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LILIAN CRISTINA

MONTEIRO FRANÇA Imag3ns


e Núm3ros
Intersecções entre as histórias
da Arte e da Matemática
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

reitor
Prof. Dr. Angelo Roberto Antoniolli
vice-reitor
Prof. Dr. André Maurício Conceição de Souza

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

coordenadora do programa editorial


Messiluce da Rocha Hansen
conselho editorial
Adriana Andrade Carvalho
Antônio Martins de Oliveira Junior
Ariovaldo Antônio Tadeu Lucas
Aurélia Santos Faroni
José Raimundo Galvão
Luisa Helena Albertini Pádula Trombeta
Mackely Ribeiro Borges
Maria Leônia Garcia Costa Carvalho
Messiluce da Rocha Hansen
Sueli Maria da Silva Pereira
Ubirajara Coelho Neto
Valter Cesar Pinheiro
LILIAN CRISTINA
MONTEIRO FRANÇA Imag3ns
e Núm3ros
Intersecções entre as histórias
da Arte e da Matemática

2ª. Edição

São Cristóvão – Sergipe


outubro – 2016
Este livro, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer meio
sem autorização escrita da Editora.

Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa


de 1990, adotado no Brasil em 2009.

projeto gráfico, capa e editoração eletrônica


Alana Gonçalves de Carvalho Martins

imagem de capa
Baseada na obra de Paul Klee, “Senecio”, 1922.
Textura vetorial – Freepik.com

Ficha Catalográfica – Biblioteca Central da Universidade Federal de Sergipe

F814i França, Lilian Cristina Monteiro


Imagens e números : intersecções entre as histórias da arte e da matemática
/ Lilian Cristina Monteiro França. – 2. ed. – São Cristovão : Editora UFS, 2016.
155 p. : il.

Disponível em: http://www.livraria.ufs.br/

ISBN 978-85-7822-548-3

1. Arte – História. 2. Matemática – História. I. Título.

CDU 7:51(091)

Editora UFS
Cidade Universitária Prof. José Aloísio de Campos
CEP 49.100-000 – São Cristóvão – SE.
Telefone: 3105-6922/6923. e-mail: editora@ufs.br
www.editora.ufs.br
Dedico este trabalho
a Acássia e ao Dia 11 de dezembro de 2010.
Agradecimentos
Aos meus pais (in memoriam), por me ensinarem a joalheria da vida;

A Verginia, minha tia/fada madrinha, mudando o mundo com seu condão;

À minha família, referência de caráter e sabedoria;

À família Barreto, pelo exemplo de convivência entre gerações, em especial


a eternamente jovem e elegante D. Darcy e a Gabriel,
um jovem estudioso avant la lettre;

Aos meus amigos, repito, eles sabem quem são;

À Profa. Dra. Messiluce da Rocha Hansen, coordenadora


do Programa Editorial da UFS;
Augusto de Campos
SUMÁRIO
9 PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO

11 INTRODUÇÃO

19 CAPÍTULO 1
DEUSES PRIMORDIAIS

37 CAPÍTULO 2
TRILHAS EUCLIDIANAS

61 CAPÍTULO 3
OUTRAS BASES EPISTEMOLÓGICAS

87 CAPÍTULO 4
REBELIÃO DE CONCEITOS

119 CAPÍTULO 5
NÚMEROS E IMAGENS

147 CONSIDERAÇÕES FINAIS


150 REFERÊNCIAS
PREFÁCIO À
SEGUNDA EDIÇÃO
“Imagens e Números – Intersecções entre as histórias da Arte e da Matemá-
tica” deriva dos resultados de minha pesquisa de doutorado, realizada junto
ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUCSP e teve a sua primeira publicação
na forma de livro em 2005, pela Editora da UFS. Esgotada a primeira edição,
sigo recebendo solicitações através do e-mail, pedindo o envio da obra ou
o acesso ao seu conteúdo, razões pelas quais decidi republicá-la, agora no
formato digital.

Estabelecer relações entre a matemática e a arte tem sido uma tarefa fre-
quente ao longo da história, entretanto, a complexidade das relações entre
os campos parece ser sempre fecunda e os estudos insuficientes, posto que
a gama de possibilidades analíticas mantém-se em constante crescimento.

O advento da arte eletrônica, por exemplo, inaugura outros territórios de


diálogo com a ciência, instaurando processos de tradução de números para
imagens e de imagens para números. A literatura se reconfigura em ambientes
digitais e a poesia se condensa nos 140 caracteres de um tweet.

Ao longo das páginas que se seguem, procurei sublinhar uma via de mútua im-
plementação entre arte e ciência, distante das posturas que podem pensá-las
como reflexo ou desdobramento uma da outra, ao contrário, investigando em
que medida resultam de uma realidade plasmada, de um contexto construtor
de subjetividades que se esgarçam e se reconstroem.
Para tanto, foi imprescindível recorrer aos Gregos, aos físicos nucleares, aos
teóricos do caos e aos artistas e suas obras, com seus estilos e paradigmas
eloquentes e fascinantes, costurados através dos estudos semióticos funda-
mentados na leitura do invisível e do não óbvio.

A disponibilização de imagens de Domínio Público, o desenvolvimento da


Licença Creative Commons e o amparo legal do princípio do Fair Use para obras
não comerciais com fins acadêmicos, permitiram a utilização de um conjunto
mais representativo de imagens, conferindo mais corpo às discussões teóricas.

Finalmente, a expectativa desta escritora é a de oferecer aos leitores e leitoras


a possibilidade de navegar no texto e descobrir/redescobrir a ciência da arte
e a arte da ciência.

Aracaju, 03 de agosto de 2016.

Profa. Dra. Lilian Cristina Monteiro França

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INTRODUÇÃO
Ao estudar a matemática e a geometria, assim como diferentes campos do
saber, é possível perceber a existência de estruturas subjacentes, às vezes
imediatamente visíveis, às vezes não, podendo constituir-se numa possível
maneira de aprofundar a discussão sobre a inter-relação existente entre se-
tores aparentemente distantes, como, por exemplo, a ciência e a arte, tendo
em mente que a adoção de um modelo geométrico, está em conexão com
um contexto sócio-político-econômico-cultural.

Escolhi a matemática e a física para servirem como elos, como elementos ca-
pazes de possibilitar o trânsito por áreas diferentes, em especial suas relações
com a arte e a história da arte, fornecendo suporte a uma investigação que
passa pelas bases das constituições específicas de cada área, pelas implicações
histórico-epistemológicas.

Isso se deve, em primeiro lugar, ao termo “geometria” expressar já um dis-


tanciamento da noção inicial que o cunhou. Serve hoje para significar muito
mais do que a medida da terra. O mesmo vem acontecendo com muitos
conceitos, que vão se transformando e incorporando outros sentidos, pas-
sando a conter uma elasticidade típica das dificuldades que o momento em
que vivemos sugere.

A geometria, um assunto eminentemente matemático, passa a ocupar lugar


em circunstâncias incomuns, como na produção poética, cinematográfica,
musical, enfim, artística. Esse fato faz com que possa ser utilizada de ma-
neira multidisciplinar, interdisciplinar, apresentando-se como um possível
meio de compor os nós relacionais necessários à produção conjunta, a inter-
complementariedade a que estamos direcionados. Claro que não é a única
possibilidade, entretanto, como já foi dito, foi a opção feita para dar corpo
ao presente trabalho.

