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Rubenilson B. Teixeira E4.

A1 – O espaço urbano dos aldeamentos do RN

E4.A1 – O ESPAÇO URBANO DOS ALDEAMENTOS DA


CAPITANIA DO RIO GRANDE

Esta aula tem por objetivo dar continuidade ao tema dos aldeamentos na capitania do Rio Grande. O
assunto é extenso, e teríamos conteúdo para pelo menos duas aulas além das duas que estamos
dedicando neste curso sobre o tema. No entanto, na impossibilidade de nos alongarmos mais sobre a
questão, vamos nos limitar a um único aspecto relativo aos aldeamentos ou missões do Rio Grande do
Norte, que é o que se refere à sua forma física e as implicações e significados dela para o projeto
missionário.

1. OS ÍNDIOS DO RIO GRANDE E SUAS CRENÇAS

Os autores que se interessaram pela questão indígena no Rio Grande afirmam que as nações e tribos
que moravam na região eram originários de duas grandes etnias. Os índios que ocupavam todo o litoral
eram Tupi. Os do interior eram Cariris. Assim, os Potiguaras pertenciam à grande família Tupi. Os
nativos do interior foram denominados Tapuia, termo genérico que englobava todas as nações do
interior. Esta palavra possuía, como vimos, conotações pejorativas.
A classificação dos povos indígenas é, em geral, confusa. As mesmas tribos e nações recebem
freqüentemente nomes diferentes segundo os autores, que se basearam em documentos diversos.
Com vistas a uma simplificação, nós utilizamos as considerações desenvolvidas por Olavo Filho,1 que
se dedicou preferencialmente aos índios do interior do Rio Grande. Tendo como base os cronistas
holandeses, aliados dos índios do sertão, ele nos apresenta um esboço de vários aspectos da cultura
Tapuia. Vamos reter somente alguns elementos que nos interessam particularmente. 2 Segundo este
autor, os Tapuias eram compostos de duas nações principais, os Cariris e os Tarairiús. Os primeiros
se encontravam num estágio de desenvolvimento correspondente ao neolítico, e os segundos ao
paleolítico.3 Cada nação, subdividida em grupos ou famílias, recebia outras denominações, segundo o
nome do chefe ou da língua dos grupos em questão. Por exemplo, os Tarairiús compreendiam os
Paiacus, os Jenipapos, os Canindés, os Pegas, Panatis e vários outros. Alguns destes grupos
indígenas constituíram uma forte oposição às incursões portuguesas no interior. 4 A nação Cariri
comportava por sua vez subdivisões, como os Curemas e Caicós.
Os Tapuias tinham um modo de vida semi-nômade. Eles praticavam a caça, a pesca e uma agricultura
rudimentar. Os Cariris, subdivisão dos primeiros, praticavam uma agricultura e uma cerâmica
rudimentar. Em razão do baixo nível de sua agricultura, os Tapuias, e em menor grau os Potiguaras do
litoral, que conheciam um sistema mais sedentário de agricultura, se deslocavam periodicamente, cada
vez que as terras se cansavam ou que a caça ou a pesca não era mais abundante. Os deslocamentos
eram mais ou menos controlados, porque as tribos retornavam freqüentemente aos mesmos locais,
construindo assim o conhecimento de uma região mais ou menos delimitada. Esta característica é
fundamental para compreender a dificuldade dos missionários e das autoridades coloniais em manter
os índios nas terras bastante delimitadas dos aldeamentos.
Um outro elemento fundamental da cultura indígena é a religiosidade. Como todos povos que
conheciam um nível de desenvolvimento semelhante, a religiosidade indígena estava profundamente
presente na vida dos índios do Rio Grande. O mítico e o real se confundem. A vida não pode ser
dissociada de valores sagrados, que são onipresentes. Olavo Filho menciona vários aspectos da

1 Vide sua distribuição em mapa. FILHO, Olavo. índios …, op. cit., pp. 31-32.
2 Mesmo que existissem diferenças culturais entre os Tapuias e os Tupi, elas não eram, em nossa opinião,
diferentes a ponto de impedir sua generalização a todos índios do Rio Grande. Além do mais, levas de Tapuias
foram trazidas às missões do litoral, onde viviam os Tupi.
3 Reconhecemos as dificuldades deste tipo de classificação, utilizado pelo autor mencionado e aplicado a culturas

que se encontravam no continente americano. De qualquer modo, esta classificação fornece uma idéia aproximada
de seu estado de evolução.
4 É o caso dos Canindés, um dos mais conhecidos. Seu principal, o rei Canindé, dominava um vasto território que

compreendia áreas de outras capitanias. No momento de sua rendição, em 1692, ele tinha 5 000 arqueiros sob
suas ordens.
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religiosidade e da mitologia dos Tapuias, tendo como base as crônicas de seus contemporâneos
brancos. Evidentemente, a religião dos Tapuias é percebida de maneira muito negativa. As descrições
realizadas pelos brancos mostram seus preconceitos, mas sobretudo sua concepção do mundo,
igualmente alicerçada numa profunda religiosidade, de tipo cristão. De qualquer modo, os relatos dos
cronistas nos fornecem um esboço de algumas das inúmeras práticas religiosas indígenas.
Assim, os índios são muito freqüentemente acusados de “nada saber sobre o verdadeiro Deus”, de
adorar o Diabo, que eles servem, assim como os espíritos do mal. Eles adoravam os astros e
acreditavam já ter vivido no paraíso. Os adivinhos e os bruxos eram muito populares. Segundo
testemunhos holandeses, da plantação à guerra, nada era realizado sem a sua opinião e avaliação. Os
oráculos dos xamãs eram correntes em quase toda atividade. Para irem aos combates, os bruxos
precediam os guerreiros executando rituais por intermédio de fumaça. Eles a sopravam sobre os
combatentes, porque supunham assim protegê-los e lhes dar coragem e força. Em outras ocasiões, os
bruxos se isolavam para ter contatos com o demônio, que podia se manifestar no seio da comunidade.
Os objetos sagrados tinham um grande poder. Devido à superstição, um canto de um pássaro
considerado funesto, por exemplo, os levava a lhe dirigir insultos e injúrias de toda sorte. A nova
sacralidade preconizada no aldeamento devia necessariamente levar, como veremos a partir de agora,
a uma transformação profunda do índio e de sua cultura, principalmente no domínio da religiosidade.

2. O COMBATE ESPIRITUAL E A IMPOSIÇÃO DE UMA NOVA RELIGIOSIDADE

Mais do que nas aglomerações dos colonos, a vida nos aldeamentos é profundamente marcada pela
religiosidade. Ao longo de toda sua existência, e particularmente no início de sua formação, o
aldeamento é efetivamente um “campo de batalha” espiritual. Por um lado, é necessário retirar do
indígena suas próprias crenças a fim de lhe inculcar novas, de natureza cristã. Trata-se de um processo
de conversão, razão maior da atividade missionária e sua principal motivação. Obviamente, isso não é
simples, e durante toda a sua experiência, os colonos e até os padres são forçados a admitir a
superficialidade de tal transformação. Na maioria dos casos, ela se constituía mais numa questão de
forma do que de conteúdo, isto é, de um processo exterior de cristianização, ao invés de uma conversão
de fato. Esta, considerada enquanto processo interior, íntimo, pessoal, aparentemente não existia.
A construção de uma nova religiosidade se operava evidentemente a partir da desmistificação das
crenças indígenas. Por isso, os missionários vão indubitavelmente sofrer oposição, notadamente dos
líderes espirituais nativos, os xamãs. A carta do Conselho Ultramarino, escrita em Lisboa em 9 de
dezembro de 1692, trata de uma consulta do governador de Pernambuco Antônio Félix Machado, de 5
setembro do mesmo ano. O governador queria saber que fim destinar ao prisioneiro Tapuia
denominado João Pregador. Este índio, “uma das principais cabeças capturadas na guerra do Rio
Grande” contava com inúmeros adeptos. Como a provedoria da fazenda tinha dispêndios em mantê-lo
na prisão, o governador queria saber se era preferível mantê-lo neste estado ou o exilar no reino de
Angola ou em outro lugar. O Conselho sugere ao rei que ele seja exilado em Angola, porque sua
presença trazia prejuízo à capitania. Se ficasse em uma outra capitania do Brasil, ele representaria
uma ameaça através de sua influência sobre os naturais. 5 Houve outros casos semelhantes.6
Os missionários saberão, por outro lado, se valer de alguns artifícios para facilitar o processo de
conversão dos nativos. Possuindo um conhecimento mais evoluído da medicina, por exemplo, eles
serão capazes de provar aos índios que eles são xamãs mais poderosos que os deles, e seu Deus
cristão também. Aproveitando-se de alguns mitos indígenas, eles se fazem passar pelos
representantes do cumprimento dos mesmos.
Com efeito, era mais do que uma “batalha espiritual” no sentido estrito do termo. Era necessário
transformar a cultura indígena em sua totalidade, para fins da colonização, de modo que outros
aspectos de sua cultura - aliás, comuns a muitos outros povos indígenas - seriam fortemente
combatidos pelos padres, algo sobre o qual não é necessário insistir. É suficiente sublinhar apenas que
muitos elementos culturais presentes igualmente nas nações indígenas do Rio Grande vão ser o objeto
da ação missionária. Por exemplo, a nudez e o canibalismo, assim como alguns conceitos de vida

5 Anônimo. Consultas do conselho ultramarino referentes à capitania do Rio Grande do Norte de 1673 a 1686.
RIHGRN,1919, vol. XVIII, n° 1 e 2, p. 51.
6 Além do caso de João Pregador, Fátima Lopes menciona dois outros nomes de opositores à religião dos

conquistadores, que são igualmente perseguidos ou afastados da comunidade. São eles Zorobabé, em 1604 e
Simão Tagoabuna em 1662. LOPES, Fátima, op. cit., p. 79.

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comunitária, notadamente os relativos à relação entre os homens e as mulheres ou à educação dos


filhos.7 Da mesma maneira, certos valores distintos daqueles dos conquistadores como os da
acumulação ou da planificação constituirão igualmente o objeto da ação missionária em vista da
transformação dos autóctones. Como em todo lugar, era necessário transformá-los em cristãos, mas
igualmente em vassalos. A evangelização se reveste, portanto, de uma significação muito mais
abrangente. Tratava-se na realidade de uma aculturação segundo os valores da cultura européia, de
onde provinham os missionários. Nós devemos ter sempre em mente a idéia de que a evangelização,
nas missões, era considerada como uma etapa anterior à civilização dos índios, segundo os valores do
conquistador. As duas dimensões eram, portanto, indissociávels.
Um outro fator importante contribuiria para abalar a cultura indígena. Trata-se do hábito, muito freqüente
por parte das autoridades coloniais e dos missionários, de transferir os índios de uma missão para
outra, ou de impor a co-habitação nas missões de indivíduos provenientes de tribos inimigas. Às vezes,
isso acontecia em razão dos conflitos com os colonos dos arredores. Por exemplo, em 1704, os
missionários partem com uma parte dos Paiacus de Apodi para Gramació a fim de fugir das
perseguições e dos conflitos na região. Formada inicialmente por Potiguaras, a missão Guajiru recebeu,
em várias ocasiões, novos habitantes indígenas. Os novos moradores haviam sido capturados durante
a guerra ou ali se haviam instalados para fugir à perseguição. Por fim, outros índios das missões
acompanhavam os chefes militares para combater os rebeldes. Este amálgama de indígenas de
origens diversas contribuía indubitavelmente para o enfraquecimento das especificidades culturais de
cada nação, e indiretamente de sua força.8
Enquanto lugar e instrumento por excelência da conversão desejada, o aldeamento deve expressar,
em todos sentidos, a sacralidade cristã. Deste ponto de vista, ele constitui uma entidade inteiramente
sagrada. É um espaço especialmente concebido para atingir o objetivo da conversão dos nativos, etapa
primordial de sua transformação cultural, de seu processo civilizatório. Ele difere, portanto, das
aglomerações dos brancos quanto à intensidade do processo pois, no caso das missões, os habitantes
não têm qualquer conhecimento do cristianismo. A ação exercida deve ser proporcional à reação que
os nativos vão manifestar.
O uso do espaço do aldeamento é o primeiro instrumento da transformação desejada. Em nossa tese,
desenvolvemos uma série de considerações sobre como era o uso deste espaço, sua teatralidade, sua
monotonia, seus objetivos fundamentalmente religiosos, mas também militares. Vimos que se tratava
de um uso padronizado, que se manifestava com poucas variações independentemente do lugar, da
época e até da ordem religiosa à qual a missão estava subordinada. Esta padronização seguia uma
legislação, definida pelo padre Antônio Vieira por volta de 1660, a qual normatizava uma experiência
que já existia por cerca de um século, desde o início da obra missionária entre os indígenas. Vimos
ainda que, do que pudemos observar, este uso se repetia também no caso das missões do Rio Grande
do Norte. Infelizmente, vamos deixar de lado todas estas considerações sobre o uso, por absoluta falta
de tempo no nosso curso. Preferimos dar prioridade ao espaço urbano do aldeamento em si.
Antes disso, porém, cabe um comentário sobre o grau de prestígio de que gozava o missionário junto
à sociedade da época, tanto da parte dos colonos quanto dos índios no meio dos quais eles operavam.
Como vimos em aula anterior, o clero secular estava próximo dos colonos, vivendo no meio deles e
beneficiando de sua consideração. O clero regular vivia nas missões. Ora, as rivalidades entre os
habitantes e este último por causa da mão-de-obra indígena nos levam a supor que os missionários
eram menos apreciados pela população não-indígena. Defendendo freqüentemente interesses
contrários aos dos moradores, os missionários se tornam desde muito cedo o alvo das críticas da
população. Direcionados geralmente à questão do direito sobre a administração temporal dos nativos,
os protestos questionavam, em alguns casos, o próprio ministério espiritual dos mesmos junto aos
índios.9 Todavia, as inúmeras críticas não invalidam o fato de que, na maior parte do tempo, o
missionário gozasse de uma grande consideração por parte dos colonos.10 Vários documentos

7 os missionários possuem uma influência especial sobre as crianças, que representam aos olhos deles a
verdadeira esperança de transformação futura das missões.
8 Mesmo se as diferenças culturais entre as diferentes nações indígenas não deviam ser demasiadamente

distintas, como vimos.


