pela
elite do atraso e pela classe média branca. As classes populares passam a ser
condenadas à precarização e à barbárie eternas, uma condenação desde o “berço”,
pela formação deficitária de suas classes, por meio da socialização familiar distinta,
repleta de privilégios somente negativos.
As elites internacionais e as elites brasileiras partilham de um posicionamento
político que opera para que as divisões morais na sociedade brasileira sejam criadas
e mantidas, uma vez que não aceitam a humanização do capitalismo, com a
atenuação das desigualdades sociais que ele provoca. Este tipo de capitalismo
aplicado no Brasil, neoliberal, necessita da existência da desigualdade social para

59
funcionar devidamente, através da exploração do povo subalternizado, mantido
pobre e na miséria. A produção e a manutenção de indivíduos pobres, vivendo na
miséria e à mercê dos arranjos políticos, sociais e econômicos das elites, são
possibilitadas pelo abandono proposital que criou as condições perversas de
eternização de um modo de ser e de viver precário e dependente.

4.7 A ação social das classes dominantes no Brasil fazendo uso do genocídio
físico e cultural das classes subalternizadas

A sociedade brasileira foi tornada psicossocialmente doente, moralmente


atingida pelo sadismo e pela crueldade da elite dominante. Procurando justificar a
dominação e apoiando a barbárie, os dominantes manifestam apreço pela
voluptuosidade sádica dos prazeres da matança e do massacre das pessoas pobres
e negras no Brasil.
A produção e a manutenção de indivíduos pobres, vivendo na miséria e à
mercê dos arranjos políticos, sociais e econômicos das elites, são efetivadas eficaz
e concretamente pelo abandono proposital que criou as condições perversas de
eternização de um modo de ser e de viver precário, constrangendo grupos a uma
vida marginal e humilhante à margem da sociedade. As elites se utilizam da
depredação humana, dos homicídios, do genocídio biológico, cultural, linguístico e
religioso, principalmente dos cidadãos afrobrasileiros residentes nas áreas
populares, criando e mantendo uma massa gigantesca de grupos sociais
subalternos, destinados à pobreza e ao clientelismo assistencialista.

4.8 A ação social das elites dominantes no Brasil produzindo e mantendo


pessoas na pobreza, na ignorância e na alienação

Através da manutenção, por parte das elites, de uma socialização familiar e


escolar imensamente prejudicadas e precarizadas na classe dos marginalizados e
excluídos, vai ocorrendo a reprodução nesta classe de vários privilégios negativos,
de geração a geração, como a dificuldade de concentração, de pensamento
prospectivo, da criação do gosto pela leitura e pelos estudos, de autocontrole e de
disciplina. As pessoas dos setores populares vão sendo “construídas” sem as pré-

60
condições para realizarem uma incorporação bem sucedida dos conhecimentos
exigidos pelo sistema capitalista, como o trabalho diferencial, produtivo e
reconhecido.
Vai sendo formada, portanto, a miséria dos ditos “desclassificados”, produzida
objetivamente não apenas sob a forma de miséria econômica, mas também sob a
forma de miséria emocional, existencial e política. Para estas pessoas ficam
reservados os trabalhos essencialmente musculares, animalizados, como os
trabalhos domésticos, de limpeza, agrícolas e de serviços às classes dominantes.

4.9 A ação social das classes dominantes brasileiras produzindo, mantendo e


multiplicando o racismo como o principal elemento propulsor de sua
dominação

Em se tratando do Brasil, suas classes sociais foram produzidas historicamente


como verdadeiros “projetos políticos” por parte da elite e da alta classe média, senso
demarcadas pela “cor da pele” das pessoas componentes de cada uma destas
classes, que traduz e explicita, fenotipicamente, a hierarquia moral e racista que
criou a sociedade brasileira. O racismo brasileiro é “mascarado” por argumentos
morais que o tornam implícito.
O racismo é que vai “cimentar” as relações de classe enormemente desiguais
no país. Na sociedade brasileira, portanto, são estabelecidas posições
socioeconômicas e socioculturais diferentes, notadamente estratificadas por classe,
por raça e por status social.
Os afetos racistas são utilizados no Brasil para separar ontologicamente
aqueles seres humanos de “primeira classe” (superiores inatos) e os outros seres
humanos de “segunda classe” (inferiores inatos). Este critério seletivo, arbitrário e
falso, construído artificialmente, ajuda a construir uma sensação de inferioridade e
de distinção para os indivíduos negros, pardos e mestiços do Brasil, que formam a
maior parte da parcela pobre e miserável da sociedade. Estes indivíduos se
encontram na situação de dominados e explorados, manipulados cognitivamente e
materialmente pelas ideias da ideologia burguesa, o que vem a legitimar e tornar
“merecida” a sua própria dominação por parte das elites retrógradas brasileiras.

