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OS LIMITES DA LINGUAGEM E O EXCESSO DE SIGNIFICAÇÃO

FILIPE VERDE

Aula proferida no âmbito das Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica


Iscte – 1995

No primeiro ano da minha frequência da licenciatura em antropologia social ocorreu um


episódio que por várias razões nunca mais esqueci. Um colega meu colocou a seguinte questão
numa aula: "o que é a antropologia?". Não me recordo dos pormenores, mas creio que todos
nós sentimos, professor incluído, que aquela era a questão que ninguém podia colocar. Ao
mesmo tempo específica e demasiado geral, ela ilude qualquer resposta que não peque por
uma excessiva parcialidade ou generalidade. Mas, no entanto, essa é uma pergunta natural e
legítima, pelo menos na perspectiva do estudante que inicia a licenciatura ansioso por
esclarecimentos. Nos últimos anos tenho leccionado a cadeira de Antropologia do Simbólico e
desde a primeira aula que espero com uma ponta de ansiedade que me seja colocada uma
questão semelhante: "o que é a antropologia do simbólico?", ou então, "o que é o simbólico?".
Tais questões nunca surgiram, mas isso não implica que elas não estejam presentes de forma
latente e orientem em alguma medida as aulas. O que sinto poder ambicionar não é que os
alunos, após terem frequentado e feito a cadeira, sejam capazes dar uma resposta linear e
taxativa a essas questões, mas sim que possam entrever as dificuldades que elas levantam e as
principais perspectivas a partir das quais podem ser abordadas e discutidas.

Nesta comunicação não me proponho, porém, a fazer um inventário dos modos como na
antropologia se definiu o simbolismo, ou das funções que lhe foram atribuídas - isso é tarefa
que exige muito mais tempo do que o que aqui dispomos. O que pretendo é traçar uma
genealogia de ideias que, por detrás da sua heterogeneidade, me parecem constituir uma base
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viável para circunscrever a noção de forma que a ela corresponda um domínio específico e
identificável no interior do fenómeno da cultura, que exige um olhar e instrumentos de análise
também eles específicos. A nossa atenção incidirá sobretudo sobre a linguagem e as ideias
sobre a linguagem, não apenas porque o simbolismo linguístico é sem dúvida e de entre todos
o mais rico e estudado, mas também porque por essa via se torna possível fazer uma distinção
entre significação e simbolização, distinção que permite evitar dois dos mais correntes
equívocos a que o tema se presta - primeiro, a identificação do simbólico com o cognitivo,
segundo o qual simbólica é toda a forma de objectivação, de imputação de sentido à
experiência; segundo, a ideia segundo a qual o simbólico é a marca de um pensamento incapaz
de apreender o sentido e racionalidade dos fenómenos e, portanto, o lugar da emergência do
não-sentido e do não-racional.

Jonathan Swift é conhecido sobretudo como autor de histórias infantis. As mais famosas são as
protagonizadas por Gulliver, viajante intrépido de uma época em que o mundo permanecia em
grande parte por conhecer, em que os mapas colocavam no centro dos mares e continentes
ilustrações fantásticas ou então, muito simplesmente, a legenda: região inexplorada. Gulliver
percorre o até então nunca visto e descreve os estranhos mundos que assim encontra. Um deles
é Balnibarbi, sítio onde se preza em elevado grau as virtudes do pensamento e da verdade e
cujos académicos procuram contribuir para a construção de um mundo mais perfeito. Eles
sabem que as palavras têm o grave inconveniente de variarem de uma sociedade para outra,
que entre as coisas e os sons que as representam não há uma relação natural e necessária, que
vigora aí a mais pura arbitrariedade. Assim sendo as diferentes línguas dividem os homens,
incapacitam-nos de comunicar e de se fazerem entender entre si. A solução proposta pelos
académicos para resolver um tal problema é muito simples. Cada homem e mulher deve
transportar às costas um saco com reproduções em escala reduzida dos objectos do mundo e se
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quiser comunicar algo o que tem a fazer é substituir a linguagem verbal pela manipulação
dessas reproduções. Abre-se o saco, escolhem-se os objectos, colocam-se estes numa certa
sequência e dá-se assim entender em termos transparentes a ideia em mente. Mas dir-se-ia que
se criam assim para os pobres comunicadores de um tal mundo mais problemas do que aqueles
que se pretenderam resolver. Obrigados a transportar às costas um saco grande e pesado, a ter
a paciência de escolher um a um de entre a multidão de objectos os pretendidos, no final ficam
a braços com a impossibilidade de dizer seja o que for de significativo. Podemos dizer que à
"linguagem" dos sábios de Balnibarbi falta tudo o que define a linguagem humana. Primeiro
que tudo a economia de meios, que possibilita que não mais de vinte ou trinta sons com valor
distintivo permitam construir uma infinidade de enunciados. Depois, faltam os elementos
pragmáticos que são a condição da definição da situação e dos elementos referenciais do
discurso (os pronomes, advérbios de tempo e lugar, os tempos verbais). Por último, ela torna
inviável a expressão do que ultrapassa o domínio da factualidade mais imediata, pois que
nenhum dos elementos do "vocabulário" proposto pode significar coisas como tristeza, euforia,
a totalidade, a ausência, etc. Ou seja, os proclamados sábios não perceberam afinal o essencial,
que as palavras não são imagens ou espelhos do mundo, que a linguagem não tem uma função
imitativa, que a sua essência é simbólica, no sentido que o que articulamos através dela não
são coisas ou rótulos a elas atribuídos, mas sim representações. Foi precisamente esse carácter
simbólico que os sábios pretenderam expulsar da linguagem mas, ao fazê-lo, acabaram por a
condenar e limitar até ao absurdo, dado que é exactamente esse seu carácter que lhe confere
simplicidade, precisão e capacidade de adaptação às situações, em suma, o lugar central que
ela ocupa no mundo humano enquanto meio de pensamento e de comunicação.

