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Quando a estética mais interessa aos cientistas

Rodolfo Eduardo Scachetti*

A formação dos cientistas e dos técnicos em geral é longa e custosa em muitos


sentidos. Mas, a rigor, fragmentos do pensamento científico, diferentemente polvilhados
nas mentes adultas ao redor do mundo de modo talvez tão desigual quanto amplo, já são
compartilhados desde que as crianças são bem pequenas. Isso pode explicar em parte
alguns trajetos de sucesso nas ciências; pode facilitar outros, já que talvez seja mais
simples o avanço das crianças que detêm o capital cultural, que, em resumo, trata do
repertório de saberes facilitado a determinado grupo social – tal como descrito na obra
do sociólogo Pierre Bourdieu; mas pode também inviabilizar outros tantos percursos por
falta da lenta gestação de um universo de referências – termo este que, por sinal, vale
especialmente para as artes, como ainda veremos.
Desde que os pequenos começam a se abrir ao mundo, aos seus estímulos,
passam logo a questionar os adultos. E essas interações serão, sem dúvida, fundamentais
no seu desenvolvimento. Ocorre que mentes infantis avançam por um certo tempo
interagindo com o mundo, as coisas, as paisagens e os seres sem dominar ainda os
filtros de áreas específicas do saber. Eles virão aos poucos, ao longo da socialização.
Não demora muito, na verdade, para serem apresentados, e é de se supor que o contato
ocorra com fragmentos de formas de conceber, pensar e sentir o mundo que são
avizinhadas àquelas usadas nas ciências, nas humanidades e filosofia e nas artes. Afinal,
pais e professores também tiveram em maior ou menor grau influência dos saberes e
práticas das ciências, das artes e da filosofia.
Se, na base, as crianças parecem mais perto de uma espécie de pensamento
holístico e um tanto mágico, a institucionalização das disciplinas e sua especialização
começam a jogar contra essa espécie de mente infantil, especialmente ao longo de
algumas das principais formações acadêmicas. O que caracterizaria esse mindset, para

