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NOVO ANO VELHO


Processo de formatura da Turma 68
Personagens

Bando Pinda

O coro contador da história. Dá o sentido épico à encenação

A primeira mulher - Analu

A partir da pesquisa sobre Ancestralidade dos povos originários, esta persona é uma visão que
surge nas paisagens da história. A ênfase parte da comemoração do ano novo pela tradição de
alguns povos e o processo de invasão das terras e dos corpos femininos.

Todas as mulheres - Layane

A mãe, mulher, professora, a colaboradora do lar, os pés que caminham, o corpo que trabalha, o
sofrimento em silêncio.

A mulher terra e A mulher avessa - Rita

A mulher terra representa o plantar, semear, cultivar, a fartura, a terra enquanto conexão. A
mulher avessa representa a intolerância e a extinção. São irmãs e não sabem o que fazer com a
mãe (metáfora da pátria) que está doente.

A mulher escriba - Mariana

A mulher contemporânea em seu tempo presente que se vê em sua ancestralidade. A mulher


dispositivo conectada ao mundo pela linhas invisíveis da internet. A mulher que quer resolver o
seu tempo. A mulher memória da casa e das histórias femininas.

A mulher voz - Karina

A mulher que busca seu espaço, ser vista, respeitada, acolhida e compreendida por ser quem é.
A mulher quer ter voz e que ser ouvida.

O homem inutil - Matheus

O homem que se sente inútil por não ser o provedor de si. O homem desempregado, o homem
do prato vazio. O homem catador de velho. O homem catador de seus próprios pedaços.

O homem trivial - Marcelo

O homem que dá as costas para sua terra à procura de um lugar que julga melhor, que quer ser
de outro lugar “mais civilizado”. O homem tenta sair do Brasil e por conta da sua documentação
não consegue embarcar. Tem um surto no aeroporto.

O homem raposa - Rafael

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Este animal europeu, míticamente conhecido por sua inteligência e trapaça é a representação
do caçador colonizador. Não é uma personagem histórica específica, mas a coletivização
dessas personagens em forma de uma persona-animal que persuade a primeira mulher e a
engana com um velho mundo novo. Este personagem é morto e, acolhido pela natureza,
torna-se uma entidade da terra.

Tudo e ninguém - Kaic

O homem-menino que busca sua identidade e seu território. As cicatrizes moldam o corpo em
busca de suas afirmações

Futuro - Hugo

O Futuro é esperançar. Na esperança busca entender seus caminhos, mas seu caminho se
depara com morte. O corpo preto, periférico, gay quer gritar séculos de silêncio. O futuro é
ancestral e virá em forma de entidade para mostrar o Futuro.

Cenografia

Telas que estimulam o imaginário e a visualidade das cenas

Cenografia de apoio (mesas, cadeiras e demais elementos organizados de forma dinâmica e


recontextualizados conforme a encenação).

Adereço

Malas, sacolas, mochilas ou qualquer outra forma de carregar objetos ou simplesmente dar a
sensação de estar em trânsito.

Figurino

A ser definido conforme a encenação.

Novo Ano Velho

Abertura
Apresentação do Bando Pinda

Todos
Somos um bando

Primeira Mulher
Viemos do rio afluente

Todas as mulheres, Escriba e Terra


Do campo
Da terra seca
Da chuva
Da floresta, da terra, do mato

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Vozes Femininas
Viemos de muitos ventres
Paridos de muitas formas

Vozes Masculinas
Repartidos de todos os jeitos
Esquecidos de muitas maneiras

Mulher Voz
Silêncio, voz

Mulher Terra
Fome e fartura

Tudo e Ninguém
Contradições num espelho dágua partido

Trivial, Futuro, Tudo e Ninguém


Somos contadores de casos, causas, coisas

Homem Inutil
Somos catadores do caos

Raposa
Somos definição indefinida

Trivial, Futuro, Tudo e Ninguém


Somos parte do todo

Tudo e ninguém
Apartados do todo

Todos
Somos um bando!

Mulher Voz
Somos um bando e não desistimos!

Todos
Somos o Bando Pinda!

Trivial
às vezes na pindaíba,

Todos
mas sempre Pindorama!

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O último dia do ano presente

Homem Inútil

Este é o último dia do ano presente. (frisar)

Meu corpo cansado

Minha pele manchada de sol

Minha alma manchada mais inda de vergonha

Digo por aí que sou poeta, mas quem eu quero enganar?

Olhando pra mim, é fácil concluir: estou desesperado!!

(pausa)

Esse ano eu preciso que as coisas melhorem. Eu preciso acreditar que tudo vai ser melhor…
(som de fogos)

Todos ao mesmo tempo desejam “Feliz Ano Novo à sa forma”

Analu

Ara Pyau

Marcelo

Happy New Year

Rafael

Boas entradas

Karina

(Feliz ano novo em Libras)

Mateus

(em silêncio)

Lay, Hugo, Kaic, Mariana, Rita

Feliz Ano Novo

O desejo de um ano novo, ou não, é direcionado para a plateia.


Um funk instrumental entra pesado.
Elenco sai, permanecendo
Hugo, Lay, Kaic dançam um passo frenético.

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A música pára, breve Blackout.
Som de tiros.
Silêncio

A luz retorna e o elenco está na mesma posição

Cena 02

O último dia do ano passado

Homem Inútil

Este é o último dia do ano passado. (frisar)

Meu corpo está cansado

Meu curriculum vitae está cansado

As solas dos meus sapatos estão cansadas

Brinco por aí dizendo que sou poeta,

Mas, olhando pra mim, é fácil concluir: estou desempregado!

Por enquanto meus amigos, porque esse ano eu to sentindo que as coisas vão acontecer…

É vida nova, é ano novo! (som de fogos)

Todos ao mesmo tempo desejam, à sua maneira, “Feliz Ano Novo!”

Analu

Ara Pyau

Marcelo

Happy New Year

Rafael

Boas entradas

Karina

(Feliz ano novo em Libras)

Mateus

(em silêncio)

Lay, Hugo, Kaic, Mariana, Rita

Feliz Ano Novo

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O desejo de um ano novo, ou não, é direcionado para a plateia.
Outro funk instrumental entra pesado.
Elenco sai, permanecendo
Hugo, Lay, Kaic dançam um passo frenético.
A música pára, breve Blackout.
Silêncio

A luz retorna e o elenco está na mesma posição


A luz retorna e Hugo percebe que teve sua carteira furtada

Hugo

Caralho! Levaram minha carteira! (lembra que seu salário estava lá, procura nos bolsos). Merda!
Levaram todo o meu salário.

Som de funk volta. Hugo, Layane e Kaic saem de cena. A música pára exatamente no
momento em que a próxima cena está montada.

Mulher voz entra após Kaic dizer sua fala (Ihhh aí moiô) .

Mulher Voz: Texto somente em Libras, sem Português.

Cuidado! Atenção! Perigo!

Agora rua chove muito enchente, casa desaba e cai água chuva forte.
Rua alagada, perigoso.

Cena 03
JANEIRO
Breve apresentação das personas

A Mulher Escriba se filma com seu próprio celular. Testa o equipamento.

É janeiro. Dentro de mim chove delírio, medo e esperança


Resolvi começar o ano registrando meus pensamentos e sensações. Um diário de bordo à
deriva de mim mesma, perdida na floresta de concreto entre alegrias e injusticas.
1, 2, 3… 1, 2, 3 teste…

Teste…
Teste…

1, 2, 3 Teste…
Me testando.
Te testando.
Nos testando.

6
Estamos em teste.

Eterno teste.

Testam nossa existência, resistência, resiliência, paciência. (Lay ocupa o espaço)


Testam meus limites com eternas insistências

Testam minha bondade com espelhos que refletem somente a alma deles. (Analu ocupa o
espaço)
Eu aceitei o espelho e nele minha essência ficou presa.
Aceitei que chamassem de selvagem.

Aceitei violência, escravização, desumanização. (Rafa ocupa o espaço)


Aceitei muitas coisas.

A mulher escriba pausa. A cena que se estabelece se neutraliza e pausa.


Ela respira. Volta a gravar, a cena estabelecida ganha vida de novo.

Pra seguir os dias eu aceitei o subemprego.


A uberização da vida.
A exploração que muda de roupa e modos a cada século. (ocupam o espaço Hugo e Kaic)

A mulher escriba faz ação que errou, pausa o celular. Hugo e Kaic voltam

Pra seguir os dias eu aceitei o subemprego.