O episódio vivido por Gulliver em Balnibarbi tem um valor que ultrapassa o de uma simples
história para crianças, e Swift, o seu autor, um lugar na literatura sobre a utopia ou, mais
exactamente, sobre a contra-utopia, onde aparece como precursor das grandes figuras desse
género literário, os bem mais modernos A. Huxley e G. Orwell. Homem do seu tempo,
familiarizado com as grandes questões que estão se levantavam e com a novidade das
estratégias seguidas para lhes dar resposta, Swift distinguia-se porém dos seus pares não
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apenas pela sua profunda ironia mas também por aquilo que esta servia, um enorme cepticismo
perante os usos e possibilidades atribuídos ao novo conhecimento e aos seus métodos. Um dos
temas centrais do pensamento filosófico de então era, como não o podia deixar de ser, a
linguagem. Trazia-se novamente para o centro dos debates uma questão que remonta aos
gregos e que é em certa medida a mesma que ocupava os académicos de Balnibarbi. Se entre
as palavras e as coisas não há uma correlação natural, se entre o ser dos objectos que as
palavras designam e o ser da própria palavra não há senão uma relação convencional, não
necessária, então não será que quando utilizamos a linguagem para descrever ou explicar a
realidade estamos a manifestar não as leis dessa realidade mas as leis que ela lhe impõe? Qual
o valor cognitivo da linguagem?, não implicará o seu carácter arbitrário que o pensamento e os
seus conteúdos sejam incertos e destituídos de uma necessidade objectiva? O ponto de partida
dos filósofos para debater a questão era bem menos ingénuo do que o dos sábios que Gulliver
encontrara. Hobbes, por exemplo, procurara afastar toda a metafísica do campo de estudos da
linguagem pela afirmação de que os nomes são os signos de conceitos e não das próprias
coisas e que, portanto, não fazia sentido entrar em disputas sobre se as palavras simbolizavam
as coisas, as ideias ou uma qualquer combinação entre elas. A partir de reconhecimento de um
tal facto não há espaço para um projecto semelhante ao dos sábios de Balnibarbi, o que não
impediu porém que se perseguisse durante muito tempo uma finalidade semelhante. A par da
mathesis universalis deveria surgir uma lingua universalis que possibilitasse que o pensamento
e a comunicação humana pudesse adquirir o rigor sistemático e objectivo que as matemáticas
então em processo de enorme desenvolvimento revelavam.

Seria o próprio desenvolvimento desse novo instrumento de análise da realidade que


condenaria ao fracasso esse ideal e os esforços que em seu nome se empreenderam. Por um
lado, a enorme complexificação das matemáticas, que desenvolveram linguagens específicas
tão ou mais complexas que as do discurso verbal, afastou-as irremediavelmente da linguagem
comum, dado que as suas construções e teoremas constituem sistemas fechados e não passíveis
de ser traduzidos ou parafraseados no plano da linguagem verbal. Por outro lado, a realidade
que elas revelaram (a estrutura da matéria, o contínuo espaço-tempo, a dualidade entre onda e
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partícula, por exemplo) está ela própria para além das capacidades humanas de representação
por meio da palavra, no sentido em que ultrapasssam a capacidade descritiva de qualquer outra
linguagem que não a matemática.