61
Fazendo uso da Sociologia Compreensiva de Max Weber e adotando as
prerrogativas de sua recomendada neutralidade axiológica, procuramos interpretar,
a partir de obras científicas específicas, quais seriam as características primordiais
epistemológicas da dominação social que fundamentou, estruturalmente, a
desigualdade social brasileira. Procuramos captar, da melhor maneira possível, nos
materiais literários estudados, quais seriam os significados e os sentidos das ações
sociais (intenções) realizadas pelos atores-agentes (indivíduos, grupos e
instituições), além de interpretar e compreender os seus comportamentos, com base
nas seguintes perguntas: (1ª) porque agiram assim? (2ª) quais foram as orientações
recebidas e de onde vieram? e, (3ª) qual seria o raciocínio causal possível de ser
organizado na leitura das tramas sociais?
Desprendemos dados que resultaram em percepções no sentido de que
características intrínsecas às realidades analisadas foram sendo produzidas pelo
processo que deu origem a essas realidades, historicamente. As principais
orientações que constituíram o fenômeno da dominação na sociedade brasileira
foram:
a) a dominação ideológica é resultado da divisão social entre espírito e corpo,
ou trabalho espiritual (intelectual) que seria próprio das classes dominantes, ditas
superiores, e trabalho material (corporal), que seria próprio das classes
supostamente consideradas inferiores.
b) na produção das ideologias dominantes, aparece uma aparente autonomia
do trabalho intelectual, como autonomia dos produtores desse trabalho, ou seja, dos
pensadores, os intelectuais, criadores das ideias.
c) as ideias que aparecem como autônomas são as ideias das classes
dominantes de uma época, e tal autonomia é produzida no momento em que se faz
uma separação entre os indivíduos que dominam e as ideias que dominam, de tal
modo que a dominação de homens sobre homens não seja percebida porque
aparece como a dominação das ideias sobre todos os homens.
d) a ideologia se torna um instrumento de dominação de classe e, como tal,
sua origem é a existência da divisão da sociedade em castas (classes) distintas,
contraditórias e em luta.
e) no processo de dominação, o papel específico da ideologia é impedir que a
dominação e a exploração sejam percebidas em sua realidade concreta. Para tanto,

62
é função das ideias ideológicas dissimular e ocultar a existência da divisão social
proposital como divisões de classe, escondendo assim, sua própria origem.
f) por ser um instrumento encarregado de ocultar as divisões sociais, a
ideologia deve transformar as ideias particulares da classe dominante em ideias
universais, válidas igualmente para toda a sociedade.
g) a universalidade dessas ideias é abstrata, pois no concreto existem ideias
particulares de cada classe. A ideologia dominadora constrói uma rede imaginária de
ideias e valores que possuem base real (a divisão social), mas de tal modo que essa
base seja reconstruída de modo invertido e imaginário.
h) a ideologia é uma ilusão, necessária à dominação de classe, precisando
tornar-se “senso comum”, um conjunto de ideias e de valores concatenados e
coerentes, aceitos por todos os que são contrários à dominação existente.
i) para concretizar seus objetivos de dominação, as classes dominantes
brasileiras não titubeiam em utilizar da violência extrema e do terror; de fazer uso da
manipulação da religião; de construir e manter, de forma deliberada, classes sociais
com todos os privilégios positivos e outras sem recurso algum, subalternizadas; de
dificultar ao máximo a ascensão social dos indivíduos pertencentes às classes
populares; de produzir e manter a aversão pelos estilos de vida e gostos estéticos e
culturais diferentes aos eurocêntricos, criando uma das mais fortes barreiras entre as
classes sociais; de criar histórias fantasiosas sobre as identidades nacionais de todo
um povo, não tendo receio em mentir sobre como o mundo social realmente é e
funciona, na intenção de que privilégios de classe, mesmo aqueles mais injustos,
como os transmitidos por herança, sejam perpetuados; de desumanizar indivíduos
das classes populares, principalmente afrobrasileiros e indígenas, demonstrando um
sadismo pelos prazeres da matança e do massacre genocida destas pessoas, de
sua religiosidade e de sua cultura; de produzir e manter uma grande parcela de
indivíduos e grupos altamente explorados, vivendo na miséria, na barbárie, na
ignorância e na ausência completa de recursos positivos, sendo condenados aos
trabalhos essencialmente musculares e animalizados; e, incentivar e fazer uso do
racismo estrutural como base das relações de exploração social brasileira,
aprendidas como instrução social e transmitidas no processo de socialização, desde
a infância.]