A exploração que muda de roupa e modos a cada século. (ocupam o espaço Hugo e Kaic)

Pra seguir os dias eu aceitei a uberização da vida e a falsa ilusão de que sou bem sucedida,
achando que nesta disputa fútil de poder eu teria vantagens e aceitações além-mar. (Marcelo
ocupa o espaço)

Os dias passam, o sorriso está no rosto, mas a alma não está mais ali. Não reconheço mais as
pessoas, não reconheço quem dividi o ventre. (Rita ocupa o espaço)

Quando comecei a entender a casa estava em ruínas e alma eu já não tinha.


Voltei aqui para entender.
Estou entendendo
Nós ainda estamos entendendo.

Preciso voltar para o começo.

Desliga a câmera do celular.


Sons de raio de trovão.

Princípios
Início da cena com Mateus em sua casa sem luz. Esta cena pode acontecer na plateia em
conversa com a audiência.

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Homem Inútil

Vai chover, de novo e sempre, como sempre é em janeiro. Quando o céu escurece um temor
vem. Aquele medo de quem sabe que quando chove a chuva desemboca no mesmo lugar, na
mesma periferia. A água é uma benção, mas quando a chuva chega violenta, ela é perdição,
maldição, inundação e do nada que sobra só resta lama e lágrima.

Entra Rafael, uma raposa brincalhona que faz com a Primeira Mulher se sinta curiosa e
feliz. A raposa a cheira, faz carinho com a cabeça. Quando a primeira mulher se sente
segura ela sai com a Raposa.

Enquanto Raposa e Primeira Mulher saem, entra a Mulher Voz. Ela está com uma mala e
guarda-chuva. Ainda chove. Continuará chovendo até o fim da cena.

Mulher Voz (Texto Bilingue - Libras e Portugues)

Partir é algo extremamente fácil. Partir só exige desapego. Chegar não, chegar exige a
resiliência dos recomeços. Deixei tudo para trás. Só carreguei o necessário. Na estação não
entendiam para onde eu queria ir e quando disseram o nome da segunda cidade eu disse
“sim”. Estava cansada demais para fazer com que os atendentes me entendessem. Agora
estou aqui, na esperança de que eu possa respirar e ser eu mesma. Sem as amarras, as
palavras nocivas, os olhares que rebaixavam. Cheguei. É janeiro e me dei de ano novo o
recomeço.

A mulher voz cruza o palco e Futuro e Tudo e Ninguém passam com um colchão.

Tudo e Ninguém

Vai mano! Corre! A gente deixa o colchão na casa do Joba que é mais alto.

Futuro

Não var dar tempo! Vc pegou o saco de documentos?

Tudo e ninguém

Que saco?

Futuro

A sacolinha bonita que eu guardo meus documentos. Lá tava minha certidão, meu título de
eleitor, minha reservista. Eu preciso tirar a segunda via da minha identidade.

Tudo e Ninguém olha rapidamente nas suas coisas. E percebe que não a pegou. Ele faz
uma ação que indica que não pegou.

Futuro

Caralhooooooo! (trovão) Vamo! A chuva tá apertando.

A Mulher Terra

(Ela está na plateia. Ela oferece bolinho de chuva para alguém.)

Tão bom cheiro de chuva. Chuva é o perfume do mato, sabia? Quando chove o mato, a terra
ficam com um cheiro tão especial que não dá nem para descrever. Minha, mulher do interior, dos
pés descalços dizia que chuva era benção. Quando chove eu fecho os olhos para ouvir as gotas

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caindo no telhado, no chão, escorrendo pelos vidros na janela. Chuva é a voz da natureza
dizendo: “Paz.”

(ao acabar, luz acende no palco. Todas as mulheres segura umas peças de roupas
úmidas.)

Todas as mulheres (no palco)

Eu tenho saudade da minha casa, com dois cômodos grandes... tudo bonitinho, quarto, cama,
minha mesa, era tudo novinho, morava num canto legal, num cantinho pequeno, sala cozinha,
banheiro, mas todo num piso frio, banheiro bonitinho. (...) E eu tinha um armário das casas
Bahia bonitinho, grandão, eu tinha uma TV de 14 polegadas, nova, daquelas que era com o
vídeo acoplado (...) O que era mais que eu tinha? Eu tinha um armário pago, eu tinha TV, eu
tinha um sofá bonito, azul turquesa, ganhei, mandei reformar, ficou novinho. Eu tinha o que
mais? Uma geladeira Electrolux grande, tinha mesa. Sabe como era minha mesa? Quadradinha,
igual essa daqui. Não tem essas mesinhas de bar? Quando passo eu digo: olha minha mesinha,
que nunca se quebrou. tudo tinha lá, eu tinha mais outra coisa, eu tinha o básico, eu tinha
panelas, eu tinha ferro elétrico bom, a vapor. Perdi tudo na enchente. Hoje eu moro numa casa
menor. Hoje choveu e eu perdi tudo outra vez. A água transbordou e eu transbordei em
lágrimas.

Mulher Escriba

É fim de janeiro, dentro de mim chove delírio medo e esperança.

jogo das cadeiras

Homem Trivial

É carnaval!

Todos em roda contornam as cadeiras e dançam ao ritmo de músicas de carnaval.

Fevereiro
Um carnaval de classes
Desbunde Geral
Johnny Hooker

Quando chegar Fevereiro eu quero ser carnaval


Meu corpo no seu, no desbunde geral
Geral, geral
Vem a noite inteira descendo ladeira no maior festival
Que a gente se pega, se borra e se morde
No chão de estrelas
Que o meu corpo receba o desbunde geral
Geral, geral
Vem, vem!
Que meu corpo agora é todo carnaval
Vem, vem!
Quem não bole se sacode no desbunde geral

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Geral, geral

Mulher Avessa

É fevereiro!
Fevereiro!
E eu estou no bloquinho desde dezembro do ano passado. Eu mal arrotei o Peru do Natal e já
coloquei minha fantasia. Qualquer horário livre eu estou no bloquinho: depois do expediente,
fim de semana, hora do almoço. Eu durmo com Alalaô e desperto com Swing da cor. Uma
loucuraaaaaa!

Tudo e Nada

eu completei 21 anos
eu completei 21 anos
eu cheguei
eu completei 21 anos

Todos vão ao seu encontro e o parabenizam pelo seu aniversário

Desculpa o espanto
é que eu preciso celebrar a vida agora
pois daqui 23 minuto, eu não me garanto

nossa estatística é pranto e pronto


já se foi mais um jovem, se foi
tinha 21, mas nunca encostou numa 22
talvez seja eu ou você o próximo depois
refém, dos cana e do cano
dos cana e do cano

mas antes de qualquer coisa


palmas pra mim pô, eu cheguei aos 21 anos
mas não posso esquecer dos meus 20 mano
que não chegaram aos 20 anos
de 20 sobraram 12 manos
refém de um estereótipo de mais de 400 anos

o mundo não tem ideais


nossas lágrimas pra eles é cisto
mas como cita os racionais
"O que será que você tem haver com isso?"
se já acabou, as corrente o tronco o chicote então calma,
já acabou as corrente o tronco o chicote, então calma
os olhares que nos pisam
ainda chicoteiam nossa alma

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As pretinha nasce pra ser princesa
a mãe cuida com zelo
da um beijo no turbante e arruma
leva pra escola pesadelo
quem nasceu pra ser rainha
vira chacota do padrão modelo
que põe nossas crianças no fundão
com vergonha da pele, nariz e cabelo

por isso que eu vir escurecer


por isso que eu vir escurecer
Pois o brasil não é só isso aqui
Vai do africano até o sambaquis
Quem sabe assim os gringo para de falar
que só tem bunda e samba aqui

Todos passam atrás em clima de carnaval e a Mulher Avessa o parabeniza pelo seu
aniversário

Mulher Avessa

Parabéns! Nossa você parece um amigo meu ..que também faz aniversário hoje..

Tudo e Nada

E nem precisa noticiar


Pois a mídia vende nossas lágrimas
E só nos querem protagonista
se tiver sangue nas páginas

Comercializam nosso drama


Mas não vive nosso terror
As carta de suicidio mostra
O que as de abolição não funcionou

Vida de preto é difícil, difícil


longe dos edifício e paisagem
Luta, sangue e suor tudo na mesma bagagem
Igual a viatura que pra nós é uber
Mas num é vantagem
Pois quando a pele é escura
Nada cancela a viagem

Mas vão falar que é vitimismo


Que isso aqui é uma ilusão
Sobe lá na facção

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e ve se isso é ficção

Mas isso não é uma carta de ódio pra branco não


Como que vou odiar branco, gente?
Até tenho amigos que são

Não minto, não minto


E se você se sentiu ofendido
Não tem ideia do como eu me sinto.
Dá a César o que é de César
E devolve o que é nosso
Dá a César o que é de César
E devolve o que é nosso

Ao final da mis-en-cene todos entram dançando novamente e a Mulher Avessa parabeniza


mais uma vez o Tudo e Nada.

