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Os demônios e a luta de classes no Brasil: Introdução à

demonologia marxista

INTRODUÇÃO

O esforço filosófico de combate às mazelas sociais tem como condição


compreendê-las em todas as suas manifestações. Neste contexto de reflexão as relações
determinadas pelo capitalismo surgem como complexa concreção do mal. Isto é, o mal
não aparece aqui submetido ao fenômeno espiritual, mas como a corporificação que
perpetua as desigualdades sociais e a destruição da natureza.

Portanto enfrentamos fundamentalmente um problema ético. O capitalismo, em


sua busca incessante por acumulação, tem como lógica a geração das injustiças sociais,
degradação ambiental e marginalização das comunidades menos favorecidas. Portanto,
ao reconhecer o capitalismo como fenômeno maligno, buscamos não apenas
compreende-lo em sua natureza, mas também promover outro comportamento que
inspire a transformação e a busca por alternativas socioambientais mais avançadas.

A naturalização do capitalismo é perversa e, ao considerá-lo uma ordem social


inquestionável ou intrinsecamente superior, traz consigo uma série de riscos cognitivos.
Em muitos casos, parte de tendências políticas conservadoras e liberais, mas socialistas
também contribuem para a naturalização. Ao aceitar o capitalismo como algo
progressivo ou aperfeiçoável também ocorre o perigo de subestimarmos a resistência do
mal e sua capacidade de inovação, regressão e contra-ataque. A noção de um
capitalismo positivo para todos revela-se falaciosa. O mal, ao se retroalimentar da
desigualdade, comprova a incompatibilidade lógica com a possibilidade de
universalização.

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O capitalismo, como sistema socioeconômico, é consequência de ações humanas
reais, decisões conscientes e práticas. A complexidade dessa estrutura se revela nas
interações diárias entre indivíduos, empresas ou instituições políticas. Desde tomadas de
decisões em níveis corporativos até as escolhas políticas que moldam as práticas
econômicas, o capitalismo é uma manifestação direta das ações humanas.
Documentações e ações jurídicas delineiam as pressões do jogo, definindo propriedade,
contratos e as relações comerciais. Essas construções legais, respaldadas por sistemas
judiciais, efetivamente determinam as dinâmicas sociais, econômicas e políticas que
caracterizam a consciência capitalista.

O sistema econômico exerce uma influência determinante nas subjetividades


individuais, produzindo as existências de maneiras distintas e com base em reproduções
de classe, raça, gênero, orientação sexual, espiritualidade, etc. Essa disparidade gera
privilégios que, por sua vez, impactam na violência intrínseca de uma sociedade
hierarquizada. A estrutura desigual do capitalismo perpetua um ciclo no qual alguns
desfrutam de vantagens enquanto outros enfrentam obstáculos sistemáticos. Esses
privilégios, muitas vezes enraizados em religião e suas formas de opressão, contribuem
para a competição intensa, na qual a busca por recursos e oportunidades é exacerbada.
Essa assertiva torna-se evidente ao percebermos a deficiência da educação no fomento
de uma compreensão crítica do modelo econômico predominante. De maneira
lamentável, o capitalismo direciona as massas para a mera produção de mão de obra
desprovida de perspectiva crítica, carente de embasamento filosófico e,
consequentemente, propensa à passividade diante das imperfeições do sistema.

Em primeiro lugar, a adesão acrítica ao capitalismo contribui para a ampliação


das desigualdades sociais. Ao não questionar as estruturas fundamentais do sistema,
como a distribuição desigual de recursos e oportunidades, perpetuam-se condições que
favorecem uma minoria em detrimento da grande maioria. Isso leva ao aumento da
disparidade de renda, limitando o acesso à educação, saúde, tecnologia e outros recursos
essenciais para as maiores parcelas da população.

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Além disso, a aceitação passiva das relações exploratórias e injustas alimentam a
normalização de condições de trabalho precárias, consumo desenfreado de recursos
naturais e a mercantilização excessiva de setores essenciais a energia, a terra, a água ou
o ar.

Outro risco social é a perda de capacidade filosófica criativa e de luta pela


superação do capitalismo, especialmente quando atores políticos e econômicos limitam
o escopo do debate público com violência. A naturalização do capitalismo cria uma
visão estreita de possibilidades socioeconômicas, dificultando a discussão e
implementação de sistemas superiores. Essa assertiva torna-se evidente ao detectarmos
a notável deficiência da educação pública no fomento de uma compreensão crítica do
modelo político-econômico predominante. De maneira lamentável, educa-se para a
mera produção de uma mão de obra desprovida de perspectiva crítica, carente de
embasamento filosófico e, consequentemente, propensa à passividade diante das
imperfeições do sistema capitalista.

I - Proposta metodológica para uma demonologia marxista:

O presente ensaio filosófico problematiza os demônios vinculando esta temática


à luta de classes. Parte, portanto, de uma interpretação marxiana e marxista da realidade
social para além do ponto de vista exclusivamente teológico. Como fundamentaram
Karl Marx (1818 – 1883) e Friedrich Engels (1820 – 1895) em A ideologia alemã: “A
produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio,
imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos
homens, como a linguagem da vida real.”. (MARX & ENGELS, 2007, p. 93). De modo
que as ideias da cultura religiosa surgiriam como representações simbólicas diretamente
ligadas às forças econômicas e políticas que são condicionadas materialmente. Isto por
que: “[...] o intercâmbio espiritual dos homens ainda aparecem, aqui, como emanação
direta do seu comportamento material. O mesmo vale para a produção espiritual, tal
como ela se apresentar na linguagem política, das leis, da moral, da religião, da

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metafísica, etc.”. (MARX & ENGELS, 2007, p.93-94). Assim, sustentamos a ideia de
que a análise crítica dos fenômenos diabólicos pode ser enriquecida mediante uma
abordagem histórica e dialética do conhecimento.