Outra razão, igualmente significativa, é a de que a geometria vem passando


por intensas desestruturações: já foi cuidadosamente articulada, com cada
pedaço apoiado e apoiando outros, dotada de um esqueleto, de uma espé-
cie de escada, com uma organicidade e uma coerência inconfundíveis. As
desestruturações acima mencionadas colocam a geometria numa posição
similar a de outros campos, isto é, alguns de seus pressupostos mais solida-
mente assentados são derrubados e “a geometria” é obrigada a proceder a
uma remodelização e a arcar com as consequências da perda da precisão até
então estabelecida.

Essa “alma” geométrica, escondida em múltiplas representações, firma signi-


ficantes e, igualmente, significados, é uma forma e um conteúdo, a expressão
de um modo de ver, pensar e entender o mundo, de modo que não fica impune
a utilização de um modelo geométrico; seu emprego não está dissociado das
bases que a fundamentam, não é uma mera ilustração ou alegoria, nem tão
pouco um detalhe que possa ser deixado de lado.

Assim, acredito que as estruturas geométricas comuniquem: falem, gritem,


embora ouvi-las seja tarefa para olhos/ouvidos treinados e dispostos a um
exercício de decodificação.

Para iniciar essa discussão vou buscar na civilização grega as origens de alguns
elementos importantes para compreender o desenrolar do pensamento geo-
métrico. Parece-me inegável a influencia de várias séries de forças presentes
na sociedade grega que contribuíram para a organização da geometria.

Tais forças, que procuro investigar no primeiro capítulo, “DEUSES PRIMOR-


DIAIS”, foram fundamentais não só para a construção de uma geometria, mas,
também, para que com o passar do tempo esse modelo continuasse a ser o
mais empregado, em detrimento de outros, pensados por civilizações, como a
chinesa ou a árabe, entre outras. Discuto os contextos em que foram geradas,

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e os processos que levaram a sua manutenção, alinhavando acontecimentos
que compõem a base da “separação” entre matemática e arte.

Quando falo “desse modelo” geométrico, refiro-me explicitamente à geome-


tria euclidiana, apresentada no capítulo “TRILHAS EUCLIDIANAS”, do modo
menos árido possível posto que não pretendo escrever um tratado sobre ma-
temática e para matemáticos, optando, então, por trabalhar simultaneamente
a relação com a arte, sua influência e imbricações. Essa demarcação faz-se
necessária, pois havia entre os próprios gregos, pensadores que propunham
formas diferentes de tratar do assunto, alguns cujo nome a história nem
sequer registrou.

Se o modelo euclidiano emergiu naquele momento não foi gratuitamente


e, mais ainda, não é igualmente gratuito o fato de ter sido freqüentemente
utilizado em diferentes momentos históricos, sendo considerado como o
mais adequado e preciso.

Não há, e isto precisa ficar bastante explicito, a pretensão de promover, aqui,
uma historiografia, em nenhum momento, visto que existem inúmeras obras
bastantes bem elaboradas, voltadas para este âmbito. A intenção é a de encon-
trar elementos que sirvam como subsídios ao aprofundamento das questões
levantadas, sobretudo no que tange à estreita relação entre matemática e arte.

Igualmente, as considerações elaboradas sobre o pensamento euclidiano


não se destinam a clamar por sua derrocada, mas a apresentar de maneira
radical, “de quem vai à raiz”, um quadro mais amplo de relações, sem o que
estaria partindo para uma análise que perderia de vista a conjuntura que a
constitui. A influência da ação grega, de seus aspectos culturais e ideológicos,
tem marcado significativamente a produção do conhecimento.

Matemática e geometria confundem-se, são confundidas, às vezes tomadas


como sinônimos, às vezes demasiadamente apartadas. Por isso, no segundo
capítulo, procuro relacionar geometria e matemática, demarcando alguns
momentos importantes de ruptura e de redirecionamento, enfocando o
surgimento das geometrias não euclidianas.

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 13
A trilha percorrida conduz ao encontro com “OUTRAS BASES EPISTEMOLÓ-
GICAS”, passando pela geometria fractal, as lógicas não aristotélicas, a física
não newtoniana, relativizando constantemente a presença de um “não”, que
precede geometria, lógica ou física, mas não caracteriza um rompimento
definitivo nem uma completa negação, mantendo vínculos com seus pre-
decessores. A física quântica, por exemplo, continua a valer-se da clássica.

Procuro, também, mostrar como a matemática vai ganhando tridimensio-


nalidade/multimensionabilidade, caminhando para níveis mais complexos
de abstração.

Considerada uma ciência exata, sempre pautou seus procedimentos em


alicerces sólidos. Foi preciso coragem e algum acaso, além de determinação,
para modificar esse alicerce a ponto de gerar um abalo que provocou a revisão
de suas bases.

Desorganizada, foi impelida a ir em direção de uma nova ordem, criando


outras abordagens para “dar conta” do ritmo que a ciência ditava. Apesar
disso, da eminente necessidade de modificação, houve e, acredito, ainda
há uma intensa resistência a se ingressar no universo do não tão exato, do
imprevisível, da matemática do caos.

Resistir, aliás, não é privilégio dos matemáticos. O arcabouço geométrico


interfere e influencia a física. Segundo teóricos, entre eles Heisenberg, físico
que trouxe à tona o “princípio da incerteza”, a geometria euclidiana pode ser
vista como um obstáculo a ser transposto para explicar/entender o universo;
tem sido, historicamente, a um só tempo um instrumento fundamental e o
entrave mais cruel.

Na física, como na matemática, modificações relativamente sutis, mas decisi-


vas, no corpo de seus postulados conduziram ao aparecimento da mecânica
newtoniana, da teoria da relatividade e da física quântica, momento mais
atual e inquietante desta ciência. Contemporaneamente, a física encontra-se
numa posição interessante: lança seus tentáculos por temas e indagações
anteriormente pertencentes à filosofia. Nesse terreno encontra-se a arte,

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igualmente afligida pelos condicionantes impostos, às vezes superando-os,
às vezes sucumbindo a eles, nunca indiferente ou relegada a certa dimensão
“purista” que a isentaria de todos os percalços.

Dessa modificação surgem recodificações, ainda em processo, que não pou-


pam nem a linguagem verbal, nem a não verbal, ambas requisitadas para
trazer a público fenômenos de difícil tradução, dados algebricamente com-
prováveis, mas, às vezes, invisíveis aos “olhos”, operando-se uma “REBELIÃO
DE CONCEITOS”, objeto de estudos do quarto capítulo.

Tornou-se extremamente complexo tratar de tópicos cuja imagem sensível


já não existe, a imagem do átomo, por exemplo, pois o pensamento precisa
lidar com novos modos de visualização, em alguns momentos, mesmo com
a invisibilidade: a mente não pode “desenhar” um espaço pentadimensional,
espaço este, matematicamente possível e comprovado.

Macro e micro são postos à prova na nova física que tem de por na balança
não só os pesos maiores, mas, principalmente, os que sempre se quis qualificar
como desprezíveis e insignificantes.