9 Ver, por exemplo, a queixa do capitão-mor Bernardo Vieira de Melo, em sua carta de 20 de maio de 1699, sobre

o missionário Manuel Serrão, nomeado para a catequese dos indígenas pelo bispo de Pernambuco. MEDEIROS,
Tarcísio. Bernardo …, op. cit., pp. 46-47. Encontramos uma outra reclamação semelhante, deste mesmo capitão-
mor, relativa ao missionário trabalhando no presídio de Assu.
10 Aparentemente, o clero regular tinha mais credibilidade do que o secular, por exemplo no que se refere à

administração das missões. Uma carta escrita em Salvador em 10 de novembro de 1691 menciona a carta régia

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testemunham isso,11 por exemplo, ao longo de suas visitas nas aglomerações. Vimos um exemplo no
capítulo anterior, quando da missão realizada em 1744 pelo padre jesuíta Gabriel Malagrida em Natal.
Nesta ocasião, este padre mobilizara um bom número de pessoas para reconstruir a capela do Rosário.
Um outro exemplo muito interessante nos é fornecido pelo capuchinho Martinho de Nantes. 12
É mais difícil avaliar, no entanto, o prestígio dos missionários junto aos índios. Ao contrário dos colonos,
os índios não deixaram relatos escritos sobre sua própria visão dos acontecimentos e de sua própria
história. Com exceção das reações de animosidade dos nativos para com os missionários, 13 tudo que
podemos conjeturar é baseado nos relatos dos atores não-indígenas, que são dificilmente imparciais.
Os primeiros relatos dos missionários, do início da colonização, atribuem muita amabilidade da parte
dos nativos para com eles, o que eles consideram, evidentemente, como uma intervenção divina. Os
padres sublinham que eles são muito bem recebidos nas aldeias. Os indígenas choram quando os
missionários vão embora, prática que correspondia, contudo, mais a um rito cultural indígena em tais
ocasiões, do que a uma prova de afeição efetiva para com os padres.
De qualquer modo, é certo que o missionário não podia ser encarado da mesma maneira que o colono.
À medida que avança a colonização, os índios compreendem que os missionários e as missões são a
única alternativa possível à escravidão, à fome e ao seu desaparecimento imediato por meio das
guerras de exterminação, desejo manifesto dos colonos. 14 Se os missionários se regozijavam de que
os índios vinham para as missões, isto não era verdadeiramente uma reação voluntária, mas era ditada
pelas circunstâncias.15 Deste ponto de vista, nós poderíamos afirmar que as missões, apesar de tudo,

segundo a qual as missões não devem ser entregues aos padres seculares, pois isso causaria um grande prejuízo
ao bem espiritual das almas. MARIZ, Marlene, op. cit., pp. 126-127.
11 Ver, por exemplo, (AHU_ACL_CU_018, Cx. 3, D. 182; ARAUJO, P. Soares, Cartas régias …1916, vol. XIV, op.

cit., pp. 48-50.


12 O missionário, visitando a cidade de Salvador nos últimas décadas do século XVII, a fim de falar com o

governador, nos deixou este testemunho : “cheguei no momento do levantar do governador, pelas oito horas, e fui
o primeiro a ter a honra de lhe falar. Recebeu-me polidamente e foi mesmo, na minha frente, até a sala de entrada.
Os portugueses respeitam muito os religiosos, sobretudo os missionários; tanto mais quando, por mais coisas que
tivessem contado ao meu respeito, ninguém me atacava os costumes; ao contrário, como ele próprio se informara,
havia muita generosidade nas informações que lhe levavam". Apesar das perseguições, Martinho de Nantes
assinala que as pessoas mais importantes, eclesiásticas ou civis, lhe manifestavam consideração. Martinho e seus
colegas foram expulsos do Brasil por uma questão de geopolítica internacional. Por serem franceses, eles
representavam um perigo para a Coroa portuguesa, que desconfiava dos interesses de seu país na colônia. Em
seu retorno, Martinho teve a ocasião de encontrar o rei em Lisboa, que lhe agradeceu profundamente pelo o
trabalho “prestado a Deus e ao Estado". NANTES, Martinho de. Relação de uma missão no rio São Francisco. São
Paulo : Companhia Editora Nacional, 1979, pp. 65, 88, 97.
13 Justificando vários atos de sua administração num documento de 23 de dezembro de 1738, o capitão-mor João

de Teive Barreto Menezes se refere às missões. Ele tinha a incumbência de castigar os índios por causa de seus
“desaforos” e que também era ordenado a entregá-los à justiça e a executar as sentenças. Ele acrescenta que os
índios não temem as punições dos capitães-mores (das missões) e que eles se levantam contra seus missionários.
Estes “não podem com eles sem o respeito dos capitães-mores desta capitania como há poucos anos sucedeu na
aldeia das Guarairas ... pela carta inclusa do presente missionário da aldeia de Gramació verá o aperto em que se
acha na desobediência dos seus índios...". Uma carta do senado da câmara de Natal de 12 de setembro de 1712
informa ao governador de Pernambuco que os “Bárbaros” tinham matado dois padres: um jesuíta, e um outro da
ordem de São Pedro. Eles faziam igualmente injúrias às imagens sagradas. AHU_ACL_CU_018, Cx. 3, D. 211;
MARIZ, Marlene, op. cit., p. 144.
14 Vários documentos indicam esta intenção, notadamente quando da guerra dos Bárbaros. A carta do senado da

câmara de Natal de 2 de julho de 1689, redigida para informar o rei sobre esta guerra, nos fornece um exemplo.
Na carta, que seria levada por Gonçalo da Costa Faleiro pessoalmente ao monarca, os oficiais da câmara
assinalam “que em nenhuma maneira convém fazer-se paz nenhuma com este gentio, por ser gente que não
guarda a fé, falsos e traidores...” Eles acrescentam que o único meio de ocupar o sertão com homens e gado, de
maneira a aumentar os dízimos de sua Majestade, era de fazer um combate sem misericórdia contra “este gentio,
e guerreando-se com ele até de todo se acabar”, segundo a ordem do governador geral Mathias da Cunha. A carta
foi transcrita in CASCUDO, Luís, História do Rio …, op. cit., pp. 101-103.
15 Na perspectiva missionário, os índios tinham bons motivos espirituais para virem às missões. Este discurso,

certamente autêntico por parte dos padres, está presente desde as primeiras missões. Pero Rodrigues, resumindo
as vantagens do projeto missionário, afirma que ele é bom para os índios, que são civilizados e salvos; é bom para
os portugueses, em suas guerras contra os estrangeiros; é bom contra a ameaça dos negros; é bom para os
colonos, aos quais os indígenas devem servir de acordo com regulamentação real. Um discurso semelhante é
proferido por Nóbrega, que reconhecia as vantagens das missões para a evangelização dos índios, para a
colonização e para as finanças da Coroa. Por outro lado, desde as primeiras repressões, como a do terceiro
governador geral do Brasil, Men de Sá, os jesuítas compreenderam rapidamente que os nativos os procuravam

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interessavam igualmente aos índios. Por este motivo, algumas das tribos mais ferozes do Rio Grande
terminam por assinar acordos de paz com os conquistadores e por se comprometer a viverem nas
missões, compromisso que elas não conseguem manter, por várias razões.

3. O ESPAÇO COMO MEIO DE CONVERSÃO

Conjuntamente com o uso, a forma urbana dos aldeamentos deveria contribuir para a transformação
dos indígenas. A escolha e o estatuto do sítio onde eles se instalavam deveriam concorrer para este
fim. Da mesma maneira, a disposição do espaço e as funções de cada parte que o compunha, assim
como a organização dos edifícios, tinham como pressuposto levar à conversão do índio em cristão e
em vassalo do reino.

3.1. O sítio e o território do aldeamento

Examinamos anteriormente a localização do aldeamento enquanto estratégia de apropriação do


território, demonstrando que ele fazia parte de uma “geopolítica” colonial. Tentaremos retomar
parcialmente a questão da relação da missão com o território, mas segundo uma nova abordagem, isto
é, em termos das características físicas do sítio urbano propriamente dito. Em seguida, veremos como
o sítio mantém uma relação com o sagrado.
O sítio “urbano” do aldeamento comportava alguns atributos gerais, conhecidos pelos índios e
utilizados desde sempre, a tal ponto que ele podia se localizar no mesmo lugar de uma aldeia indígena.
O aldeamento se situava, portanto, perto de um curso d’água; sobre um sítio elevado, por motivo de
defesa, evidentemente, mas igualmente porque isso possibilitava, como nas aglomerações civis, o
destaque da igreja, o edifício principal da pequena aglomeração. As áreas circunvizinhas deviam
possibilitar a agricultura, a caça e a pesca. Teoricamente, cabia aos índios e aos missionários definir a
sua localização, sob a aprovação da Junta das Missões. Evidentemente, nem sempre era este o caso,
em razão dos inúmeros interesses envolvidos nesta escolha. O sítio de todas as missões do Rio Grande
possuía as características físicas mencionadas. As missões nasceram, sem exceção, no mesmo sítio
ou próximo de uma antiga aldeia indígena. Eram todas situadas perto de um rio ou de uma lagoa, em
local elevado, posto que quase sempre de pouca altura. Algumas delas mudaram total ou parcialmente
de sítio. É o caso, respectivamente, de Mipibu e de Apodi. Outras desapareceram.
Os primeiros aldeamentos eram pouco estáveis. Mudavam sua localização ou desapareciam
freqüentemente, por diversas razões. Em alguns casos, por motivos militares, ou por causa de conflitos
entre os índios, os missionários e os colonos. A inadequação do sítio ou ainda a fuga dos índios das
missões são outras explicações para tal instabilidade. Um exemplo muito eloqüente no Rio Grande foi
a missão Apodi. Realizamos um estudo detalhado para tentar identificar os deslocamentos desta
missão, que ocorreram várias vezes nos arredores da lagoa Itaú. 16 Tal instabilidade se devia em grande
parte aos conflitos com os colonos das vizinhanças.
A missão se encontrava, em um dado momento, perto de uma localidade de brancos, denominada
Outeiro. Outros indícios nos levam a supor que a missão e a pequena localidade ocupavam o mesmo
sítio físico, uma elevação em frente da lagoa, evidentemente em épocas diferentes. As peripécias da
evolução desta missão obscura, cuja complexidade resulta da fragmentação e da insuficiência dos
dados disponíveis, nos conduzem, porém, a uma certeza. A missão deu origem à vila de Portalegre,
instituída com os indígenas da missão Apodi que para lá foram transferidos, em 1761, como veremos.
A missão está igualmente na origem da localidade denominada Apodi, que ocupa em nossos dias o
sítio inicial daquela. A exposição do estudo detalhado das etapas e deslocamentos da missão Apodi
exigiria longas considerações que são, em nossa opinião, secundárias. De qualquer modo, o exemplo
apresentado ilustra vários aspectos relativos à escolha do sítio propriamente dito, suas características,
os conflitos de interesses e o deslocamento que deles decorre. Além do mais, ele introduz outros
aspectos que serão desenvolvidos posteriormente.

por causa dos benefícios materiais que eles podiam lhes proporcionar, e não por causa dos bens espirituais. LEITE,
Serafim. História … Tomo II, op. cit., pp. 59-60; HEMMING, John, op. cit., pp. 105-106, 99-101.
16 É o antigo nome da lagoa, atualmente chamada Apodi.