O método que aplicamos busca introduzir a demonologia sob a perspectiva


marxista, adotando uma abordagem interdisciplinar com foco na realidade brasileira. Ao
analisar as concepções de demônios em diferentes discursos, desenvolvemos uma
interpretação crítica que revela como essas representações refletem as dinâmicas
sociais.

Na investigação da economia política da demonização, destacamos as relações


materiais por trás desses fenômenos ainda muito restritos aos discursos do sobrenatural,
revelando a interconexão entre interesses de classes e as produções simbólicas
associadas aos demônios.

Ao contextualizar relação luta de classes com demônios no tecido social


brasileiro, objetivamos desmascarar os interesses materiais por trás de interpretações
abstratas ou metafísicas. Esta proposta de desconstrução ideológica propicia à
metodologia os meios de contestação das narrativas demoníacas dominantes, apontando
para a possibilidade da ressignificação no sentido cultural. No capítulo Reflexões
metodológicas, de O escravismo colonial, o historiador Jacob Gorender descreveu que:

A sociedade humana se antagoniza consigo mesmo pela divisão em


classes e se pluraliza na história pela multiplicidade de formações
sociais coexistentes e sucessivas. Pela própria atribuição ontológica
dos seres humanos – seres práticos conscientes que espiritualizam sua
materialidade – as formações sociais não se reduzem aos modos de
produção. Compõem-se de modos de produção e formas de
consciência social e instituições, que criam coletivamente sobre a base
do modo de produção. (GORENDER, 1985, p. 9,10).

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A pesquisa ancora-se nas contribuições de diversas fontes que abordam direta ou
indiretamente fenômenos que de maneira geral ainda estão circunscritos à reflexão
teológica. Exploramos uma gama diversificada de estudos provenientes da sociologia,
história, antropologia, literatura, cultura popular, teologia, dentre outras áreas. A adoção
dessa abordagem interdisciplinar visa descrever a complexidade e as múltiplas de
camadas que envolvem a investigação das representações diabólicas. Ao integrar
insights dessas disciplinas, buscamos construir uma compreensão das dinâmicas sociais
subjacentes a essas narrativas, criando uma fundação da demonologia na perspectiva
teórico-prática do marxismo, mas que se furta a dialogar com outras tradições
gnosiológicas.

O ensaio filosófico se revela como o meio ideal para introduzir a demonologia


marxista, pois proporciona um espaço criativo e reflexivo para explorar de maneira
aprofundada os problemas em questão. Sua natureza expansiva e não prescritiva permite
a análise crítica das representações dos demônios, mergulhando nas nuances que
permeiam o assunto ainda pouco enfrentado pelos marxistas ou o mesmo pela própria
academia. O ensaio filosófico também possibilita a integração dos conteúdos de outras
ciências que são definitivos para uma abordagem multidisciplinar. Além disso, seu
caráter filosófico permite a exposição e discussão das estratégias de desconstrução
ideológica, fundamentais para desafiar o status quo. Buscamos uma dissecação
cuidadosa e profunda da demonologia, abrindo a reflexão a partir da experiência
histórica brasileira.

A incorporação do pensamento social brasileiro à pesquisa demonológica propõe


o desenvolvimento de uma abordagem significativamente original. Ao considerar alguns
clássicos do pensamento social no Brasil, a análise da demonologia pode atingir novos
patamares gnosiológicos. Consideramos que a diversidade étnica, as complexidades do
sincretismo religioso e as influências político-econômicas do imperialismo moldam as
percepções sobre os demônios de maneiras idiossincráticas, por vezes até antagônicas.
Assim, a interseção entre as ideias marxistas e o pensamento social brasileiro nos
permite examinar as dinâmicas de poder, desigualdades sociais e sistemas de crença
locais, proporcionando uma explicação mais pormenorizada das forças históricas que

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condicionariam as concepções do demônio no país. Isso não apenas enriquece a
pesquisa filosófica, mas também abre possibilidades para a promoção de um
contraponto aos discursos da ideologia dominante.

A demonologia como buscamos a compreender está submetida à noção de


totalidade concreta, que pode ser considerada uma categoria basilar no pensamento
marxista. Essa ideia foi desenvolvida principalmente por György Lukács, filósofo
marxista húngaro, e posteriormente adotada e discutida por outros pensadores marxistas,
dentre eles, o pesquisador brasileiro José Chasin. Em Marx: estatuto ontológico e
resolução metodológica, Chasin descreveu o seguinte a respeito da totalidade:

“[...] a totalidade é a formação real e concreta multiplicidade de seus


traços e movimentos efetivos, ou seja, o todo funcional e contraditório
que engendra e vive sua lógica específica. É a realidade enquanto
realidade, material e espiritual, antes, durante ou depois de pensada,
ou seja, o locus e substância de toda atividade sensível e de toda
atividade ideal nela embutida; e nessa concretude o ponto de partida
da ciência, isto é, como diz Marx, da “elaboração da intuição e da
representação em conceitos”. Tomada para efeito analítico, em sua
plenitude ou em suas partes constitutivas, legitimamente destacadas ou
iluminadas em suas reais configurações unitárias, ou seja, encarada
como objeto da atividade cognitivas, na qual é reproduzida pelo
pensamento, a totalidade assume a feição da concretude pensada.”.
(CHASIN, 2009, p. 209).