Incorporar o antes banido não é tarefa fácil. Os princípios de nossa tão antiga
lógica aristotélica, dicotômica e excludente, revelam-se incompetentes para
arcar com esta nova realidade. A pergunta crucial parece ser mesmo: como
lidar com essas novas lógicas emergentes? Da dialética à fuzzy, da nebulosa
às lógicas das patologias (loucura), da biologia, sociologia, da ciência, da arte,
de todas as formas de expressão.

Parece evidente que o que era convencionalmente tomado como exato, ou


melhor, aquilo que se arrogava como tal, enfrente maiores problemas para
lidar com a desestruturação, entretanto, se em tais setores a desestruturação
faz-se mais explícita, muitas vezes é dissimulada e empurrada para baixo de
algum tapete metodológico.

No que diz respeito à arte, pretensamente menos rígida e exata, acostumada


a criar também outras lógicas, a desestruturação faz-se sentir, confundindo
sobremaneira o que se pode considerar arte e, para onde ir. Essa contingên-

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 15
cia aproxima/reaproxima aquilo que vinha sendo mantido como separação
obrigatória, ou pelo menos, com limites francamente demarcados.

Ainda falta trazer à pauta as tecnológicas. Portadoras de uma geometria


particular, parte euclidiana parte fractal, conjugam embasamentos e abre
a possibilidade de inaugurar uma nova forma de pensar. A disposição para
o novo, à pressuposta liberdade que a informática traz, corre o risco de um
aprisionamento, na medida em que não nos damos conta de que muitos dos
programas e da arquitetura das máquinas têm sua estruturação num funda-
mento euclidiano e aristotélico. Essa afirmação pode parecer precipitada caso
tendamos a uma generalização, o que não é o caso. No capítulo “ NÚMEROS
E IMAGENS”, pretendo discutir um pouco como ficam embutidas certas ca-
racterísticas que condicionam a produção, em especial a artística, através do
computador. A utilização pura e simples da tecnologia não garante um ganho
de originalidade e inovação. Entretanto é preciso ter em mente que os novos
meios são ainda bastante recentes e, portanto, precisam desenvolver seus
próprios referenciais, sem esquecer também dos condicionantes que estão
atrás do discurso revolucionário e das capacidades geradoras do universo
tecnológico. Acompanha o ingresso no mundo da tecnologia certa “recusa”
em sair do cotidiano e a necessidade de sair dele da maneira mais inócua,
isto é, buscando na “realidade virtual” o espaço para viver sem perigo, todos
os desejos, impraticáveis no contexto “real”. O perigo aparece quando essa
realidade outra é encarada como panacéia e desvincula o homem, o operário,
o intelectual de suas ligações com a base social/material, levando-o a viver
um momento de exacerbação da alienação, entendida dentro do acirramento
de suas características. Pode-se, dessa forma, correr o risco de relegar-se para
o horizonte virtual o lugar do lazer, dos jogos, do lúdico, das viagens e até
mesmo das relações pessoais.

A partir do desencadeamento exposto, procurarei relacionar a geometria e


as lógicas que estão operando na produção cienfico/artística da contempo-
raneidade, procurando contextualizá-las e integrá-las ao processo dinâmico
que move a sociedade.

16 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Essa tarefa requer a consciência de alguns limites que se apresentam:

– a amplitude do tema abrange uma discussão que necessariamente precisa


transitar por uma bibliografia extensa e diversificada, freqüentemente especí-
fica de cada uma das áreas abordadas, cuja leitura integral seria inviável; dessa
forma procurei selecionar obras centrais, nem sempre as mais conhecidas,
mas principalmente aquelas que conseguiam dar uma direção um pouco
diferente do padrão; é possível perceber que num determinado campo, a
leitura de um conjunto de textos específicos pode permitir que se percebesse
a proximidade da estrutura argumentativa dos autores, mostrando que há
uma concordância de autores, referencias e até mesmo de trechos citados
(esse fato pode ser percebido, por exemplo, no que se refere à física, com
uma grande quantidade de títulos tentando ampliar os domínios da física e
sua participação em outros campos do conhecimento, cujo conteúdo tente
a demonstrar certa homogeneização);

– discutir através de um enfoque acadêmico os assuntos propostos, as amar-


ras geométricas e lógicas sob as quais nos vemos condicionados, torna-se
extremamente complicado, pois uma é necessário cumprir algumas exigên-
cias mínimas, as quais obrigam a um modo de agir que, por sua vez, vai de
encontro às rupturas desejáveis; o suporte bidimensional do texto verbal já
conduz a certo tipo de organização da linguagem, a uma linearização das
idéias; como não se trata de uma obra de arte – uma poesia, ou uma prosa
poética, por exemplo – há uma conformidade que necessariamente precisa ser
seguida; minha proposta é a de conseguir obter o melhor resultado possível
dentro da superfície tradicional para o texto acadêmico; poderia ter optado
por, paralelamente, trabalhar com um hipertexto ou um texto multimídia, o
que poderia garantir, se empregados de maneira criativa, um resultado final
mais condizente com a discussão apresentada; entretanto pareceu-me con-
sistir-seu num desafio manter o esquema tradicional, procurando aproveitá-lo
de maneira inovadora, sem, entretanto, perder de vista de que se trata de
um trabalho acadêmico;

– em muitos momentos do trabalho vejo-me obrigada a ceder à lógica aris-


totélica para montar minha argumentação; não o faço de maneira ingênua

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 17
e desavisada, assumo, desde já, a consciência de meus condicionantes; não
volto as costas a eles, tento pensar de maneira relacional e não excludente, o
que, reconheço, nem sempre é possível, inclusive por estar tentando mostrar
o quanto estames arraigados aos códigos.

A conjuntura que se apresenta mostra-se extremamente complexa para a


elaboração de um trabalho científico. Especialmente se pensarmos que a
ciência não pode prescindir de um método de investigação, mesmo se con-
sideradas todas as indicações que apontam para uma flexibilidade cada vez
maior nesse sentido, diferindo da tradicional rigidez imposta pela “camisa
de força” metodológica.

Acredito ser tal conjuntura única, não no que toca ao aspecto da unicidade,
uma vez que tantos outros momentos históricos já se depararam com rupturas
e quebras de paradigmas, modificações econômico-político-sociais e uma
quase completa desestruturação do ambiente acadêmico estabelecido, mas,
no que se refere ao conjunto das dificuldades apresentadas: a impossibilida-
de crescente de cobrir o território do saber, nos mais diferentes campos, o
“desafio” a razão fundadora e justificadora, mesmo dentro de áreas até então
predominantemente “racionais” e “objetivas” e a substituição dos alicerces
que garantiam a sustentação epistemológica.

Todo pesquisador disposto a enfrentar a complexidade do quadro referido


deve, no mínimo, sentir correr pela espinha um tremor gélido, insegurança
dos que se vêem destituídos de bases sólidas e demarcadas.

18 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
CAPÍTULO 1
DEUSES
PRIMORDIAIS
Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também. Terra de amplo seio,
de todos sede irresvalável sempre, dos imortais que têm a cabeça do
Olimpo nevado, e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre os Deuses imortais, solta-membros dos Deuses
todos e dos homens todos, ele doma no peito o espírito e a prudente
vontade (“Os Deuses Primordiais”, Teogonia, Hesíodo, 1992).