Este extraordinário desenvolvimento das ciências exactas e a concomitante mudança dos


modos como se concebe a realidade reflectiu-se inevitavelmente na forma como a filosofia
considerou a linguagem. Enquanto o modelo newtoniano governava a imagem que tínhamos
do universo, um universo infinito, mas fechado numa lógica que tomava o espaço e o tempo
como coordenadas absolutas e que via os acontecimentos articulados segundo os princípios
mecânicos da causalidade, era possível postular que a linguagem poderia funcionar como uma
mediação eficaz entre o pensamento e a realidade, e tanto mais eficaz quanto mais perfeita ela
fosse. É nesse sentido que devemos compreender a epistemologia kantiana segundo a qual o
modelo de raciocínio requerido para a compreensão científica do universo é dado em termos
de a priori no entendimento humano e exprimível por categorias linguísticas comuns. A partir
do momento em que o real se revela indiferente ou inapreensível nos termos propostos por
Newton e Kant e quanto mais largo se torna o hiato entre ele e as possibilidades descritivas da
linguagem, entra-se numa espécie de crise, e a linguagem passa agora e mais do que nunca a
ser concebida não tanto como um meio mas como um possível obstáculo ao conhecimento. Tal
passo foi dado já neste século por Wittgenstein, para quem a consciência das limitações da
linguagem conduz já não, como no passado, a um esforço positivo para a sua reconstrução em
termos de uma maior adequação recíproca entre ela e a realidade, mas antes a um esforço
restritivo, à identificação daquilo que permanece impermeável a sua esfera de competência e
onde, por conseguinte, devemos optar pelo silêncio.

Toda esta discussão tem por pano de fundo uma certa concepção da linguagem, uma
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concepção perfeitamente adequada aos quadros mentais tanto dos nossos filósofos quanto dos
imaginários académicos de Balnibarbi, mas que peca sem dúvida por demasiado unilateral e
restritiva. Enquanto a reflexão sobre a linguagem estiver acantonada às questões da teoria do
conhecimento só se poderá privilegiar a sua função enquanto instrumento disso mesmo, de um
conhecimento cuja validade se mede pela sua adequação ao real. Nessa perspectiva a
linguagem é vista exclusivamente sob o prisma da sua referencialidade, da sua capacidade
informativa e utilitária, de denotar em termos mais ou menos precisos a realidade.

Uma tal visão, que conduziu, como vimos, a um cepticismo por relação à linguagem e a um
esforço para restringir o seu uso, é no entanto um fenómeno localizado, não apenas em termos
históricos e culturais, mas também no interior da própria tradição intelectual do Ocidente. Com
efeito, o pensamento linguístico a partir do século XVIII emancipou-se dos parâmetros das
filosofias racionalistas e empiristas e misturou-se com a reflexão sobre a estética e sobre a
produção das obras de arte, e é exactamente aí que estão os elementos que nos importam
seguir em função do objectivo que aqui perseguimos – circunscrever a noção de simbolismo
(ou de simbólico) em termos que tornem possível defender o carácter específico do que
chamamos de "antropologia do simbólico".