A totalidade concreta refere-se à compreensão de que a realidade social é


intrinsecamente interconectada e deve ser analisada de forma integrada, em vez de
fragmentada em partes isoladas. No contexto do marxismo, isso implica que as diversas
dimensões da sociedade, materiais ou espirituais, estão interligadas e influenciam-se
mutuamente. Assim, para entender e interpretar o fenômeno social, é necessário
considerar suas múltiplas determinações e conexões com os vários aspectos da
formação social.

O método que se abaliza pela totalidade concreta sugere que as análises devem
levar em conta não apenas as relações de produção e as estruturas econômicas, mas
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também as superestruturas ideológicas, políticas e culturais que surgem dessas bases
materiais. Essa abordagem busca capturar a totalidade complexa e dinâmica das
relações sociais. Lukács no texto intitulado As tarefas da filosofia marxista na nova
democracia redigido para o Congresso de Filósofos Marxistas de Milão (1947)
descreveu a totalidade no sentido dialético:

[...] é a unidade concreta da luta contra a contradição. Isso significa:


primeiro, que sem causalidade, não há totalidade viva. Em segundo
lugar, que toda totalidade é relativa em ambas as direções, isto é,
constituída de totalidades subordinadas e entrando como elemento de
uma totalidade subordinante. Decorre daí, portanto, que a função
mencionada anteriormente está sujeita a uma subordinação
semelhante. Terceiro que toda totalidade também é historicamente
relativa; é mutável, pode se desfazer e só existe como totalidade sob
determinadas circunstâncias históricas concretas. (LUKÁCS, 2021, p.
189).

Ao entender a totalidade de forma dialética, buscamos evitar abordagens


reducionistas que se concentram apenas em uma dimensão específica dos fenômenos
pesquisados. Em vez disso, procuramos compreender as interações e contradições que
permeiam os objetos pesquisados, reconhecendo a riqueza e a complexidade da
realidade. Não almejamos, por meio desta pesquisa, alcançar resultados definitivos,
dogmáticos ou mesmo conclusivos. Nosso propósito é disponibilizar apenas uma
interpretação que enriqueça as reflexões político-econômicas e demonológicas,
reconhecendo natureza dialética e a constante necessidade de aperfeiçoamento dos
métodos científicos. Essa perspectiva é crucial para o engendramento de uma
demonologia voltadas aos fatos e que seja passível de comprovação.

Nosso foco de estudo reside na experiência diabólica conforme ela manifesta


historicamente. Abordamos esse objeto de pesquisa sem nos limitarmos em perspectivas
metafísicas ou clássicas da demonologia, preferindo, ao contrário, direcionar nossa
análise para experiências humanas concretas e materiais. Essa abordagem busca
compreender o fenômeno diabólico não apenas como evento religioso, mas como uma
realidade enraizada nas experiências vivenciadas ao longo da história.

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CAPÍTULO 1

O STATUS ONTOLÓGICO DOS DEMÔNIOS NO BRASIL

1.1 – Enfoques Etimológicos de Demônio e Demonologia

A palavra demônio é oriunda da mentalidade ultramarina determinantes para os


significados hegemônicos no Brasil. Sua etimologia remonta ao termo grego daimon,
que originalmente não possuía uma conotação negativa como observado hoje através
das lentes judaico-cristãs. Na Grécia Antiga, um daimon era uma divindade ou mesmo
um espírito, frequentemente associado ao ato de influenciar a realidade. Podemos
destacar, por exemplo, a relação de Sócrates com o daimon mencionada durante vários
diálogos escritos por seus discípulos, principalmente em a Apologia de Sócrates, de
Platão. O daimon ou daimónion de Sócrates refere-se, mormente, a uma espécie de voz
interior, um guia espiritual, que o aconselharia. O pesquisador Miguel Spinelli no artigo
O Daimónion de Sócrates destacou que Sócrates: “[...] queria convencer a todos, mesmo
às pessoas comuns circulantes na Pólis, de que cada um detinha dentro de si um
daímone, ou seja, uma phrónesis judicativa, mediante a qual poderia balizar a própria
phrenéres, prover os destinos de sua própria vida.”. (SPINELLI, 2006, p. 59). Phrónesis
pode ser traduzida como um tipo de sabedoria prática ou prudência. Refere-se à
habilidade de discernir o que é moralmente correto em situações específicas e agir de
acordo com esse discernimento.

Com o processo histórico, especialmente na tradição cristã, o termo daimon


adquiriu uma conotação negativa e foi traduzido para o latim como daemonium ou
demonium. O termo passou então a ser associado a entidades malignas ou seres
espirituais hostis, muitas vezes vinculados a termos como o diabo e satanás. A palavra
diabo tem origem no latim diabolus, que, por sua vez, tem suas raízes no grego antigo

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diabolos. Ambas possuem o significado de acusador ou caluniador. O termo grego
diabolos é uma combinação de dia (através) e ballein (lançar), significando alguém que
lança ou coloca algo através de alguma coisa, sugerindo a ideia de um acusador. O
termo foi utilizado nas traduções da Bíblia para o latim, e, consequentemente, na
Vulgata Latina, a palavra diabolos 1 apareceu para traduzir expressões hebraicas como
satan (adversário) e shaitan 2 (tentador). Com o tempo, diabolus evoluiu para diabo em
várias línguas românicas, incluindo o português. A relação histórica entre termos como
diabo, satã ou demônio sugere assim uma reflexão sobre a influência do sistema de
crenças que afetaram a formação social do Brasil. Esses conteúdos espirituais
relacionam-se as atividades econômicas e são intrinsecamente associados ao poder da
religião e sua capacidade determinação cultural.