*
Formado em ciências sociais e comunicação social, é mestre e doutor em Sociologia pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp). Atua com abordagens interdisciplinares, com humanidades e artes na
formação em ciências do mar. É professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
usar um termo da moda? Seria, grosso modo, a mente em “estado de fábrica” – seu
modo default. Essa ideia de mente em estado de fábrica é bonita, pois logo o que ocorre
é o início da produção (mental) e tudo o que dela decorre enquanto transformações de
materiais. O psicanalista Félix Guattari e o filósofo Gilles Deleuze traduziram a vida
mental inconsciente justamente através dessa noção de usina, de fábrica. Mas o que
propriamente seria esse mindset infantil? Só para exemplificarmos mais concretamente,
em geral a mente infantil ainda distingue mal entre a pura beleza do traço (pensemos na
força da ideia do traço livre) e a potência da letra quando esta já materializa uma
memória (a palavra como forma de registro, arquivo, contrato); em suma, entre a arte do
desenho e a capacidade técnica da linguagem escrita. Na infância, essa indistinção é um
efeito colateral interessante do parentesco entre o desenho e a escrita. Mas, aos poucos,
a escrita parece obedecer a um chamado e, enquanto tecnologia, resolve que deve
apagar o traço. Excluir o desenho. E só com esforço volta a se aproximar das artes em
trabalhos expressos no campo da literatura, da poesia. Sem dúvida, a tecnologia nunca
ocupa todo o campo do possível, e por isso o jogo entre a arte e a técnica se mantém
sempre aberto, apesar de não ser mentira que a função técnica da escrita, nesse exemplo
que estou explorando, na maior parte do tempo prevaleça. Apenas em culturas não-
Ocidentais é que o desenho pôde manter sua cidadania plena na linguagem com a
ausência de uma escrita fonética. Traço e letra não se separaram.
No Ocidente, essa pequena imagem mental da letra apagando o traço talvez
possa ser vista como um emblema de algo maior. Muitos de nós caminhamos nos
sistemas de ensino rumo aos saberes científicos especializados que, por várias razões,
atualmente gozam de maior prestígio social, e aparentemente passamos a ter uma
relação de completo estranhamento com as áreas chamadas “moles”, aquelas que
flertam mais de perto com a cultura. Dentre elas, as artes, talvez ao lado da filosofia, são
visivelmente as ainda mais acantonadas nos confins dos saberes; em seu próprio
ecossistema tudo pode até ir relativamente bem, mas é no campo do relacional que os
curtos-circuitos começam, e emergem as famosas frases que, por vezes, os mais
científicos deixam que se retransmitam mais uma vez: “até uma criança de 5 anos faria
esse desenho dessa exposição artística”. Talvez, em raciocínio contrário, artistas façam
justamente um enorme esforço para manter suas mentes alinhadas a traços das mentes
infantis.
Neste ensaio, meu objetivo será colecionar alguns motivos e exemplos pelos
quais eu acredito que é necessário (inevitável, no fundo) que todos estejam atentos às
potências e vertigens das imagens, das visualidades, da estética. Atentos sim a uma
dimensão estética em suas formações, e, mais do que isso, às voltas com essa dimensão
em suas próprias vidas de uma maneira mais ativa e amorosa. O tempo da formação
científica é longo e custoso, mas o tempo da introdução às artes talvez seja ainda mais
exigente em certos sentidos, como em seu diálogo com a tradição, via citações,
influências, escolas, técnicas, distinções etc. Se, nos termos do historiador das ciências
Thomas Kuhn, o saber científico é paradigmático (uma teoria costuma se sobrepor à
anterior, e podemos operar no mundo ancorados no paradigma em funcionamento
mesmo sem dominar muito bem essa história de superação) e as humanidades históricas
(múltiplas teorias convivem e buscam explicar os fenômenos sociais, e, portanto,
podemos em certo sentido escolher nossos óculos de leitura do social), o que dizer do
estatuto das artes nos saberes? O que dizer quando o que mais conta são justamente as
referências, as citações e as diferenciações? O novo nas ciências se ancora cada vez
mais em sua ligação com as tecnologias, e talvez seja mais difícil se enganar nesse
campo na medida em que, em geral, as tecnologias são colocadas a serviço de uma
canibalização feroz dentro de sua própria linhagem; no caso das artes, é preciso
repertório para evitar, ao invés do novo, o ver de novo, já que a arte contemporânea não
dominou e neutralizou o espaço das artes clássicas e modernas – ao menos não no que
toca aos gostos, mentalidades e práticas sociais relativas a experiências estéticas.
Essa questão da imagem norteou minha trajetória acadêmica, e com uma
inflexão propriamente relacionada às formas de conhecer. As artes, e particularmente as
artes visuais, sempre me interessaram – apesar de termos de reconhecer que o Brasil não
é um país ideal a quem queira estudar o assunto, especialmente pela dificuldade de
circulação das obras por aqui, pela inserção frágil no cenário das artes, dentre outras
limitações. Mas as artes não me interessaram apenas no sentido da busca por seu lugar
próprio nas aventuras do conhecer, mas no que elas poderiam fazer de especial junto das
outras áreas, especialmente as ciências sociais, a filosofia, a psicologia, a antropologia e
a história.
Voltarei a tratar disso aqui: as artes visuais ou visualidades enquanto elo
constitutivo dos desafios contemporâneos, do jogo de forças vital que envolve e arrasta,
em um mesmo movimento – ao contrário do que com frequência se imaginou –,
humanos, seres vivos em geral, objetos, tecnologias. Dentre esses desafios, um tem
destaque, talvez por perpassar tanto os campos das ciências quanto o das artes: os
enigmas das visualidades, das primeiras aparições do novo como dizia o poeta alemão
Heiner Müller, sua força e suas vertigens especialmente no que mais importa hoje (na
vida e, portanto, nas artes e nas ciências também) que é, mais do que pensar o futuro,
mantê-lo possível frente às tantas crises – ou, por assim dizer, vislumbrá-lo.
Quem trabalha em alguma medida com a tentativa de produzir saberes sente,
muitas vezes, a necessidade de fazer uma espécie de balanço de suas contribuições. Por
mais difícil que seja nos certificarmos, em um momento de produção acadêmica tão
volumosa, sobre se estamos ou não diante de algo novo, penso que ao menos importa
darmos nossa combinação própria a uma coleção de pistas ou fragmentos. Nesse
sentido, o que farei agora será mostrar uma parte do conjunto de elementos que pude
reunir nas minhas pesquisas sobre o campo das visualidades integrando o espectro dos
saberes (e práticas, uma vez que não há boas razões para separar saber e fazer).
Nas minhas pesquisas sobre sociologia e cinema, era o estatuto da “imagem” que
eu espreitava. Minha questão norteadora era como a imagem foi, por vezes, apropriada
pelas ciências sociais e psicologia social enquanto instrumento de pesquisa. O foco foi
uma obra intitulada The authoritarian personality, publicada nos anos 1950,
particularmente interessada em medir traços autoritários no contexto estadunidense a
partir, dentre outros instrumentos, de testes com imagens, os chamados testes de
apercepção temática (TATs). Neles, figuras eram usadas para provocar reações e
descrições verbais nos participantes. Além de tratar desse uso, na época comparei o
funcionamento dos TATs na pesquisa social com imagens que funcionavam como
TATs no cinema, e o caso emblema que utilizei foi o filme Beleza americana, dirigido
por Sam Mendes. Nele, o diretor revelava justamente os limites que a leitura e
interpretação de imagens apresentam, gerando situações de desencontros que podem ser
atribuídos ao próprio campo problemático da percepção visual. O exemplo mais forte
disso no filme é a imagem parcial que engana Coronel Fitts. Visto através da janela,