Durante toda a primeira metade do século XVIII a estética e a teoria da arte viveram sob os
auspícios do princípio da imitação. A pintura, a música, a poesia, estavam submetidas a um
ideal exterior de representação, ou imitavam a natureza ou então não eram formas de arte.
Havia no entanto algo de paradoxal nesse princípio. Se a imitação fosse levada aos seus limites
mais extremos e alcançasse a perfeição o que distinguia a representação do representado?
Como dizia Schlegel ironicamente: ninguém diz que um ovo imita um outro ovo, é um ovo. Se
a obra de arte pelo contrário se afastasse em alguma medida do objecto representado então
algo se havia sobreposto ou colocado ao lado do princípio da imitação, e era então a natureza
artística da obra que era posta em causa. As soluções propostas para ultrapassar essa
dificuldade passavam pelo relativizar da imitação em função do desígnio do belo. O artista
deveria apenas imitar o que é belo na natureza, ou então, imitando-a, deveria ao mesmo tempo
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corrigi-la, melhorá-la em função desse ideal. Mas, a ser assim, e segundo Moritz, "das duas
uma: ou se imita a natureza tal como se nos oferece, e então ela pode, muitas vezes, não nos
parecer bela; ou representamo-la sempre bela, e isso já não é imitar. Por que razão não se dirá
antes que a arte deve representar o belo, e deixar inteiramente de lado a natureza?" O
comentário e a questão de Moritz indica em termos sintéticos a inflexão que o romantismo
trouxe neste domínio. Para a circunscrevermos temos que nos deter na ideia que doravante e
durante muito tempo vai condicionar a produção e a reflexão sobre a arte - a ideia de belo. O
que é o belo? A questão tem algo de metafísico, mas os românticos não estão em condições de
recuar perante ela. O belo não é simplesmente o que dá prazer, porque assim nada o distingue
do útil, e não há nele qualquer utilidade, é inútil. Ora é exactamente a razão de ser dessa sua
inutilidade que melhor permite defini-lo. Ela deve-se ao facto de ele não ter nenhuma
justificação externa, nenhuma finalidade exterior a si mesmo, ao facto de radicar nas relações
que se estabelecem entre os elementos que compõem a obra de arte, concebida como uma
totalidade autónoma e que, desse modo, apenas se representa a si própria. Já não se imita,
procura-se o belo, e este não é mais do que a relação harmoniosa e equilibrada entre os
elementos constitutivos de uma totalidade que encontra o seu fim em si mesma, eis o que
separa no domínio da estética o classicismo do romantismo.

Dentro deste contexto geral interessa-nos olhar em particular para um domínio específico
dentro da arte, a poesia, dado que é aí que mais claramente se dá a mostrar o modo como a
estética romântica influenciou o pensamento sobre a linguagem. A poesia ocupou nestas
discussões um lugar particular e problemático. A questão básica que ela levantava, e que é
ainda pré-romântica, era a seguinte: se o seu meio é a linguagem, e se os signos desta são
arbitrários, como é possível pretender que ela possa de alguma maneira imitar a natureza? -
não estamos longe da questão que preocupava os académicos de Balnibarbi. A resposta foi a
seguinte: os signos que ela utiliza são especiais, na medida em que há entre eles e as coisas que
representam um laço de motivação - e continuamos em sintonia com eles, com o seu
"projecto" de linguagem. A solução apresentada difere substancialmente da proposta em
Balnibarbi, pois que os estetas descobrem é que entre a forma fónica e o sentido, ou melhor, os
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sons e a realidade que eles designam, pode haver uma relação de adequação recíproca. Dou
um exemplo. Imaginem dois objectos, um a partir de cujo centro irradiam uma série braços
pontiagudos e que tem uma forma estrelar, o outro com a forma aproximada e esquemática de
uma nuvem. Agora peço que associem cada uma destas duas palavras a cada um desses
objectos: "taquete" e "maloma". Todos vós, ou pelo menos uma maioria muito significativa,
associou "taquete" ao objecto com arestas pontiagudas e "maloma" ao objecto com formas
arredondadas. A conclusão a tirar de uma tal experiência é a de que é por vezes possível
estabelecer uma relação de motivação entre os sons e o que eles designam. Na linguagem de
Diderot, "taquete" e "maloma" são signos naturais ou hieróglifos desses dois objectos. Da
mesma forma, diz Diderot sobre a poesia de Virgílio, demisere é uma palavra cuja forma
fónica sugere brandura, gravantur algo de pesado, e collapsa esforço e queda, e a grandeza de
Virgí¥QÇápÇΣQ£ósás°bpóbfsÎósásfáós³á£bGQSÇáóQ³b³áº³Ç÷sQóÇáSs££sá
µbpóÇ«á┴áºÇs£Qbá£s³÷s¡£sáºÇ³óbÎóÇáSsá£QtÎÇ£ábÇ£á±õbQ£áé possível
imputar uma motivação (hoje diríamos, serve-se de símbolos) e por isso está salvaguardada o
seu lugar entre as artes, ela pode assim servir os propósitos da imitação.

O que nos interessa sublinhar é a consequência que um tal raciocínio envolve, e a importância
que ele vai assumir a partir do momento em que se abandona o princípio da imitação. Se os
signos empregues pela poesia são especiais, então há que reconhecer a existência de dois tipos
de linguagem. Diderot é um dos proponentes dessa divisão: ele afirma que se deve distinguir o
discurso quotidiano, onde se procura a "clareza, pureza e precisão (...) e que é quanto basta
para a conversação familiar", e o discurso do poeta onde "passa um espírito que movimenta e
vivifica todas as sílabas". O que Diderot nos diz acerca desse "espírito" é apenas que ele faz
com as coisas ditas pelo poeta "ao mesmo tempo que são entendidas pela inteligência,
comovem a alma", mas podemos subentender o essencial, esse "espírito" radica na eliminação,
ou pelo menos na subalternização, do elemento arbitrário da linguagem, da união entre o
sensível e o inteligível.