Outro termo que merece atenção especial é lúcifer, que tem origens na língua
latina e é composta por dois elementos: lux e ferre. Lux significa luz, enquanto ferre
significa carregar ou portar. Portanto, a palavra lúcifer pode ser interpretada como
portador de luz ou aquele que carrega a luz. Historicamente, o termo Lúcifer foi
associado a diferentes figuras e mitologias, mas sua popularização no contexto religioso
está ligada, sobretudo à tradição cristã. Lúcifer é frequentemente utilizado como um
nome alternativo para referir-se a Satanás antes de sua queda do céu. Vejamos a
passagem bíblica a seguir que é clássica para a compreensão do uso do termo: Quomodo
cecidisti de cælo lucifer qui mane oriebaris corruisti in terram qui vulnerabas gentes.
Qui dicebas in corde tuo in cælum conscendam super astra Dei exaltabo solium meum
sedebo in monte testamenti in lateribus aquilonis. ascendam super altitudinem nubium
ero similis Altissimo. - Então! Caíste dos céus, astro brilhante, filho da aurora! Então!
Foste abatido por terra, tu que prostravas as nações! Tu dizias: Escalarei os céus e
erigirei meu trono acima das estrelas. Eu me assentarei no monte da assembleia, no
extremo norte. Subirei sobre as nuvens mais altas e me tornarei igual ao Altíssimo.
1
Induite vos arma Dei ut possitis stare adversus insidias diaboli. Quia non est nobis conluctatio adversus
carnem et sanguinem sed adversus principes et potestates adversus mundi rectores tenebrarum harum
contra spiritalia nequitiæ in cælestibus. – Revesti-vos da armadura de Deus, para que possais resistir às
ciladas do demônio. Pois não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra os
principados e potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal
espalhadas nos ares. Efésios 6:11-12.

2
Et ostendit mihi Jesum sacerdotem magnum stantem coram angelo Domini et Satan stabat a dextris ejus
ut adversaretur ei - O Senhor mostrou-me o sumo sacerdote Josué, de pé diante do anjo do Senhor; Satã
estava à sua direita como acusador. Zacarias 3:1

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Isaias 14: 12-13-14. Este trecho do livro de Isaías é conhecido por conter uma profecia
dirigida contra o rei Nabucodonosor, do império da Babilônia. Ele é comparado a uma
estrela cadente, que cai do céu devido ao seu orgulho e arrogância. O profeta Isaías usa
metáforas para descrever a derrota do rei e a libertação do jugo que ele impôs sobre as
nações. A mensagem central é que, mesmo que os poderosos se exaltem, Deus é o
verdadeiro soberano e juiz, e nenhum império ou líder pode desafiar o plano divino.

É crucial deter que as expressões da cultura ultrapassam as narrativas teológicas.


Em outras palavras, não podemos postular identidade entre as pesquisas da Bíblia e a
intricada produção cultural que dela se derivou. A análise Lúcifer: Quem ou o que?
produzida por Robert L. Alden e traduzida para o português pelo pesquisador de
teologia reformada Felipe Sabino de Araújo Neto, possui a seguinte conclusão:

Lúcifer é perfeitamente uma boa tradução de hll em Isaías 14:12. O


significado “portador de luz” ou “estrela da manhã” é apropriado. Mas
o capítulo lida somente com a queda do rei de Babilônia e esse
versículo em particular. Que Satanás inspirou o rei perverso enquanto
ele governava todos os homens degenerados é inegável, mas isso é
muito diferente de dizer que Lúcifer é Satanás. A estrela da manhã é
algo belo de contemplar e tem uma tarefa mui notável nos céus, aquela
de anunciar o novo dia. O rei ostentava ser tão grande quanto Deus, e
Isaías assemelha o mesmo àquela estrela que é bela por um momento,
mas rapidamente é eclipsada pela glória do próprio sol. Que Satanás
fez tal ostentação não é conhecido. (ALDEN, 2023, p. 5)

É importante notar que, originalmente, a palavra Lúcifer também não possuía


uma conotação negativa. Sua associação ao mal em certo sentido personificado foi
resultado de interpretações teológicas e artísticas ao longo do tempo. Na mitologia
romana, Lúcifer era uma designação para a estrela da manhã, geralmente associada ao
planeta Vênus quando aponta no céu antes do amanhecer.

A palavra demonologia, por sua vez, é uma junção de daimon e o termo grego
logos, que refere-se ao estudo ou tratado. Como vimos, inicialmente, no contexto grego
clássico, os daimons eram entidades associadas a forças naturais e aos destinos
individuais, isenta da conotação negativa posteriormente construída. Com a evolução da

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demonologia, especialmente nas tradições judaico-cristãs, o termo logos enfatizava a
natureza analítica e sistêmica do estudo dessas entidades, que passaram a ser associadas
ao mal. Neste ensaio filosófico adotamos o critério lógico da dialética, visando
estabelecer uma abordagem crítica. Como a dialética busca compreender os fenômenos
por meio das interações entre os opostos, a demonologia, pode saltar de exame dos
objetos ditos sobrenaturais e atingir a discussões político-econômicas. A concepção da
totalidade concreta e o método dialético estabelecem a interação complexa entre
diferentes referências, permitindo uma compreensão das origens históricas, interesses
econômicos e os significados ideológicos atribuídos às entidades demonizadas. Essa
abordagem busca superar as análises simplistas dos fenômenos, incorporando dados de
diferentes campos do conhecimento.