esse verdadeiro frame ilude, a partir da perspectiva formada entre quem vê e quem está
sendo visto, a personagem rumo à conclusão de que seu filho e seu vizinho teriam uma
relação amorosa. Amor e percepção têm relações estreitas pelo jeito. Interessante notar
como a imagem enquanto produção mental da percepção humana traz, portanto, limites
patentes, e constitui assim uma dimensão rica do ponto de vista sociológico. Nessa
chave, o visual, ao contrário do que apregoa o senso comum através da expressão “uma
imagem vale por mil palavras”, constituiria uma dimensão problemática de acesso ao,
por assim dizer, verdadeiro. Ora, essa é uma discussão que remonta à filosofia clássica,
a Platão e Aristóteles, e vemos desde já que voltar aos clássicos é uma consequência
daquilo que com Kuhn entendemos ser quase impossível: uma substituição
paradigmática simples dentro das humanidades e artes.
A imagem nunca saiu de mim. Minha vontade de compreender melhor as
relações entre imagem e conhecimento me levaram a outras pesquisas no mesmo campo
de interesses. Eu acredito que penso, percebo e sinto melhor com as imagens. Na
docência, em geral vou acompanhado das imagens e depois aparecem as palavras para
tratar dos temas que dirijo aos alunos das áreas de ciência e tecnologia para os quais
leciono. Se o tema tem forte carga sociológica ou ambiental, então levo imagens de
várias naturezas técnicas para disparar a fala.
Começo pelas imagens, ainda que elas promovam esse jogo múltiplo que passei
a descrever. Por vezes, elas parecem mais próximas do verdadeiro no sentido que o
realismo científico atribui ao termo, já que elas chegam com mais facilidade perto de
uma comunicação (aparentemente) transparente. Tirando um pouco o foco do chamado
naked eye, parte constitutiva da importância que ganhou o uso da fotografia e do cinema
nas ciências humanas foi consequência dessa capacidade técnica de reprodução do
mundo sensível em sua ordenação social. Seriam tecnologias capazes, do ponto de vista
semiótico, de operar no nível do índice, daquilo que é indicial, ou seja, algo da própria
coisa representada estaria diretamente na imagem produzida na representação. Mas essa
ideia não durou tanto assim com essa inflexão mais fenomenológica relativa às técnicas
de reprodução do visível. Digo isso, pois filmes como Blow up, do diretor Michelangelo
Antonioni, vão mostrar justamente que a câmera revela até mais do que o visível, mais
do que a experiência sensorial direta. As tecnologias visuais começam a poder
manipular de tal modo o tempo, o movimento e o próprio espaço que é todo um novo
mundo de percepções que se abre. O corpo humano como lócus do perceptivo é
potencializado, e esse movimento, que é bastante antigo no fundo, ganha com a
fotografia e o cinema proeminência no mundo contemporâneo quando se trata de olho-
máquina. E isso vale para as artes, as ciências, o trabalho ou a própria vida cotidiana – a
visualização técnica é cada vez mais usada nas ciências em áreas como a medicina, no
trabalho com modelos cibernéticos formatando as linhas produtivas, mas no cotidiano
ela também é onipresente, seja como distração, seja como vigilância, seja como
distração-vigilância se pensarmos no uso da internet atualmente. No filme do diretor
italiano Antonioni, só a fotografia pôde a posteriori revelar o corpo no parque e
desencadear a narração. Sem reconstruir em mais detalhes a história da emergência das
visões-máquina, vale dizer que há muitos cruzamentos entre essa história e aquela de
gestação das próprias ciências – e a relação de Galileu Galilei com o telescópio e sua
tese de que o Sol estaria no centro do universo certamente é uma das faces mais visíveis
disso.
Mas, em outros momentos, as imagens parecem mais próximas das fabulações,
dos sonhos, dos mitos, da aura (no sentido consagrado através da obra de Walter
Benjamin), do anímico (aqui no sentido do animismo. Gosto de ler Tim Ingold sobre
isso). Sem dúvida alguma é esse o encanto das visualidades: elas se colocam no meio
das ciências e da estética, jogando esse papel múltiplo de arquivo de formas atuais e
diagrama de forças que ainda podem vir a se cristalizar em novas formas, para usar
termos caros ao filósofo francês Michel Foucault, com cujas obras dialoguei
intensamente para tratar de imagem e saberes.
Eu creio que Foucault ensinou muita gente, com seu livro dos anos 1960 As
palavras e as coisas, a ver imagens, ou, mais precisamente, dada sua paixão, ver
pinturas. Seus livros dessa época tratavam bastante de história dos saberes, e esse
focava especificamente nas ciências humanas na medida em que se propunha a fazer
uma arqueologia desses saberes. Bom, mas o que a pintura teria a ver com isso? Ora,
muitos dos livros de Foucault fazem exatamente o que eu já descrevi: eles são abertos
por uma pintura, que joga sobre as palavras que virão toda a sua complexidade,
ambiguidade, questões, sensações produzidas e potências atuais e virtuais. É por isso
que as imagens escolhidas por Foucault são, ao mesmo tempo, um arquivo das formas
visíveis em determinado momento histórico e um diagrama de forças que segue aberto e
atuante a cada novo olhar aí lançado.
No caso específico d’As palavras e as coisas, a pintura que abre o livro é As
meninas, do espanhol Diego Velázquez. Eu fiz uma análise detalhada dessa pintura
como arquivo de formas e diagrama de forças, e me chama muito a atenção até agora a
incrível quantidade de trabalhos científicos a respeito dessa pintura. Ela é exatamente
um enigma no campo das visualidades, por lançar mão de tantas novidades em relação
ao seu tempo. Muitos analistas preferem vê-la, inspirados pelo que fez Foucault em um
dos níveis de sua incrível análise, como uma ilustração da representação clássica (em
suma, a forma de dizer e pensar típica do século XVII na Europa). Para simplificar o
argumento, a ciência histórica descreve com palavras a idade clássica através da
interpretação de documentos, e Foucault trata dessa pintura como se ela pudesse
também servir a esse papel histórico, mas através de sua articulação própria – a
produção de imagens.
Mas o enigma d’As meninas é que essa obra, apesar de funcionar como arquivo,
transborda claramente esse papel. Ela mostra mais do que as visualidades clássicas
revelariam, ainda que isso ocorra apenas como anúncio sutil. Minha hipótese é de que a
pintura antecipa um mundo de novas relações que virão, que passarão a ser visíveis aos
poucos, mas cujas condições de possibilidade Velázquez aponta e, em alguma medida,
antecipa.
O que pode ser visto no mundo clássico, na Europa dos reis e rainhas? Ou,
dizendo de outra maneira, o que merece ser visto? Visitando os museus, vendo as
pinturas, a resposta se torna óbvia: os nobres e, sobretudo, os soberanos. Quase sempre
se tratavam dos temas em torno da própria nobreza e suas ligações com o divino, da
caça nos bosques, com alguma variação na virtuosa pintura da Europa do Norte, já que
os holandeses pareciam estar à frente na exploração de novos gêneros, como a pintura
de paisagem. Essa espécie de restrição das visualidades clássicas quanto ao gênero
também valia no que se referia ao olho que merecia ver as telas: era o olho do rei que
acessava primordialmente as imagens, já que os artistas trabalhavam para a nobreza, e
as pinturas adornavam as paredes dos palácios. Olhem agora para uma reprodução d’As
meninas. O que vemos? Entre os críticos há quase consenso de que a pintura mostra
Velázquez, a pequena princesa Margarida e outros convivas em uma sala enquanto o
pintor retrata o rei Filipe IV e sua esposa, a rainha Maria Ana. Essa tese se baseia
fundamentalmente na imagem esfumaçada de um espelho no fundo do recinto em que
notamos dois semblantes, cuja origem estaria, consequentemente, à frente da cena que
vemos de fato pintada.
Figura 1: Diego Rodríguez de Silva y Velázquez. As meninas.