Para iniciar esse estudo torna-se importante trazer à tona algumas caracte-
rísticas contextuais da civilização grega, responsáveis pela orientação dos
procedimentos empregados pelos pensadores da época – norteadores das
bases de grande parte do nosso conhecimento – fundamentais para tentar
uma compreensão, ainda que aproximada, da relação manutenção/permanên-
cia de conjuntos estruturantes da produção do científico-filosófico ocidental.

A civilização grega, portadora de um caráter binário regido por oposições e


dicotomias, inaugura modos de pensar ainda presentes na contemporanei-
dade, como a geometria euclidiana e a lógica aristotélica.

Pode-se perceber nos primórdios da era grega a presença de uma tendência


dual, embutida numa forma complexa de expressão: as obras compostas pelos
aedos, poetas cantores, recebendo/percebendo/retrabalhando informações
provenientes de uma “realidade” vivida. “O pensamento racional começava
a prefigurar-se” (TORRANO, 1992, p. 15), mostrando os primeiros sinais de
uma racionalidade que mais tarde iria estabelecer-se de maneira imperativa
e contumaz, consolidada pela formação social em torno da pólis e pelas
consequentes movimentações engendradas no transcorrer do processo de
organização desse sistema.

Os poemas de Hesíodo1 – provenientes de uma época em que a palavra possuía


um peso predominantemente sonoro (a escrita alfabética apenas esboçava-
-se), compõem-se articulando uma visão de mundo, narrando, através de
seus episódios, as origens e a cosmologia do povo grego.

Posteriormente, com o desenvolvimento de uma poesia lírica, com Arquíloco


de Paros, e da prosa, “A língua grega começa a adquirir palavras abstratas
[...]. Poetas líricos e pensadores colaboram inicialmente (séculos VII e VI) na
grande tarefa de elaborar uma linguagem abstrato-conceitual e apta como
instrumento de análise tanto do cosmos como da realidade humana” (TOR-
RANO, 1992, p. 18). Desse modo, se expressa, assim, a estreita ligação entre
as formas de produção artísticas e científicas, embora os termos “artístico” e
“científico” não possuíssem a mesma significação que viria a caracterizá-los/
distanciá-los mais tarde. Aliás, afirma Sarduy (1974): “A influência dos modelos
cosmológicos e das diversas formas de expressão artística é recíproca” (p. 16).

A arte de Hesíodo condensava ebulições de um momento, o mesmo acontece


com a de Homero. Considerado o mais antigo poeta grego de que se tem
notícia (sabe-se que existiram anteriores, cujos registros não permaneceram),
Homero tornou-se uma lenda, um nome para um coletivo. Sua poesia tem
sido considerada como aristocrática, consistindo num cantar para os nobres,
envolvida com seus ideais e costumes, voltada para o enaltecimento de seus
valores, deixando clara a “superioridade” de uma parcela da sociedade – a
nobreza – em relação à outra – dos homens comuns: “Em todo Homero não
há um único caso em que um personagem não nobre se eleve acima de sua

1 Sobre a poética de Hesíodo e suas ligações com o contexto da Era Arcaica, veja-se, em particular, o
estudo de Torrano (1992), que faz uma análise dos versos, considerando-os dentro do conjunto do
pensamento grego dos séculos VIII-VII a.C.

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própria classe” (HAUSER, 1975, p. 98). Isso acontece, porque em sua arte estão
presentes fatores socioeconômicos, políticos e culturais.

Hesíodo, por sua vez, possui uma posição mais próxima das camadas não
nobres da população. Não que se trate de uma poesia popular, como a en-
tendemos hoje ou, mesmo, de uma poesia que pudesse ser cantada pelos
camponeses, mas expressava a existência dessa dicotomia, ou seja, dessa
“[...] tensão social, de um antagonismo de classes. [...]. Era a primeira vez
que soava na literatura a voz do povo trabalhador [...]. Pela primeira vez o
poeta se aparta dos temas do culto e da religião ou do panagérico da Corte
[...]” (HAUSER, 1975, p. 97).

É justamente da camada de trabalhadores do campo, das mãos daqueles


que possuíam nenhuma ou pouquíssima elaboração teórica, que vai surgir à
estilização geométrica, decorrente de uma atividade eminentemente práti-
ca, que remonta aos egípcios e a outras civilizações que a história manteve
“deliberadamente” a parte por um longo período (vejam-se os exemplos de
Geometrização no estilo Dipylon) (Figura 1).

Figura 1
Detalhe de cerâmica
em estilo Dipylon
Fonte: Imagem de Domínio
Público. https://commons.
wikimedia.org/wiki/
File:Dipylon_amphora_close_
front_(Prothesis).jpg.
IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 21
O estilo geométrico empregado na cerâmica de estilo Dipylon datada de 700
a.C. demonstra uma radicalidade de esquematização, “[...] na qual a abstra-
ção da realidade – a distorção violenta e muitas vezes arbitrária das formas
naturais – não pretende dissimular que tem sua origem na forma do objeto”
(HAUSER, 1969, p. 99). Este tipo de composição perdurará até que uma série
de mudanças ocorra dentro de cujo espírito a arte vai tender a uma menor
rigidez – entenda-se menos geométrico – e mais naturalista.

Nos séculos VII e VI a.C. já se encontra um ambiente propício para o afasta-


mento do mundo “prático” e o ingresso no mundo cada vez mais “abstrato”.
A esse respeito, afirma Hauser (1969): “Nos gregos, encontramos pela primeira
vez, uma ciência, livre não só da religião, da fé, da superstição, organizada
racionalmente, senão independente, também, de toda consideração prática”
(p. 113); ora, Hauser (1975) demonstra com suas palavras o fascínio exercido
pelo pensamento grego, chegando a ponto de isentá-lo de condicionamentos,
conferindo-lhe uma neutralidade sabidamente inexistente e, sobretudo, su-
pervalorizando a independência das formas práticas, valorizando a dicotomia
tão presente no universo grego, sem falar que nega o caráter transcendental
dessa racionalidade, inerente à filosofia grega. Como Hauser (1969), encon-
tramos vários teóricos, de diferentes áreas, terminando por analisar os gregos
sem levar em conta seus aspectos extremamente restritivos, mesmo porque
os incorpora ao seu próprio pensar.

Marca-se, então, o ingresso no mundo de uma dada racionalidade como


fundante da atividade científica, praticada em meio à instauração de uma
economia monetária que, por sua vez, favorece o desenvolvimento do pen-
samento abstrato. Tal influência da organização econômica decorre
[...] do caráter abstrato dos meios de câmbio, da redução de diversos
bens a um denominador comum, da divisão dos bens nos dois atos
independentes de compra e venda, familiarizando o homem com a idéia
de uma mesma forma com diversos conteúdos e de um conteúdo igual
com diversas formas (HAUSER, 1975, p. 114-115).

Esse nível de abstração poderia abrir possibilidades de se elaborar forma e


conteúdo de modo mais criativo e inter-relacional, entretanto, a estrutura

22 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
dual era tão forte que não foi possível superar essa dicotomia. Ao pensar
forma e conteúdo, os gregos quase sempre o fizeram como “um e outro”,
raramente como “um/outro”, estabelecendo a célebre separação com a qual
continuamos lutando.