1.2. Economia política da demonologia: a demonização das culturas


indígenas e africanas no Brasil.

Por meio do raciocínio indutivo, podemos apresentar exemplos específicos para


chegar às conclusões mais abrangentes. Ao escolher uma entidade em particular como
exemplo, conseguimos entender como o sistema de crenças dominante a repudia ou a
incorpora. É possível observar como essa entidade é concebida em seu contexto de
origem e como essa concepção foi descaracterizada ao longo das relações sociais. Dois
esforços intelectivos delineiam a economia política da demonização. A priori, investiga-
se a acepção original de determinadas entidades, compreendendo a cosmovisão na qual
estão inseridas e suas respectivas atuações e repertórios. A posteriori, observa-se a
captura dessas entidades, submetendo-as a um novo entrelaçamento de crenças e valores
que culminam no processo de demonização. Esse último estágio implica uma
transformação categórica, na qual as entidades são reinterpretadas e recontextualizadas
no interior de um paradigma que lhe atribui características malignas ou sincréticas.
Esses processos, intricadamente conectados, revelariam a atividade de dominação por
trás demonização, envolvendo mudanças de significado, reinterpretações culturais e
transferências de poder simbólico.

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Desejamos comprovar a hipótese de que na origem os demônios são substratos
ou consequências da luta de classes. Entendemos que a criação dessas entidades
demoníacas emergiria como desdobramento das contradições ideológicas entre os
grupos sociais. Os antagonismos não se manifestariam em termos econômicos, mas se
estenderiam às esferas existenciais mais simbólicas e abstratas, onde a atribuição das
características demoníacas serviriam como instrumentos de dominação psíquica. Assim,
os demônios não seriam entidades místicas, mas reflexos e aparências das tensões que
permeiam as relações humanas. Essa perspectiva busca explorar as intricadas conexões
entre as concepções dos demônios, as relações com o poder humano e as estratégias
ideológicas, proporcionando uma compreensão específica da demonologia.

O demônio é poder e exercício de poder, mesmo que sua existência seja


meramente subjetiva ou incorpórea.

O capítulo: Feudalismo, Capital Mercantil, Colonização, no Volume 4, escrito


pela cientista social Lígia Osório Silva, para História do marxismo no Brasil,
organizado pelo pesquisador do marxismo João Carlos Kfouri Quartim de Moraes e o
cientista político Marcos Del Roio delimitam o espaço e tempo primordial para a
reflexão histórica demonológica do Brasil. Segundo Lígia Osório Silva o contexto
histórico de transição do feudalismo para o capitalismo: “[...] foi marcado
principalmente pela expansão das rotas comerciais do Ocidente europeu, pela aplicação
de políticas econômicas mercantilistas e pelas alterações ocorridas no campo, tanto das
relações de trabalho, como naquele do regime de propriedade de terra. (SILVA, 2007, p.
11). A pesquisadora relatou que durante os séculos XV e XVI, Portugal torna-se uma
grande império colonial graças às ao seu vanguardismo com as grandes navegações.
Afirmou: “[...] a rápida concentração de poder político nas mãos do monarca propiciou-
se os meios de intervir na vida econômica e transformar-se num sócio ativo dos
empreendimentos comerciais e marítimos capitaneados pela burguesia mercantil.”.
(SILVA, 2007, p. 37). A base social herdada do feudalismo tinha como essência a
imaginário judaico-cristã. Inclusive foram organizações com esta tradição oficial que

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deram sustentação econômica e mesmo profissional às instituições responsáveis pelas
grandes navegações marítimas 3. A autora exemplificou com a Ordem de Cristo:

[...] as terras da América portuguesa pertenciam à Coroa, e o domínio


do monarca sobre elas decorria do fato de que, naquele momento, ele
encarnava o Estado. Por outro lado, estavam sob a jurisdição espiritual
da Ordem de Cristo. Esta ordem foi criada em Portugal, a pedido de
Dom Dinis, para incorporar os bens locais dos Templários, a mais
poderosa das ordens religioso-militares, quando esta foi extinta pelo
papa, em 1312. A partir de 1420, a administração da Ordem de Cristo
ficou ao cargo dos infantes (dom Henrique, o navegador, foi o
primeiro) até 1551, quando passou definitivamente para a alçada do
rei. Custeou em grande parte a política expansionista portuguesa, e as
terras descobertas e conquistadas ficaram sob sua jurisdição espiritual,
não podendo ser apropriada nem pelo próprio monarca. (SILVA,
2017, p. 53).

O livro O diabo na Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no


Brasil colonial, escrito por Laura de Mello e Souza, historiadora brasileira conhecida
por suas contribuições para as questões da religião e das crenças populares, descreveu o
seguinte: “A expansão ocidental caracterizou-se pela bifrontalidade: por um lado,
incorporavam-se novas terras, sujeitando-as ao poder temporal dos monarcas europeus;
por outro, ganhavam-se novas ovelhas para a religião e para o papa [...].”. (MELLO E
SOUZA, 1986, p. 32). Apoiada em referências como a de Frei Vicente do Salvador, um
franciscano e historiador brasileiro do período colonial, ela destacou que a: “[...]
percepção européia do homem americano como humanidade inviável era a
demonização. Dizia frei Vicente que o demônio perdera o controle sobre a Europa –
cristianizada durante toda a Alta Idade Média – e se instalara, vitorioso, na outra banda
da terra.”. (MELLO E SOUZA, 1985, p. 67). No viés de Mello e Souza