63
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Faz parte da natureza do conhecimento, gerar o desconhecimento. Quanto


mais o conhecimento avança, mais desconhecimento gera. Por suposto, gerar novos
conhecimentos significa também gerar a capacidade de fazer novas perguntas que
antes eram impossíveis de ser feitas. Os conhecimentos são “amplificadores da
realidade”, que aumentam nossa capacidade de questionamento da visão que temos
sobre a realidade que conhecemos e sobre o mundo. As perguntas produzidas,
portanto, são capazes de fazer avançar a busca pelo conhecimento.
O fato de que a ciência não seja capaz de responder a todas as perguntas
criadas não significa que ela seja débil ou que seja um fracasso da racionalidade
humana, pelo contrário, significa que o método científico possui suas limitações e
que somente é capaz de lidar com determinados tipos de questionamentos.
Podemos concluir, então, que o desconhecimento é infinito. A curiosidade que
manifestamos a respeito de determinados fenômenos que fazem parte de nossa
vida social nos possibilita perguntar sobre o “novo”, fazendo o conhecimento
aumentar, assim como também aumentar o desconhecimento.
À medida que ganhamos conhecimento, temos que nos tornar humildes frente
ao que ainda permanece desconhecido. Isto enriquece a ciência e contribui no
propósito de dar sentido à vida, justamente através da busca pelo conhecimento.
Fazer perguntas sobre algo que não conhecemos, por tanto, nos faz crescer.
Crescemos quando perguntamos. Perguntar é nossa maior forma de crescimento,
como seres humanos, como cidadãos, como parte dos elementos do planeta. A
curiosidade e o sentido de “mistério” são capazes de nutrir o crescimento do ser
humano.
Neste processo de maturidade humana, compreendemos que a ciência não é a
verdade absoluta, senão uma aproximação da verdade. A ciência constrói narrativas
explicativas da realidade compreensível, que vão modificando e se autocorrigindo ao
longo do tempo. O conhecimento, portanto, sempre será incompleto e imperfeito.
Nessa busca, como investigadores, parece ser sempre por novos “cenários viáveis”,
porém nunca por uma resposta final e definitiva. O desconhecimento estará sempre
presente nesse caminho interminável.

64
Em se tratando das Ciências Sociais, da Sociologia, principalmente no contexto
da América Latina, encontramos ao longo das décadas um campo de estudo
privilegiado de oportunidades para nos ajudar na compreensão das “verdades
visíveis” e das “verdades ocultadas”, por exemplo, em relação ao complexo
processo da real formação de nossas sociedades, da construção das comunidades
latinoamericanas contemporâneas, amplamente exploradas e marginalizadas pelas
elites econômicas internacionais e nacionais, parceiras dos sistemas de governo
estatais, que por sua vez, são aliados aos mercados capitalistas estrangeiros, de
natureza financeira-especulativa, que manipulam as políticas de educação, de
economia, as políticas sociais, principalmente, para manter sua posição dominante
de poder. Particularmente, a educação e a comunicação de massa na América
Latina têm sido escorchadas, de maneira frequente, e utilizadas fortemente como
mecanismos de manutenção da ordem social imperialista, extrativa e excludente,
através da ideologia das elites dominantes.
Na procura por respostas nesse sentido, este estudo teve como propósito, a
partir da perspectiva da Sociologia Compreensiva de Max Weber, compreender os
principais elementos das condutas práticas de determinados atores da sociedade
brasileira, que criaram e legitimaram fortes processos estruturados de dominação e
de exploração de uns indivíduos sobre os outros, ao longo do processo histórico.
Fazendo uso de uma revisão de literatura, a presente investigação foi construída e
pautada nas publicações que tiveram como foco de atenção o tema da dominação
social, que fundamentou a criação de estruturas de desigualdade social,
efetivamente aplicadas no Brasil. Tendo como alicerce o núcleo firme desta
investigação, portanto “qual seria o processo primordial de dominação social criador
de desigualdades sociais na sociedade brasileira?”. Esta pergunta foi a base de
nossa curiosidade acadêmica.
Neste processo, compreendemos que a dinâmica global das transformações
sociais ocorre, simultaneamente, pela ação de forças externas e internas, umas
interagindo e influenciando as outras, em um movimento complexo e interminável.
Na ânsia de compreender as dinâmicas internas das instituições sociais
articuladoras da vida social brasileira, vimos o quanto esta se encontrava
permanentemente influenciada pelas ações e reações do grande sistema
macrossocial vigente no Brasil, herdado da escravidão, se constituindo na realidade,