Ora, a genialidade de Velázquez foi simplesmente ter virado o quadro da


representação – e provado isso através da presença do espelho. Rei e rainha seguem
sendo os sujeitos (sujets, temas) privilegiados da cena, mas pela primeira vez a
representação gira a ponto de podermos imaginar trocas de posições entre quem vê e
quem é visto. Se a pintura holandesa começava a introduzir os pintores na cena, o
resultado d’As meninas é exatamente esse: vemos plenamente quem antes só via e não
era visto. Não seria exagero dizer que as revoluções modernas vão fazer exatamente
isso: balançar as posições sociais. Não importam as verdadeiras intenções de Velázquez
– provavelmente nunca as conheceremos. Além do que, há coisas que sequer são
transparentes para aquele que as produz. Afinal, a mente é uma fábrica, e uma fábrica
bem complexa. O fato é que o resultado d’As meninas é também o de ter sublinhado,
por dentro, uma espessura insuspeitável no quadro da própria pintura clássica e da
representação que esperava iludir os olhos bidimensionalmente, que buscava reconstruir
com perfeição a perspectiva (ainda que isso tivesse sido mais uma invenção do que
propriamente algo natural no campo visual). Vamos dizer que a espessura começa aí a
saltar do quadro.
Esse lugar à frente da pintura passa a ser, depois da análise de Foucault acerca
de Velázquez, muito significativo. Virando a cena, Velázquez abre a possibilidade para
o filósofo se debruçar longamente sobre esse espaço revelado do modelo, antes
absolutamente invisível. Nem os espelhos da pintura do holandês Jan van Eyck haviam
revelado essa possibilidade com tamanha força, já que não se tratava ainda de um
verdadeiro giro do plano da representação. Se o arquivo clássico reserva então esse
espaço do modelo exclusivamente aos nobres e sua ligação com o divino, é no mundo
moderno que esse verdadeiro lugar de disputa vê, nos termos de Foucault, florescer
amplamente a figura do humano para o saber. O humano como foco de interesse para os
saberes é coisa recente, segundo o filósofo. É por isso que o subtítulo do livro é “uma
arqueologia das ciências humanas”. Ele sugere que é nesse espaço do modelo que o
humano se tornará objeto do saber (inclusive entrando na imagem aos poucos), que sua
espessura será insistentemente analisada, mas, para nossa consternação, segundo as
considerações de Foucault, desaparecerá muito rapidamente. A tradução visual no livro
é a da figura evanescente do rosto humano desenhado na areia no limite do mar.
Muitos entrevistaram Foucault depois disso, e a ideia que mais exploraram foi a
de que, se a pintura de Velázquez simbolizava o mundo clássico, qual simbolizaria o
mundo moderno, esse justamente que se colocou como tarefa pensar o humano? A ideia
de simbolizar ou ilustrar empobrece bastante o campo das visualidades, mas isso não
impediu Foucault de seguir sua intuição e explorar outros pintores e outras questões.
Ainda que não tenha chegado a escrever o livro que pretendia sobre Édouard Manet, ele
fez uma conferência em que tratava do pintor, e, em um certo sentido, a pintura de
Manet responde a esse espaço que Velázquez sublinha em frente ao quadro. Vejamos.
Ora, Velázquez ainda jogava exclusivamente com os elementos da representação
clássica. A representação da fonte de luz feita dentro da própria pintura, através das
portas e janelas dos recintos, e o uso, vamos dizer assim, convencional do espelho.
Manet vai se apropriar do espaço que Velázquez abriu, mas vai jogar aí uma dimensão
extra: o tempo. A pintura, também pressionada pelas primeiras experiências fotográficas
que logo irão transformar seu destino, começará a dar seus primeiros passos na direção
oposta à figuração realista. Já estamos agora no século XIX e o quadro Um bar no
Folies-Bergère propõe uma imagem inusitada de uma garçonete atrás de um balcão cujo
limite, ao fundo, é um espelho de grandes proporções.
Figura 2: Édouard Manet. Um bar em Folies-Bergère.

O que vemos na cena? Simplesmente algo impossível (se o espelho fosse apenas
representado segundo um único instante ou ponto de vista) a partir daquela posição bem
à frente do quadro. O reflexo da garçonete e de um cliente aparecem completamente à
direita da tela na visão do espectador, o que mostra que Manet passou a mover o ponto a
partir do qual construiu a perspectiva. Na análise de Foucault, é como se o resultado da
pintura fosse a soma de perspectivas diferentes (antecipação do cubismo e da própria
noção de relatividade, tão relevante nas ciências), o que gera uma estranha sensação de
que a pintura deixa de tentar nos seduzir através da mimese do real, da imitação, para
jogar sobre nós uma nova espessura formada por realidades quase que próprias (um
pouco como vemos ocorrer com os aparatos tecnológicos stricto senso). Essa linguagem
própria, ainda que em constante exploração, essa materialidade da pintura que se insinua
é algo que Foucault decidiu chamar de invenção do “quadro-objeto”. Simplificando as
coisas, basta pensarmos que, se em Velázquez o jogo da ilusão perfeita como
representação do visível era ainda claríssimo, em Manet começamos a sentir que
estamos diante de uma pintura e de suas possibilidades especiais de interferir no mundo
e de produzir novas formas de olhar.
O movimento do quadro-objeto também pode ser compreendido através da
belíssima análise de Foucault da pintura Olympia, de Manet. Muita gente atribuiu o
escândalo da tela ao fato de que o artista teria retratado uma cortesã nua em uma cena
que fazia referência (viram como isso é relevante nas artes?) às Vênus, como a de
Ticiano Vecellio.1 Mas isso seria, para Foucault, apenas parte da explicação.