Em História do Brasil, Frei Vicente concluiu que:

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O historiador Caio Prado Júnior, em Evolução Política do Brasil: colônia e império apontou
missionários que atoaram na “domesticação dos naturais” ou na “penetração da civilização ocidental entre
os povos primitivos”: “Desempenharam tal papel na colonização brasileiras os capuchinhos, carmelitas e
religiosos de outras ordens. Os jesuítas, contudo se individualizam nesta obra missionária. Sua tarefa
consistia e preparar o terreno, não para os outros, mas para eles próprios. Almejavam a constituição na
América de seu próprio Império temporal, e destes planos ficou-nos a amostra das célebres missões
jesuítas no Paraguai.”. (JÚNIOR, 1990, p. 25)

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O dia que o capitão-mor Pedro Álvares Cabral levantou a cruz, que no
capítulo atrás dissemos, era a 3 de maio, quando se celebra a invenção
da santa cruz em que Cristo Nosso Redentor morreu por nós, e por
esta causa pôs nome à terra que havia descoberta de Santa Cruz e por
este nome foi conhecida muitos anos. Porém, como o Demônio com o
sinal-da-cruz perdeu todo o domínio que tinha sobre os homens,
receando perder também o muito que tinha em os desta terra,
trabalhou que se esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil,
por causa de um pau assim chamado de cor abrasada e vermelha com
que tingem panos, do qual há muito nesta terra como que importava
mais o nome de um pau que tingem passos, que o daquele divino pau,
que deu tinta e virtude a todos os sacramentos da Igreja, e sobre que
ela foi edificada e ficou tão firme e bem fundada como sabemos. E
porventura por isto, ainda que ao nome de Brasil ajuntaram o de
estado e lhe chamam estado do Brasil, ficou ele tão pouco estável que,
com não haver hoje cem anos, quando isto escrevo, que se começou a
povoar, já se hão despovoados alguns lugares e, sendo a terra tão
grande e fértil como ao diante veremos, nem por isso vai em aumento,
antes em diminuição. (VICENTE, 2010, p. 67).

O historiador Nelson Werneck Sodré (1911 – 1999), em Formação Histórica do


Brasil assinalou que também existiram contradições entre os mercantilistas e a
catequese religiosa. Ambos estavam interessados em quebrar a resistência do contato
entre os europeus e indígenas: “Não há, entretanto, interesse comum entre o
colonizador, como indivíduo, e o catequista, desde o momento que aparece a
necessidade de escravizar o índio, porque ambos disputam ele.”. (SODRÉ, 1963, p.
113).

A catequese do indígena aparecerá no quadro do extraordinário


esforço empreendido pela Igreja para recuperar-se das perdas sofridas
com os cismas no Oriente e do Ocidente. No conjunto, esse esforço
aparece como Contra-Reforma. Trata-se de ganhar para religião
católica, e a para a subordinação à Igreja, as populações das áreas há
poucos descobertas, integrando essas áreas e suas populações na
comunidade cristã obediente ao Papado. São populações em
disponibilidade religiosa, passíveis de serem ganhas para o credo
romano, uma vez consideradas idólatras, no conceito do tempo.
(SODRÉ, 1963, p. 112,113).

Desde já é necessário destacar que tanto os povos indígenas do Brasil quanto os


povos de origem africana apresentam uma notável heterogeneidade em seus sistemas de
crenças e valores, refletindo a riqueza simbólica desses grupos. Ao contrário de sistemas
fechados, únicos ou individualizados, essas comunidades são caracterizadas pela
multiplicidade de línguas, cosmovisões e cultos a diferentes divindades.

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A partir dos contextos indígenas, percebemos que inúmeras línguas e tradições
existiram refletindo a pluralidade cultural que define suas verdadeiras identidades
subjetivas. Da mesma forma, nas religiões de matriz africana, como o Candomblé e a
Umbanda, a diversidade de divindades, rituais e práticas demonstram a complexidade
das crenças desses povos em diáspora. Essa abertura em relação às crenças ilustram a
profundidade da espiritualidade dessas comunidades, enraizadas em uma compreensão
multifacetada do mundo.

O historiador marxista Brasileiro Jacob Gorender em O Escravismo Colonial


aborda não apenas os aspectos econômicos do sistema escravista, mas também as
complexidades sociais e políticas que o envolveram. Ele descreveu como a instituição
da escravidão foi integrada à logica colonial e como ela moldou as relações sociais, as
estruturas de poder e as dinâmicas raciais no Brasil. Em sua concepção: “[...] os
colonizadores rejeitavam totalmente a organização social dos povos autóctones. Dela
não extraíram qualquer elemento constitutivo do modo de produção e da formação
social que vieram a implantar no país conquistado.”. (GORENDER, 1985, p. 118).

Segundo Jacob Gorender:

A Economia Política é a ciência dos modos de produção, de todos em


geral e de cada um deles em especial, de sua sucessão e das transições
de um para o outro. O modo de produção da existência material
constitui o fundamento ontológico da sociedade humana. Donde ser a
Economia Política a primeira das ciências sociais, cronológica e
sistematicamente. O ser social dos homens não é mais do que a
produção e reprodução dos próprios homens como sociedade humana.
A esta altura, advirta-se que a dialética não exclui a ontologia.
(GORENDER, 1985, p. 9).