65
como a verdadeira gênese da sociedade brasileira desigual, e da estratificação de
classes (ou castas) baseada no racismo estrutural, somadas às inúmeras influências
psicossociais e sociológicas do contexto microssocial solidamente criado nas
comunidades populares, retratando a forte construção e manutenção do poder
elitista dominante sobre as pessoas pobres e vulneráveis.
Os indivíduos pertencentes às classes sociais tornadas marginalizadas e
excluídas do país sofrem, fortemente, como vítimas cotidianas, das mazelas
provenientes do racismo multidimensional, ou seja, do racismo de raça, de gênero,
de classe e de cultura a eles direcionado. Analisamos e concluímos, através deste
estudo, que as elites dominantes, produtoras da ideologia, fabricam histórias
imaginárias que nada mais são do que uma forma de legitimar a sua dominação.
Desta forma, compreende-se por que a história ideológica vai ser sempre uma
história narrada do ponto de vista do vencedor ou dos poderosos.
Não possuímos acesso à história dos escravizados, nem dos colocados à
servidão eterna, nem a dos trabalhadores vencidos. Não só suas ações não são
registradas pelos historiadores e intelectuais, mas também os dominantes não
permitem que restem vestígios dessa história, praticando, portanto, o genocídio.
Os vencedores ou poderosos são transformados em únicos sujeitos da história,
não só porque impediram que houvesse a história dos vencidos, mas simplesmente
porque sua ação histórica consiste em eliminar fisicamente os vencidos, ou, então,
se precisam do trabalho deles, eliminam sua memória, fazendo com que se lembrem
apenas dos feitos dos vencedores. Não existe direito à memória para os negros,
nem para os índios, nem para os camponeses, nem para os operários trabalhadores
no Brasil.
Agregamos que nosso estudo tem o valor de sistematizar um importante
trabalho que vem sistematizar, dentro das nossas visíveis limitações cognitivas e de
acordo com as nossas possibilidades de alcance intelectual em função da riqueza do
material estudado, as principais estratégias utilizadas pelas elites no seu largo
processo histórico de construção e legitimação da dominação social, produtora da
desigualdade social aberrante no Brasil. O texto construído, aqui apresentado,
parece dar conta de um trabalho não somente intelectual e pedagógico, mas
também, antes de tudo, político e social.

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Esta investigação aponta resultados que necessitam de ser estendidos com
novos parâmetros, mais além das condições manejadas até este momento, com
vistas a alcançar magnitudes mais amplas. Desta maneira, estariam sendo
incentivados outros estudos em relação a alguns pontos, como por exemplo, o refino
e o aprofundamento nas obras de autores brasileiros e latinoamericanos, que
dedicaram sua vida intelectual para a análise da dominação social sofrida pelos
povos colonizados.
É difícil considerar totalmente concluído este trabalho de investigação em um
sentido literal, posto que o número de exemplos e situações analisados, bem como o
escopo das obras estudadas, poderiam ser ampliados e refinados, com novos
estudos tão interessantes e importantes como os já detalhados. No entanto, cremos
que, chegado a este ponto, compreendemos que obtemos todo o possível do nosso
método de coleta de informações e concluímos que foi cumprido o objetivo principal
de aportar evidência teórica e empírica, a partir da análise das obras de grandes
intelectuais decoloniais e contra-hegemônicos, sobre o processo epistemológico de
construção da dominação social criadora de distinções e de desigualdades sociais,
com foco na sociedade brasileira.

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