Mulher Avessa

Parabéns! Nossa você parece um amigo meu ..que também faz aniversário hoje..

Todos caem no chão, inclusive a Mulher Avessa.

Seu celular toca.

Mulher Avessa

- Alô! Que é que você quer? Eu não entendi porque você achou que eu iria para aí,
pra visitar vocês! Eu sei que é feriado, mas você sabe que eu super ocupada. A
mãe? Que é que tem? Eu já mandei dinheiro. Eu sempre mando R$180,00.
Esqueci? Remédio! Que remédio? Outro! Novo? Eu não tenho dinheiro! Eu mal
consigo passar o mês com o salário que eu recebo. Eu sei que ela está doente. Eu
sei que é mulher de idade. Eu sei que é minha… É obvio que ela é minha mãe. Você
sempre me agredindo. Me fazendo passar por desnaturada. Você esá gravando esta
ligação? Você está fazendo isto porque você quer ficar com a herança da nossa
mãe. Isso se já não apossou. Isto mesmo! Não dá para conversar também. Quer
saber? Tchau!
- Ai depois eu resolvo isso. Deixa eu dormir um pouquinho.

Mulher Avessa volta para o chão junto de todos.

Restos de Carnaval
Mulher Escriba

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É fevereiro e o meu corpo me diz que parece que estamos em junho. Estes dias fui à casa
da minha mãe e ela me deu uma caixa. Sabe essas caixas que as mães tem mania de
guardar com foto antiga, mecha de cabelo de criança, lembrança de missa de sétimo dia.
Até que no fundo dela tinha uma foto da minha bisavó dos tempos de sua juventude. Como
ela era feliz naquele exato momento da foto. Falo com admiração porque eu sempre ouvi
que ela era uma mulher carrancuda e fechada. Fico pensando nos movimentos que a vida
dá e faz com que a gente mude, assim, num estalo.

Enquanto a Mulher Escriba fala o coletivo se levanta aos poucos. Mulher Avessa sai.

Mulher escriba se veste de Bisavó. Inicia a cena.

A avó está olhando pela janela assistindo e ouvindo o bloquinho de carnaval passar e
começa a dançar na medida do possível (afinal ela é velha). A neta entra chamando
avó.

Música - Carnaval

Neta: Vóóó

(Para ao ver a avó ali)

Neta: O que a senhora está fazendo? (risos) É contagiante né?

Avó: É uma pouca vergonha, isso sim. Essas mulheres tudo pelada, não se dão respeito.
Tudo quenga depravada.

Neta: Vai me dizer que na sua época existia? Você nunca teve vontade de ir a um?

Avó: Deus me livre, no meu tempo não era essa pouca vergonha não

Neta: Mas... (é interrompida)

Avó: A lá, aquela ali, vem ver. Ela estava com um, agora já ta com outro, com dois ao
mesmo tempo. Depois engravida, acontece alguma coisa, se faz de coitada, não vai saber
nem quem é o pai. Mas e esse papel ai? O que você queria?

Neta: Eu estava organizando algumas coisas como a senhora pediu e achei essa certidão
de óbito do meu bisavô. Aqui está a assinatura de todos os filhos, mas tem algo estranho.
Você sempre me disse que só tinha 5 irmãos, porém está assinado por 7 filhos. Quem é
esse Genivaldo?

Avó: Morreu de criança, morreu cedo

Neta: Ué, mas aqui diz que ele tinha 28 anos na assinatura

Avó: Morreu, sumiu, morreu pra mim. Que diferença faz? O que esse documento sabe? Se
ta vivo, morto, que os bichos os comam e o diabo que o carregue

Neta: Nossa vó, a minha mãe o conhece? Posso ir falar com ela se isso (interrompida)

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Avó: Não, não conheceu e é bom que nunca conheça, deixa sua mãe em paz. Seu avô é o
pai dela e pronto, e guarda essas porcarias ai, deixa o passado no passado, em paz.

Neta: Meu avô é o pai? (como se tivesse pensando alto) Vó, a senhora ta bem?

(As duas congelam por um tempo, Mari sai para fazer a transformação em mais nova,
tira o vestido/camisola...)

(Começa musica de carnaval. A avó dança, irmão aparece e fica olhando na espreita,
depois de um tempo ele acaba entrando nervoso)

Irmão: Que palhaçada é essa aqui? Que roupas são essas? Por que não está dormindo?
Deixa de ser quenga e vai dormir (pega no braço dela com força)

Avó: Mas Genivaldo, só estou me divertindo, aqui dentro, qual o problema?

Irmão: O problema é que você é minha irmã, mulher de família, não pra ficar ai quase
pelada na janela, o que seu noivo iria pensar? Vai dormir

Blackout. A avó grita e pede por socorro. Enquanto grita a música abaixo toma o
espaço.

As pastorinhas de Helena de Lima

Depois de alguns segundos Irmão da uma suspirada funda e vai atrás. Depois de um
tempo, a Avó volta com a camisola/vestido para a posição antes de congelar.

Neta volta

Neta: Vó? Desculpa. Eu posso abraçar a senhora?

Neta abraça

Neta: Desculpa, vó. Eu entendi tudo. Te amo. Tá tudo bem, viu?

As duas congelam.

Março
Coro Pinda

Fevereiro foi embora


Com a fantasia foi
Fevereiro não cansa
É o corpo festa
Que me faz esquecer
Os problemas da vida

Chega Março

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E eu catando ainda catando
Os restos de purpurina

Os dias passam
O salário passa
A vida passa

Só a chuva que fica


Mas vai embora com as Aguas de Março

Enfim, Março também chega ao Fim.

Abril

Caravelas 01
Raposa
A primeira mulher está adormecida debaixo de uma árvore.

Segurando um barco de papel. Dizem que ela surgiu num dia de abril.

Dizem que ela surgiu num dia de abril ao lado da primeira árvore ao lado da primeira árvore.
Aprendeu os primeiros sons como o vento, a falar com os pássaros, a amar e ser amanda
com a floresta. Um dia ela fechou os olhos e sonhou com enormes tartarugas vinda do mar.
As tartarugas avançavam com enormes asas que vinham com o vento. Dentro delas saíram
seres iguais a ela, mas diferentes. Eram homens barbados, desdentados na parte da frente
da boca, cheiravam a cena a erva ruim, embora ela nunca tivesse visto nada igual, ela sabia
que era um animal ruim. Um dia a primeira mulher e eu nos encontramos.

Uma casa
Mulher - É esta a casa?

Corretor - Exatamente. 27 cômodos como eu disse.

Mulher - Está um pouco velha, precisa de reformas.

Corretor - Velha eu não diria. Mal cuidada sim. Só precisa de um pouco de atenção.

Mulher - Quantos anos tem a casa?

Corretor - um pouco mais de meio século segundo os documentos. Mas ela já existia antes
dos antigos donos reclamarem as terras.

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Mulher - Segundo informações da minha família a casa tem 120 anos, no máximo!

Corretor - Esta casa foi da sua família?

Mulher - Da minha bisavó.

Corretor - Entendo. Quer voltar às origens.

Mulher - Mais ou menos isto. Teve um incêndio ali?

Corretor - Muitos incêndios.Incendeia e o Progresso apaga, soterra. O progresso resolve


tudo.

Mulher (em tom espiritualista) - Sinto uma energia estranha. Muita dor… Violência sabe?

Corretor - Mas olha esta janela, este ângulo. Não é linda?

Mulher - É realmente bela. Dá uma sensação de festa.

Corretor - Toda casa tem seus segredos.

Mulher - Preciso desvendá-los. Esta casa foi da minha família, minha bisavó morou aqui.
Estes dias eu recebi uma caixa, destas de papelão antigo. Na caixa tinha cartas, fotos e
documentos antigos. Foi então que eu percebi que não sei nada de mim, nem de ninguém.
Os antigos diziam: “Se você não sabe de onde vem, não sabe pra onde vai.” Percebi que eu
não sei nada de mim. Desculpa, eu entrei nos meus devaneios.

