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demonologia marxista
INTRODUÇÃO
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O capitalismo, como sistema socioeconômico, é consequência de ações humanas
reais, decisões conscientes e práticas. A complexidade dessa estrutura se revela nas
interações diárias entre indivíduos, empresas ou instituições políticas. Desde tomadas de
decisões em níveis corporativos até as escolhas políticas que moldam as práticas
econômicas, o capitalismo é uma manifestação direta das ações humanas.
Documentações e ações jurídicas delineiam as pressões do jogo, definindo propriedade,
contratos e as relações comerciais. Essas construções legais, respaldadas por sistemas
judiciais, efetivamente determinam as dinâmicas sociais, econômicas e políticas que
caracterizam a consciência capitalista.
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Além disso, a aceitação passiva das relações exploratórias e injustas alimentam a
normalização de condições de trabalho precárias, consumo desenfreado de recursos
naturais e a mercantilização excessiva de setores essenciais a energia, a terra, a água ou
o ar.
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metafísica, etc.”. (MARX & ENGELS, 2007, p.93-94). Assim, sustentamos a ideia de
que a análise crítica dos fenômenos diabólicos pode ser enriquecida mediante uma
abordagem histórica e dialética do conhecimento.
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A pesquisa ancora-se nas contribuições de diversas fontes que abordam direta ou
indiretamente fenômenos que de maneira geral ainda estão circunscritos à reflexão
teológica. Exploramos uma gama diversificada de estudos provenientes da sociologia,
história, antropologia, literatura, cultura popular, teologia, dentre outras áreas. A adoção
dessa abordagem interdisciplinar visa descrever a complexidade e as múltiplas de
camadas que envolvem a investigação das representações diabólicas. Ao integrar
insights dessas disciplinas, buscamos construir uma compreensão das dinâmicas sociais
subjacentes a essas narrativas, criando uma fundação da demonologia na perspectiva
teórico-prática do marxismo, mas que se furta a dialogar com outras tradições
gnosiológicas.
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condicionariam as concepções do demônio no país. Isso não apenas enriquece a
pesquisa filosófica, mas também abre possibilidades para a promoção de um
contraponto aos discursos da ideologia dominante.
O método que se abaliza pela totalidade concreta sugere que as análises devem
levar em conta não apenas as relações de produção e as estruturas econômicas, mas
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também as superestruturas ideológicas, políticas e culturais que surgem dessas bases
materiais. Essa abordagem busca capturar a totalidade complexa e dinâmica das
relações sociais. Lukács no texto intitulado As tarefas da filosofia marxista na nova
democracia redigido para o Congresso de Filósofos Marxistas de Milão (1947)
descreveu a totalidade no sentido dialético:
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CAPÍTULO 1
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diabolos. Ambas possuem o significado de acusador ou caluniador. O termo grego
diabolos é uma combinação de dia (através) e ballein (lançar), significando alguém que
lança ou coloca algo através de alguma coisa, sugerindo a ideia de um acusador. O
termo foi utilizado nas traduções da Bíblia para o latim, e, consequentemente, na
Vulgata Latina, a palavra diabolos 1 apareceu para traduzir expressões hebraicas como
satan (adversário) e shaitan 2 (tentador). Com o tempo, diabolus evoluiu para diabo em
várias línguas românicas, incluindo o português. A relação histórica entre termos como
diabo, satã ou demônio sugere assim uma reflexão sobre a influência do sistema de
crenças que afetaram a formação social do Brasil. Esses conteúdos espirituais
relacionam-se as atividades econômicas e são intrinsecamente associados ao poder da
religião e sua capacidade determinação cultural.
Outro termo que merece atenção especial é lúcifer, que tem origens na língua
latina e é composta por dois elementos: lux e ferre. Lux significa luz, enquanto ferre
significa carregar ou portar. Portanto, a palavra lúcifer pode ser interpretada como
portador de luz ou aquele que carrega a luz. Historicamente, o termo Lúcifer foi
associado a diferentes figuras e mitologias, mas sua popularização no contexto religioso
está ligada, sobretudo à tradição cristã. Lúcifer é frequentemente utilizado como um
nome alternativo para referir-se a Satanás antes de sua queda do céu. Vejamos a
passagem bíblica a seguir que é clássica para a compreensão do uso do termo: Quomodo
cecidisti de cælo lucifer qui mane oriebaris corruisti in terram qui vulnerabas gentes.
Qui dicebas in corde tuo in cælum conscendam super astra Dei exaltabo solium meum
sedebo in monte testamenti in lateribus aquilonis. ascendam super altitudinem nubium
ero similis Altissimo. - Então! Caíste dos céus, astro brilhante, filho da aurora! Então!