A complexificação dessa atmosfera desdobra-se na “opção” pelo conhecimen-


to sistematizado, abandonando formas fragmentadas, esparsas, de um saber
imbricado ao misticismo e à religiosidade ou, ao menos, aparece a intenção de
revesti-lo da racionalidade aludida. O trabalho de “limpeza” empreendido não
ocorreu sem prejuízos, resultando em versões bastante teorizadas e áridas,
seccionadas de um conteúdo mais rico que inclusive incorporava elementos
artísticos, privilegiando a forma e o formalismo, como é o caso da lógica aris-
totélica e da geometria euclidiana2. O apego à forma “[...] traduz um projeto
idealista de totalização: postula-se uma identidade de matriz, a conformidade
das estruturas sensíveis primárias – dinâmicas ou estáticas – como um modelo
gerador comum” (SARDUY, 1974, p. 132) (tradução da autora).

Lançadas as primeiras pistas, cabe seguir as direções percorridas pela argu-


mentação aristotélico-euclidiana, ampliando seus domínios, provocando a
manutenção dessa ordenação, desse idealismo que considera a forma como
transcendência da obra.

Um ponto importante a ser considerado é o de que:


Quando os historiadores exaltam o “milagre grego”, esquecem frequen-
temente os lados negativos do gênio grego. Ele legou ao pensamento
humano uma concepção estreita do saber. A ciência seria uma “compreen-
são” inútil e inteiramente teórica, uma contemplação passiva do real e
do verdadeiro. Por um lado, ter-se-ia a constatação do mundo tal como
é, do concreto, dos indivíduos, e, do outro, fora do real, a ciência como
constituída de entidades puras, despojadas de toda materialidade, que
o metafísico deve admitir e contemplar esteticamente. Essa separação

2 Durante todo o desenrolar do presente estudos estarei me referindo à geometria euclidiana e à lógica
aristotélica. A conceituação de ambos aparecerá mais detalhadamente nos capítulos a seguir, mas não
estará restrita a esses dois momentos. Procurarei arrolar o maior número possível de elementos na
intenção/intensão de ir fornecendo densidade a tais noções, fugindo da conceitualização descritiva
usualmente encontrada em trabalhos de matemática ou lógica.

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entre o concreto e o abstrato, entre a contemplação e a ação, entre a
teoria e a prática, foi particularmente nefasta para o pensamento humano
(LEFEBVRE, 198, p. 110).

Partindo-se do princípio de que a ciência mantém estreita relação com outros


campos do saber, na busca do entendimento do enigma do universo e da vida,
cada um dentro de uma forma própria de argumentação, e essa relação se
“cola” ao contexto histórico, só é possível apreender a “realidade” geradora
do pensamento grego à luz dos múltiplos fatores imbricados em seu desen-
volvimento. Como diz Oswaldo Splengler: “Só há verdades em relação a uma
humanidade determinada” (SPLENGER, apud HESSEN, 1968, p. 48) e, ainda,
“O círculo de validade das verdades coincide com o círculo cultural e temporal
do qual procedem aos seus defensores” (SPLENGER, apud HESSEN, 1968,
p. 48). As afirmações citadas confinam, em parte, o conhecimento a um de-
terminado espaço-tempo, deixando de considerar que nem sempre é possível
demarcar exatamente um “prazo de validade”, posto que existem verdades
que atravessam os tempos, perduram em novos contextos, remodelam-se;
entretanto, servem para reforçar a necessidade de se proceder sempre uma
análise de conjuntura, abrangente, retirando da lógica específica de uma cir-
cunstância histórica aquilo que possibilitou a manutenção de sua “validade”.

Muitas das ideias forjadas no “momento grego” continuam “vivas” até hoje.
Algumas – é bem verdade – distorcidas ou conformadas para responder às
expectativas de determinados grupos. Dificilmente o conceito de democracia,
entre outros, é empregado no sentido dado pelos gregos, embora estejamos
acostumados a tomá-lo como se fosse exatamente esta a proposta grega; é
importante lembrar que a imagem composta sobre todo o ideário da demo-
cracia ateniense distancia-se, e muito, da democracia efetivamente por eles
estabelecida.

De toda forma, a implantação da democracia vinculava-se a um estado de


coisas, como vem sendo mostrado: a formação das cidades-Estado, a divisão

24 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
do trabalho3, o direcionamento para uma economia monetária, a desestabiliza-
ção da nobreza, incomodada por uma camada que não possuía a importância
conferida pelo nascimento, mas pelo dinheiro, a ruptura com a noção de
cidadania restrita à pólis, o desenvolvimento de uma base científica pautada
pela ordem, pela sistematização, tornando-se cada vez menos oral e mais
gráfica, alfabética, repleta de novos termos que davam corpo à crescente
abstração da linguagem.

Ao contrário do que poderia ser esperado, a instauração de uma democracia


política subsidia o ideário dualista, binário, enraizado na sociedade grega. Tal
fato pode ser constatado em especial na tragédia (modalidade de expressão
tornada popular por essa mesma democracia), que, para alguns autores, dei-
xam transparecer em sua narrativa todo o antagonismo da estrutura social;
na ciência e na filosofia, marcadas pelas dualidades: causa e efeito, ideia e
matéria, essência e aparência, entre outras tantas separações excludentes,
que procuram configurar o conhecimento de forma a banir, na medida do
possível, as implicações que não se encaixavam nas categorias disponíveis.

Como decorrência desse quadro, o universo, para os gregos, aparece como


um conjunto em extrema harmonia. Eles têm para com o cosmo antes de
tudo uma atitude estética (HESSEN, 1968, p. 115) e é a partir dela que de-
senvolvem sua cosmologia. Seu sentido estético baseia-se nos conceitos de
forma e figura, o que se desdobra em sua arquitetura, nas artes plásticas, nas
representações teatrais, música e composição poética, pensados de acordo
com um ideal de beleza e, mais que isso, segundo um padrão dentro do qual,
entre outras coisas, o ser humano era pensado numa escala de mensuração
que lhe conferia em média 2,09m de altura.

De acordo com LEFEBVRE (1983):

3 Sobre a divisão do trabalho cabe lembrar que: “As cidades nascem para a democracia no exato mo-
mento em que o trabalho se divide e se diferencia” (LEFEBVRE, 198, p. 165). O trabalho manual recai
sobre os não livres, aqueles que não eram considerados cidadãos, mas mão-de-obra abundante e
escrava. Assim sendo, fica evidente a separação existente na sociedade, como tem sido abordado
nesse capítulo.

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 25
O pensamento grego – particularmente na Jônia – herdou a elabo-
ração confusa, mas preciosa, iniciada pelas civilizações do oriente
médio, do Egito: fixação de calendários, inícios de astronomia,
geometria e aritmética prática dos egípcios; nas cidades e na vida
urbana gregas, a natureza começa a ser verdadeiramente dominada
por uma técnica superior (navegação, arquitetura, etc.) e por uma
organização social (prática jurídica) (p. 165).

O ingresso numa forma mais complexa de organização social, com a formação


das cidades e o início de relações político-sociais diferentes, encontrava-se
estreitamente ligado ao forte poder que os argumentos lógicos e matemáticos
causavam nos pensadores gregos.