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O sítio determinado pelas autoridades deveria teoricamente facilitar o trabalho de evangelização dos
nativos. Intrinsecamente relacionadas à finalidade de catequese, havia evidentemente outros objetivos,
menos citados nos documentos oficiais. A reunião dos índios num lugar específico liberava suas terras
em prol dos colonos, além de otimizar igualmente o trabalho missionário, o que representava uma
economia para a provedoria da fazenda. Por fim, ela possibilitava, notadamente no caso das missões
situadas próximo às aglomerações, uma oferta de mão-de-obra importante.17 É o conjunto destes
interesses que conduz o rei Dom Pedro II a conceder, de acordo com o alvará real de 23 de novembro
de 1700, uma légua em quadra18 de terras aos silvícolas. Eis aqui algumas passagens deste
documento:

“Mando que a cada uma missão se dê uma légua de terra em quadra para
sustenção dos índios e dos missionários … Cada aldeia se há de compor ao
menos de 100 casais e sendo menos, e estando algumas pequenas ou
separadas umas das outras, em pouca ou menos distância, se repartirá entre
elas a dita légua de terra em quadra … e as tais aldeas se situarão à vontade
dos índios com aprovação da Junta das Missões, e não a arbítrio dos dos
sesmeiros ou donatários, advertindo-se que para cada uma aldea, e não para
os missionários, mando dar esta terra donatários ... [todavia a terra deve] …
ajudar o seu sustento [dos missionários] e para o ornato e culto das igrejas
… e esta medição e repartição farão os ditos ouvidores gerais … se algumas
das pessoas que têm datas de terras não quer dar a dita légua … lhe sejam
tiradas todas as terras que tiverem, para que o temor desta pena e castigo os
abstenha de encontrarem a execução desta minha lei …”19

Se considerarmos o valor de 5 280 m para a légua, a légua em quadro corresponderia a 27,878 km 2.


O aldeamento, notadamente o núcleo urbano propriamente dito, bem menor, se situava no interior
desta gleba. As terras delimitadas deveriam servir para a agricultura e para a pecuária de modo a
satisfazer as necessidades da missão, dos missionários e da igreja. Na capitania do Rio Grande, a
légua em quadro foi demarcada nas cinco missões de Mipibu, Guaraíras, Apodi, Guajiru e Gramació.
Há indícios de que terras foram igualmente demarcadas para os três outros aldeamentos destinados
aos Tapuias que aceitaram ser vassalos do rei, mas que não dispunham da presença contínua dos
missionários.20 As terras do aldeamento Mipibu, por exemplo, foram demarcadas pelo menos duas
vezes. A primeira, em 1703, concedeu meia légua e 168 braças de largura por uma légua de
comprimento. Estas dimensões não correspondiam à légua em quadrada estabelecida por lei
certamente porque a missão abrigava somente 57 casais. Durante o ciclo capuchinho das missões,
entre 1725 e 1762, a missão atinge a cifra de 100 casais, e recebe mais terras numa nova demarcação,
em 1736, a pedido do irmão Próspero de Milão. 860 braças foram acrescentadas para completar as
dimensões legais. Várias casas de colonos estavam localizadas nas terras da nova demarcação. 21
A légua de terra deveria, em princípio, atender às necessidades do aldeamento, e o capuchinho Annibal
estimava efetivamente serem suficientes as terras demarcadas para sua missão de Mipibu. Em sua

17 A proximidade da missão podia ser, às vezes, incômoda aos colonos, como demonstra o exemplo de Apodi.
18 O termo “em quadra”, que aparece no documento original, significa uma superfície quadrada medida em
quadrados de uma légua de lado. Por exemplo, “uma légua em quadra” é igual a um quadrado de uma légua de
lado; duas léguas em quadra correspondem a uma superfície quadrada de duas léguas de lado, ou seja, quatro
quadrados de uma légua, e assim por diante. Quando a expressão é utilizada no singular, isto é, “uma légua em
quadra” ela é sinônima de uma “légua quadrada". Empregada após unidades de medida no plural, contudo, não
se trata da mesma coisa. Considerando que “duas léguas em quadra” correspondem a uma superfície quadrada
de duas léguas de lado, a referida superfície equivale, na realidade, a quatro léguas quadradas, e não a duas. O
termo aparece também como “em quadro".
19 MENDONÇA, Marcos Carneiro de (1894-1988). século XVIII. século pombalino do Brasil. Rio de Janeiro :

Biblioteca Reprogáfica Xerox, 1989, pp. 73-74.


20 LOPES, Fátima, op. cit., p. 158-159. Aparentemente, a légua de terra concedida às missões se aplicava às

situadas no sertão, e não no litoral, segundo uma carta régia de 22 de maio de 1703, endereçada ao juiz Cristóvão
Soares Reimão, encarregado de delimitar a légua de terras para as missões do Rio Grande. Todavia, a ordem não
foi executada. A carta em questão é muito clara no que diz respeito à obrigação imposta aos nativos de se reunirem
nas missões. O rei mander fazer guerra a todos que se recusassem. Os sobreviventes se tornariam escravos.
BARBALHO, Gilberto, op. cit., pp. 39-40.
21 BARBALHO, Gilberto, ibid., pp. 45-49.

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opinião, os indígenas somente trabalhavam suas terras sob ameaça. Preferiam vaguear e roubar o que
encontravam nas terras dos moradores das proximidades da missão. O missionário recebia
reclamações dos colonos a todo instante, e se via obrigado a castigar os nativos contra sua vontade. 22
Ora, tal opinião reflete o desconhecimento dos costumes dos indígenas, que tinham um comportamento
migratório. Além do mais, sua maneira de procurar os meios de sobrevivência estava baseada na caça
e na pesca, que são por natureza móveis de acordo com as estações. Até mesmo sua agricultura,
rudimentar, os forçava a se deslocar, uma vez as terras esgotadas. Isto, associado à fome causada
pela seca e pela recusa deles em trabalhar regularmente a terra, costume não-indígena, representavam
outras dificuldades em mantê-los nos limites das terras concedidas. No Rio Grande, as autoridades
tomam freqüentemente medidas para os obrigar a não ultrapassá-los.23 Vale destacar que a separação
desejada entre os índios e os colonos, através da atribuição de terras aos primeiros, foi freqüentemente
desrespeitada, tanto pelos colonos24 quanto pelos índios. Apesar das incursões dos colonos em terras
indígenas, a terra era menos preciosa, a seus olhos, do que os próprios nativos. A concessão de terras
era gratuita, e mesmo que os primeiros tenham tentado em algumas ocasiões se apropriar delas, a
mão-de-obra indígena era a motivação principal de sua ação. 25 Esta questão é essencial, pois veremos
posteriormente que há uma inversão nesta ordem de importância. A terra, e não o índio, suscita a maior
ganância da sociedade em gestação.
O que nos interessa particularmente é verificar a relação entre o sítio do aldeamento e a noção do
sagrado. Para tanto, iniciaremos com a própria definição do termo aldeamento. A palavra indica, como
vimos, a determinação de uma gleba de terra na qual se desenvolvesse uma comunidade com
finalidades específicas, dentre as quais era primordial a cristianização dos índios. Deste ponto de vista,
nós podemos afirmar que se trata de um espaço e de um território antes de tudo cristão, pois, como
tudo que se refere ao aldeamento, o espaço existe para tornar possível a evangelização dos nativos,
algo que se evidencia, por exemplo, no fato de que uma de suas principais prerrogativas era que o uso
destas terras deveria ser exclusivo dos índios e dos missionários. Seus limites eram bem definidos,
como em Mipibu e em Apodi. Os colonos não podiam nelas penetrar e os índios não podiam delas sair,
exceto sob autorização. A cristianização dos indígenas exigia, portanto, um espaço tranqüilo, sem a
interferência freqüentemente incômoda dos colonos. Constatamos que estas prerrogativas foram
igualmente aplicadas aos aldeamentos do Rio Grande.
No que tange à questão fundiária propriamente dita ou ao estatuto jurídico da terra, o sítio do
aldeamento constitui a terceira situação mencionada no capítulo anterior. Do ponto de vista legal, as
terras delimitadas para as missões não pertencem nem ao senado da câmara, como em Natal, nem a
particulares ou à Igreja, como em Caicó e Acari. Elas constituíam uma propriedade indígena. Vários
indícios demonstram, entretanto, a grande influência e a posse de fato da igreja sobre as mesmas
terras. Esta questão, que desenvolvemos em nossa tese, não será tratada aqui.

22 GÉNOA, Annibale, op. cit., p. 5.


23 O capitão-mor do Rio Grande, João de Barros Braga, relatando as realizações do sargento-mor de cavalaria da
capitania, Dionisío da Costa Soares, em documentos datados de 1731, afirma que o militar o acompanhou por
várias ocasiões para apaziguar os índios revoltados das missões de Mipibu e Guaraíras. No caso de Mipibu, foi o
missionário que procurou socorro junto ao capitão-mor. Os índios de duas missões se haviam dispersado nos
matos, e era necessário fazê-los retornar às missões. Apesar das rebeliões, o capitão-mor assevera que em Mipibu
prevalece a obediência. Um bando do governador de Pernambuco, de 30 de maio de 1701, estabelece várias
ordens destinadas a controlar a utilização de armas dos índios assim como os deslocamentos destes fora das
missões. Entre outras ordens, ele não desejava que tropas se instalassem nas missões e, quando fosse o caso,
que 10 soldados ficassem subordinados aos missionários. A Junta das Missões em Recife certifica, em sua carta
de 24 de abril de 1742, que os habitantes não têm o direito de plantar na légua de terra cedida aos índios, nem
estes podem fazê-lo fora dela. AHU_ACL_CU_018, Cx. 6, D. 366; MARIZ, Marlene, op. cit., pp. 134-135, 163.
24 Uma carta régia de 1691 indica que os colonos se apropriam das terras dos “pobres índios” das missões

distantes, e ordena sua restituição e demarcação para evitar outras invasões. Os infratores serão punidos. Os
índios são livres nas aldeias, que devem ser administradas por religiosos. MARIZ, Marlene, ibid., p. 127.
25 Embora a concessão de terras aos nativos nas sesmarias dos colonos pudesse suscitar protestos. João Carneiro

da Cunha escreve uma carta ao rei Dom João V, antes do dia 23 de maio de 1735, para lhe solicitar que impeça
que suas terras lhe sejam retiradas em favor dos índios, como havia sido feito com uma légua que lhe pertencia
na “Cidade dos Veados,” que lhe fora alienada para ser concedida aos indígenas de Guajiru. AHU_ACL_CU_018,
Cx. 3, D. 204.

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3.2. A sacralidade do espaço urbano : as ruas, os edifícios, o mobiliário

O projeto de transformação do índio em cristão e em vassalo do rei era de grande alcance. O


aldeamento, enquanto lugar e instrumento privilegiado deste projeto, devia atacar todas as dimensões
da cultura indígena. Por esta razão, um dos primeiros esforços neste sentido é direcionado ao habitat
indígena, e particularmente sua casa. Um documento do século XVI, apresentado por Luís Baêta
Neves, registra o espanto de um missionário quanto ao modo de vida dos índios revelado em suas
habitações. As principais críticas, na perspectiva do missionário, podem ser resumidas assim: as
residências indígenas – as ocas – se caracterizavam pela ausência de ordem, os índios vivendo em
conjunto, por família, sob um mesmo teto. Eram espaços de promiscuidade que se manifestavam pela
ausência de fechamentos do espaço e de tempo ou pela ausência de interdições sociais ou naturais.
Apesar desta “desordem”, os índios se entendiam bem entre si. Não havia qualquer noção de espaço
privado, pessoal. A fumaça dos fogos e o barulho não os incomodavam de modo algum.
Obviamente, interpretações deste tipo são profundamente questionáveis na atualidade. O que o
missionário estimava ser uma “desordem”, por exemplo, era na realidade uma ordem muito bem
estabelecida segundo outros princípios culturais. De acordo com Luís Baêta Neves, os missionários
foram incapazes de ver, em certas características das habitações indígenas, valores caros au
cristianismo, como o compartilhar comunitário. Substituíram, pelo contrário, a casa coletiva pela casa
ibérica, individual, o centro da unidade social que é a família. 26 O referido autor parece alegar que a
transformação do habitat natural dos índios da aldeia para o aldeamento, desejada pelos missionários,
era total. Na realidade, o aldeamento não podia evitar, como vimos na Introdução, certas características
do primeiro, como as relativas ao sítio. Um outro traço essencial de todo aldeamento que lembra a
antiga aldeia era a grande praça central, espaço de uso múltiplo que representa o elemento urbanístico
primordial do aldeamento, em torno do qual eram construídas as edificações. 27
Reunimos inúmeras descrições, da mesma forma que ilustrações, sobre vários aldeamentos, dos quais
vamos apresentar apenas uma amostra. O que chama a atenção em todas elas é a uniformização do
espaço urbano e do agenciamento de suas edificações, independentemente da ordem religiosa à qual
pertencem as missões. Vários autores já observaram esta uniformidade. 28 Mesmo as reduções, que
são mais elaboradas, seguem regras gerais relativas ao agenciamento do espaço. As características
essenciais das missões são, portanto, as seguintes: uma praça central, quase sempre retangular, com
a igreja e outros edifícios ocupando um de seus lados. O edifício religioso

26 NEVES, Luís, op. cit., pp. 124-129.


27 Mesmo no que diz respeito ao uso da praça central, os jesuítas toleravam algumas manifestações típicas dos
indígenas. O Regulamento de Vieira, por exemplo, permitia os “bailes indígenas”, a fim de, no entanto, promover
a evangelização. LEITE, Serafim. História …, Tomo IV, op. cit., p. 113.
28 PETRONE, Pasquale, op. cit., p. 229; DEFFONTAINES, Pedra. The Origin and growth of the Brazilan network

of towns. The Geographical Review, 1938, Vol. XXVIII, No 3, July, p. 380; TOLEDO, Benedito Lima de. Do século
XVI ao início do século XIX : maneirismo, barroco e rococó. In : História geral da arte no Brasil/ sob a direção de
Walter Zanini. Vol. 1. São Paulo : Instituto Walther P. Sales, 1983, p. 114.; BARROS, Clara, op. cit., p. 17.