Foste abatido por terra, tu que prostravas as nações! Tu dizias: Escalarei os céus e
erigirei meu trono acima das estrelas. Eu me assentarei no monte da assembleia, no
extremo norte. Subirei sobre as nuvens mais altas e me tornarei igual ao Altíssimo.
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Induite vos arma Dei ut possitis stare adversus insidias diaboli. Quia non est nobis conluctatio adversus
carnem et sanguinem sed adversus principes et potestates adversus mundi rectores tenebrarum harum
contra spiritalia nequitiæ in cælestibus. – Revesti-vos da armadura de Deus, para que possais resistir às
ciladas do demônio. Pois não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra os
principados e potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal
espalhadas nos ares. Efésios 6:11-12.
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Et ostendit mihi Jesum sacerdotem magnum stantem coram angelo Domini et Satan stabat a dextris ejus
ut adversaretur ei - O Senhor mostrou-me o sumo sacerdote Josué, de pé diante do anjo do Senhor; Satã
estava à sua direita como acusador. Zacarias 3:1
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Isaias 14: 12-13-14. Este trecho do livro de Isaías é conhecido por conter uma profecia
dirigida contra o rei Nabucodonosor, do império da Babilônia. Ele é comparado a uma
estrela cadente, que cai do céu devido ao seu orgulho e arrogância. O profeta Isaías usa
metáforas para descrever a derrota do rei e a libertação do jugo que ele impôs sobre as
nações. A mensagem central é que, mesmo que os poderosos se exaltem, Deus é o
verdadeiro soberano e juiz, e nenhum império ou líder pode desafiar o plano divino.
A palavra demonologia, por sua vez, é uma junção de daimon e o termo grego
logos, que refere-se ao estudo ou tratado. Como vimos, inicialmente, no contexto grego
clássico, os daimons eram entidades associadas a forças naturais e aos destinos
individuais, isenta da conotação negativa posteriormente construída. Com a evolução da
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demonologia, especialmente nas tradições judaico-cristãs, o termo logos enfatizava a
natureza analítica e sistêmica do estudo dessas entidades, que passaram a ser associadas
ao mal. Neste ensaio filosófico adotamos o critério lógico da dialética, visando
estabelecer uma abordagem crítica. Como a dialética busca compreender os fenômenos
por meio das interações entre os opostos, a demonologia, pode saltar de exame dos
objetos ditos sobrenaturais e atingir a discussões político-econômicas. A concepção da
totalidade concreta e o método dialético estabelecem a interação complexa entre
diferentes referências, permitindo uma compreensão das origens históricas, interesses
econômicos e os significados ideológicos atribuídos às entidades demonizadas. Essa
abordagem busca superar as análises simplistas dos fenômenos, incorporando dados de
diferentes campos do conhecimento.
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Desejamos comprovar a hipótese de que na origem os demônios são substratos
ou consequências da luta de classes. Entendemos que a criação dessas entidades
demoníacas emergiria como desdobramento das contradições ideológicas entre os
grupos sociais. Os antagonismos não se manifestariam em termos econômicos, mas se
estenderiam às esferas existenciais mais simbólicas e abstratas, onde a atribuição das
características demoníacas serviriam como instrumentos de dominação psíquica. Assim,
os demônios não seriam entidades místicas, mas reflexos e aparências das tensões que
permeiam as relações humanas. Essa perspectiva busca explorar as intricadas conexões
entre as concepções dos demônios, as relações com o poder humano e as estratégias
ideológicas, proporcionando uma compreensão específica da demonologia.
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deram sustentação econômica e mesmo profissional às instituições responsáveis pelas
grandes navegações marítimas 3. A autora exemplificou com a Ordem de Cristo:
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O historiador Caio Prado Júnior, em Evolução Política do Brasil: colônia e império apontou
missionários que atoaram na “domesticação dos naturais” ou na “penetração da civilização ocidental entre
os povos primitivos”: “Desempenharam tal papel na colonização brasileiras os capuchinhos, carmelitas e
religiosos de outras ordens. Os jesuítas, contudo se individualizam nesta obra missionária. Sua tarefa
consistia e preparar o terreno, não para os outros, mas para eles próprios. Almejavam a constituição na
América de seu próprio Império temporal, e destes planos ficou-nos a amostra das célebres missões
jesuítas no Paraguai.”. (JÚNIOR, 1990, p. 25)
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O dia que o capitão-mor Pedro Álvares Cabral levantou a cruz, que no
capítulo atrás dissemos, era a 3 de maio, quando se celebra a invenção
da santa cruz em que Cristo Nosso Redentor morreu por nós, e por
esta causa pôs nome à terra que havia descoberta de Santa Cruz e por
este nome foi conhecida muitos anos. Porém, como o Demônio com o
sinal-da-cruz perdeu todo o domínio que tinha sobre os homens,
receando perder também o muito que tinha em os desta terra,
trabalhou que se esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil,
por causa de um pau assim chamado de cor abrasada e vermelha com
que tingem panos, do qual há muito nesta terra como que importava
mais o nome de um pau que tingem passos, que o daquele divino pau,
que deu tinta e virtude a todos os sacramentos da Igreja, e sobre que
ela foi edificada e ficou tão firme e bem fundada como sabemos. E
porventura por isto, ainda que ao nome de Brasil ajuntaram o de
estado e lhe chamam estado do Brasil, ficou ele tão pouco estável que,
com não haver hoje cem anos, quando isto escrevo, que se começou a
povoar, já se hão despovoados alguns lugares e, sendo a terra tão
grande e fértil como ao diante veremos, nem por isso vai em aumento,
antes em diminuição. (VICENTE, 2010, p. 67).