A sociedade grega não era exatamente uma sociedade receptível, permeá-


vel; apesar do “milagre grego” poder ser também explicado através da “[...]
intensidade dos intercâmbios materiais e intelectuais; da vida urbana e co-
mercial já desenvolvidos, da língua admirável desde o início pela sua precisão
e flexibilidade” (LEFEBVRE, 1983, p. 76). Não há como negar a existência de
um sentimento peculiar de reação ao que hoje se poderia denominar de
intercâmbio cultural; povos que falassem outras línguas eram chamados
bárbaros desde Homero; o conceito de estrangeiro supunha um alto grau
de restritividade, qualquer um fora do lugar que habitasse era considerado
estrangeiro, isto é, todo aquele que não pertença a uma comunidade de
cidadãos, a uma pólis. Os cortes jurídico-políticos, impostos à aceitação do
indivíduo como cidadão e a demarcação de fronteiras territoriais que funda-
mentavam a noção de estrangeiro passam pela questão da manutenção de
uma identidade tanto ao nível macro, em relação aos demais povos, quanto
no nível micro, criando identidades próprias para as diferentes cidades-Estado
(veja-se o caso de Atenas e Esparta).

Quando era empreendida uma resistência ao outro se determinava uma


série de empecilhos às trocas culturais, obstáculos estes, agravados pelas
dificuldades de locomoção e pelas barreiras lingüísticas impostas pelas cir-
cunstâncias. Os saberes outros, não gregos, incorporavam-se à cultura grega,
muito mais por contrabando, não se constituindo numa forma de assimilação
propriamente dita, embora houvesse, em alguns casos, certa atração por estas

26 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
outras culturas, como mostra Platão, no seu “Fedro”, ao revelar a admiração
pela sabedoria egípcia, em especial ao deus Thoth, inventor do cálculo, dos
números, da geometria e, não por acaso, do jogo de dados (MANACORDA,
1989, p. 9-10) ou Tales de Mileto (663 a.C./556 d.C.), que incorporava aos
seus estudos, conhecimentos da matemática egípcia, por exemplo, trazidos
de suas viagens. Em ambos os casos citados tal aproximação não representa
uma norma. Havia, portanto, um problema de tradução, não somente de uma
tradução verbal, mas de uma tradução mais completa. Faltava, o que Zumthor
(1988) chamava de “desejo de aprender a linguagem do outro”4.

A vida no Estado-Pólis aponta também para uma mudança na forma de lin-


guagem: da mítica para a lógica. Essa mudança, que já vinha se fortificando
há alguns séculos faz com que a linguagem lógica assuma a responsabilidade
de dar respaldo às indagações levantadas e penetra no pensamento grego,
tendo na lógica aristotélica, dualista, dicotômica e restritiva, a expressão mais
acabada que encarnava o momento histórico vivido. Impunha-se na linha
de frente da argumentação grega a crença na existência de ordens e limites
responsáveis pelo equilíbrio necessário à sua vida:
O mundo era perfeito porque limitado. A idéia de infinito representava
o caos e a desordem. O homem possuía limites e deveria manter esses
limites, assim também como a sociedade deveria mantê-los. O limite
definia o ser e a norma. O infinito, o sem medida, o que não acaba,
representava ultrapassar o limitado e o definido, e representava o
retrocesso ao estado de caos, sem norma e sem lei. Para o grego, não
reconhecer seus limites seria prescindir da instância divina e colocar
o homem como medida do mundo (FELIX e GOETTEMS, 1989, p. 31).

Nesse sentido, vale lembrar a importante discussão de Derrida a respeito da


pólis grega:
O corpo da cidade reconstitui, pois, a sua unidade, torna a fechar-se
na segurança de seu foro íntimo, devolve a si a fala que a vincula a si

4 Segundo Zumthor existem três níveis de alteridade: Absoluta – produzida pelo confronto entre sujeito
e objeto, que pertence ao plano existencial; Radical – que exclui todo o sentimento de pertencer a um
universo comum e a Relativa – que convida à tradução engendra o desejo de aprender a linguagem
do outro. Para estudos mais detalhados veja-se ZUMTHOR, 1988, p. 36-37.

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 27
mesma nos limites da ágora, excluindo violentamente de seu território
o representante da ameaça ou agressão exterior. O representante
representa, sem dúvida, a alteridade do mal que vem afetar e afeta
o dentro, irrompendo nele imprevisivelmente. Mas o representante
do exterior não é menos constituído, regularmente disposto pela co-
munidade, escolhido, se assim se pode dizer, em seu seio, sustentado,
alimentado por ela (DERRIDA, 1991, p. 80).

Novamente aparece a preocupação com limites, fronteiras, demarcações,


enfim, separações operadas entre um “dentro” e um “fora”, expressos nas
formulações físicas e metafísicas. Os limites eram definidos num âmbito ex-
tremamente “apertado” o que facilitava, segundo seu modo de agir e pensar,
a classificação de um ou outro estado, numa ação que marca a dualidade
do dentro e do fora, do interior e do exterior, do que pertence e o que não
pertence, o que contém e o que está contido5. Em contraponto à excessiva
dicotomização do mundo, cabe citar Borges (em seu poema “Laberinto”, de
1969), desorientando a linearidade do raciocínio aristotélico:
LABERINTO

NO HABRÁ NUNCA UNA PUERTA. ESTÁS ADENTRO


Y EL ALCÁZAR ABARCA EL UNIVERSO
Y NO TIENE NI REVERSO
NI EXTREMO MURO NI SECRETO CENTRO.
NO ESPERES QUE EL RIGOR DE TU CAMINO
QUE TERCAMENTE SE BIFURCA EN OTRO,
QUE TERCAMENTE SE BIFURCA EN OTRO,
TENDRÁ FIN. ES DE HIERRO SU DESTINO
COMO TU JUEZ. NO AGUARDES LA EMBESTIDA
DEL TORO QUE ES UN HOMBRE Y CUJA EXTRAÑA
FORMA PLURAL DE HORROR A LA MARAÑA
DE INTERMINABLE PIEDRA ENTRETEJIDA.
NO EXISTE. NADA ESPERES. NI SIQUIERA
EL NEGRO CREPÚSCULO LA FIERA.
(BORGES, 1969, p. 47).

5 Esta terminologia está incorporada na linguagem matemática, especialmente no estabelecimento


das relações que modernamente vieram a ser escritas na teoria dos conjuntos.

28 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
A relativização da ordem, a rejeição ao conceito de caos, às explicações esta-
belecidas sobre uma norma fundadora, serão discutidas mais adiante. Preten-
de-se mostrar como tais razões foram extremamente significativas para alguns
dos nomes com os quais iremos trabalhar e, mais, como todo esse contexto,
em que agiam determinadas relações de força, teve uma importância capital,
especialmente no que toca ao peso embutido no pensamento aristotélico.

Demócrito (460-370 a.C.), que acreditava ser o universo composto por átomos,
então descritos como elementos indivisíveis formadores de toda a matéria, viu
suas suposições sucumbirem diante da proposição aceita de que o universo
era formado a partir dos quatro elementos – terra, água, fogo e ar. Se for
verdade que a noção de átomo remonta aos gregos, é igualmente verdadeiro
o fato de que apenas muito recentemente, por volta do início do século XX,
que tal noção obteve o reconhecimento devido, e a ideia do átomo passou a
ser considerada nas pesquisas físicas.