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Figura n° 1b. Aldeia de Nossa Senhora dos Prazeres de


Figura n° 1a. Aldeia de Massavão Deipió Sequirica.

Figura n° 1c. Aldeia de São fidelis da comarca de Ilhéus


Figura n° 1d. Vila de Abrantes da comarca do Norte.

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Figura 1f. Um aldeamento em Pernambuco. A figura se baseia numa


pintura de Alberto Eckout, pintor do Brasil holandês (século XVII).

Figura 1e. Vila de Santarém da comarca de Ilhéus

Figura 1h. O aldeamento de São Fidelis, no Rio de Janeiro. O


aldeamento expressa, ainda no século XIX, o sentido sagrado da forma
urbana destas aglomerações.
Observações sobre as figuras de 7a a 7e:
1. Estas figuras correspondem a cinco plantas de aldeias da capitania da
Bahia. Os desenhos são do final do século XVIII. Os comentários que
acompanham os originais, muito detalhados, descrevem o trabalho dos
índios, a administração dos diretores, a hierarquia social local, entre
outros aspectos. A forma tradicional do aldeamento foi mantida nestas
localidades, que não são mais missões, mas aldeias ou vilas civis. Isto
demonstra que a elevação da antiga missão à categoria de vila não
acarreta necessariamente modificações essenciais em sua forma urbana,
como veremos. As duas vilas deste grupo (fig. 7d e 7e) possuem uma
casa de câmara e cadeia, delimitando a praça do lado esquerdo da igreja.
Outras edificações são citadas. As cruzes diante das casas na figura 1e
significam uma hierarquia social dos “nobres” locais. A cruz maior
pertence ao capitão-mor local.
2. Fonte das figuras: Fig. 7a a 7e: AHU. Cartografia manuscrita, Bahia, n°
1039 a 1043 (c.a. 1794); Fig. 7f: Anônimo. Atlas histórico e geográfico
brasileiro. Rio de Janeiro: Campanha Nacional de Material de Ensino,
1966, p. 17.; Fig. 7g: SANDOVAL, Humberto, ORTIZ, Claudia, op. cit., p.
78; Fig. 7h BARROS, Clara, op. cit., p. 116.

Figura n° 1. Aldeamentos, reduções e vilas.


Figura 1g. A redução de São Miguel. A planta constitui um
exemplo da grande evolução atingida pelas reduções do sul
do Brasil e dos países limítrofes.

ficava geminado ao convento, denominado freqüentemente de residência ou hospício.29 Era a morada


dos padres. Ela podia cumprir outras funções, como servir de depósito, de reserva, de sala de armas,

29A residência dos jesuítas se assemelha ao colégio quanto a suas funções. Os colégios se situavam geralmente
nas aglomerações não-indígenas, e eram obrigatoriamente destinados ao ensino. A residência se situava nos

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de escola e de habitação para acolher os visitantes de passagem. À direita da igreja se encontrava um


sino, um campanário. Diante da igreja, ficavam o cruzeiro e o tronco. As igrejas, notadamente a dos
aldeamentos, eram simples. No Nordeste, elas eram às vezes erigidas em pedra importada de Portugal,
outras o eram em madeira e barro. Alguns aldeamentos podiam dispor igualmente de uma enfermaria,
ou de oficina.30 As casas, em geral precárias, eram cobertas de palha e pintadas à cal branca. A
precariedade das casas, inclusive as das autoridades locais, se deve em parte ao fato de que os índios
eram freqüentemente solicitados para o trabalho dos colonos e das autoridades e não podiam reparar
suas próprias casas. O cemitério e a horta se situavam atrás da igreja (vide figura n° 1).
Como se tratava de uma aglomeração semi-rural, as terras que circundavam este núcleo eram
destinadas à agricultura e à pecuária. As casas possuíam hortas no quintal. O alvará real de 1700 que
concedeu uma légua de terras às missões ordenava que estas terras deveriam satisfazer às
necessidades dos missionários e da igreja local. A ordem real de 4 de junho de 1703, que exigia a
construção da igreja e de seu pátio, da mesma forma que a casa do padre, exigia ainda que este
dispusesse de um terreno de uso particular para a criação. 31 Efetivamente, as missões possuem, além
do cemitério, um pátio por trás da residência do missionário e da igreja. Era um terreno destinado à
agricultura e à criação. Este espaço era comunitário, e os produtos da colheita serviam não somente
às necessidades dos missionários e ao serviço do culto, mas igualmente às da comunidade. Tratava-
se de um espaço particularmente conhecido nas reduções.32 Além das terras comunais, cada família
de índios dispunha de um lote. Por causa desta dispersão agrícola, o aldeamento era normalmente
dotado de um núcleo concentrado, cercado por sua vez de casas mais distantes, dispersas na légua
de terras pertencente aos indígenas.33
Certas características evocadas por Pasquale Petrone, relativas às ruas dos aldeamentos de São
Paulo, são válidas para outros aldeamentos do Brasil. Segundo ele, as ruas não deviam ser muitas.
Alguns caminhos desembocavam na praça central. Freqüentemente, casas eram construídas ao longo
destes caminhos. Se a praça era regular, as ruas e os caminhos, quando existiam, não o eram.34
No meio da praça, e freqüentemente também nos seus quatro cantos, os cruzeiros fixados no solo
lembravam o sentido último da existência das missões. Estas cruzes serviam de estações ao longo das
procissões. O único mobiliário urbano civil, sem referência direta ao sagrado, era o tronco. Ele possuía
as mesmas funções do pelourinho nas aglomerações civis. Não existia casa de câmara, uma vez que
o aldeamento não era nem vila nem cidade, ainda que fosse dotado de uma forma de administração
civil, assegurada pelos índios.35 A ausência da casa de câmara reforça o caráter sagrado da missão,
pois nela a igreja era o único edifício verdadeiramente importante.
Como mencionamos, as regras gerais descritas comportavam algumas variantes. Nas missões jesuítas
e franciscanas, o cemitério se situava atrás da igreja; nas dos religiosos do Carmo, ele se encontrava

aldeamentos. CARVALHO, José Antônio. O Colégio e as residências dos jesuítas no Espírito Santo. Rio de Janeiro
: Expressão e Cultura, 1982, pp. 19-21. Nas missões, a residência se confunde, por suas características de
localização, com o termo hospício ou convento. Na realidade, todas estas expressões servem para designar a
habitação dos missionários, situada ao lado da igreja.
30 Segundo o nível de evolução atingido pela missão, ela podia dispor de outros edifícios, como padarias, oficinas

diversas e uma escola de música. As reduções possuíam uma casa para viúvas, anciãos, e para as mulheres que
haviam cometido delitos.
31 BARBOSA, Bartira, op. cit., p. 42.
32 um lote de terra por família era destinado à agricultura familiar nas reduções jesuítas e franciscanas. No caso

das missões não subordinadas à encomienda, o setor comunitário dispunha de uma porção de terra destinada à
produção de víveres e de gado para a comunidade. Esta terra atendia, além disso, às despesas ligadas ao culto e
aos tributos devidos ao rei. A economia da redução incluía o Tupambaé ou “coisa de Deus”, onde tudo era
produzido e gerido pela coletividade, sob as ordens dos jesuítas. A terra comunitária, regulamentada pela
legislação colonial, respeitava uma tradição indígena. O gado era geralmente comunal. ESTRAGÓ, Margarita, op.
cit., p. 526; HAUBERT, Maxime, op. cit., pp. 17, 204, 209.
33 O aldeamento era caracterizado tanto pela concentração em torno da igreja, quanto pela dispersão. Os índios

ficam dispersos nas proximidades e mesmo mais distante, provavelmente por uma razão cultural. Mesmo na
dispersão, havia quase sempre um núcleo urbano. Nesta estudo, outras características das missões são
reforçadas. Assim, o hospício ou residência dos padres se situa ao lado da igreja. Uma cerca protegia os lotes dos
indígenas do gado. Estas terras destinadas à plantação circundavam o aldeamento. PETRONE, Pasquale, op. cit.,
pp. 223-231.
34 PETRONE, Pasquale, ibid., pp. 233-239. Vide igualmente os figuras 7a a 7e.
35 No que se refere às reduções, elas dispunham de uma casa destinada ao cabido, que exercia funções

semelhantes.

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Rubenilson B. Teixeira E4.A1 – O espaço urbano dos aldeamentos do RN

na outra extremidade da praça, em frente do edifício religioso. 36 A cruz situada em meio à praça podia
ser acompanhada de outras cruzes, colocadas nos quatro cantos deste espaço central. As diferenças
mais visíveis aparecem nas reduções. Na maioria delas, a igreja e a residência ocupavam um dos lados
mais longos do retângulo que formava a praça. As ruas eram muito regulares, com traçado ortogonal
(vide figura n° 1g, p. 10). As reduções franciscanas podiam dispor a igreja e outras edificações que a
acompanhavam no meio do espaço central.37 Contudo, não se deve superestimar as diferenças, mesmo
no caso das reduções. Visitantes destas últimas, no século XVIII, constataram que a semelhança entre
elas era tal que “quem viu uma, as viu todas". 38 Elas não alteravam, portanto, o agenciamento geral,
muito repetitivo, independentemente da ordem, do tempo e do lugar, notadamente no caso dos
aldeamentos. Um espaço assim concebido não era provavelmente fortuito, porque procurava efeitos
próprios à sua função evangelizadora. Retomaremos este ponto essencial.
Devemos expor neste momento algumas considerações sobre o aldeamento enquanto intenção de
projeto arquitetônico e urbanístico, principalmente em relação aos agentes que o concebiam e o
executavam. É evidente que a repetição das características essenciais das missões resultava de um
projeto, às vezes exclusivamente mental, pois estava alicerçado na experiência. Ao que parece, a
primeira regulamentação da forma urbana dos aldeamentos foi fornecida pelo Regulamento do jesuíta
Antônio Vieira, por volta de 1660, oficializando, deste modo, experiências anteriores, que já eram
inúmeras. Sem fornecer detalhes, suas orientações tocam em alguns pontos essenciais: se a missão
dispõe de uma residência para os missionários – porque havia também as aldeias de visita, aquelas
que os padres visitavam regularmente, sem nelas morar – ela ficaria situada ao lado da igreja, numa
disposição tal que pudesse permitir recolhimento e decência. É lembrado que nenhum sítio será
escolhido e nenhuma residência será erigida sem que o projeto seja primeiramente aprovado pelo
Superior da Colônia, que deverá por sua vez consultar os outros padres. Na medida do possível, “as
casas e as igrejas serão conformes". As residências possuem cercas que garantam a separação e a
privacidade dos padres em relação aos índios, algo que é sempre muito recomendado. São igualmente
as autoridades superiores da ordem que decidirão se uma missão determinada pode ou não dispor de
um hospital e de uma enfermaria para tratar dos índios, que também deverão se localizar ao lado da
residência.
Vieira destacou a importância da casa de hóspedes, construída igualmente nas dependências da
residência. Somente os religiosos ou “seculares” de alta posição podem vir à missão. A escola para as
crianças deve igualmente fazer parte do conjunto do qual a residência é o edifício principal. Outros
elementos dos aldeamentos são simplesmente citados, e nós pressupomos sua existência. É o caso
da igreja, evidentemente, que deve ser sempre dotada de um batistério, da mesma forma que a praça
central, o cemitério, e os lotes destinados à plantação. Observamos uma hierarquia semelhante à das
igrejas das aglomerações civis no que diz respeito aos enterros que ocorrerem no recinto da igreja. 39
Somente os chefes indígenas serão enterrados no altar-mor40; na nave serão enterrados índios da
mesma nação e no pátio exterior, os escravos. Quando um padre, durante sua vida, tiver declarado
querer ser enterrado “no meio daquelas cujas almas veio buscar”, ele será sepultado perto do altar. Os
religiosos serão colocados num caixão, sempre que possível, e receberão as cerimônias necessárias. 41
É fácil compreender por que Vieira não fornece mais detalhes sobre a forma urbana do aldeamento,
em seu Regulamento. Na realidade, não era necessário, porque sua planta e seus edifícios eram
bastante conhecidos por todos, notadamente pelas autoridades eclesiásticas superiores, encarregadas
de os autorizar. Os jesuítas escreviam para pessoas que conheciam sua maneira de construir e sabiam
como deviam ser suas edificações. Bastavam algumas informações essenciais, porque o resto

36 BARROS, Clara, op. cit., pp. 56-57.


37 ESTRAGÓ, Margarita, op. cit., p. 524.
38 Frase que aparece em várias publicações sobre as reduções. Vide, por exemplo, VIÑUALES, Graciela María.