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A partir dos contextos indígenas, percebemos que inúmeras línguas e tradições
existiram refletindo a pluralidade cultural que define suas verdadeiras identidades
subjetivas. Da mesma forma, nas religiões de matriz africana, como o Candomblé e a
Umbanda, a diversidade de divindades, rituais e práticas demonstram a complexidade
das crenças desses povos em diáspora. Essa abertura em relação às crenças ilustram a
profundidade da espiritualidade dessas comunidades, enraizadas em uma compreensão
multifacetada do mundo.
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sobrenatural associado a cerimônias de iniciação, ligadas à passagem da adolescência
para a vida adulta. Os rituais envolvendo Jurupari são muitas vezes secretos e restritos
aos membros masculinos da comunidade, sendo guardados com grande sigilo. Os
missionários frequentemente categorizavam figuras mitológicas indígenas como
demoníacas ou pagãs para destacar a necessidade de converter as populações locais ao
cristianismo. A catequese suprimia aos poucos o imaginário e a identidade dos
indígenas, enquanto impunha uma visão de mundo eurocêntrica. Portanto, o Jurupari,
como muitas outras figuras mitológicas indígenas, foram associados ao demônio pelos
missionários na colonização.
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Vejamos como o poeta contemporâneo Waldo Motta (1959) reagiu ao histórico
de demonização da cultura indígena e sugeriu em seu texto o extremo oposto. A respeito
do poema intitulado Jurupari ele escreveu:
Em Terra sem Mal: O Profetismo Tupi-Guarani é uma obra escrita por Hélène
Clastres, em colaboração com seu esposo, Pierre Clastres, ambos antropólogos de
origem francesa. O livro nos proporciona uma referência para as crenças e práticas
religiosas dos povos Tupi-Guarani, concentrando-se especialmente nos Guarani.
Clastres analisou os mitos e rituais, oferecendo uma compreensão das redes simbólicas
e das dinâmicas religiosas que moldaram a vida desses povos. Sobre o Jurupari
podemos ler o seguinte:
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A exploração econômica não foi isolada; ela também serviu como uma estratégia
de controle social. Ao retratar os indígenas como adoradores de demônios, os
colonizadores buscavam manter o controle sobre as populações nativas e desencorajar
qualquer forma de resistência. A conversão acompanhava uma visão negativa das
práticas e crenças nativas, retratando os indígenas como selvagens ou pagãos a serem
civilizados pelo cristianismo. Para Souza: “[...] sem que os propósitos materiais fossem
acanhados, cristianizar era, de fato, parte integrante do programa colonizador dos
portugueses diante do Novo Mundo. Mais do que isto: parte importante, dado o
destaque que tinha a religião na vida do homem quinhentista.”. (MELLO E SOUZA,
1986, p. 33).
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colonizadores justificavam a tomada de terras para atividades econômicas. Dessa
maneira, a convergência entre a exploração do trabalho nas plantações, a redução dos
indígenas em aldeias missionárias e a demonização de sua cultura revela a interconexão
intrínseca entre os imperativos do lucro e os esforços de conversão, ambos permeados
por uma ideologia de desvalorização e subversão das tradições autóctones. Mello e
Souza denunciou que:
REFERÊNCIAS:
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BROTHERSTON, G.; SÁ, L. Peixes, constelações e Jurupari: a Pequena Enciclopédia
Amazônica de Stradelli. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14:
345-358, 2004.
2009.
GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. São Paulo: Editora Ática S.A., 1985.
MELLO E SOUZA, Laura de. O Diabo na Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia
das Letras, 1986.
SAAKE, Guilherme. O mito do Jurupari entre os Baníwa do rio Içana. In: SCHADEN,
Egon. Leitura da Etnologia Brasileira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1976.
p. 277 – 285).
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