O Jurupari é uma figura mitológica presente em diversas culturas indígenas da


região amazônica, principalmente entre os povos Tupi-Guarani. Na concepção desses
povos, Jurupari é frequentemente associado a rituais secretos, mistérios e proibições,
sendo considerado uma entidade sagrada. Os detalhes específicos sobre Jurupari variam
entre diferentes grupos indígenas, mas geralmente envolvem a ideia de um ser

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sobrenatural associado a cerimônias de iniciação, ligadas à passagem da adolescência
para a vida adulta. Os rituais envolvendo Jurupari são muitas vezes secretos e restritos
aos membros masculinos da comunidade, sendo guardados com grande sigilo. Os
missionários frequentemente categorizavam figuras mitológicas indígenas como
demoníacas ou pagãs para destacar a necessidade de converter as populações locais ao
cristianismo. A catequese suprimia aos poucos o imaginário e a identidade dos
indígenas, enquanto impunha uma visão de mundo eurocêntrica. Portanto, o Jurupari,
como muitas outras figuras mitológicas indígenas, foram associados ao demônio pelos
missionários na colonização.

Da obra Leitura da etnologia brasileira, do antropólogo brasileiro Egon


Francisco Willibald Schaden (1913 – 1991) destacamos o tema central do texto O mito
do Jurupari entre os Baníwa do rio Içana, que foi escrito pelo Padre Guilherme Saake
(1910 – 1982). De acordo com Saake:

Antigamente, o termo Jurupari, originário da língua tupí, designava


um espírito da floresta dos povos tupí, maléfico para os homens e
identificado, pelos missionários, com o Diabo da religião cristã. Entre
os Baníwa, porém, o Jurupari é um ser mitológico, que nada tem a ver
com o Diabo e é representado por grandes flautas, tabu para as
mulheres. (SAAKE in SCHADEN, 2023, p. 277).

É crucial destacar que o fundamento econômico que sustentou a conversão dos


indígenas no Brasil estava intrinsecamente entrelaçado ao sistema colonial, que se
concentrava na exploração de recursos naturais e na instituição da escravidão. Nesse
contexto, vários aspectos econômicos desempenharam um papel significativo. A
exploração do trabalho nas plantações emergiu como um componente central,
vinculando-se à conversão dos indígenas ao sistema de trabalho agrícola. Os
colonizadores buscavam avidamente mão de obra para cultivar produtos altamente
lucrativos, como açúcar, tabaco e outros. A justificação moral da colonização também
teve sua base na demonização da cultura indígena com suporte da religião. Ao retratar a
cultura indígena como demoníaca, os colonizadores buscavam legitimar suas ações,
criando uma ideologia que sustentasse a exploração econômica e a dominação cultural.

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Vejamos como o poeta contemporâneo Waldo Motta (1959) reagiu ao histórico
de demonização da cultura indígena e sugeriu em seu texto o extremo oposto. A respeito
do poema intitulado Jurupari ele escreveu:

Jurupari é simplesmente o Messias indígena, mas os jesuítas o


associaram ao demônio, rival de Jesus Cristo. Os mitos de ambos
possuem muitas coisas em comum. Jurupari significa boca fechada,
tapada, mascarada. Que boca seria essa? Vêm à tona questões relativas
ao inefável, impronunciável e ao interdito, obsceno. Sagrado é
sinônimo de obsceno. Somente aos varões é permitido conhecer os
mistérios de Jurupari. A justiça é um apanágio desses dois Messias,
que parecem ser a mesma divindade encarnada, um e outro nascem de
uma virgem, instituem cultos masculinos e outras simetrias e
convergências espantosas. Sem exclusão de outras leituras, todos os
deuses são alegorias, e prosopopeias suas falas, às vezes. Assim como
a caverna platônica é uma alegoria filosófica (li isso algures), Jurupari
é uma alegoria do buraco negro do corpo, a boca que fala em silêncio.
Como seria de esperar, é quem faz e traz justiça, alegria e paz entre os
homens, e entre os homens e mulheres. (MOTTA, 2010, p. 276).

Em Terra sem Mal: O Profetismo Tupi-Guarani é uma obra escrita por Hélène
Clastres, em colaboração com seu esposo, Pierre Clastres, ambos antropólogos de
origem francesa. O livro nos proporciona uma referência para as crenças e práticas
religiosas dos povos Tupi-Guarani, concentrando-se especialmente nos Guarani.
Clastres analisou os mitos e rituais, oferecendo uma compreensão das redes simbólicas
e das dinâmicas religiosas que moldaram a vida desses povos. Sobre o Jurupari
podemos ler o seguinte:

[...] demarcar entre os índios alguns rastros da verdadeira religião,


deve-se atribuir a assimilação de Tupã ao Deus Cristão de Añä e
Jurupari ao demônio. (Anhã em português, Aigman em francês) para
os guaranis e tupinambás, Jurupari (ou Giropari) para os tupis do norte
são efetivamente os mais eminentes desses espíritos perversos que
povoam a floresta, cuja única razão de existir é perseguir os índios e
votar ao fracasso os seus empreendimentos. É a eles que se atribui a
responsabilidade, tanto do resultado infeliz de uma expedição
guerreira, ou da insuficiência de uma colheita, como ainda das
desventuras individuais. Tão presentes na vida cotidiana dos índios,
como o diabo na dos missionários, capazes de enganar até mesmo os
xamãs e de induzi-los a previsões falsas, de certa maneira constituem
réplica do Maligno – e era fácil de assimila-los a este. (CLASTRES,
1975, p.26).