Las Missiones jesuíticas del área guarani : um urbanismo alternativo. In : Estudios sobre Urbanismo
Iberoamericano. Siglos XVI al XVIII. Sevilla : Tf Artes Gráficas, 1990, p. 340.
39 Como nas aglomerações civis, o cemitério e a igreja formam uma unidade. Clara Barros analisou a significação

medieval das palavras igreja, pátio ou atrium. Ela demonstra que eles se referiam igualmente ao cemitério. Esta
relação foi aliás preservada em inglês, no termo churchyard. BARROS, Clara, op. cit., p. 57.
40 Ou, como ele afirma, além da grade.
41 Todos os padres que Vieira consultou para escrever suas disposições estavam dispostos a serem enterrados

junto aos índios. LEITE, Serafim. História … tomo IV, pp. 105-124.

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Rubenilson B. Teixeira E4.A1 – O espaço urbano dos aldeamentos do RN

resultava da dedução.42 As orientações em questão demonstram antes de tudo o poder que a Igreja
exercia sobre a concepção e sobre o agenciamento do espaço urbano do aldeamento. Este poder é
ainda mais evidente do que no caso das aglomerações não-indígenas. A este respeito, Manuel Teixeira
afirma:

“Uma influência importante no urbanismo colonial português foi a dos jesuítas


… A ação urbanízadora dos padres jesuítas terá também influenciado a teoria
e a prática urbanística portuguesas e constitui uma referência importante para
a compreensão dos traçados regulares das cidades portuguesas no Brasil …
[no caso das reduções, a ação urbanizadora deve ser] entendida de forma
literal, tendo sido eles que efetivamente planearam e construíram estas
aldeias, traçadas nos séculos XVII e XVIII segundo princípios racionais e
geométricos”43

O autor não faz, entretanto, qualquer referência a outras ordens religiosas que também
desempenharam um papel não desprezível neste sentido, mesmo que menos evidente do que o da
Companhia de Jesus, da qual sofreram, aliás, forte influência. De qualquer modo, eram quase sempres
os missionários – representantes diretos das ordens religiosas e da Igreja - que exerciam a função de
arquitetos construtores dos aldeamentos, espaços sagrados por excelência. Sua influência neste
domínio era, assim, ainda mais visível do que nas outras aglomerações. Reunimos vários exemplos
destes padres “arquitetos e urbanistas” em todo o Brasil desde o século XVI.
Alguns autores pesquisaram as origens da forma urbana das missões e das reduções.44 O certo é que
o aldeamento é antes de tudo um espaço pleno de significados, sejam eles em sua dimensão ideológica
ou em sua dimensão formal, que são evidentemente intrínsecos. Já fizemos referência aos valores
ideológicos da missão, enfatizando primeiramente o próprio uso destes espaços, com suas alegorias e
símbolos, suas festas e atividades cotidianas. Da mesma maneira, alguns elementos materiais
mencionados, relacionados à sua forma urbana, possuem uma dimensão ideológica. É o caso da
separação do terreno e a escolha do sítio ou a oposição a alguns elementos do habitat indígena, como
a casa comunitária.
Alguns itens da organização espacial do aldeamento demonstram seu valor sagrado, que poderíamos
igualmente chamar de barroco, em sua intenção de emocionar, de tocar os espectadores, notadamente
os índios.45 Deste modo, a igreja ocupava o centro do núcleo e, quando o terreno era inclinado, ela era
se localizava sobre a elevação. As casas, alinhadas sobre os dois ou três outros lados da praça,
dirigiam o olhar de quem chegava em direção à igreja e a sua residência. Este conjunto podia ser
algumas vezes composto de outras construções. Freqüentemente, a principal estrada de acesso era
perpendicular à igreja, do outro lado da praça. Esta última podia comportar cruzeiros ou uma imagem
para marcar a entrada do lugarejo. Quando os cruzeiros ficavam dispostos nos lados, eles serviam de
estações para as procissões que, para alguns povos indígenas, se adaptavam muito bem a algumas
de suas práticas religiosas anteriores. Na extremidade de cada fila de casas que acompanhava a praça,
algumas missões possuíam uma capela, igualmente útil durante as procissões. A praça central era
cercada de casas que possuíam freqüentemente varandas, de onde os índios, ao mesmo tempo atores
e espectadores dos espetáculos, sagrados e profanos, assistiam e participavam das festividades. Estes

42 José Antônio Carvalho acrescenta que desde a segunda congregação geral, em 1565, foi decidido que todos
projetos arquitetônicos deviam ser aprovados por Roma. Às vezes, era enviado um esboço do sítio onde deveria
ser construído o edifício, e o projeto era executado. CARVALHO, José, op. cit., p. 28.
43 Além do mais, o ensino da geometria, da matemática, da arquitetura, da engenharia militar e da fortificação

realizado pelos jesuítas nos colégios influenciou diretamente a formação teórica dos engenheiros militares
portugueses. TEIXEIRA, Manual C., VALLA, Margarida. O Urbanismo português. século s XIII-XVIII. Portugal-
Brasil. Lisboa : Livros Horizontes, 1999, pp. 222-223.
44Assim, várias influências são sugeridas, desde Vitruvius, Thomas de Aquino às Ordenanças da Poblacion de

1573 ou as Leyes de las Indias. A longa experiência dos espaços urbanos portugueses planejados que remontam
à Idade média também é considerada. Vide, entre outras publicações, BARROS, Clara, op. cit., pp. 43-44, 53;
TEIXEIRA, Manual, ibid.
45 Não se trata, no entanto, de ver na utilização deste termo sinônimo de ostentação ou de luxo, termos que não

se aplicavam às missões em geral.

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Rubenilson B. Teixeira E4.A1 – O espaço urbano dos aldeamentos do RN

elementos foram particularmente explorados nas reduções, mas nós encontramos variantes deles em
todo o Brasil.46
Clara Barros, em seu estudo do aldeamento São Fidelis, no Rio de Janeiro, afirma que espaço físico
desta missão manifestava a sacralização segundo uma forma alegórica que lembrava uma cruz: a igreja
corresponde ao altar: as igrejas laterais, cada uma diante de uma fileira de casas, os altares laterais; a
nave corresponde à grande praça ou pátio central; o transepto corresponde ao espaço entre a igreja e
as casas comunais com suas varandas (vide figura n° 1h, p. 10). O espaço é criador e regulador de
comportamentos, tanto no nível social quanto econômico.47 Efetivamente, o que nos surpreende no
fenômeno das missões, é que o espaço é inteiramente planejado. Nada é deixado ao acaso. Era
intencional a tentativa de criar um espaço cristão que, para alguns autores, devia prefigurar uma
sociedade alternativa, uma verdadeira utopia. Tal projeto iria, em última análise, contra a sociedade
que o tinha criado.48
As considerações relativas à forma urbana dos aldeamentos e aos valores que lhe são associados
encontram igualmente sua plena significação no caso das missões do Rio Grande. Estas seguem o
“modelo urbano” descrito. A exemplo de vários outros estudos relativos às missões, é verdade que, no
Rio Grande, documentos que identificariam os significados do espaço urbano inexistem. Entretanto,
podemos facilmente deduzi-los a partir da própria forma dos aldeamentos analisados que, até o que
nos foi possível verificar, seguem à risca as características formais expostas. 49 Para demonstrá-lo, nós
vamos agora fazer apelo a documentos da época, assim como a estudos contemporâneos. Vamos nos
dedicar a três aldeamentos de nosso projeto – Guajiru, Mipibu e Gramació, para os quais há uma maior
disponibilidade de dados.
Uma das descrições mais antigas dos aldeamentos do Nordeste do Brasil foi-nos legada por Zacarias
Wagner, um cronista do Brasil holandês:

“As povoações dos brasilienses são construídas com muita ordem, e cada
aldeia consta geralmente de duas extensas filas de casas de palha, tendo no
centro uma igreja baixa, na qual, três vezes por semana, se devem reunir os
moradores para serem instruídos na doutrina cristã, em língua portuguesa,
por pessoas para este mister nomeadas; igualmente para cada aldeia
designam os nossos um chefe … em cada aldeia contam-se, entre homens,
mulheres e crianças, pelo menos de 700 a 800 almas” 50

As aldeias indígenas dos Potiguaras não conheceram grandes intervenções da parte dos missionários
no segundo século da colonização, tendo em vista a natureza das missões nesse período, que eram
volantes ou itinerantes. As primeiras transformações espaciais se limitavam ao que havia de essencial.
Assim, cruzes foram fixadas em várias aldeias do Rio Grande já na época da fundação de Natal pelo
padre Francisco Pinto, a pedidos dos próprios índios, segundo ele. 51 Trata-se, aliás, de uma ação
simbólica de profundo significado. Afinal de contas, tudo devia começar pela cruz. Algumas aldeias já
possuíam uma igreja desde o início do século XVII, provavelmente um edifício muito precário. 52 Guajiru

46 um bom exemplo de uma análise das reduções enquanto espaço urbano barroco se encontra in VIÑUALES,
Graciela, op. cit., pp. 325-355.
47 BARROS, Clara, op. cit., p. 85, 100.
48
GUTIERREZ, por exemplo, as considera como uma utopia religiosa que não podia subsistir face às contradições
que elas representavam para o sistema. GUTIERREZ, Ramón. Arquitetura latino-americana. São Paulo : Nobel,
1989, pp. 90-93. Algumas destas idéias constituem, contudo, um exagero da realidade segundo HAUBERT,
Maxime, op. cit., pp. 22-23.
49 Se a análise de certas características atuais das cidades do projeto o atestam igualmente, não é nosso propósito,

no momento, partir do presente para verificar o passado.


50 FILHO, Olavo. índios …, op. cit., p. 79. O cronista holandês se referia talvez aos aldeamentos holandeses,

porque os invasores batavos tentaram igualmente evangelizar os nativos. Os novos conquistadores permitiram,
por outro lado, a permanência dos aldeamentos portugueses, em certas situações.
51 LEITE, Serafim, História … Tomo V, op. cit., pp. 505-506.
52 A carta régia de 4 de junho de 1703 confirma que as igrejas das missões não passavam inicialmente de uma

“pobre cabana".