É o fim do quadro clássico no pensamento estético que vai trazer a esta divisão entre dois tipos
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de linguagem uma importância que ela ao tempo de Diderot ainda não assume. Uma vez
outorgado ao belo uma importância que o torna em si mesmo a finalidade da arte, a poesia
pode pôr de parte qualquer intenção de representação e, consequentemente, já não se coloca a
necessidade de tornar as palavras a imagem das coisas. No entanto, a estética romântica não
deixa no esquecimento as ideias que acabámos de referir, embora tenha havido
necessariamente modificações. A mudança essencial é esta: a característica distintiva da
linguagem poética já não é a adequação entre os sons e os sentidos, mas a relação que os
signos mantêm entre si no interior de cada obra - segundo Novalis, "a poesia engrandece cada
elemento isolado por uma conexão particular com o resto do conjunto". Ainda se pode falar
num tal contexto numa relação de motivação e de coerência, mas esta é agora de natureza
orgânica, estabelece-se entre a forma e o conteúdo e pode servir-se tanto da substância fónica
quanto de elementos de natureza sintáctica ou semântica. Abre-se deste modo a possibilidade
de algo que apenas muito mais tarde vai ser levado à prática, a análise formal da literatura, mas
abre-se também uma possibilidade de diálogo entre a linguística tal como a entendemos em
termos modernos, e duas ciências irmãs que a precederam, a retórica e a hermenêutica. A
primeira procurara descortinar e classificar os modos pelos quais a linguagem poderia
satisfazer os propósitos da eficácia e/ou da beleza, tendo para isso procedido a inventário e
classificação das "figuras", isto é, das associações pelas quais o discurso adquire um sentido
indirecto. A segunda, a hermenêutica, havia desde sempre tomado uma via estritamente
complementar, de devolver a clareza aos discursos cuja produção privilegiara esse carácter
indirecto - mas esse carácter complementar não deve obscurecer o que de essencial as une uma
à outra e à reflexão romântica, a concepção da linguagem já não a partir da sua função
denotativa mas a partir da função conotativa, já não enquanto forma de significar mas
enquanto forma de simbolizar.

Em suma, a reflexão romântica sobre a poesia libertou a linguagem da sua sujeição às coisas,
do primado da função referencial, e compensou a ausência de uma finalidade externa pelo
vigor da sua finalidade interna. Ela já não designa, mas por isso mesmo adquiriu um poder de
evocação que a torna segundo Moritz uma "língua superior", a única que exprime o que está
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para além dos "limites da faculdade de pensar". De alguma maneira e paradoxalmente é só por
essa via que a linguagem se pode aproximar do ideal perseguido pelos seus teóricos empiristas
e racionalistas dado que, para os românticos é na medida em que ela se desvincula dos seus
aspectos utilitários e instrumentais que acede a um domínio que a coloca a par da matemática
enquanto linguagens que constituem segundo Novalis "um mundo em si mesmo, que nada
exprimem a não ser a sua natureza maravilhosa".

Curiosamente, a estética romântica construiu a sua reflexão no vazio, no sentido em que na


época a poesia não correspondia às ideias a partir das quais era definida, em que houve que
esperar pelo futuro para se assistir à consumação prática do ideal estético proposto. Novalis
entrevê essa literatura futura como "narrativas desordenadas, incoerentes, mas, no entanto,
com associações como as dos sonhos. Poemas perfeitamente e muito simplesmente
harmoniosos, e belos, feitos de palavras perfeitas, mas também sem coerência nem sentido
algum, no máximo com duas ou três estrofes inteligíveis - que devem ser como simples
fragmentos de coisas muito diversas. A poesia, a verdadeira poesia, pode, quando muito, ter
um efeito global alegórico, e produzir, como a música, um efeito indirecto". Palavras
proféticas, sem dúvida, pois que o que a literatura deste século, ou pelo menos a literatura que
marca este século fez, foi, talvez inconscientemente, levar à prática esse programa. Rimbaud,
Mallarmé, Verlaine e Joyce são alguns dos nomes que associamos a uma literatura que se
libertou dos constrangimentos da sintaxe, da definição e da sequencialidade, que subverteu as
exigências do significado em nome de uma liberdade do significante, o ideal da significação
pelo de uma simbolização onde já nada se vem dizer e onde, por isso mesmo, se alcança o que
a palavra enquanto simples instrumento de denotação nunca pode alcançar, a fronteira do
dizível e o amplo campo do que está para além dele.