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A exploração econômica não foi isolada; ela também serviu como uma estratégia
de controle social. Ao retratar os indígenas como adoradores de demônios, os
colonizadores buscavam manter o controle sobre as populações nativas e desencorajar
qualquer forma de resistência. A conversão acompanhava uma visão negativa das
práticas e crenças nativas, retratando os indígenas como selvagens ou pagãos a serem
civilizados pelo cristianismo. Para Souza: “[...] sem que os propósitos materiais fossem
acanhados, cristianizar era, de fato, parte integrante do programa colonizador dos
portugueses diante do Novo Mundo. Mais do que isto: parte importante, dado o
destaque que tinha a religião na vida do homem quinhentista.”. (MELLO E SOUZA,
1986, p. 33).

O ato de agrupar os indígenas em aldeias missionárias evidencia outro aspecto


desse processo econômico, revelando a imposição e o controle da cultura indígena de
acordo com as normas europeias. As missões jesuítas, por exemplo, não materializava
apenas a conversão religiosa, mas também criava aldeias que funcionavam como
unidades produtivas. Essas aldeias desempenhavam um papel fundamental na para a
economia colonial e serviam como instrumento de imposição cultural. Ao buscarem
converter os indígenas ao cristianismo, resultaram na supressão de línguas nativas, na
subversão de significados tradicionais e na desarticulação de rituais ancestrais. A
destruição material foi evidenciada pela imposição de novos modos de vida, muitas
vezes ligados ao trabalho nas plantações, que alteraram substancialmente a dinâmica
social e econômica das comunidades indígenas. Mello e Souza nos forneceu a seguinte
conclusão:

Era pois generalizada, sobretudo entre eclesiásticos, a idéia de que o


descobrimento do Brasil fora ação divina; de que, dentre os povos,
Deus escolhera os portugueses; de que estes, uma vez senhores da
nova colônia, tinham por dever nela produzir riquezas materiais -
explorando a natureza - e espirituais - resgatando almas para o
patrimônio divino. (MELLO E SOUZA, 1986, p. 35).

Além da exploração do trabalho, a demonização da cultura indígena estava


ligada à apropriação de terras. Ao retratar os indígenas como seres inferiores, os

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colonizadores justificavam a tomada de terras para atividades econômicas. Dessa
maneira, a convergência entre a exploração do trabalho nas plantações, a redução dos
indígenas em aldeias missionárias e a demonização de sua cultura revela a interconexão
intrínseca entre os imperativos do lucro e os esforços de conversão, ambos permeados
por uma ideologia de desvalorização e subversão das tradições autóctones. Mello e
Souza denunciou que:

[...] para justificar a necessidade de cristianização, havia que denegrir


os homens autóctones. Denegrindo-os, estava justificada a
escravização. Colombo inaugurou assim o movimento duplo que iria
perdurar por séculos em terras americanas: a edenização da natureza, a
desconsideração dos homens - bárbaros, animais, demônios. Esta
tendência - associar os homens da colônia a animais ou a diabos - se
agudizaria posteriormente; mas em Colombo é incontestável o
interesse sempre renovado pelo exame da natureza e o desinteresse
pelos homens que dela usufruem. (MELLO E SOUZA, 1986, p. 36).

A demonização de entidades não alinhadas com o sistema de crenças judaico-


cristãs persiste atualmente, especialmente direcionada às religiões de matriz africana.
Um exemplo comprovável até mesmo através da mídia é a associação direta de Exu
com o demônio, evidenciando como essa prática não é algo do passado, mas um
fenômeno contemporâneo que é costume das elites. Essa tendência aponta para um viés
específico, sendo as religiões de matriz africana frequentemente identificadas como
alvos primários do processo de demonização.

O Dicionário Infernal (1818), de autoria do ocultista e demonologista francês


Jacques Auguste Simon Collin de Plancy (1794 – 1891) desenvolveu no verbete
“Demônios” a seguinte descrição que é atribuída à Igreja Católica: “[...] são anjos
caídos, que, privados da visão de Deus após sua revolta, só respiram o mal e só
procuram fazer o mal. Eles iniciaram o seu reino sinistro com a sedução de nossos
antepassados; continuam a lutar contra os anjos fiéis que nos protegem [...].”. (PLACY,
2019, p. 281).

REFERÊNCIAS:

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BROTHERSTON, G.; SÁ, L. Peixes, constelações e Jurupari: a Pequena Enciclopédia
Amazônica de Stradelli. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14:
345-358, 2004.

CHASIN, J. Marx estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo,

2009.

GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. São Paulo: Editora Ática S.A., 1985.

MELLO E SOUZA, Laura de. O Diabo na Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia
das Letras, 1986.

MOTTA, Waldo. Jurupari. Literatura e Sociedade, v. 15, n. 13, p. 272-277, 2010.

SAAKE, Guilherme. O mito do Jurupari entre os Baníwa do rio Içana. In: SCHADEN,
Egon. Leitura da Etnologia Brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976.
p. 277 – 285).

VICENTE, do Salvador, Frei. História do Brasil / por Frei Vicente do Salvador.


Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2010.

VULGATA LATINA. Epistula ad Ephesios. In: BIBLIOTECA CATÓLICA.


Disponível em: https://www.bibliacatolica.com.br/vulgata-latina-vs-biblia-ave-maria/
epistula-ad-ephesios/6/. Acesso em: 01/12/2023a.

VULGATA LATINA. Prophetia Zachariae. In: BIBLIOTECA CATÓLICA.


Disponível em: https://www.bibliacatolica.com.br/vulgata-latina-vs-biblia-ave-maria/
prophetia-zachariae/3/. Acesso em: 01/12/2023b.

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