14
Rubenilson B. Teixeira E4.A1 – O espaço urbano dos aldeamentos do RN

dispunha de uma desde 1612.53 Temos informações sobre esse edifício ao longo de todo o século
XVII.54
Mencionamos que os aldeamentos do Rio Grande nasceram todos no mesmo local ou próximo de uma
aldeia pré-existente. É obviamente difícil, senão impossível, saber, a partir dos dados atualmente
disponíveis, se todos os aldeamentos foram erigidos no mesmo sítio das antigas aldeias. Quando este
foi o caso, como em Gramació, a formação do aldeamento levou certamente à demolição total ou
parcial da aldeia anterior. De qualquer modo, os primeiros aldeamentos, que tomaram forma
notadamente na segunda metade do século XVII, eram precários. Uma carta que tratava da
administração dos capitães-mores dos índios, datada de 28 de setembro de 1675, o confirma. Ela faz
referência a um comentário de um deles, segundo o qual, na capitania, “as aldeias não são mais do
que três, e todas muito limitadas …". 55 Acreditamos que a observação se referia às missões,
provavelmente ainda volantes, de Guajiru, Mipibu e Guaraíras, as mais antigas. As limitações destas é
reafirmada em 1681, ano em que a Junta das Missões ordenou a reunião de Mipibu a Guaraíras, como
vimos. Esta precariedade se explica igualmente pelas agitações por que passaram durante a guerra
dos Bárbaros.
A guerra acarretou conseqüências na arquitetura das primeiras missões. Uma carta do senado da
câmara de janeiro de 1688 informa o governador geral do Brasil que uma casa forte tinha sido
construída na missão de Guajiru. Pela mesma razão, uma outra casa forte foi erigida em Mipibu.56 Estes
edifícios são mais uma prova da função militar, notadamente de proteção de Natal, destas primeiras
missões.
É provável que em 1689 Guajiru já havia adquirido o plano tradicional de um aldeamento, porque os
missionários jesuítas ali se haviam fixado de maneira definitiva desde 1681. Através da carta do reitor
de Olinda, Pedro Dias, em 1689, sabemos, por exemplo, que Guajiru possuía, além da igreja, a
residência dos missionários.57 Da mesma maneira, Pedro Carrilho de Andrade, aludindo às missões da
capitania, entre 1687 e 1688, nos leva a supor que a planta dos primeiros aldeamentos, como o de
Guajiru, estava parcialmente definida. 58 No entanto, esta missão se estabeleceu verdadeiramente ao
longo da primeira metade do século seguinte. Sua população, que atingia 250 habitantes 59 no início do
século XVIII, era superior a 1000 índios em 1759. Era mais populosa do que Natal, na mesma época.
É provável que a igreja e a residência de 1689 tinham sido substituídas por outras, mais estáveis,
durante o século XVIII. Os habitantes constróem uma igreja monumental, em estilo barroco, assim
como a residência dos padres, situada, de acordo com as normas, ao lado da igreja. 60 A igreja e a
residência foram construídas em pedra. A pedra-lioz – minuciosamente trabalhada, proveniente de
Portugal, foi utilizada para a construção da igreja, que media 16 metros de altura por 30 metros de
comprimento (figura n° 2). Estas duas edificações, provavelmente construídas sob a direção do padre
jesuíta Gaspar de Lima, demonstram a força e a estabilidade adquiridas pela missão. Infelizmente,
hoje, só restam ruinas.61

53 CASTELLO BRANCO, José Moreira Brandão. O Rio Grande do Norte na cartografia do século XVII.
RIHGRN,1951-1952, vol. XLVIII-XLIX, p. 36.
54 A cartografia holandesa indica a missão com sua igreja. Um outro documento holandês datado de 23 de

setembro de 1641 faz referência à igreja de Guajiru. Johannes Listry, encarregado de inspecionar as aldeias,
menciona que os índios estavam construindo uma igreja. Os naturais solicitam e obtêm das autoridades
holandesas a autorização para que a igreja conserve o nome São Miguel. CASTELLO BRANCO, José, ibid., p. 63;
FILHO, Olavo. Aconteceu …, op. cit., p. 111.
55
AHU_ACL_CU_018, Cx. 1, D. 15. Havia mais de três situadas no litoral à época. No entanto, é certo que o termo
“aldeia”, citado no documento, se refere às visitadas pelos missionários jesuítas. Tratava-se provavelmente de
missões volantes.
56 MARIZ, Marlene, op. cit., p. 114.; BARBALHO, Gilberto, op. cit., p. 34.
57 LEITE, Serafim, História …, Tomo V, op. cit., p. 532.
58 Segundo ele, os índios das missões possuem suas casas e suas aldeias, choupanas e lugares fixos. Eles se

servem de suas plantações, ainda que todos pratiquem a caça. LIRA, A., op. cit., p. 121.
59 LEITE, Serafim, História … Tomo V, op. cit., p. 534.
60 Não sabemos em qual momento a igreja e a residência, de pedra, foram construídas. Por outro lado, nós temos

notícia de que esta igreja era de pedra desde pelo menos 1727. Ela foi concluída em 1755. FILHO, Olavo. Terra
…, op. cit., p. 40; CASCUDO, Luís, História do Rio …, op. cit., p. 111.
61Aas razões desta destruição serão analisadas posteriormente neste trabalho.

15
Rubenilson B. Teixeira E4.A1 – O espaço urbano dos aldeamentos do RN

Figura n° 2. A igreja de antigo aldeamento Guajiru, com sua residência lateral.


Esta figura tem por base uma foto do início do século XX. Fonte: IHGRN (Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte).

O sítio de Guajiru é típico de uma missão: Guajiru se encontra em terreno elevado, próximo da lagoa
Extremóz, que forma uma grande bacia. Uma passagem subterrânea ligava a igreja à lagoa,
provavelmente um caminho de fuga em caso de urgência. 62 O convento ou a residência, que não
dispunha de claustro, abrigava, além da moradia dos padres, a despensa, o depósito de viveres, o
depósito de armas e a escola. Câmara Cascudo descreveu em detalhe a igreja e a residência de
Guajiru.63Um relatório que dava conta da situação da missão em 1760, ano de sua elevação à categoria
de vila, foi citado pelo mesmo autor, nestes termos:

“Em São Miguel de Guajiru os jesuítas tinham feito, com tantos anos de
permanência, trabalho fecundo e alto. Quilômetros de lavouras mantinham a
população farta e tranqüila. Havia 1 429 habitantes em 319 casas, 147
rapazes estudavam, 63 moças aprendiam a fiar, tecer e coser. Oito moços
exercitavam-se em vários ofícios. Disciplinados, os indígenas estavam
distribuídos em sete companhias num total de 350 homens. Apenas 15
escravos viviam. Gado, cavalos, eram pastoreados e serviam na tração. Aos
domingos e dias santificados, bailes indígenas, com tambores e cantos,
iluminados na praça por paus resinosos … Em 1755, eles tinham concluído a
igreja, alta e nobre, o mais lindo templo barroco da capitania … a cruz que
encimava a cimalha... foi posta no pátio e substitui-o, tal a sua proporção …”64

Ele continua sua descrição mencionando outros elementos do aldeamento, já citados. O hospício foi
erigido em meio à praça para receber os viajantes pobres. Ele serviu, mais tarde, de prisão à vila de
Extremóz. O convento era situado ao lado da igreja, servindo de habitação. 65 A missão possuía várias
estátuas de santos, que foram lançados na lagoa em data ignorada, e encontradas no início do século
XX. Entre outros edifícios, a missão possuía dois estábulos de bovinos próximo da atual localidade de
Fátima. Ela dispunha de casas para a fabricação da farinha tanto em seu espaço interior quanto na
“Cidade dos Veados” e em Genipabu.66 Todas estas características correspondem perfeitamente às
descritas para os aldeamentos em geral.
A missão de Mipibu, situada a 34 km ao sul de Natal, constitui o segundo exemplo. Mipibu é a maior
das cinco ou seis aldeias indígenas do litoral em 1630, segundo o relatório do espião holandês Adriano

62 Em Guarairas, havia igualmente uma passagem deste tipo, unindo a igreja à lagoa.
63 CASCUDO, Luís, A igreja de Extremóz (?). In : Natureza e História … op. cit., pp. 351-353.
64 CASCUDO, Luís, História do Rio …, op. cit., p. 111.
65 O autor estabelece, neste caso, uma distinção entre convento e hospício, termos que aparecem como sinônimos

em vários documentos. A palavra hospício significava um pequeno convento, como vimos. Nos aldeamentos, ele
era sinônimo de residência.
66 SILVA, Maria, op. cit., pp. 11-12.

16
Rubenilson B. Teixeira E4.A1 – O espaço urbano dos aldeamentos do RN

Verdonck. Em 1633, os jesuítas já exerciam missões volantes no local. 67 Em 1681, quando o trabalho
missionário jesuíta retoma de maneira mais estável, ordena-se a reunião da missão Mipibu à de
Guaraíras. Em 1689, o vale do rio Mipibu, no qual habitam vários colonos, possui uma capela.
Aparentemente, segundo o documento que fornece esta informação, os jesuítas não se encontravam
mais na região, talvez por causa da transferência da missão para o sítio de Guaraíras, mais ao sul.68
De qualquer modo, amissão Mipibu ainda se encontrava nesta região em 1703. Ela se situava então
em um lugar denominado Papari, onde havia a igreja de Nossa Senhora do Ó. Na época, a missão
abrigava 37 casais de índios. Ela será transferida para um outro sítio a 3 km de distância, sobre uma
colina, em 1736 ou 1740. Sabemos que em 1713, quando a missão Mipibu se situava ainda em Papari,
suas casas eram construídas com madeira de Carnaúba, uma planta da região.69 Após o deslocamento
da missão, foi erigida uma nova igreja. Ela foi concluída em 1746, na época do missionário capuchinho
Juvenal de Albano, que tinha continuado o trabalho de seus antecessores, Mauro de Lessano e João
Crisóstomo de Gênes. A igreja tinha sua residência lateral.70 Os dois sítios conhecidos da missão, em
Papari ou na colina sobre a qual se encontra hoje a cidade de São José de Mipibu, mantêm as mesmas
características dos sítios escolhidos paras os aldeamentos em geral, já enunciadas. Isto é
particularmente verdadeiro no último caso (vide foto n° 1).

Foto n° 1. O sítio elevado do centro da cidade atual de São José de Mipibu.


Ao fundo, as duas torres da igreja matriz.

Antes da chegada de Annibal de Gênova, as informações sobre o espaço urbano e os edifícios desta
missão são raras. Felizmente, o missionário nos legou uma descrição, sucinta mas bastante reveladora,
de sua forma urbana:

“A aldeia é situada numa colina … a 7 léguas da cidade de Natal … A uma


meia légua da aldeia se encontra uma paróquia, denominada Nossa Senhora
do Ó … onde habita um cura. Esta aldeia foi erigida sob a direção de nos
missionários, como uma praça de armas, as casas sendo reunidas à maneira
de um quartel de soldados. A aldeia se encontra num platô muito grande, e
as casas dos oficiais são situadas nos cantos e bem mais altas do que as
outras, com duas portas uma ao lado da outra … há uma única igreja de uma

67 FILHO, Olavo. Aconteceu …, op. cit., p. 81.


68 Uma carta do senado da câmara de 22 de janeiro 1689 endereçada ao governador e ao bispo de Pernambuco
declarava que havia uma capela num lugar conhecido como Mipibu. Lá eram administrados sacramentos aos
moradores do vale. Por causa da guerra, estes não podiam mais batizar seus filhos nem ir à missa. Eles não
dispunham mais de padre e não podiam pagar pelos seus serviços. Eles também não podiam mais ir até os padres
da Companhia, situados a 5 léguas de distância. Os oficiais requeriam portanto às duas autoridades para que
fizessem vir um padre, se possível Bento Ribeiro. O pároco já tinha trabalhado entre eles, e estava bastante
disposto a retornar. MARIZ, Marlene, op. cit., p. 117.
69 FILHO, Olavo. Aconteceu …, op. cit., p. 84.
70 FIDELIS, M., op. cit., p. 173.

17
Rubenilson B. Teixeira E4.A1 – O espaço urbano dos aldeamentos do RN

só nave, bastante grande e bem fornecida de paramentos necessários e


muito decente. A aldeia é constituída de 250 famílias de índios que obedecem
e são subordinados ao missionário assim como ao cura. [Entre os índios], um
é escolhido como capitão-mor. Ele recebe a patente do capitão-mor do Rio
Grande, que habita em Natal, ou ainda dois capitães ou mais, com seus
oficiais subordinados, que comandam suas Companhias respectivas …” 71

CHAMPS ET AUTRES MAISONS ENVIRONNANTES

L’EGLISE
LA CROIX

LE TRONCO

POTAGER COUR LA MAISON DU MISSIONNAIRE

LES MAISONS DES OFFICIERS LES MAISONS DES FAMILLES

Figura n° 3. Esquema do aldeamento Mipibu.


N.B. Esta figura é uma suposição a partir da descrição sucinta apresentada por Anibal de Gênova, assim como a
partir de outras fontes. Desenho sem escala.