Figura 3: Édouard Manet. Olympia.

A revolta com a pintura, que precisou, segundo consta, ser retirada do espaço em
que estava sendo exposta, seria uma função do escândalo estético gerado pelo fato de
que a mulher nua é retratada a partir de uma iluminação branca e frontal fortíssima e
coincidente, mais uma vez, com aquele espaço à frente da tela. Luz muito diferente
daquelas delicadas e laterais com que a pintura clássica banhava suas cenas. Ora, o que
diz o filósofo? Afirma que nós, espectadores, acabamos, diante de Olympia, por nos
sentir implicados e responsáveis por sua nudez, já que é como se a luz viesse dos nossos
próprios olhos... Olhem para uma reprodução e se certifiquem. De fato todo o ambiente
está escurecido, o primeiro plano nos envolve de maneira inescapável, e perdemos com
Manet aquela proteção típica do voyeur: o poder de ver sem ser visto.
A posição da luz é de fato um elemento dos mais ricos na análise das
visualidades e pode ajudar na promoção de diversos cruzamentos entre os campos
científicos e estéticos. Essa análise de Foucault sobre Olympia é tão marcante no que
toca ao visível que a usei em um ensaio, escrito com Vanina Carrara Sigrist, como
referência para analisar um frame do filme Melancolia, dirigido pelo dinamarquês Lars

1
Ticiano Vecellio. Vênus de Urbino. Pintura, óleo sobre tela. 119 x 165 cm. Firenzi, Galleria degli
Uffizi, 1538.
Von Trier. O filme, distópico como de resto boa parte do que se produz agora, trata da
atração ou perturbação que causa nos humanos e animais a colisão iminente com a Terra
de um planeta chamado Melancolia; em um dado momento, diante da presença já
visível do planeta no horizonte da Terra, a personagem vivida pela atriz Kirsten Dunst
parece atraída, e sai nua e se deita no campo em posição similar àquela das Vênus da
pintura antiga. A cena é bela, pois é possível sentir a conexão da personagem com
forças literalmente de outro mundo. E tudo fica mais forte quando temos na memória a
referência das Vênus clássicas, já que talvez a diferença seja “apenas” a luz. Melancolia
emite uma nova luz na direção da Terra, uma luz azulada, e mais uma vez vemos como
a produção de imagens pode dialogar com o que veio antes e talvez esteja por vir –
quando não, também, de alguma maneira participar de sua produção. Isso ocorre na
medida em que não é difícil notar que a luz do classicismo, divina, altiva, que invadia as
janelas representadas, tendo sido resignificada por aqueles olhos-faróis do espectador de
Olympia como marca de uma presença (demasiadamente) humana, agora se torna um
indício de uma nova luz, um tanto inumana em sua fria temperatura de cor, uma espécie
de anúncio de um mundo já diferente, apenas vislumbrado em um de seus elementos.
Em grande medida, nossas máquinas existem sob uma luz branco-azulada e artificial
que dá o tom de algumas de nossas relações mais frequentes atualmente.
Vejam que esse tipo de análise significa seguir os rastros de Foucault. O filósofo
reconhece que Manet não havia inventado a pintura não-representativa (tudo era ainda
era em seu trabalho figurativo), mas novamente estaríamos diante do anúncio, da
antecipação, da abertura de condições para o novo. É por isso que, mais do que colocar
Velázquez como símbolo do classicismo e Manet do moderno, o interessante, do ponto
de vista das relações entre as visualidades e os saberes, é notar tanto Velázquez quanto
Manet já participando de algo que ainda estaria por vir, exatamente nos pontos de
transição entre o que Foucault chama de epistemes, que seriam, grosso modo, as redes
mais ou menos estabilizadas do que seria possível dizer e ver em determinado momento
histórico. Ou, para falar como Kuhn, essas redes seriam os paradigmas dominantes. As
artes, assim, funcionariam para os saberes como verdadeiras pontes de conexão rápida
entre o passado, o presente e o futuro, e parece que Foucault sabia bem disso, ainda que
tenha preferido enfatizar o caso da literatura como um operador ou marcador dessas
transições.
A grande tentação é então seguir olhando, vislumbrando. Nas minhas pesquisas
eu segui algumas pistas, e a posição do espelho nos saberes funciona, sem sombra de
dúvidas, como um dos poderosos “termômetros epistemológicos”. Os espelhos têm algo
de lógico e de fantasmagórico ao mesmo tempo, e nossas relações com eles podem dizer
muito sobre os saberes de determinadas épocas. Do artifício de Velázquez revelando o
invisível através do espelho e abrindo o campo de disputas em termos de visualidades
em jogo, passando por Manet e sua descoberta de que a tela e o espaço da representação
são, antes de mais nada, elementos do mundo material (com Manet acordamos do nosso
sonho de transparência da representação e abrimos as condições para aquilo que depois
veio a ser chamado de impressionismo), cheguei a uma série de trabalhos que tiveram
em algum nível a presença dessa espécie de crise dos poderes do espelho (ou da
representação transparente).
Falando agora já do século XX, foi com o pintor anglo-irlandês Francis Bacon
que pude por à prova, com algo que está bem mais perto do nosso momento, essa
experiência de arqueologia do visível e daquilo com o que ela pode nos conectar
enquanto algo que está por vir. É curioso que Bacon, apesar de ter produzido mais na
segunda metade do século XX, tenha ainda mantido seu trabalho no campo figurativo,
enquanto boa parte da pintura migrava para a abstração. O interessante é que ele fez isso
tendo sido extremamente original, o que mostra mais uma vez que nas artes a questão
do paradigma não funciona de modo muito simples. Bacon foi exatamente um desses
pintores que trabalharam com os paradigmas clássico, moderno e em parte
contemporâneo ao mesmo tempo. Ele “repinta” Velázquez à sua maneira, o que faz esse
diálogo com o pintor espanhol ser realmente interminável e potente.
Mas nos interessam os espelhos de Bacon agora. Aqui não foi Foucault, mas
Deleuze quem notou a presença de espelhos negros e sólidos em algumas de suas
pinturas. Espelhos que não refletem, mas nos quais os corpos entram e se alojam. Esses
espelhos parecem na verdade caixas-pretas, máquinas de Raios X defeituosas,
instrumentos não convencionais de processamento das imagens dos corpos. É o caso de
Retrato de George Dyer olhando um espelho,2 por exemplo. O defeito dessas máquinas
é que, no caso de Bacon, elas não nos devolvem imagens objetivas e convencionais dos
corpos, que se apresentam sempre como que derretidos, vazando pelo espaço pictórico,