Os conhecimentos gregos são guardados/transmitidos através da então


recém-nascida escrita. Com a passagem de um modelo de oralidade, onde
a transmissão do conhecimento dava-se através da comunicação oral, para
a comunicação escrita, faz-se necessária uma sistematização capaz de con-
ferir organicidade ao que seria ensinado. Os gregos conseguem elaborar
um sistema de escrita mais acessível (sistemas como o cuneiforme ou o
hieroglífico, ficavam restritos às mãos de iniciados). A escrita alfabética grega
permite uma primeira democratização do conhecimento, a escola grega não
se estende à grande maioria da população, mas é por assim dizer, a anteces-
sora de nossa escola atual, implementando o registro dos acontecimentos
e a difusão da cultura: “A sociedade muda e a escola é ao mesmo tempo,
consequência da mudança ocorrida e instrumento da mudança futura”
(MANACORDA, 1989, p. 69).

Nesse sentido, conforme Pignatari (1974), “O que costumamos chamar de


lógica clássica – aristotélica e linear – é a lógica corporificada no idioma
grego: é uma lógica por contigüidade. O código alfabético é a mais poderosa
máquina lógica [...]” (p. 30). Consequentemente, o alfabeto grego aparece a
um só tempo como uma forma de expansão do conhecimento e também como

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 29
uma forma de condicionar a produção desse conhecimento e, ainda, como
forma de garantir ao pensamento grego permanência através dos tempos.

Não há dúvidas de que a história privilegiou o modelo grego, retomado e


divulgado tanto pelos ocidentais quanto pelos árabes, conferindo-lhe uma
importância primordial. Tanto que na Idade Média a sociedade viveu um
conflito entre a fé cristã e o ideário clássico, conflito de posicionamento do
homem diante dos universos macro e micro em que vivia.

Assim como por ocasião do desenvolvimento das cidades-Estado gregas, a


formação dos núcleos urbanos constituiu-se num dos fatores relevantes para
se entender a “realidade” vivida por volta do século XII, Alta Idade Média.

Concomitantemente à urbanização, provocadora de uma reorganização


social, dá-se um processo de alteração na posição e no modo de encarar a
ciência: “[...] modificam-se profundamente as estruturas econômicas e sociais
do ocidente e começam por meio do movimento comunal, a subverter as
estruturas políticas” (LE GOFF, 1989. p. 21). Inaugura-se uma “modernidade”
a procura do novo.

Esse novo, entretanto:


[...] não vai de encontro ao pensamento dos antigos, mais uma vez
responsável pela formação do pensamento ocidental, mas há um
sentimento de construir o novo e de serem homens novos [...] Tanto
no falar quanto no escrever é recorrente o uso da palavra “moderno”
para se designar os escritores de seu tempo. “Modernos”, eis o que
eles são e sabem ser. Mas “modernos” que não contestam os antigos;
pelo contrário os imitam e se nutrem deles, se apoiam em seus ombros
(LE GOFF, 1989, p. 23).

Os ensinamentos gregos surgiam como algo novo, o novo que tanto busca-
vam. Os “antigos” são tomados como “instrumentos” dos intelectuais, com
os quais estruturam todo um modelo de pensar e agir.

O locus urbano é um terreno de trocas por excelência. Nos centros comerciais


são cambiadas mercadorias triviais e, também, textos provenientes do oriente,
onde repousaram durante do exílio imposto. Assim, foi pelas próprias mãos

30 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
dos árabes que retornaram os manuscritos banidos pela Igreja. Esse processo
merece ser visto com cuidado: as pressões da Igreja, tentando respaldar as
escrituras sagradas, em livrá-las de qualquer contradição, expulsam toda
literatura que fosse de encontro ao seu dogmatismo. Cristãos heréticos e
judeus perseguidos carregam pelas trilhas de seu exílio as obras de Euclides,
Aristóteles, Platão, Ptolomeu, Galeno. Os escritos encontraram acolhida
entre os muçulmanos, que os estudam e guardam em suas bibliotecas. Ao
fazerem o caminho de volta deparam-se com uma situação mais favorável e
começa um processo de tradução. Esse trabalho tradutório é realizado com
o objetivo de preencher:
[...] as lacunas deixadas pela herança latina na cultura ocidental: a
filosofia e, sobretudo, as ciências. As matemáticas com Euclides, a
astronomia com Ptolomeu, a medicina com Hipócrates e Galeno, a
física, a lógica e a ética com Aristóteles, eis a imensa colaboração
desses trabalhadores. E, mais ainda talvez que o conteúdo, o método.
A curiosidade, o raciocínio e toda a “Lógica Nova” de Aristóteles: a
das duas “Analíticas”, a dos “Tópicos”, dos “Elencos”, que veem se
juntar à Velha Lógica [...] (LE GOFF, 1989, p. 27-28).

A incorporação de um conteúdo e de um método dos clássicos fez-se tão


solidamente que vem resistindo às sucessivas tentativas de “colocá-los à
parte”, mantendo-se presente mesmo em pesquisas recentes, completamente
distantes dos contextos que os originaram e aos quais estavam intrinseca-
mente ligados.

Cabe salientar que os árabes não foram meros tradutores, retrabalharam


diversos aspectos e deram a sua própria contribuição como:
A aritmética e a álgebra de Al-Khwarizmi – aguardando que, nos
primeiros anos do século XIII, Leonardo de Pisa tornasse conhecidos
os algarismos chamados arábicos, na realidade hindu, mas trazidos
da Índia pelos árabes. A medicina com Rhazi, que os cristãos chamam
Rhazés e, sobretudo Ibn Siná ou Avicena, cuja enciclopédia médica ou
“Canon” viria a se tornar o livro de cabeceira dos médicos ocidentais.
Astrônomos, botânicos, agrônomos e, mais ainda, alquimistas que
transmitem aos latinos a busca febril do elixir da eterna juventude.
A filosofia enfim, que a partir de Aristóteles construiu poderosas sín-

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 31
teses com Al-Farabi e Avicena. Juntamente com as obras também os
termos como algarismo, zero e álgebra, são transmitidos pelos árabes
aos cristãos, ao mesmo tempo em que o vocabulário de comércio:
alfândega, bazar, albergue, gazela, cheque, etc. (LE GOFF, 1989, p. 28).

Se o legado, árabe, extremamente importante e significativo, representou


apenas uma pequena parte do que era a sua ciência, volto a ressaltar, não
pode deixar de ser reforçado o fato de eles próprios terem conferido ao sa-
ber grego um lugar fundamental, a ponto de difundi-lo e contribuir para a
recuperação de seu prestígio no ocidente.

Por volta do final desse período os homens haviam descoberto – apesar de


a realidade cristã procurar conquistar perenidade e manter-se hegemônica
– outras realidades, como as da experiência natural, por meio dos métodos
empíricos. Abalam-se então as certezas em vigor, questiona-se o apoio incon-
dicional às proposições da Igreja e lançam-se dúvidas sobre o entendimento
de mundo até então aceito. As mudanças na representação conceitual da
realidade inauguram os procedimentos que fariam surgir mais tarde, entre
outras disciplinas, a física moderna. Experimentou-se durante o século XII
uma conciliação entre razão e fé. O homem era visto como um ser racional,
mas iluminado por Deus, pronto para seguir suas leis; a razão ia até aonde
as sagradas escrituras começavam.