Corretor - Não tem problema, pode divagar à vontade, mas olha! Veja a casa! Que
potencial! Veja, é uma ótima oportunidade para você desvendá-la a preço de banana. Não
quero pressioná-la mas, há um grupo internacional que quer comprar a propriedade para
aproveitar o terreno. Vão derrubar tudo.

Mulher - Quero comprar. (Ele mostra o valor que está no papel).

Mulher - Fechado! (eles cumprimentam-se. Ele diz uma frase antes de sair).

Corretor - Vender esta casa garantiu meu futuro para bem longe daqui.

Mulher Terra
Alô! Ufa! Você não atende o celular! Eu preciso falar com você! A mãe não está bem, achei
que você fosse visitá-la, é feriado e eu pensei… A mãe… Ela não está bem… Ela ficou
internada semana passada e o estado dela piorou. Dinheiro? Não é nada disso. A questão
não é dinheiro. A questão é que ela quer te ver. Só isso. (leve exaltação) Ela é sua mãe!
Você não deixa eu falar contigo. Deixa eu falar, por favor! A sua mãe… A nossa mãe tem no
máximo dois meses de vida. Ela te chama todas as noites enquanto dorme. A nossa mãe, a
nossa mãe gentil está morrendo. Eu não quero, seu dinheiro, eu não quero sua parte na

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herança, eu só quero que você respeite e honre a sua história e a história da nossa mãe…
Alô! Alô!... Desligou o telefone.

Mulher Voz | A dor. (Texto todo em Libras, sem áudio).

Áudio gota de água caindo, no balde (torturante) gota na testa

Eu estou confusa agora. Não me lembro dos detalhes. É como se a minha cabeça
tivesse apagado tudo para fugir da dor.

A última coisa que me lembro, foi seu rosto sumindo devagar…

Éramos eu e ele. Todos os dias, ele fazia meu café e me levava a escola. E eu o ama.

Um dia ele chegou em casa bêbado, e ali eu senti a primeira marca em meu corpo. A
cada soco, uma culpa. A culpa era minha porque ela foi embora.

Segunda terça quarta quinta sexta sábado domingo, semana, mês, anos…

Todos os dias levando porrada! E a culpa era minha… Ela foi embora, e a culpa é sua!
E por anos eu aceitei essa culpa.

Perdi as contas de quantas vezes mudamos de casa, de escola….

Uma noite, resolvi fugir. Arrumei minhas coisas, mas ele chegará em casa antes,
completamente bêbado…

Foi a última cintada, a última porrada, e dessa vez me bateu tanto, que desmaiei! E
acordei aqui, neste lugar.

Foi aqui que eu encontrei ela, sorrindo ao me ver. Minha mãe não fugiu de casa.

Meu pai nos matou!

Caravelas 2
A primeira mulher
Raposa e coro geram imagens para a narrativa
Segundo os registros oficiais da Coroa Real ele era um criminoso. O menino dos pequenos
furtos, da infância difícil, do pai que cheirava a rum barato e da mãe que mais vivia lavando
roupa do que em casa. Cresceu levando cascudo do pai, depois do vizinho, depois dos
comerciantes, depois da guarda real, até que um dia foi preso. Ninguém foi defender ou
reclamar o rapaz e lá ficou preso entre ratos, piolhos e solidão. A única amiga era uma
raposa que entrava pelas frestas da prisão e deixava em colo castanhas. Um dia gritaram
“Indulto de liberdade! Vire marinheiro na nova rota para o Atlântico!” Nem precisou aceitar,
os próprios guardas o libertaram, o jogaram junto com os cavalos para tomar banho e o
mandaram direto para o navio. Num dia de chuva forte e mar revolto. Sonhou com uma

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mulher-árvore, ambos corriam pela floresta, fugiam de algo maior que eles. E entre as
margens do rio, cada um de um lado dele, se encontraram.

Primeira Mulher
Eu entreguei minhas ervas mais medicinais

Raposa
Eu entreguei doenças

Primeira Mulher
Eu entreguei minha natural curiosidade

Raposa
Eu entreguei minha natural maldade

Primeira Mulher
Mostrei os rios

Raposa
Eu os poluí.

Primeira mulher
Ele cortou o Pau Brasil em pedaços. Corta até hoje.
Perguntei a Tupã o que fazer. A ventania me deu resposta.
Eu fugi!

Raposa
Quase a tomei como minha mais preciosa posse.
Ela fugiu.
Eu fui atrás.

Eles correm em sentidos separados. Mulher cruza com a Primeira Mulher. À medida
que o texto é dito as demais mulheres surgem no espaço.

Mulher
és tu que tem a água morna de embalar os filhos.
os filhos de todo o mundo ganham colo através de teu afeto.
inteiro, o teu ser nina uns sonhos de quem apenas tem pesadelos.
és tu o raio de sol amarelo-ouro que banha a tarde
Ancestral.
és a encarnada Mãe do Rio,
És Sacya Ama,
és minha avó,
és minha mãe,
és minha filha.
és a que segue o curso baixinho, para ninguém ouvir; és lagoa.
também és cachoeira, és barragem de grito e canto veementes.
és o florescer da menor e mais límpada nascente.

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és a vontade de qualquer ser-tão: ser água.

Abril sempre abre algumas feridas. Todo ano as mesmas feridas. Abril acaba na esperança
de que Maio venha com seus ventos e sopre pra longe tudo que velho, tacanho,
preconceituoso e infértil.

Maio
Três cenas interligadas. Eles estão em locais diferentes. Cada um com seu objetivo.

Trivial
Bom dia!

Futuro
Bom dia!

Inútil
Bom dia!

Futuro
Eu fui assaltado no carnaval e perdi meus documentos na enchente. Eu vim retirar a
segunda via da minha certidão de nascimento.

Inútil
Eu vim me cadastrar para conseguir um emprego. Qualquer um serve.

Trivial
Sim! Yes! Sim! My Friend, realize my American dream. O que? Ah! É em português?
Desculpa, eu estou indo para um Job, trabalho, eu estou indo com intenção de trabalho e
morar, trabalho e morar, sabe como é, né? Crescer na vida é mudar de país.

Futuro
Eu sei que estamos em maio, minha senhora! Mas, infelizmente não consegui folga pra vir
aqui antes.

Inútil
Meu endereço? Pra que você precisa do meu endereço?

Trivial
Nova Iorque, e só para você saber perto do Empire State Building.

Futuro
Senhora? Vai demorar? Eu tenho que entrar no meu trabalho, se eu me atraso sou
descontado.

Inútil
(falando baixo. O jogo da cena é repetir até que a frase sai num rompante.)

19
Eu moro num abrigo.

Trivial
Se possível Forever... é,para sempre, eu gostaria quem sabe um dia né, quem sou eu, mas
ter meu visto permanente um cidadão do Tio Sam, desculpa, entendi, tá certo, responder de
forma mais sucinta, okay ?

Futuro
Desculpa! Eu não entendi. A senhora pode repetir por favor?

Inútil
É mais difícil. Eu sei, eu sei.. é o que vocês sempre falam. Me deixa fazer o cadastro
mesmo assim?

Trivial
Não! Ah, tá! Desculpe, você precisa que eu converta em dólares? Sou classe alta, ganho 10
mil.

Inútil
Moça, me escuta! Eu sei que você está fazendo o seu melhor, mas dia após dia que eu
reviro o lixo pra sobreviver. Você sabe o que é isso? Eu só quero trabalhar moça. Me ajuda
por favor!

Trivial
Todo mundo parece que sofre nesse país e ninguém quer se esforçar para melhorar igual
eu, enfim não faço parte disso, desculpa se você faz, mas eu não. Eu tenho pouco vínculo
com o Brasil, emocional então, to bem tranquilo, quero ampliar mais meu horizonte nisso,
sabe. E aliás eu passei na entrevista de visto?

Inútil
Não? Obrigado, moça! Eu entendo mesmo. Obrigado!

Futuro
Morri? Como assim eu morri? Eu estou aqui vivo, de carne e osso. Eu vim aqui para retirar
minha certidão de nascimento e a senhora me diz que só pode entregar a minha certidão de
óbito? Como me identificaram? No hospital? Eu só passei no hospital três vezes na minha
vida. Eu nem tenho o direito de ficar doente! Minha senhora, eu só preciso da minha
certidão! Nem precisa ser a minha. Dá qualquer uma. Me dá qualquer nome, qualquer
idade, qualquer sexo porque na vida que eu vivo qualquer coisa importa. Eu só quero
continuar a trabalhar e ter documento quando a polícia me enquadrar na rua. Eu não morri!
EU NÃO MORRI!