2
Francis Bacon. Retrato de George Dyer olhando um espelho. Pintura, óleo sobre tela. 198 x 147,5
cm. Caracas, Coleção Particular, 1967.
pressionados e perturbados aparentemente por forças que parecem quase que dissolvê-
los como se fossem de argila. Ao invés de moldar os corpos na argila, voltamos a ela
com Bacon?
Sua pintura nos mostra imagens novas. E isso é gritante em toda sua produção.
Ele vem de uma linhagem de pintores atentos às sensações produzidas pelas artes. E a
dor e o medo estavam por perto no pós-guerra, quando Bacon começa a produzir. Seria
ele alguém que estaria, como Velázquez e Manet, conseguindo captar algo por vir? Se
Velázquez abre o espaço (do visível, vamos dizer assim) ao humano que, nessa nossa
narrativa, é então usado por Manet para desfilar suas impressões na tela, ainda com forte
carga realista, mas já apontando para um mundo novo de percepções subjetivas que
serão depois exploradas em uma pintura cada vez mais livre da representação naturalista
rumo ao impressionismo, o que faz Bacon com isso? Meu entendimento é que fecha o
círculo desenhado por Foucault, e faz no fundo explorações dessa figura do humano que
já se desmanchou à beira da praia. Derreteu exatamente como um grafismo na areia.
Como arquivo do mundo contemporâneo, creio que podemos dizer que Bacon propôs
mostrar, seguindo o argumento de Deleuze, um conjunto de forças agindo sobre os
corpos humanos. Uma espécie de sobreposição entre arquivo de formas e diagrama de
forças. Em termos de uma tradução intersemiótica (da imagem às palavras) de interesse
sociológico, podemos arriscar dizer que Bacon produz imagens impactantes sobre a
pressão que os corpos sofrem, e o mais incrível que faz isso com um olho na tradição
das artes. Ele recupera gêneros como o do retrato para pintar as forças que constrangem
os rostos a se tornarem o que se exige, de certa maneira, que sejam – entretanto,
ausentes em Bacon, que não pinta rostos formados, e sim forças em ação. Puro
movimento. Ele é o grande pintor das forças que atuam sobre os humanos, e o que faz é
uma espécie de radiografia dessas forças através das suas figuras, da sua produção
imagética tão própria.
Eu sei que para os ouvidos de hoje essa ideia de força é um tanto abstrata à
primeira vista. Mas basta pensarmos aqui também um pouco à luz da ciência, da física
especificamente, e isso se torna mais acessível. Vivemos as forças físicas no cotidiano, e
aceitamos com nosso letramento científico essa presença invisível. Então por que não
aceitar que há forças de outros tipos em jogo na vida, também essas invisíveis? Há
forças sociais. Há forças simbólicas. Há forças mentais, psíquicas atuando. Econômicas.
Há forças vitais, sexuais. Há uma diversidade de forças. O que há de similar entre elas?
Podemos descrevê-las, mas no campo das visualidades temos dificuldades de tratar
delas, uma vez que em geral ficamos no campo das formas – efeitos provisórios das
forças, arranjos com estabilidades maiores ou menores dependendo do que se trate. O
que é novo em Bacon é ter enfrentado essa dificuldade de buscar pintar a ação das
forças sobre os corpos, e não seu efeito que julgamos “final”. Só para ficarmos com um
exemplo: uma coisa é a pintura do Papa Inocêncio X que Velázquez produziu ainda
fortemente em termos de privilégio das formas – supomos que o pintor “congelou” uma
imagem outrora atual do Papa; outra coisa é a releitura de Bacon, cuja marca foi buscar
pintar a sensação do grito na boca do papa, as forças aí atuantes.

Figura 4: Diego Velázquez. Papa Inocêncio.


Figura 5: Francis Bacon. Estudo segundo o retrato do Papa Inocêncio X de
Velázquez.