O missionário acrescenta que ele tem o direito de destituir os índios destes postos quando eles não
cumprem suas obrigações, ou não se comportam como convém. Confirmando a função militar dos
aldeamentos, sua missão possui duas Companhias de 140 homens cada uma, que efetuam muito bem
os exercícios militares. Além do mais, o espaço é extremamente controlado, sendo concebido como
uma praça de armas, expressão militar.72 Tratava-se certamente de um espaço retangular. Annibal
lembra igualmente o papel, assumidos pelos padres, de arquitetos e de urbanistas destes pequenos
núcleos urbanos ao alegar que a missão “foi erigida sob a direção de nossos missionários". Ainda que
ele não forneça detalhes sobre o agenciamento urbano das casas e da igreja, nós podemos facilmente
conjecturá-lo, a partir das inúmeras evidências históricas já apresentadas. A igreja, “bastante grande”,
devia ficar situada entre duas filas de casas, no final das quais se encontravam as casas dos oficiais,
“mais altas do que as outras". Ele não menciona sua residência, nem o quintal. Estes elementos
existiam, contudo, segundo outros trechos deste mesmo documento que vamos explorar no final deste
capítulo (vide figura n° 3 acima).
O terceiro e último exemplo diz respeito ao aldeamento de Nossa Senhora do Desterro de Igramació
ou Gramació. Religiosos do Carmo possuíam terras na região desde o século XVII. Todavia, uma das
primeiras referências àquela que era provavelmente a missão Gramació data de 1704. Naquele ano,
os jesuítas Filipe Bourel e Manuel Diniz transferiram uma parte dos Paiacus da missão Apodi para a
nova missão de Nossa Senhora da Encarnação, nas proximidades de Cunhaú, situada no litoral. Nós
não sabemos absolutamente nada do estado da missão ao longo das três primeiras décadas do século
XVIII, pela ausência de fontes documentais. Os dados coletados aparecem a partir dos anos 1730,
precisamente na época em que Gramació começa a prosperar sob a direção dos religiosos do Carmo.

71GÉNOA, Annibale, op. cit.pp. 13-14.


72a “praça de armas” é um espaço situado no interior de uma cidade ou de uma fortaleza no qual os militares se
reúnem para ouvir as ordens de seus superiores. O termo se refere igualmente a uma cidade ou fortaleza onde
são preservadas as armas da província. Uma praça de armas num arraial corresponde a um grande terreno onde
se praticam a infantaria e a cavalaria. Uma praça forte é uma cidade fortificada. BLUTEAU, de Raphael, op. cit.,
pp. 665-666.

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Rubenilson B. Teixeira E4.A1 – O espaço urbano dos aldeamentos do RN

Uma primeira referência importante que recolhemos se encontra numa lista de informações
concernente à capitania do Rio Grande, fornecida ao juiz Jorge Valter de Mendonça. O juiz queria
saber, entre outras coisas, se o capitão-mor tinha posto fogo (sic) em duas aldeias, uma no vale do
Assu, a outra no vale de Cunhaú. Além do mais, ele perguntava “se os índios estavam (reunidos) sob
forma de aldeia”. O documento, que não é datado, acompanha vários outros dos anos 1730. 73

Foto n° 2. A igreja de Nossa Senhora do Desterro da antiga missão de Gramació.

Dois documentos inéditos concernentes à solicitação de construção de uma igreja em Gramació nos
fornecem informações fundamentais sobre esta missão. O frei Caetano do Rosário, religioso da
Reforma de Nossa Senhora do Carmo em Pernambuco, missionário de Gramació, escreve ao rei no
intuito de solicitar uma ajuda financeira para a construção de uma nova igreja para a missão. A igreja
seria erigida “de madeira taipada com terra e aberta em porta“. Esta missão, “moderna” segundo ele,
era composta de índios muito pobres, e a igreja era necessária para os ofícios religiosos. Ele solicita
igualmente uma ajuda para comprar um sino “com que chame os índios à igreja". O missionário conclui
esperando que o rei seja bondoso em atendê-lo, “pelo amor de Deus". Esta carta data provavelmente
de 1731 pois, em janeiro de 1732 o capitão-mor João de Barros Braga corrobora a petição do padre. O
capitão-mor, baseando-se em suas atividades de visita de correição nas missões, acrescenta outras
informações essenciais sobre Gramació. Ele sublinha que ela é habitada por índios fugitivos de outras
missões, sendo “muito populosa".
Ele acrescenta que têm “os ditos índios todas as conveniências que se requer, tanto para suas plantas,
por estarem os matos anexos a mesma aldeia, contíguos (sic) a ela, como por ficarem perto do mar,
onde fazem suas pescarias". Como militar, o capitão-mor reconhece a importância da manutenção da
missão em função do lugar estratégico que ela ocupa, perto de um porto natural onde os inimigos vêm
se instalar. A missão pode, portanto, servir de posto avançado contra os intrusos. Além do mais, os
índios carregam as embarcações de pau Brasil, que é em seguida transportado para Pernambuco. Por
este motivo, é “vital” que o rei socorra a missão, fazendo construir uma nova igreja tendo em vista o
estado de ruína da precedente, que ameaça desabar bruscamente. Ele jura pelos “santos evangelhos”
a veracidade de suas afirmações. As outras cartas que constituem este dossier, do senado da câmara,
do pároco da igreja de Nossa Senhora da Apresentação, Manoel Correia Gomes, e do provedor da
fazenda real, Domingos da Silveira, confirmam as necessidades da missão, ao mesmo tempo em que
elogiam o missionário, que realiza um bom trabalho nos campos espiritual e temporal, entre outros
louvores. O Conselho Ultramarino propõe ao rei a soma de 400 000 réis para a reparação e os
paramentos da capela.74
A exemplo dos outros aldeamentos já estudados, Gramació exercia uma função militar. Como Natal,
ele não cumpre mais a função de defesa contra os “gentios” do interior, mas de posto avançado contra
os inimigos estrangeiros que podiam desembarcar no litoral. A missão é bem povoada e dotada de tudo
o que é necessário para seus habitantes. A igreja, chamada Nossa Senhora do Desterro, somente foi
efetivamente construída entre 1743 e 1745. Posteriormente, em 1754, uma outra petição é endereçada
ao rei. O padre Manuel da Purificação afirma ter mandado construir a nova igreja da missão de

73 AHU_ACL_CU_018, Cx. 3, D. 211.


74AHU_ACL_CU_018, Cx. 3, D. 185.

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Rubenilson B. Teixeira E4.A1 – O espaço urbano dos aldeamentos do RN

Gramació graça às esmolas. Os índios, muito pobres, não tinham meios de adquirir os paramentos e o
sino da torre, necessários “aos ofícios e às festas da igreja". O missionário se dirige ao rei para lhe
solicitar a contribuição de uma esmola para estas aquisições.

Foto n° 3. A igreja de São João Batista, da antiga missão de


Guaraíras (Arez).

Foto n° 5. A igreja de Nossa Senhora da Conceição e São João


Batista, da antiga missão Apodi (Apodi). Foto n° 4. A igreja de Nossa Senhora de Santana, da antiga
missão Mipibu (São José de Mipibu).

O capitão-mor Pedro Albuquerque de Melo, endossando a petição do missionário em sua declaração


de 14 de fevereiro de 1754, afirma que o mesmo mandou construir, com muita disposição e zelo e com
a ajuda de esmolas, o edifício em questão. Segundo o capitão-mor, trata-se de uma igreja “suntuosa,
que creio ser a melhor da capitania".75 O capitão exagera. Este edifício, que ainda está de pé em nossos
dias, se assemelha mais a uma capela, sendo bem menor do que as igrejas de Guajiru, Mipibu, Apodi
e Guaraíras, todas construídas entre 1679 e 1755 (vide as fotos n° 2 a 5, acima e a figura n° 2, p. 16).
Estas igrejas foram todas, num primeiro momento, capelas precárias de madeira e barro.
Nas duas petições, observa-se a necessidade de se obter um sino para a igreja. O sino cumpre o papel
fundamental de marcar as atividades da missão, as missas cotidianas ou as festas. Os documentos
citados nos levam a crer que a missão era relativamente importante, tendo uma população bastante
grande, algo que se confirma pelas informações obtidas através das escavações efetuadas na ocasião
de um projeto arqueológico realizado no sítio da antiga missão. Paulo Tadeu Albuquerque, que dele
participou, apresenta os resultados deste trabalho em seu estudo, que serviu de base para as
considerações que serão desenvolvidas de agora em diante. Elas seguem a planta da figura n° 4, p.
22.76
A planta do aldeamento correspondia à “planta tradicional” das missões. A igreja se localizava diante
de uma longa praça retangular, nos dois lados longitudinais da qual, partindo da igreja, formavam-se
duas fileiras de casas, que se estendiam por 42 metros. A fileira do lado esquerdo da fachada da igreja
se encontra hoje no interior da praça da atual cidade de Vila Flor. As escavações puseram à luz ruínas

75
AHU_ACL_CU_018, Cx. 6, D. 382.
76
ALBUQUERQUE, Paulo Tadeu de Souza. A Faiança portuguesa dos séculos XVI a XIX em Vila Flor. Recife :
Mestrado em história, 1991, p. 35.

20
Rubenilson B. Teixeira E4.A1 – O espaço urbano dos aldeamentos do RN

de fundações de casas, erigidas com diferentes materiais, como a pedra, tijolos, terra e cal. O autor
considera, entretanto, que somente as fundações erigidas em pedra e cal pertencem à época do
aldeamento. Esta fileira está separada de uma outra fila de casas, paralela, que começa do lado direito
da igreja, correspondente a um dos lados da praça atual. As duas fileiras paralelas são separadas por
uma distância de 22 metros, correspondente à largura média da antiga praça. Não foram empreendidas
escavações nesta segunda fileira, ocupada atualmente por casas que formam a rua Clomácio
Calafange. É muito provável que esta fileira de casas alinhadas se situe no mesmo lugar da fileira
original, da época do aldeamento.
As escavações revelaram um plano muito regular. As ruínas das fundações da fileira da esquerda
formam dois quarteirões, separados por uma rua de 22 metros de largura, que é perpendicular à praça
central, praça que corresponde em nossos dias à rua Clomácio Calafange e que termina em frente da
igreja. Os dois quarteirões formados por esta rua perpendicular são por sua vez seguidos de dois outros
grupos de fundações. O conjunto das fundações corresponde a quatro quarteirões de casas antigas,
separados por duas ruas que se entrecruzam no meio em ângulo reto, formando os quatro quarteirões
em questão (vide as linhas verdes na figura n° 4). Dois quarteirões limitam a praça central diante da
igreja. Os dois outros estão situados atrás, separados dos primeiros por uma rua paralela à rua
Clomácio Calafange.

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Rubenilson B. Teixeira E4.A1 – O espaço urbano dos aldeamentos do RN

Figura n° 4. A planta da missão Gramació, sobre a cidade atual de Vila Flor.


A praça delimitada por casas, indicadas em marrom, assim como uma parte dos quarteirões de antigas casas
descobertas nas escavações (linhas verdes), datam de uma fase ulterior, provavelmente da época da criação
da vila. A figura foi concebida a partir das plantas 2 e 3, extraídas de: ALBUQUERQUE, Paulo, op. cit., pp.39,
45.

22
Rubenilson B. Teixeira E4.A1 – O espaço urbano dos aldeamentos do RN

É possível que esta configuração se


repita do lado direito da fachada da igreja,
começando pelas casas atuais que formam a
rua Clomácio Calafange, pelo fato de que o
aldeamento possui geralmente planta
simétrica. Não foram realizadas escavações
deste lado para o averiguar. Na eventualidade
desta outra parte não ter existido, e na de que
os quatro quarteirões sejam contemporâneos
da missão, então ela era provavelmente
formada por 100 casais de índios no mínimo,
tal qual exigido pelo alvará real de 1700. Os
quatro quarteirões em questão comportam
curiosamente 100 lotes, cada um tendo em
média 6 metros de largura por 30 metros de
comprimento. Por outro lado, é possível que os
100 lotes não correspondam todos a casas.
Alguns dentre eles podiam ser destinados a
edifícios comuns em uma missão, como as
oficinas. Além do mais, veremos
posteriormente que um certo número destas
casas pode datar de uma época posterior à
missão. Isto significaria que pelo menos em
parte, a regularidade da planta seja posterior.
As habitações são construídas em terra. As
únicas dentre elas que possuem fundações em
pedra estão na rua diante da igreja. Deste lado,
as fachadas são em tijolos, demonstrando
assim a proeminência da praça central, na qual
se localizavam as melhores construções. As
Foto n° 6. A cruz diante da igreja de Nossa Senhora
casas possuíam 14 metros de comprimento.
do Desterro, em Vila Flor.