Mulher
Estou aqui eu, de novo, mulher para não se esquecer que o mês de maio foi o mês em que
a Abolição dos escravizados foi assinada. Ainda assim, dentro de mim, mora um sentimento
que me angustia da cabeça aos pés.

Quando nasci, um homem branco me segurou pelos pés

20
Bateu na minha e disse:
Vai mulher negra, sofrer na vida!
Pela primeira vez chorei sentida.
Só assim ele se convenceu de que estava viva
Desde então, muitos foram os tapas
Das mãos que me apalparam
Dos olhos que me despiram
Das bocas que me cuspiram
Dos ferros que me alisaram
Tapas atrás de tapas
Diariamente sovada
Assim me fizeram carne barata
Assim me fizeram mulher calejada
Assim me fizeram dor!
Conheci a literatura negra
E suas mulheres-fortaleza
Sensíveis como afago
Resistentes como aço
Tomei papel e a caneta
Escrevi e publiquei um livro
Oxalá, outros virão!
Escrevo e reescrevo diariamente
Em todas as páginas deste livro-vida:
Vai mulher negra, ser feliz!

Junho
A Mulher Terra

Eu amo junho!

Futuro e Tudo e Ninguém penduram bandeiras nas ruas.


Uma quadrilha passa.

A Mulher Terra

-Tá vendo como eu amo junho? A festa junina! Arroz doce, bolo de fubá, canjica, pé de
moleque, quentão, vinho quente…ahh como eu adoro! Esse tempinho frio, garoa gostosa.
Ah! Até resolvi fazer um bolo de milho! (Pensa na mãe no atual estado de saúde)

(Chama alguém na plateia.)


- Você aceita sentar aqui comigo pra comer um pedaço de bolo e tomar um café? Conversar
comigo? (Se a pessoa estiver com receio) não precisa dizer nada...só a companhia já vai
me fazer bem.

(Coloca a pessoa na mesa e fala sobre o bolo)

21
- Essa receita é da minha mãe. Fiz exatamente como ela me ensinou. Com milho mesmo,
ralando na mão com o ralador. Dá trabalho, mas vale a pena.
Ai minha mãe...ela sempre nos ensinou a plantar, a colher, a valorizar o alimento que vem
da terra. Quando eu e minha irmã ficávamos doentes, ela sempre tinha uma planta, uma
erva, uma folha, uma casca de um fruta que curava qualquer coisa! É o poder da natureza.
Minha irmã não dá valor, mas sempre tivemos muita fartura, comida boa e saudável. Graças
a Deus nunca nos faltou qualquer coisa.

- Homem Inútil

A gente não almoçou mas pelo menos não vai ficar sem jantar. Deus é bom. Servindo.
Vamos orar?

Pai nosso que estais nos céus,


Obrigado pela refeição que o senhor nos deu hoje.
Agradecemos pelo pão de cada dia,
mesmo que alguns dias o pão não chegou em nossa mesa.
Amém. Jantam em silêncio.

Essa não é a melhor refeição, mas é a melhor que temos hoje. Silêncio.

Você deve notar que não tem mais tutu


E dizer que não está preocupado
Você deve lutar pela xepa da feira
E dizer que está recompensado
Você deve estampar sempre um ar de alegria
E dizer tudo tem melhorado
Você deve rezar pelo bem do patrão
E esquecer que está desempregado

Você merece? Você merece…


Tudo vai bem, tudo legal…
Tudo vai mal…

Julho
Inútil (em continuação à cena anterior)
É Julho, é frio. Estou com fome, estou insone como uma gárgula em cima da catedral. Olho
no calendário e tiro de lá a folha do Mês de junho. Não tinha tirado ainda. Fico olhando para
a folha do mês de julho me perguntando quando a boa nova chegará. (Breve pausa) Julho
acabou e tudo ficou igual. Retiro do calendário a folhinha do mês que acabou. Olho
fixamente para Agosto e me pergunto: será que Agosto será gentil comigo? Agosto chegou.

Agosto
Bando Pinda.

22
Agosto!
Cachorro Louco

Agosto!
Cachorro Louco

A gente caminha três passos


E volta dois

A gente se anima três vezes


E cansa seis

A gente se deixa tomar


pelos compromissos
falta de tempo
sonhos esquecidos
corpo quebrado
alma inacabada

Agosto
É longo e implacável
Se passar por ele ileso
Agradeça

Agosto!

Prisão Tudo e Nada

Tudo e Nada
Coro em imagem opressiva.

Eu não devia tá aqui


Eu não devia tá aqui
Calma, não precisa tencionar o corpo não. Eu não vou te roubar. EU NÃO VOU TE
ROUBAR
Eu também tenho um tênis de marca no pé.
Eu tenho Iphone
Olha pra mim, olha pra mim!
Me forjaram e eu acabei nesse lugar
O meu sangue e o meu suor tá enraizado nesse prédio, mas quem acabou preso aqui foi eu
Vocês criaram o meu esteriótipo, agora se cuida
Parem de encostar essa mão branca em mim. Vocês acham que eu sirvo a vocês. O meu
corpo preto, não é uma obra de arte exposta nesses museus de São Paulo contando a
história de um país e sua cultura. Eu sangro igual a vocês!
Eu sangro igual a vocês, porra!
E se eu tomar um tiro, eu morro.

23
Futuro e Tudo e Nada

Futuro
Você tinha que vacilar! Te pedi tanto para você ficar esperto, não ir para aquelas bandas,
não conversar com aquela gente…

Tudo e Nada
Que gente? Essa gente é igual a gente.

Futuro
Não é!

Tudo e Nada
Não viaja! É sim! Você se acha superior, mas você nem existe, nem tem documento. Eu
pelo menos existo!

Entra a Cena Espelho. A cena acaba diferente. É um tiroteio. Eles se agacham e se


protegem.

Mulher
Comprei um sapato lindo número trinta e nove sendo que calço número quarenta e dois.
Andei muito a pé, adoentei-me. Pra acalmar os pés e não repetir esse ato insano fiz uma
salmoura de água quente e ensinei crianças e adolescentes que não se vende o próprio
sonho.

Mulher Escriba
Estes dias eu vi na internet uma matéria sobre pessoas trabalhando em regime de
escravização. Plena segunda década do século XX, a gente tem que ler isto. De prima eu
senti um embrulho no estômago. Depois me veio aquele ímpeto de que a gente precisa ter
força pra combater tudo isto. É preciso deslocar seu lugar no mundo, no seu quintal, seja
onde for. Desorganizar pra reorganizar. O caos está aí, mas parece que ninguém vê. Se
você já o percebeu se recoloque fora do centro. É essencial para a sobrevivência geral.

Setembro

Layane
Floresce
Desabrocha
Floresce, mulher
pra desabrochar de novo e sempre

Karina (Texto em Português, sem Libras).


Floresce o corpo
A alma
Floresce o ventre
e desabrocha em vida

24
Rita
É setembro
Primavera
Vento leve
sol morno

Layane
Colhe aquilo que plantou
Colhe o novo

Rita
Sem se esquecer de plantar de novo
Colhe

Mulher Escriba
É tempo do novo
Mas, mesmo que eu desejo o novo
Dentro de mim mora um sentido e sentimento de estagnação

Primeira Mulher
Ara Pyau
Tempo de colheita
O ano novo ancestral

Ara pyau!
O ano novo é comemorado com a renovação da terra
Os melhores frutos me chamam com seu cheiro doce
E eu corro livre entre as copas das árvores
Livre!
Até me esqueci que a raposa está à solta.

A primeira mulher
Lá do outro lado de onde meus olhos possam enxergar, entre os povos do Alto Xingu, me
contaram a história de que os homens de uma aldeia foram caçar na floresta para festejar
um menino que se tornaria adulto e futuramente um líder. Eles planejavam ficar 3 dias fora.
O único garoto que permaneceu na aldeia, decidiu na espreita da noite seguir os rastros
que os homens haviam deixado na floresta. Então esse menino, correu, correu, correu pela
floresta, até chegar no acampamento. Quando chegou lá, o menino ficou petrificado com o
que via…ele descobriu que os homens da aldeia estavam se transformando em bichos.
Sabendo da história, as mulheres se reuniram no pátio da aldeia e decidiram que a partir
daquele momento elas tomariam conta da aldeia. Festejaram. Dançaram. Cantaram a noite
inteira. Mal sabiam ela que todos os homens virariam bichos. Não importa quanto tempo
demorasse. Eles sempre viram bichos.