O fato é que a pintura de Bacon passa da forma à força, e seu uso das cores
também atesta esse movimento. Ainda que sua produção seja muito diversa daquilo que
as artes visuais passaram a fazer no contemporâneo, há algo que vale a pena destacar.
De certa maneira, o protagonismo visual em Bacon reside em algo que, ainda que
pareça exclusivamente humano, está no fundo disperso entre os diversos seres, disperso
no campo do relacional: o plano dos afetos, das sensações. É aí que, em grande medida,
ele pode ser considerado um artista que se dirige aos contemporâneos.
Podemos dizer que Bacon se dirige tanto àqueles que acompanham as artes
visuais quanto àqueles que a produzem atualmente. Suas investigações acerca das
pressões sobre os corpos continuam reverberando. O pintor francês Paul Rebeyrolle, por
exemplo, segue essa mesma direção, com a diferença de que sua pintura já se volta
abertamente (basta acompanhar os títulos das séries) a algumas controvérsias científicas
bem atuais, como a clonagem e a formação de seres híbridos, fruto de misturas
genéticas.
Mas, se quisermos de fato tratar das visualidades que estão em marcha, temos de
seguir ainda mais adiante, a começar pelo reconhecimento de que a pintura tal como a
apresentamos até aqui se transformou e se abriu para além de seu próprio suporte típico
– a tela. Na verdade, todas as formas mais tradicionais de suporte e de materiais usados
no campo das artes visuais estão se transformando, passando por uma reorganização.
Isso não significa que as referências, que o uso das técnicas, que as citações tenham
desaparecido. Ocorre que tudo isso tem sido aglutinado em um formato cada vez mais
onipresente, o das instalações artísticas. Elas misturam, de certa forma, tudo o que for
possível – paradoxalmente, poderíamos dizer que se trata mesmo de tentar promover
algo próximo do campo do impensável. Nas visualidades contemporâneas, o espaço à
frente da tela foi de tal modo habitado que passamos da invisibilidade das pessoas
comuns no mundo clássico europeu às muitas possibilidades de interação do público no
contemporâneo global, especialmente através da produção de sensações. Estas não mais
apenas ancoradas no campo visual, mas também na ordem daquilo que podemos
considerar tátil ou mesmo sinestésico.
Ainda que a diversidade de projetos de arte contemporânea seja enorme, o plano
da produção de sensações como guia talvez seja um denominador comum, ao lado
daquele da proposição de uma arte conceitual e um tanto enigmática. E, mais do que
isso, se trouxéssemos até aqui, agora adaptada, a pergunta feita a Foucault sobre o que
melhor encarnaria o momento contemporâneo ou suas brechas rumo ao futuro, talvez
encontrássemos algo quase inevitável sendo tematizado nesse lugar privilegiado do
sujet que as próprias artes visuais nos fizeram sempre vislumbrar. A pergunta natural
agora seria: nessa viagem de investigações sobre o visível no Ocidente em que o
humano sequer estava, mas entrou na cena, ainda que tenha tido tempo de permanência
limitado, derretido por suas próprias maquinações, o que vemos emergir agora nesse
espaço ampliado e insistentemente trabalhado pelas instalações contemporâneas?
Ouso dizer, e considero que são essas as minhas pesquisas em curso no
momento, que o “depois do humano” é sim um dos grandes tópicos explorados pelas
artes contemporâneas. Segundo Deleuze, esse “super-homem” seria resultado de uma
nova composição de forças atuando sobre os humanos, destacando-se as fundamentais
da vida, do trabalho e da linguagem. Ora, o que mais vemos no mundo contemporâneo é
mesmo a transformação ocorrendo justamente nos campos da vida, com a engenharia
genética, e do trabalho e da linguagem, com a Internet e todas as tecnologias
cibernéticas. No final de seu livro sobre Foucault, afirma Deleuze sobre essa nova
combinação de forças
Como diria Foucault, o fim do homem é muito menos do que o desaparecimento
dos homens existentes e muito mais que a mudança de um conceito: é o surgimento
de uma nova forma, nem Deus, nem o homem, a qual, esperamos, não será pior que
as duas precedentes.3

Com esse texto lapidar em mente fica mais fácil olhar para instalações artísticas
contemporâneas. Em geral, é sim esse universo que elas buscam enfrentar: enquanto
arquivo de formas, elas esperam materializar, no terreno estético, o que há de virtual nas
ciências contemporâneas, e lidar com a questão ética em que Deleuze resvala – acerca
da esperança de que as novas formas não sejam piores do que as precedentes.
Vamos tratar aqui brevemente, caminhando para a conclusão deste ensaio,
apenas do campo das transformações da vida, ou da relação das artes com a engenharia
genética. Escolho duas artistas para tratar disso, Lucy Glendinning, uma escultora
britânica, e Patricia Piccinini, uma artista visual de origem italiana que mora na
Austrália.
Ambas atuam com visualidades, e dão destaque às esculturas em suas propostas,
ainda que Piccinini se aventure em vários suportes e crie suas obras inicialmente através
de desenhos. Os temas principais dessas artistas envolvem as transformações genéticas,
a criação de seres de fronteira com caracteres de mais de uma espécie ou mesmo as
transformações do próprio humano a partir da incorporação de estruturas vindas de
outros animais. Vale olhar as reproduções de Feather Child 6 (Criança com Plumas 6) e
O tão esperado, de Glendinning e Piccinini, respectivamente.

Figura 6: Lucy Glendinning. Feather Child 6.

3
Deleuze, 2005, p. 142.
Figura 7: Patricia Piccinini. O tão esperado.

Frente a essas possibilidades de lidar com as misturas genéticas e seu possível


resultado visível, as artistas usam um procedimento similar que chama muito a atenção:
mais uma vez, é como se a arte olhasse para sua própria história para poder dar seu salto
à frente; e é de fato muito impressionante ver a potência do realismo das esculturas nas
instalações produzidas por ambas, ainda que tenhamos talvez, diante dessas obras, a
estranha sensação de estar em face de algo executado plasticamente de modo
muitíssimo realista e que, entretanto, não é real. A parte mais relevante dessas propostas
parece residir nessa estratégia. Glendinning e Piccinini tratam o irreal de modo realista,
mas o “irreal realista” é um vislumbre mais do que verossímil das forças em questão no
contemporâneo. É aí que está a potência dos trabalhos, justamente nesse jogo entre
representar perfeitamente algo sem referente real, mas cuja atualização parece iminente.
No sentido estritamente genético, a verdade é que esses seres híbridos já vieram,
e basta que nos lembremos do famoso coelho brilhante, integrado por DNA de uma
água-viva fluorescente, proposto pelo artista brasileiro Eduardo Kac4 em parceria com
cientistas franceses (realmente os regimes de emissão de luz parecem estar em questão
nas artes visuais). O que difere então os casos de Glendinning e Piccinini, qual o motivo
do destaque que estou dando a eles?
Ora, buscar preencher essas linhas pontilhadas que as próprias ciências têm
depositado no nosso campo perceptivo é uma tarefa relevante, pois apesar da existência