As noções de símbolo e de simbólico têm tido na antropologia usos muito diferentes e


contraditórios. Tal facto parece dever-se a três óbvias razões principais, aliás em grande
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medida relacionadas umas com as outras. Primeira, as diferentes perspectivas teóricas que
atravessam a disciplina. Segunda, ao carácter fluido que essas noções assumem se
compararmos o uso que lhe é dado por diferentes autores, que definem o símbolo e o
simbólico de formas diferentes, assim como outros termos que com ele formam um campo
semântico no interior do qual as distinções se tornam precárias, como signo, índice, emblema,
sinal, etc. Por último, porque o campo que assim se define, ou não se define, está repartido por
diferentes disciplinas, algumas das quais com uma longa história, que em grande medida se
têm ignorado entre si - como a linguística, a semiótica, a filosofia, a estética, a retórica, a
psicanálise ou a hermenêutica.

Seja como for, e colocando entre parêntesis a ambiguidade que esses conceitos assim
adquirem, eles são um elemento incontornável na disciplina. É consensual que nenhum dos
grandes campos que a nossa analiticidade isolou, o parentesco e a organização social, o
económico ou o político, se define independentemente da referência à sua dimensão simbólica.
Em termos mais gerais, o carácter incontornável do simbólico na antropologia radica naquele
que é o conceito da disciplina - cultura. Um inventário das diferentes formas como a cultura
tem sido definida revela que o que se entende por tal supõe sempre a sua transmissibilidade, e
esta por seu turno uma competência de natureza simbólica. Um exemplo entre outros, mas que
vale pela autoridade dos seus autores e pela sua representatividade, é a definição de Kroeber e
Parsons, segundo a qual a cultura se identifica com "modos de pensar, sentir e agir adquiridos
e transmitidos por símbolos".

Mas o exemplo mais claro da extensão assumida pelo termo simbólico no campo da
antropologia é a obra de Geertz. Influenciado por Cassirer, para quem o simbólico designa o
denominador comum de todas as formas de objectivar, de dar sentido à experiência (da
linguagem à arte, da lógica e da ciência à religião), Geertz define os padrões culturais como
"sistemas ou complexos de símbolos", e símbolo como "qualquer objecto, acto, acontecimento,
qualidade ou relação que serve como veículo a uma concepção". Um churinga, uma guerra
entre dois grupos, uma luta de galos, o valor de troca de um colar de conchas, a interacção
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entre indivíduos num qualquer contexto, tudo isso é redutível ao simbólico, indissociável da
cultura enquanto sistema de ideias e valores que orientam a apreensão e avaliação subjectiva
da realidade por parte dos indivíduos. A antropologia social e cultural bem pode assim mudar
de nome e converter-se numa antropologia do simbólico, sem que nada mude porém nas suas
especializações internas, nos seus conteúdos e formas de questionamento. Um problema se
levanta no entanto aqui, dado que numa tal perspectiva acaba por diluir-se uma possível
especificidade da dimensão simbólica. Se tudo é simbólico nada o é ou, para sermos menos
equívocos, deixa de ser possível delimitar em termos operatórios a noção. Porque não apenas
sublinhar a evidência e afirmar que o universo social e cultural do homem é concomitante de
competências cognitivas que tornam a ordem factual indissociável da ordem das
representações?