Se eu corro
Pra onde eu não sei
Socorro
Fui eu dessa vez eu

25
Raposa
Te encontrei!

Mulher Terra
A minha primeira árvore está morrendo. Era viçosa, florida, me deu a vida, frutas para
comer, me acolheu em dia de chuva, me protegeu do frio, me ensinou a subir nos galhos e
a cair. Os anos passaram e os ventos do tempo foram deixando a minha primeira árvore
curvada. Aquela árvore frondosa foi reduzida pelo tempo e pela falta de amor. Tornou-se
pequena e esquecida. A árvore gentil adoeceu de tal forma que não havia mais formas de
salvá-la. O meu amor não é suficiente para salvá-la. A árvore gentil morreu. A mãe gentil
morreu hoje assim que brotaram os primeiros raios do sol. A ironia é que ela morreu no mês
em que a vida brota. Ninguém devia morrer em setembro. Ninguém.

Outubro
Jogo de bola
Erês

Homem Trivial
Essa mala aqui é do meu pai, ele me mandou hoje, depois que ele morreu, Hoje eu enterrei
meu pai, meu velho pai.E olha as circunstâncias da vida.Ele se foi dia 01 de maio no dia do
trabalhador, faz 05 meses.

Erê
Quando eu crescer eu quero trabalhar muito, muito, muito pra ganhar muito dinheiro e poder
viajar o mundo todo, inclusive conseguir chegar na grécia, porque lá, me contaram que
existe um Deus chamado Zeus e é igual o nome do meu cachorro. E no meio do caminho
quem sabe eu não encontro meu pai de novo. Eu preciso trabalhar muito, eu quero
trabalhar muito

Homem Inútil
E olha que homem trabalhador, trabalhou até os 70 anos, descansou nem 7 anos, mas
trabalhou. Começou como engraxate, mexia com pintura, foi torneiro mecânico, já fez até
trabalho como motorista, mas a maior parte do tempo foi professor, e tudo isso que fazia
não era o suficiente para ser respeitado como um doutor.

Erê
Quando eu crescer eu quero poder ficar acordado bastante tempo, pra poder brincar muito
com meus brinquedos e meus amigos.

Rafael

26
Meu pai passou a vida inteira em pé, para passar só agora a eternidade deitado. Era só se
esforçar, eles disseram, era só tentar mais eles disseram. Quem diz isso nunca pegou
ônibus às 4 da manhã.

Erê
Quando eu crescer, eu quero poder ir pra casa da minha vó todos os dias pra comer bolo
de puba e favada que só ela sabe fazer.

Kaká
Com tataravó indígena, bisavó preta, avô europeu, o que começou com sobrenome de
Pitanga, depois Uganda, o que chegou pra mim foi o Oliveira, Oliveira, serviu para porra
nenhuma, carregar nome português nunca me ajudou em nada! Nada.

Homem Trivial
Aqui não tem nada! Eu vou sair daqui porque meu foco agora é dinheiro,vou para fora, aqui
é fazenda para país de primeiro mundo, esse povo tá tudo perdido, eu estudei, eu não
preciso dessa terra de Índio não.Tô levando aqui, tudo o que meu pai juntou, tudo que tem
aqui dentro foi tudo o que ele conquistou.

Erê
Papai, quanto você recebe por um dia de trabalho?

Homem Trivial
Como assim menino…

Erê
Toma, (entrega um cofrinho para o pai) agora você pode brincar comigo?

Coro
Você não vai abrir?

Abre a mala para finalmente ver o que tem dentro dela, percebe que dentro apenas
existiu contas, contas e mais contas, todos os outros personagens modernos estão
em cena, passam a mesma coisa.

O homem trivial pega a mala e vira sobre ele, tomando um banho de contas.

Mulher Voz (Texto Bilingue - Libras e Portugues)

Parabéns pra você, nessa data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida…
Silêncio e lágrimas…
Eu deveria estar feliz.
Comemorando o aniversário de 3 anos de minha filha, se não fosse a morte.
No hospital, quando ela nasceu, recebi a notícia que havia morrido. Erro médico, passou do
tempo.
Lá não tinha intérprete e ninguém que falasse Libras. Foi a pior dor do mundo.

27
Eu me senti silenciada pela sociedade, sem valer meus direitos.
O surdo não é mudo, mas não tenho voz!

“Som de crianças falando mamãe papai”


Silêncio
Ao fundo crianças e só na libras”
⁃ desculpa filha, por não te ver falar
⁃ Desculpa filha, por não te ver crescer
⁃ Desculpa filha, por não te abraçar

Eu sou surda e preciso valer a minha voz!

Novembro
Mulher Escriba
Faltam 45 dias para chegar o fim do ano. É tão estranho quando a gente deixa de contar os
meses para contar os dias até o fim de algo que não vai acabar. Não é porque o ano acaba
que os problemas acabam ou não é porque é ano novo que eu terei meu grande amor. A
gente é a mesma roda que gira no mesmo lugar, correndo dos mesmos problemas.

Raposa
Da raposa ninguém escapa.

Primeira Mulher
Nunca tinha visto uma raposa. Já tinha visto cobra, sussuarana, carcará, mas raposa
nunca. Animal que vive longe da sua terra-vida, acaba morrendo.

Raposa
Fiz dela minha propriedade, assim como a dimensão desta terra que também fiz minha. De
onde vim, não se entende esta condição de que é todo mundo. De onde vim a terra é dos
senhores. E agora senhor eu sou.

Primeira Mulher
Fui caçada, amarrada, domesticada, virei propriedade da Raposa, a senhora da casa, mas
dormia amarrada na cama. Era prisioneira dentro do meu próprio abrigo.

Mulher Escriba
Faltam 30 dias para acabar o ano.

Mulher Escriba
Tentei reformar uma casa. Quanto mais se tentava consertar, mais caía. As paredes tinham
histórias tão pesadas que era insustentável sustentar-se num chão-terra que parecia
suspenso.

Raposa

28
Depois das demarcações de terra, pequenas e grandiosas instalações se ergueram. As
aldeias foram engolidas pelas cidades.

Futuro
Quem ergueu tudo isto? Quem pavimentou ruas? Abastecia as casas de água?

Tudo e Ninguém
Foi quem veio sem querer ter vindo. Um mundo ergueu-se pela imposição. Tudo que se
ergue assim, um dia, desmorona.

Mulher Escriba
Faltam 10 dias para acabar o ano.

Todas as Mulheres
É um ciclo. Ciclos bons permanecem, a vida se sustenta por estes ciclos, mas e quando os
ciclos são de dor e morte do corpo e da alma? Florescer todos os dias cansa. Mesmo
assim, eu insisto. Sou flor que desabrocha pra dizer que sou fortaleza. Não mexam comigo!

Escriba
É por isso que escrevo, escrevo para registrar os acontecimentos. Escrevo para
desorganizar as narrativas. A caneta precisa estar nas mãos daqueles que foram soterrados
por uma avalanche que detém o poder. Talvez seja melhor que as paredes caiam, talvez
seja melhor que o chão desabe e que o céu seja o ponto de partida de tudo. Reescrever
uma velha história é apresentar novas perspectivas sobre o mesmo tema.

Primeira Mulher avança sobre a Raposa e crava uma faca no peito ou nas costas. A
Raposa viram um Encantado.

Primeira Mulher
Animal que vive longe da sua terra-vida, acaba morrendo.

Mulher Voz - (Texto em Portugues)


Eu não sei se é Novembro ou Dezembro. Contar o fim do ano pelos dias é uma angústia e
alívio. Eu sou uma sobrevivente. Eu sobrevivi há quase 365 dias das durezas da vida.
Todos os dias me lembro que nascer é algo violento. A mãe se contorce de dor e gritos para
fazer sair dela uma vida. A criança embarca no túnel apertado e desconhecido, seu corpo
se comprime esmagando seu corpo frágil e indefeso. Os dois lutam pela continuidade da
vida. Eu continuo lutando.

Trivial
Já fiz 12 despedidas. Me despedi de amigos, que não sei se são meus amigos, me despedi
da família que não sei se me amou o suficiente. Me despedi de colegas de trabalho e estes
talvez sejam exatamente os únicos que eu realmente conheço. Como as pessoas são
invejosas no geral. Não se animam porque o outro venceu. Eu logo logo, me despeço de
um passado tupiniquim para ingressar no clube dos cidadãos do mundo. Eu sou foda!