4
Eduardo Kac. GFP Bunny. Coelha geneticamente modificada com proteína fluorescente verde,
2000.
do coelho de Kac, o que ainda há de novo no tema é o lugar do próprio humano nessas
transformações. É nesse ponto que Glendinning e Piccinini nos tocam.
Um pouco inspirados aqui por Deleuze, poderíamos dizer que uma coisa é saber
que essas novas formas estão nascendo; outra é lidar com elas, é trabalhar nossas
expectativas, olhar para nossos valores, enfrentar sua presença e interpelação no plano
sensível. Aqui a arte contemporânea parece estar se aproximando bem mais das ciências
novamente, após uma fase recente de especializações e separações, de silêncios e
desconfianças. No campo da ética, ciência e estética de ponta têm definitivamente se
reencontrado, pois as controvérsias estão sendo produzidas, a rigor, por ambos os
campos ao mesmo tempo.
Glendinning e Piccinini parecem dar respostas diferentes sobre esse mundo por
vir. A primeira parece sustentar uma posição mais receosa, reflexiva, crítica, enquanto a
segunda, sem deixar de também levantar questões, parece preferir depositar a ênfase em
uma tarefa que parece, no fundo, querer dividir conosco. A do amor, a do cuidado com
as novas formas emergentes. Ambas, entretanto, fazem seus movimentos próprios
recorrendo à figura infantil. As crianças ocupam com frequência o foco das cenas
propostas pelas artistas. Seja como signo da fragilidade (deitadas elas próprias como
receptáculos das mudanças) diante de mudanças tão grandiosas que estamos
promovendo, seja como signo de acolhimento em relação à existência dessas novas
criaturas cujo destino desconhecemos (deitadas em geral junto a elas). Outras mentes,
mentes infantis em interação com mentes não-humanas, colocadas justamente no lugar
privilegiado em que ética e estética se cruzam agora para vislumbrar o futuro, e de um
modo especial: buscando participar dele já, na forma de uma intervenção, de uma
interferência vital. É quando a estética, entendida como uma capacidade de produção,
relação e reação ao sensível, mais interessa aos cientistas.

Para saber mais sobre o tema: como defendo neste ensaio o conhecimento da
tradição no campo das visualidades, o ideal seria todos terem acesso aos museus e
galerias ao redor do mundo. Como isso nem sempre é possível, as visitas virtuais são
uma boa alternativa disponível em muitos casos. Exemplos são:

Museu do Louvre: <https://www.louvre.fr/en/visites-en-ligne>.


Museu do Prado: <https://www.museodelprado.es/recorrido/visita-
virtual/742f132f-8592-4f96-8e5a-9dad8647bc4c>.
Filmes:

Beleza americana (1999), direção de Sam Mendes, EUA.


Blow-up, depois daquele beijo (1966), direção de Michelangelo Antonioni,
Reino Unido, Itália.
Melancolia (2011), direção de Lars von Trier, Dinamarca, Suécia, Alemanha,
França e Itália.

Lista de figuras

Figura 1: Diego Rodríguez de Silva y Velázquez. As meninas. Pintura, óleo


sobre tela. 310 x 276 cm. Madrid, Museo Nacional Del Prado, 1656. Disponível em
<https://pt.wikipedia.org/wiki/As_Meninas_(Vel%C3%A1zquez)#/media/Ficheiro:Las_
Meninas,_by_Diego_Vel%C3%A1zquez,_from_Prado_in_Google_Earth.jpg>. Acesso
em 4/1/2020.

Figura 2: Édouard Manet. Um bar em Folies-Bergère. Pintura, óleo sobre tela.


96 x 130 cm. London, Courtauld Institute Galleries, 1882. Disponível em
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Um_Bar_no_Folies-
Berg%C3%A8re#/media/Ficheiro:Edouard_Manet_004.jpg>. Acesso em 4/1/2020.

Figura 3: Édouard Manet. Olympia. Pintura, óleo sobre tela. 130,5 x 190 cm.
Paris, Musée d’Orsay, 1863. Disponível em <
https://pt.wikipedia.org/wiki/Olympia_(Manet)#/media/Ficheiro:Manet,_Edouard_-
_Olympia,_1863.jpg >. Acesso em 4/1/2020.

Figura 4: Diego Velázquez. Papa Inocêncio. Pintura, óleo sobre tela. 141 x 119
cm. Disponível em
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Retrato_del_Papa_Inocencio_X._Roma,_by_Di
ego_Vel%C3%A1zquez.jpg>. Acesso em 4/1/2020.

Figura 5: Francis Bacon. Estudo segundo o retrato do Papa Inocêncio X de


Velázquez. Pintura, óleo sobre tela. 153 x 118 cm. Iowa, Des Moines Art Center, 1953.
Disponível em <http://pintaraoleo.blogspot.com/2013/01/como-velazquez-e-bacon-
pintaram.html>. Acesso em 4/1/2020.

Figura 6: Lucy Glendinning. Feather Child 6. Cera, jesmonite, madeira, plumas


de pato e faisão. 98 x 62 x 25 cm. 2013. Disponível em
<https://www.jamesfreemangallery.com/artworks/lucy-glendinning/feather-child-6>.
Acesso em 4/1/2020.

Figura 7: Patricia Piccinini. O tão esperado. Escultura. Silicone, fibra de vidro,


couro, cabelo humano, roupas. 92 x 151 x 81 cm. 2008. Disponível em
<https://www.flickr.com/photos/de_buurman/3571493054>. Acesso em 4/1/2020.

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