É para contornar uma tal tendência que a discussão desenvolvida atrás pode ser útil. Como
vimos, a filosofia, uma vez esgotados os caminhos utópicos para a criação da linguagem
perfeita, procurou restringir o seu uso até aos limites da adequação da sua lógica proposicional
à lógica da relação entre os acontecimentos do mundo exterior a ela, sob a alegação de que
para lá desses limites ela conduz ao engano, ao repetir de questões elaboradas de forma tal que
nenhuma resposta lhes pode ser dada, de questões sem sentido, os empiristas lógicos diriam,
metafísicas. Mas a filosofia da linguagem abandonou assim algo que fora captado pela
estética, que uma vez posto de parte o ideal da representação, o princípio da imitação, e uma
vez reconhecida assim a autonomia, intransitividade da obra de arte, trouxe para o primeiro
plano os usos da linguagem em que o signo dá lugar ao símbolo, em que a significação dá o
passo à simbolização. A passagem de uma coisa à outra é a passagem da linguagem enquanto
instrumento racional e consciente de relação às coisas, à linguagem enquanto instrumento dos
imensos poderes da imaginação, enquanto processo selvagem de desconstrução de um ou
vários dos seus níveis de articulação (fonológica, lexical, sintáctica, semântica), processo que
tem como mais marcante consequência uma explosão do seu potencial semântico, mas de um
potencial semântico que existe como que para se desmentir, dado que por detrás dos esforços
de puxar a linguagem até aos seus limites, se revela afinal a sua incapacidade de atingir..., de
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atingir o quê? É Kant quem nos guia aqui, o que o artista (e nós colocamos aqui em primeiro
lugar o poeta), o que o poeta procura é a expressão da "ideia estética", definida como a
"representação da imaginação que dá muito que pensar, sem que nenhum pensamento
determinado, ou seja, nenhum conceito, lhe possa ser adequado, e que, por conseguinte,
nenhuma língua pode atingir completamente ou tornar inteligível. Numa palavra: a Ideia
estética é uma representação da imaginação associada a um dado conceito, e que se encontra
ligada a uma tal diversidade de representações parciais na utilização livre destas, que nenhuma
expressão, designando um determinado conceito, pode ser encontrada para ela, e que faz
pensar, para além de um conceito, muitas coisas indizíveis, cujo sentimento anima a
capacidade de conhecimento e insufla um espírito ao sentido literal da linguagem".

Dir-se-ia que ninguém poderá alguma vez dizê-lo melhor. O que está para além do conceito e
do que se deixa expressar através dele é o ponto em que a curiosidade ou a simples
necessidade de sentido espicaçam o conhecimento, mas um conhecimento que não se chega a
produzir se não se seguir o fio do jogo livre de associações entre representações e fragmentos
de representações, um conhecimento que não se produz se não se insuflar à linguagem o
"espírito" de que já falava Diderot, o espírito pela qual ela se torna simbólica, isto é, já não
apenas denota mas conota, em que ao sentido inicial, literal do enunciado, se vem juntar um ou
outros sentidos, indirectos e só acessíveis se à simbolização corresponder o momento simétrico
e complementar da análise e da interpretação.

Como desde logo o descobriram os românticos, a linguagem que "comove a alma" (Diderot),
que "nada exprime senão a sua natureza maravilhosa" (Novalis), que insufla um "espírito ao
sentido literal" (Kant), não é posse exclusiva do poeta e da poesia ocidental. A Índia védica e
das grandes epopeias, o mundo Grego e Romano, as tradições folclóricas e religiosas
europeias, os fragmentos conhecidos do mundo da religiosidade selvagem e “primitiva”, tudo
isso e muito mais foi tomado entre mãos por homens como Moritz, Schelling, Creuzer e seus
sucessores e definido como gémeo do poético - a mitologia, a religião e a sua ritualidade, eis o
outro grande nível de aparição do símbolo. Para Moritz os mitos Gregos não se deixam reduzir
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a narrativas de carácter histórico, ou a ilustrações alegóricas de algo que outra linguagem