Futuro

29
É Halloween que se misturou com a decoração do Natal, mas ainda se vê as bandeirolas
desavisadas que insistem em balançar nos ventos de novembro.

Tudo e Nada
É dezembro, chará, ta moscando!?

Futuro
É dezembro? Já! Eu não sei. Não sei. É dezembro. Sim! É dezembro e eu perdi a
possibilidade de ser um trabalhador, um “eiro” de carteira assinada porque eu não tenho
documentos. Eu sou um morto vivo e talvez por isso eu me sinta num eterno outubro. Num
eterno Halloween. Um morto vivo que perdeu a promoção e agora tem que passar o Natal
trabalhando em subemprego porque não tem documento.

Começa um discussão sobre dezembro e janeiro, até que Mulher Terra interrompe a
discussão.

Mulher Terra
EU ESTOU GRÁVIDA! De tanto plantar, cultivar, perder a árvore eu decidi ser a árvore. Há
vida em mim. A vida em mim vai desabrochar no alto verão do ano que virá. No janeiro dos
recomeços que está logo apontando sua chegada. Eu sou árvore frutífera festejando as
mulheres árvores que contam a história deste quintal. E que a história seja reescrita num
pacto de mudança. Que venha o novo! E que você como tiver que vir!

Homem Inútil
Erga essa cabeça e mete o pé
E vai na fé
Deixa essa tristeza embora
Pode acreditar, um novo dia vai raiar
A sua hora vai chegar
Só tenho uma coisa a dizer: Eu estou na merda, mas eu tenho esperança!
Feliz Natal!

Mulher Escriba
Chegamos no último dia do ano

Último dia do ano


Dezembro

Inútil
É 7h da manhã. Estou de pé desde às 5h. Ajudei alguns feirantes numa feira de gente de
rica e ganhei verdura, legumes e frutas. Tudo pra ceia. Até peixe eu ganhei. Fim de ano as
pessoas ficam mais generosas. Olham até nos olhos da gente! Quero que tudo seja
especial. Que este último dia seja a porta de entrada para um ano cheio de fartura e
prosperidade.

30
Voz (Texto Bilingue - Libras e Portugues) Após a fala, durante a passagem no palco
repete em Libras todo o texto.

São das 10h da manhã. Ontem eu estava vendo as estrelas pela janela e percebi que
um homem me observava meio escondido num poste. Ele estava parado, mas quando
percebeu que eu o olhei ele teve um espasmo de susto. Acho que eu também tive o
mesmo espasmo, como se ambos se descobrissem. Olhei para o canto perto da cama e
minha mala estava lá. Minha mala sempre está pronta. Quando olhei de volta para fora, ele
não estava mais lá. Não dormi à noite. Sei que não dormirei até me sentir segura
novamente. Preciso me manter acordada, preciso pensar no que fazer.

Homem Trivial
11h da manhã. É hora do meu check-in. Vim embarcar. Enfim, passarei o Réveillon em lugar
nenhum. Estarei voando em direção ao meu sonho. Como é bom sonhar. Melhor ainda é
poder realizar. Me sacrifiquei, deixei de comer pelos aplicativos, deixei de me locomover
pelos aplicativos. Tive a vida mais normal possível e como ela é difícil, gente! Economizei e
agora estou pronto para o novo. Estou pronto para o Norte. Chega de Sul, chega de ser
uma rapaz latinoamericano. Chega dessa mesmice miserável imposta pelo mundo.

Futuro
São 11h da manhã e eu estou do outro lado da cidade. Lugar onde o avião passa lá no alto,
como se fosse um pássaro de tão pequeno que se vê. É o último dia do ano e eu resolvi
comemorar. Pra tudo tem saída! Só não tem saída pra morte! Chega de lamúria! Chega de
reclamação! Meu corpo hoje é festa pura! Meu corpo hoje quer dançar, minha boca quer
beijar, minhal alma quer prazer! É a festa no Novo! E que o Novo venha porque eu estou
preparado!

Escriba
Já é meio dia! Me dei conta de que não tenho roupa nova para passar o Réveillon.
Reveillon, palavra bonita. Estes dias vi no dicionário o que significa acordar. Acordei! Eu
acordei este ano. Preciso me esforçar para continuar acordada. Acordada para as
injustiças, as mazelas. Ano que vem pra mim já começou. E o meu desejo é não durma
jamais!

Terra
Estes dias sonhei com uma mulher. Não era uma mulher deste tempo. Ela era diferente,
não sei dizer se ela é do passado ou do futuro. O passado eu não conheço e o futuro é
sempre a incerteza entre de se vamos para frente, para o lado ou para trás. Ele me oferecia
seus braços para me apoiar. Estava com os pés fincados na terra, como se tivesse
enraizada. Foi então que nossos braços se cruzaram e ela me arrancou. Uma sensação de
dor foi substituída, quase que imediatamente, pela sensação de alívio. Ela me olhou nos
olhos e disse: “Siga com os pés na terra, mas não fincada à ela.” … “não fincada à ela”.
Fiquei a manhã inteira matutando. Só agora me atentei que já passam das 2h da tarde.

Voz - (Texto Bilingue - Libras e Portugues)


Comprei um bilhete de passagem, para às 20h. Ainda são 18h, não gosto de esperar.
Eu sempre esperei e a espera sempre me deu surpresas de presente. O problema é
que a surpresa nunca é boa.

31
Escriba
Precisei ir ao shopping. Odeio shopping. Fim de ano, então… Tortura! Estava olhando as
peças de roupa desta temporada e percebi uma mulher comprando um bilhete de viagem
nestas agências de turismo populares. Ela tentava se comunicar com a atendente, que
obviamente não queria estar ali. Entrei na loja e a ajudei a comprar a passagem com o
pouquíssimo de Libras que eu sabia. Ela aliviada, eu indignada, a atendente indiferente. Na
hora me senti numa enorme metáfora de nação a qual estou inserida. Ao sairmos ela me
disse:

Voz - (Texto em Libras com áudio em Português).


Obrigada! Eu estou em fuga. Acho que eternamente em fuga. Eu tinha um marido que
dizia que me amava, mas fazia isto na frente dos outros. Em casa ele me violentava
de todas as formas e das piores maneiras possíveis. Um dia não aguentei e bati com
um pedaço de madeira que escondi debaixo da cama. Eu pensei. Se ele vir pra cima
de mim eu vou me defender. Assim o fiz. Bati na cabeça dele sem dó. Ele ficou caído
e eu fugi, achando que eu o tivesse matado. Meses depois descobri que ele estava
vivo e que me procurava para se vingar. Estou fugindo de novo. Digo isto pra você
porque vou ficar viva por mais algum e este novo tempo eu devo à você que me
ajudou. Você e muitas mulheres que vem me ajudando. Somos fortaleza. Não nos
esqueçamos disto.

Suçuarana
Foi quem me fez aprender
A valentia
Quanto é matar ou viver
Andar na terra
Andar, lutar e seguir
Eu sei que é ela
Quem toma parte de mim
Eu viro fera
Só me provoque pra ver
Eu viro fera
Enfio a unha em você
Sou arredia
Eu não te dou permissão
A Lua cheia
Sangra de dentro do meu coração

Primeira Mulher
A história é a cobra que come o próprio rabo. Não tem começo ou fim. Ela gira em torno de
si mesma. A história se repete como as estações, mas a história é cruel. Não há como
escapar. No tempo de vocês é a chegada de um novo tempo. É renovação. É tempo de
desejar um mundo novo.

Mulher Terra
Eu sonhei com uma mulher e ela dizia: “Vai!” (Primeira Mulher repete “Vai!”)Vá ao
encontro de outra mulher. (Primeira Mulher repete: “Vá ao encontro de outra mulher)

32
Assim fiz. Guiei-me pelo ônibus cobra, pela floresta de postes e fios, pelo monstro shopping
center, fui engolida por ele e agora estou aqui na sua frente para te escoltar para o novo.
Não há tempo ruim que a entranha feminina não resista. Somos árvores fortes na
tempestade e no vento.

Primeira Mulher
Somos árvores fortes na tempestade e no vento.Somos o sangue que rega esta terra há
milênios. Somos a base. Rocha antiga. Quando uma adoece, eu adoeço também.Quando
uma está alegre, a alegria eu sinto. Eu sou uma de vocês. Eu sou todas vocês.

Todas as mulheres
Eu sou você, ela, ela, ela (vai apontando para plateia). Por isto, se me encontrar na rua,
procure meus olhos e eu te entenderei pela sua respiração.

Primeira Mulher (para Mulher Voz)


É hora de partir.