Existem indícios de varandas situadas atrás de algumas casas, assim como de divisões internas.
A existência de uma primeira igreja anterior à que foi construída entre 1743 e 1745, citada nos
manuscritos estudados, é confirmada pelas escavações. O cruzeiro tradicional colocado diante da
igreja possui duas bases de duas épocas diferentes, a primeira das quais devendo pertencer a uma
primeira capela (vide foto n° 6). Os pesquisadores supõem que esta primeira capela existia talvez
quando da chegada dos religiosos do Carmo na região, no século XVII. Dois outros elementos
essenciais de um aldeamento eram a residência e o cemitério. Estranhamente - porque a missão era
populosa - as escavações realizadas em Gramació não confirmaram a existência da residência situada
ao lado da igreja. Todavia, indícios sobre a fachada lateral do edifício religioso o sugerem. Os padres
utilizavam por ventura uma das construções situadas dentro dos quarteirões? Se for este o caso, trata-
se de uma clara exceção à regra geral. Como vimos, o Regulamento de Vieira recomendava a
residência ao lado da igreja, longe dos índios de modo a preservar o pudor e a intimidade dos padres.
Outras missões pertencentes aos religiosos do Carmo, como São Fidelis, obedecem a esta disposição
tradicional. Se a hipótese segundo a qual Gramació não possuía residência for eventualmente
confirmada no futuro, ela será então a única das cinco missões do Rio Grande a não dispor desta
construção.
No final da atual rua denominada Clomácio Calafange, na outra extremidade da igreja, uma rua mais
estreita conduz ao cemitério. Esta rua era outrora tão larga quanto a rua do aldeamento. Este cemitério
é antigo e possui em seu centro uma estrutura de 3 por 6 metros, em ruína, que pode ser uma pequena
capela antiga. O local do cemitério, na outra extremidade da igreja, e não atrás dela, parece ser uma
característica particular das missões dos religiosos do Carmo. Por fim, as escavações demonstraram
que a missão se situava provavelmente no lugar de uma antiga aldeia indígena, porque o sítio
comportava faïanças e cinzas que remontam à época de um estabelecimento indígena. Vasos e
estátuas de santos também foram igualmente encontrados.
As descrições da missão Gramació, possibilitadas graças a este importante trabalho de pesquisa
arqueológica, assim como as de Mipibu e Guajiru, confirmam a persistência dos traços essenciais da

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Rubenilson B. Teixeira E4.A1 – O espaço urbano dos aldeamentos do RN

planta do aldeamento. As características espaciais das três missões parecem confirmar os valores e
as funções que as primeiras compartilhavam com os aldeamentos em geral. Efetivamente, temos, no
Rio Grande, exemplos autênticos da cidade de Deus por excelência. Os jesuítas participaram de
maneira efêmera no nascimento dos três aldeamentos em questão, notadamente em Gramació. No
momento em que a descrição delas se torna possível, as três missões Gramació, Mipibu e Guajiru
pertenciam a missionários de três ordens religiosas diferentes, respectivamente os religiosos do Carmo,
os capuchinhos e os jesuítas. Isto não acarreta, no entanto, qualquer conseqüência maior sobre a
elaboração e a concepção do espaço, o qual obedece, em todos casos, a uma mesma lógica,
caracterizada por uma grande uniformidade.

4. CONCLUSÕES

A análise dos aldeamentos do Rio Grande, realizada até agora, nos conduz às mesmas conclusões de
Fátima Lopes e de outros autores quanto às funções que eles deveriam cumprir, as quais podem ser
resumidas nos seguintes itens: 1) fornecer mão-de-obra; 2) otimizar os recursos da Coroa empregados
na administração dos índios; 3) liberar terras para a expansão colonial; 4) formar uma “barreira militar
de defesa” contra os inimigos; 5) facilitar o processo de conversão, de aculturação e de incorporação
ao processo colonial.77 Ao longo desta e de outras aulas, analisamos estas diversas funções,
intrínsecamente ligadas às outras considerações que queríamos desenvolver. Consideramos, portanto,
que não é necessário repetir aqui considerações já suficientemente aprofundadas.
Resta saber se o projeto de transformação do índio em cristão e em vassalo através da obra de missões
foi realizado. Em outras palavras, tentaremos saber se o uso, a forma e a função do aldeamento
possibilitaram a transformação desejada. A este respeito, as primeiras impressões sobre o trabalho
missionário no Rio Grande parecem otimistas, apesar das dificuldades. 78 Todavia, Annibal de Gênova
é o missionário mais capacitado para nos fornecer uma resposta, porque ele governou a missão de
Mipibu quando ela estava em seu crepúsculo. Ela funcionava de maneira estável há pelo menos meio
século, período suficientemente longo para permitir a manifestação de sinais de tal transformação. O
padre, que pôs “sua paciência” à prova nessa missão de 14 de abril de 1761 a 4 de setembro de 1762,
começa declarando :

“Não posso descrever o quanto eles são inimigos da Igreja e dos santos
sacramentos: É suficiente dizer que muitos deles vão à missa mais por medo
dos castigos do que por devoção. Nunca os vi com o Rosário, exceto o
capitão-mor com sua esposa e um outro capitão de um batalhão. Quanto à
freqüência aos sacramentos, somente se confessam na Páscoa, e esperam
todos até o último momento, isso a custas de ameaças e de castigos. O que
é ainda pior, eles não reconhecem seus pecados em confissão …”79

A confissão era particularmente importante. Sua preocupação com a questão era tal que ele mandava
vir outros religiosos para confessar os índios, ainda mais porque estes recusavam-se a fazê-lo. Como
exemplo da obstinação dos silvícolas, ele menciona o caso de uma jovem indígena de 20 anos que,

77 LOPES, Fátima, op. cit., pp. 134-135. Vide também MEDEIROS, Maria do Céu. Igreja e dominação no Brasil
escravista : o caso dos Oratorianos de Pernambuco - 1659 a 1830. João Pessoa : Idéia, 1993, p. 79.
78 O padre Francisco de Matos, escrevendo da Bahia em 4 de agosto de 1701, menciona a situação extremamente

delicada na qual a missão de Apodi viveu seus primeiros dias, decorrente dos vários conflitos opondo tribos rivais,
os fazendeiros, os soldados e os missionários. Os fazendeiros impediam os índios de se aproximarem dos currais,
forçando-os a se deslocar em longas distâncias para procurar alimento. Os soldados impunham que os índios
trabalhassem em suas casas e se regozijavam pelo fato das missões estarem situadas perto das casas fortes, de
tal modo que os soldados incitavam os índios à guerra a fim de justificar a escravidão dos mesmos. Segundo o
padre, os silvícolas conservavam seus costumes, tais como viverem nus e furarem os lábios. Entretanto, davam
sinais de conversão, “na alacridade com que os Índios constróem as suas casas como que à compita; na facilidade
com que aprendem de cor as orações; na pontualidade com que cada dia vêm à igreja de manhã e de tarde; na
alegria que mostram quando levam à fonte do batismo, seus filhos…". Os índios demonstram sinais de conversão
no abandono de certas práticas, como comer carne humana. Eles desprezam igualmente os xamãs. LEITE,
Serafim. História … Tomo V, op. cit., pp. 540-542.
79 GÉNOA, Annibale, op. cit., p. 23.

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em visível estado de gravidez, negou até o último instante que tinha pecado contra o sexto mandamento
da lei de Deus, apesar da insistência do missionário, o que o irritou profundamente. Os índios eram
indiferentes à confissão, mesmo na hora da morte, e o padre cuidava para que eles não morressem
sem se confessar.80 Os índios eram extremamente pobres, e era ele que se ocupava deles quando
adoeciam. Quando morriam, a única cerimônia consistia no cortejo do defunto de sua casa à sepultura,
serviço pelo qual o padre nunca recebera dos índios qualquer esmola.
O missionário não quer evocar as superstições e os costumes bárbaros dos nativos que vivem na
missão, porque elas são “indizíveis". Ele cita somente dois exemplos, um dos quais é o hábito de atribuir
nomes de animais aos filhos como um novo batismo, logo após o batismo cristão. Quanto a seus
costumes, eles são, segundo ele, passíveis de crítica. Ele se deu conta, como lhe tinha advertido o seu
predecessor, que não se podia ser amável com os índios. Pelo contrário, era necessário ser duro e e
atento. Para prová-lo, ele conta que, atrás de sua casa havia, além do pátio ou quintal, uma grande
horta, cercados de um muro de pedra e barro, onde ele plantava e criava galinhas e patos. Além do
mais, seu predecessor lhe havia deixado 180 cabritos, que ficavam sob a incumbência de dois
curumins. Os índios roubavam pouco a pouco todos estes bens. Quando ele se deu conta deste fato,
teve de tomar algumas medidas muito duras, tais como castigos severos contra os transgressores. O
julgamento do missionário a respeito dos índios é eminentemente negativo : “estes índios são tão
preguiçosos que preferem roubar a trabalhar para viver, e ainda que sejam educados pelos
missionários, eles continuam supersticiosos, ladrões, mentirosos, traidores, luxuriosos e sem fé".81
A decepção do missionário quanto à conversão dos índios é deveras revelador. Obviamente, a semente
cristã através da obra de missões vai se enraizar a longo prazo, e não é incorreto dizer que alguns
índios parecem aceitar de bom grado a nova fé. Evidentemente, as populações futuras das
aglomerações correspondentes serão cristãs. Contudo, elas não serão mais formadas por índios, que
estão condenados a desaparecer, como veremos. De qualquer modo, o desapontamento do padre
Annibal no final do episódio dos aldeamentos no Rio Grande é talvez a maior prova de que as missões
do Rio Grande não converteram verdadeiramente o índio.82 Aliás, inúmeras reclamações das
autoridades locais, desde a segunda metade do século XVII, corroboram com a mesma hipótese da
não-conversão dos nativos.83 No final, eles terão grosso modo adquirido uma exteriorização da fé cristã,
através de seus ritos, por exemplo, ao invés de manifestar sinais autênticos de conversão. Os conflitos

80A morte sem confissão era uma das grandes preocupações dos missionários. Reunimos vários exemplos disso.
O Regulamento de Vieira recomenda “toda vigilância” a respeito do tema. LEITE, Serafim. História …, Tomo IV,
op. cit., p. 118.
81 GÉNOA, Annibale, op. cit., pp. 15-16.
82 Na segunda metade do século XVIII, alguns padres deploram igualmente o ceticismo dos índios das missões de

São Paulo. PETRONE, Pasquale, op. cit., p. 331.


83 O senado da câmara de Natal se queixa, em 31 de março de 1689, do perdão que o capitão-mor Agostinho

César de Andrade havia concedido a um grupo de índios Jandui. Os oficiais da câmara desconfiavam das
intenções destes indígenas e do desejo deles de ter a companhia de um missionário. Segundo os oficiais da
câmara, até os que se encontravam nas casas dos moradores, recebendo catecismo e sacramentos, praticavam
seus antigos ritos quando se reuniam com os outros. Uma outra carta deste senado ao rei, de 23 de julho de 1725,
deplora os assassinatoos e os roubos que os índios das 4 missões perpetravam, sem respeitar a lei e vivendo
segundo o seu bel prazer, sem punição, doutrina ou repreensão. Eles roubam sem nenhum sentimento de culpa,
porque não existe missão que possa controlá-los. Ao mesmo tempo em que vão à missa, eles continuam a praticar
a idolatria e seus “rituais pagãos". É por este motivo que os oficiais da câmara temem sua ferocidade como
“inimigos da fé e animais selvagens que são". Entre as ações realizadas por Domingos da Silveira, que solicitava
o posto de provedor da fazenda do Rio Grande, sabemos que ele foi pacificar os índios de Mipibu em 1731, que
estavam “dispersos na mata sem querer construir a igreja da aldeia nem prover a subsistência do missionário. Eles
se ausentam dos ofícios religiosos, causando um grave prejuízo ao bem das almas e ao serviço de Deus". Silveira
conseguiu tranqüilizá-los e fazer a paz entre eles e o seu missionário. Um outro caso de insubmissão à igreja e
aos padres, ainda em Mipibu, terminou de maneira trágica. Numa consulta de primeiro de setembro de 1732, o
Conselho Ultramarino analisa o caso do assassinato de um índio Tapuia, mandado pelo capitão-mor João de
Barros Braga no ano anterior. Este havia sido chamado pelo missionário de Mipibu, onde os índios estavam
“absolutos". Eles estavam “rebelados e desobedeciam ao padre, fugindo pelos matos sem querer se confessar
nem seguir o preceito da quaresma …” o capitão se deslocou à missão para acalmar os espíritos, e prendeu alguns
“criminosos”, dentre os quais o Tapuia em questão. Entre outros assassinatos que ele tinha cometido, este escravo
havia matado seu senhor. Para dar o exemplo, o capitão decidiu então mandar confessar o índio em questão e
assassiná-lo com um tiro de arcabuz diante todos. Numa época em que, no interior, “se matava e se mandava
matar por nada, sem temor de Deus nem da justiça”, o capitão estava disposto a prender todos criminosos que ele
pudesse. MARIZ, Marlene, op. cit., pp. 120-121, 160; AHU_ACL_CU_018, Cx. 3, D. 191, D. 169.

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que marcaram a maior parte da existência das missões são uma das grandes explicações para este
fenômeno.

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