pudesse expressar, eles são antes "belas poesias", "todos completos em si próprios", exemplos
do processo pelo qual o elemento convencional e arbitrário do signo é atravessado por uma
motivação, isto é, pelo carácter sistemático, ordenado, da relação entre as suas partes
constitutivas. Moritz diz que a "essas belas poesias, é necessário entendê-las primeiro como
elas são, sem respeitar aquilo que se supõe que signifiquem e, na medida do possível,
examinar o todo com uma visão de conjunto, para descobrir progressivamente a marca das
ligações e das relações mais afastadas entre os fragmentos particulares ainda não integrados".
Eis o delinear de todo um programa de investigação, cujo grande protagonista no campo da
antropologia foi sem dúvida Lévi-Strauss. Tomando como centro de interesse e investigação o
que na cultura pode ser identificado com a linguagem, Lévi-Strauss dirigiu-se com cada vez
maior clareza para o campo de eleição do que chamou de "função simbólica", a
metalinguagem do mito. Seguindo a premissa sistémica e imanente que Saussure inaugurou na
linguística, a sua análise deteve-se não ao nível de um hipotético conteúdo considerado como
privilegiado, mas ao nível das relações que cada elemento mantém com os outros (no quadro
de um mito, de um grupo de mitos e, em termos mais gerais, no quadro geral da cultura de que
é oriundo), e o que assim se revelou não está distante das concepções de Moritz. A autonomia
do sistema mítico por relação ao real demonstra que os seus termos e relações se determinam
não por referência a uma realidade exterior que visem denotar, mas segundo afinidades e
incompatibilidades que definem a arquitectura de um campo que, como o defendia Moritz,
deve ser abordado como um todo a partir do qual se busca progressivamente a articulação
entre as suas partes constitutivas. Mas sem dúvida que o mais importante ponto de contacto
entre a reflexão estética e a reflexão de Lévi-Strauss se encontra nas suas reflexões, dispersas,
sobre o "significante flutuante", por um lado, e sobre as relações entre ciência, arte e mito, por
outro. Não retomaremos no curto espaço de que dispomos essas ideias, insuperavelmente
sumariadas e discutidas por Merquior no seu texto sobre a estética de Lévi-Strauss, queremos
apenas sublinhar duas coisas. Primeira, que através dessas reflexões é possível conceber que a
criação artística e a invenção mítica radicam numa raiz comum, no propósito de conferir uma
"integralidade de significação" a algo que, pela sua própria natureza, como o sabiam os sábios
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de Balnibarbi, ilude continuamente o próprio fenómeno da significação. Segunda, que pela via
da criação artística ou mítica e dos objectos por elas produzidos, nos embrenhamos de uma
dupla forma no processo de conhecimento. O mito como a arte partem e alimentam-se de um
hiato entre o conhecimento e as capacidades de imaginação (quer porque o primeiro esteja
aquém da segunda, quer porque, como acontece na nossa própria sociedade, ele a ultrapasse),
mas são eles próprios uma forma de conhecimento, mas de um conhecimento que não se
confunde com o da ciência porque a sua capacidade de representar do real não põe em causa a
sua independência por relação a esse mesmo real.

Eis o quadro geral a partir do qual pretendemos delimitar, no interior do campo da cultura,
uma área que possamos definir e identificar com o simbólico. Dos sábios utópicos de Swift até
à reflexão contemporânea sobre a arte e a cultura, passando pela reflexão filosófica e estética
sobre a linguagem, constatamos a consciência de uma dupla possibilidade de uso da
linguagem, que colocámos sob os títulos de significação e simbolização. Confundi-las implica
arriscar uma de duas coisas - ou a diluir a função poética no fenómeno geral e cognitivo da
representação, caso de Geertz, ou ao equívoco, bem mais grave, representado por Lévy-Bruhl,
de converter o símbolo do outro no seu signo e de o caracterizar a partir de uma
irracionalidade que entre nós só emergiria nas figuras marginais do "artista", do "louco" ou do
"místico". Distinguindo-as ganhamos acesso aos múltiplos modos pelos quais as diferentes
sociedades procuram expressar e elucidar o que está para além da esfera do sentido e do
dizível e frutifica nas obras em que a especulação, a exploração existencial e o prazer estético
conduzem à ultrapassagem dos constrangimentos lógicos e dos modos padronizados de acção,
expressão e pensamento.

O simbolismo assim entendido não se identifica com a cultura em sentido lato, mas com o que
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no interior desta chamamos, conscientes da relatividade dos nossos rótulos mas também da
especificidade que parece subjacente ao campo que assim se define, de mito, religião, rito,
arte, domínios que apelam à interpretação não pelo facto de os colocarmos à distância das
diferenças culturais mas sim porque trazem em si mesmos uma riqueza semântica que evoca
um esforço que nos coloca a par de todos os poetas e mitólogos, o esforço de trazer coerência
a algo que só parece existir para desafiar e testar os limites dessa mesma coerência.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

Este texto foi construído fundamentalmente por referência às ideias de três autores: Ernst
Cassirer (Filosofia das formas simbólicas), no que diz respeito à história da reflexão filosófica
sobre a linguagem; Tzvetan Todorov (Teorias do símbolo e Simbolismo e interpretação), no
referente à concepção de símbolo que emerge da estética clássica e romântica; e George
Steiner (A palavra e o silêncio) no referente à relação da linguagem verbal com os domínios da
arte e da ciência contemporânea. No entanto, e de uma forma menos marcada ele é tributário
ainda de outros textos e autores que no campo da antropologia e das ciências humanas em
geral, têm abordado, de maneiras muito diversas, o campo do simbólico, de que destacaríamos
cinco nomes - o de Claude Lévi-Strauss, Émile Benveniste, Clliford Geertz, Paul Ricoeur e
José Guilherme Merquior.

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