Mulher Terra (para Mulher Voz)


Meu ventre logo se partirá e dele sairá outra mulher. Outra eu, outra você. Somos tantas e
infinitas que às vezes nos esquecemos que este bando é uma banda irremediável de
existência.

Mulher Escriba
São 23h e ela parte. O que aconteceu antes dela não tem explicação e se eu contasse
ninguém acreditaria.

Movimento de cena. Mulher voz, entra numa espécie de fila de embarque. Ela
embarca. As mulheres dissipam. O Homem Trivial faz o mesmo, mas sem sucesso.

Homem Trivial

Olá! Sim vou me embarcar nesta companhia. Como? Não entendi. A companhia quebrou.
Como a companhia quebrou? Minha senhora braço quebra, dedinho do pé quebra, grandes
corporações não. Eu preciso embarcar. Não! Eu preciso embarcar hoje. EU PRECISO
EMBARCAR HOJE. Hoje! Preciso! Embarcar hoje! Preciso!

Eu não daqui! Eu não daqui! Eu sou de lá! Do Norte! Não do Norte do Brasil! Eu sou do
hemisfério Norte! Eu sou um deles! Eu sei! Eu tenho certeza! Eu posso ser igual igual a
eles. Eu posso ser sim! Olhe para mim! Eu sou igual a eles. Eu não sou brasileiro eu não
sou brasileiro. Eu sou sobrinho do Tio Sam. Eu conheço tudo sobre eles, eu conheço tudo
sobre eles, eu sei o nome de todos os seus presidentes, sei o nome de todos os cantores
pobres eu tenho um nike, eu tenho um nike, é claro que tenho um nike minha mãe me deu
um nike e minha mãe me deu um all star eu sei o que é um star, eu quero ser um superstar,
eu conheço todos os estados são 50 sim são 50, eu compro na amazon, eu assino a Netflix,
eu posso ser igual a eles, eu posso ser igual a vocês. Eu não sou brasileiro eu não sou
brasileiro eu não sou brasileiro eu não sou brasileiro EU SOU BRASILEIRO.

O Homem Trivial cai.

33
Percebe que teve um surto. Se recompõe.

Homem Trivial
Este é o último dia do ano presente. (frisar)
Meu corpo cansado
Minha roupa encharcada de suor.
Minha alma encharcada mais ainda de vergonha
Digo por aí que sou invencível,
Mas, olhando pra mim, é fácil concluir: sou um fracassado!
(pausa)
Eu sei que tudo vai melhorar, vai!

Tudo e Nada
Ae bora rapaziada! Fiquei sabendo que o baile ta pocando e a polícia jaja vai moiá

Todas as mulheres
Calma! Eu preciso me preparar. Fiquei o ano todo de uniforme e agora eu vou ser a rainha!

Futuro
Rainha da Cocada!

Tudo e Nada
Rainha da Uganda

Futuro
Rainha da Bateria

Todas as Mulheres
Rainha do Rolê, do Baile, Rainha do que eu quiser, agora vamos. Estou pronta e hoje ninguém
me segura.

Eles dançam um trecho de música

Tudo e Nada
Ae! Já vai da meia noite. Contagem Regressiva hein!

Todos ganham um lugar no espaço e contam de 10 a Feliz Ano Novo!

Todos
Feliz Ano Novo!

O Funk retorna.
Tiros.
Eles se protegem.
Elenco entra no palco.

Foi tão rápido. Primeiro uma quentura atravessando meu peito. Depois uma vazio, como se
alguém me invadisse e me arrancasse o coração. O coração estava lá, mas a minha energia,
minha vontade de viver, meus sonhos, meu futuro não. Um tiro. Um tiro! Entre os tiros trocados
um me acertou. O tiro destino me acertou. O tiro já tinha sido dado desde o reveillon do ano

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passado quando roubaram meu salários e meus documentos. O tiro já estava dado quando fui
pegar minha certidão de nascimento e me deram uma certidão de óbito. O morto que não
morreu em maio. Morreu agora no início do ano. Não é só um corpo que morre. Quem morre é
um filho, um pai, um irmão, um amigo. Quem morre aqui não é um número. Quem morre aqui é
uma história. Uma história inacabada.

Todas as mulheres percebe que Futuro morreu.


Momento de dor.

Tudo e Ninguém
“Futuro! Futuro, porra! Acorda irmão!
Eu sou você, mano. Eu juro que sou você
Nós somos brasileiros
Saluba Nanã!
Saluba Nanã! Cuida desse corpo, mãe

Futuro
Liga pro Jobi

Tudo e Ninguém
Jobá, atende mano!
Parceiro, encosta aqui no Baile do Pinda, o Futuro tomou um tiro!
Independente, parceiro. É o futuro, caralho! Salva nois. Ele tomou um tiro, tá sangrando demais.
Vem logo, irmão! A gente precisa salvar o futuro!
Sem remetente, sem remetente não chega
Qualquer coisa, qualquer coisa que não tenha remetente… não chega
Nosso futuro tá morto, mulher
Aqueles porcos filhos da puta, matou mais
um dos nossos e dessa vez eles mataram o futuro.
O futuro tomou um tiro!”

Música
Damião

Dá neles, Damião!
Dá sem dó nem piedade
E agradece a bondade e o cuidado
De quem te matou
Dá neles, Damião!
E devolve o hematoma.
Bate mesmo, até o coma
Que essa raiva, passa nunca, não
Sangue e suor pelo vão.
Sentir mais a dor, vingar
Ver respingar o pavor
Quem bateu, levar
Dá neles, Damião!
Mesmo que peçam clemência
Faz que é tua essa demência
Faz pesar a consciência do plantão
Dá neles, Damião!

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Mira no meio da cara
Dá com pé, com pau, com vara
Bate até virar a cara da nação
Sangue e suor pelo vão
Sentir mais a dor, vingar
Ver respingar o pavor
Quem bateu, levar
Dá neles, Damião!
Bate até cansar e quando cansar
Me chama

Perto do fim da música o Bando se aproxima com um tecido, que será uma futura
Bandeira.

Tudo e Nada
Ressignificar.
Ato de transformação.
Alterar o caminho e considerar nova rota.

Futuro
O Futuro é Tudo e Nada
O Futuro é uma porta aberta
O Futuro é morte, mas também é vida.
Há perigo a frente, há perigo agora e houve perigo em 523 anos de história.
Povos e culturas destinados ao alvo por mãos alvas de um patriarcal que rosna pelo capital

Tudo e Nada
Branca são as pequenas estrelas de uma bandeira colorida para representar a paz.
Calma (risos), a palavra está no plural.
Mostrando variedade de formas de cavar uma vala e afundar histórias, culturas, tradições e
memórias.

Trivial
O amarelo, é uma cor viva, representa a riqueza. Talvez o retorno das riquezas mal distribuídas
que os brasileiros querem atrair naquele momento de Feliz Novo Ano Velho, quando colocam
uma camisa, vestido ou roupa íntima amarela.

Primeira Mulher
A fartura do verde que agora cai em cinzas se melando de vermelho em consequência da busca
do dourado. Quanto custa a vida?

Layane
Cansamos de sermos representados por cores vivas em uma atualidade onde só se morre…
Morrem as esperanças
Morrem crianças
E o que nos resta são cores terrosas
Mas a esperança insiste em reviver porque no dia seguinte a gente se levanta da cama pra
trabalhar.

Futuro
Só um corpo que festeja é um corpo que sabe lutar.

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Tudo e Nada
Joga fora uma cama
Diariamente soterrados na lama
Mas são com alguns baldes de água e puxada de rodo que reconstruímos, reestruturamos e
ressignificamos
A luta que é sobre-vivência

Futuro
É hora do Futuro virar Presente
É hora do Hoje, Agora, Já
É hora de esperançar
É sobre viver em lutas diárias
Fortalecidos em amarras
Que traduzimos na fé
É num amém
Num Allahu Akbar
Ou num axé

Todos em tempos e formas diferentes


Olhar pra frente e acreditar
Olhar pra frente e se firmar
Olhar pra frente pra lutar

Música
Olha pra frente
Olha pra longe
Além do horizonte, Olha!

Mire e veja!
Vê!
Vê que tem PRESENTE
De barriga cheia, eu sonho
Eu olho para o Futuro

Todo Bando é um pouco Revolução

Somos um bando e não nos calamos


Somos um levante
Levanta!
Levanta!
Levanta!

Todo Bando é, sim, REVOLUÇÃO

Blackout

Fim

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