Muito se valorizou o pensamento de Santo Agostinho (354-430), que retomou


conceitos platônicos para adequá-los aos ideais cristãos. Santo Agostinho
(1993) acreditava ser a verdade cristã suficiente por si só, então converte
e adapta as “ideias” de Platão para assemelhá-las às “ideias” criadoras de
Deus, mantendo a experiência numa “zona inferior” e afirmando ser o saber
resultante da iluminação divina. Santo Agostinho (1993) reage à ciência vol-
tada para a experimentação e busca no discurso platônico, o respaldo para
seu pensar, organizando-o com a intenção de reforçar com o prestígio dos
clássicos as “verdades” da igreja, mascarando as contradições existentes
entre as duas orientações.

Esse neoplatonismo cristão, voltado, portanto, para as ideias, investe contra


a noção, então constrangedora, de matéria; a “[...] renovação do pensamento

32 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
de Platão no neoplatonismo cristão levou a caracterizar a matéria como de-
ficiência das Ideias e, como o compreensível devia identificar-se com o Bem,
chegou-se a identificar a matéria com o Mal” (HEISENBERG, 1974, p. 38).

A cristianização da obra de Aristóteles, promovida especialmente por São


Tomás de Aquino (1224-1274), imprimiu definitivamente a marca da cultura
grega na cultura européia. Os textos aristotélicos foram “lidos”, remontados,
recortados, de maneira a servir às intenções da Igreja, tornando-se uma
espécie de modelo perfeito a ser seguido.

A disputa entre o neoplatonismo agostiniano e o aristotelismo de São Tomás


ganha corpo. A Igreja, que havia condenado a obra de Aristóteles em 1210,
reabre espaço a ela por volta de 1240, reabilitando-a como padrão de ver-
dade, fora do qual qualquer elaboração seria considerada uma infração e
um desrespeito aos dogmas da igreja. A importância de Aristóteles pode
ser expressa na seguinte afirmação: “O Aristóteles do século XIII não é o
mesmo de século XII. Em primeiro lugar é mais completo. Ao lógico que o
século XII conheceu se acrescenta também, de preferência, graças a uma
nova geração de tradutores, o físico, o moralista de ‘Ética a Nicômano’ e o
metafísico. Em segundo lugar, ele é interpretado. Chega cercado de comen-
tários dos grandes filósofos árabes” (LE GOFF, 1989, p. 93) 6.

No Oriente, por sua vez, a ciência caminha por trilhas diferentes – especial-
mente no mundo islâmico, onde as barreiras ideológicas impostas eram de
outra ordem que não as da igreja – sem precisar adequar postulados às tábuas
da lei. “Entre 700 e 1200 a civilização islâmica é uma força [...] As cruzadas

6 As sucessivas citações de Le Goff devem-se à polêmica questão da incorporação/exclusão das ciências


árabes pelo ocidente. Posso citar, entre outros o próprio Le Goff, apontado para uma incorporação
ainda que parcial e de outro lado, Rashed (1984), constituindo uma crítica bem mais radical. Para se
ter ideia da complexidade desta questão cientifica, vale ver, conforme Rashed (1984), algumas das
consequências que ele mostra serem decorrentes do domínio europeu: “1 – a ciência do oriente não
deixou vestígios sérios na ciência grega, a ciência árabe também não deixou vestígios sérios na ciência
clássica. Nos dois casos a descontinuidade estava tal que o presente não poderia mais se reconhecer
no seu passado ultrapassado; 2 – A ciência posterior à ciência grega depende intimamente desta [...]
4 – A marca distintiva da ciência ocidental, para suas origens gregas assim como para a renascença
moderna é a sua conformidade às exigências de rigor; ao contrário, a ciência oriental, em geral, e
árabe em particular, se deixam arrebatar pelas regras empíricas e pelos métodos de cálculo, em não
verificar os fundamentos de cada uma de suas tentativas” (RASHED, 1984. p. 308).

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 33
que vão desde o século XI até o século XIII, levam a Europa a tomar contato
com novos processos e técnicas, inclusive como o compasso, a manufatura
do papel, o relógio na base do pêndulo e uma forma de impressão, sem
mencionar a tomada de contato com um sistema de notação numérica mais
eficiente” (GILES, 1987, p. 76).

A ciência, a matemática, e também a arte, desenvolveram-se fecundamente


na produção oriental, entretanto, foram quase que totalmente rechaçadas,
passando o ocidente a uma reincorporação paulatina do ideário helênico:
“A ciência clássica é européia e suas origens são diretamente lisíveis na
ciência e na filosofia gregas: essa doutrina – uma vez que não era costume
uma história da filosofia e da ciência – sobreviveu integralmente a todos
os conflitos de interpretação, portanto múltiplos ao curso dos dois últimos
séculos” (RASHED, 1984, p. 301).

No que diz respeito à produção dos chineses, um de seus conceitos merece


especial atenção: o de vazio; desde “[...] a China antiga, já se tinha formu-
lado uma teoria do espaço vazio, que não pode ter efeito, ou seja, dissolver
o modelo europeu, senão depois de Galileu” (SARDUY, 1974, p. 129), pois a
ideia de vazio era incompatível com a doutrina divina, sendo considerada
uma afronta a sua capacidade de “tudo preencher”.

De qualquer modo, ficou gravada a marca da cultura grega, a despeito do


desenvolvimento de ciências de outras civilizações. Decorre daí a quase que
completa submissão engendrada no sentido de manter em alta os ideais
gregos, ainda que oscilassem entre Aristóteles e Platão, Demócrito e Parmê-
nides e tantos outros. A influência da cultura grega inseriu-se na evolução
das ciências, mantendo sobre elas sua orientação.

A ciência moderna, que tem seus precursores já na Baixa Idade Média,


com a introdução do empirismo (ainda que de forma marginal, tendo em
vista o domínio da escolástica) passa, a partir do século XV a assumir uma
nova configuração, em função das mudanças que vão ocorrendo no modo
de estruturação das sociedades. O declínio do feudalismo, concomitante à
ascensão da burguesia delineia formas de relação nunca experimentadas.

34 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Nessa direção, é preciso buscar outras abordagens que dêem conta da nova
conformação social, caindo por terra a concepção teocentrista e como expli-
cação e justificação da realidade:
Se a nobreza continua a exercer seu poder por direito divino, aque-
les que ela despreza por terem um emprego passam a exercer um
domínio crescente sobre a natureza: inventam a máquina a vapor,
descobrem a eletricidade, exploram as minas de Anzin e Creusot,
mecanizam a produção têxtil e metalúrgica, promovem a criação das
primeiras escolas [...] Eles não esperam mais que Deus intervenha,
por meio de milagres, no curso dos acontecimentos. O mundo físico
e humano obedece a leis próprias, que a ciência deve descobrir. Na
realidade, [...] esse domínio sobre o mundo e a nova forma que as-
sume a indagação sobre o homem caracteriza uma classe social que
toma consciência de si própria. Se elimina Deus, é porque se pretende
senhora do seu destino (BISSERET, 1979, p. 34-35).

Assim, a ordem social estabelecida pela democracia exige uma nova racio-
nalidade científica, onde o homem e não mais Deus é o centro de referência.
A Razão humana, principalmente a partir do século XVIII com a Revolução
Francesa, parece não ter limites, a tudo desafiando em nome do “progresso
da humanidade”. O ideário Iluminista, presente nesse processo, expressa e
justifica essa organização social. Na modernidade, portanto, a ciência ganha
centralidade e um impulso extraordinário, abrindo espaço para os mais di-
versos campos do conhecimento e todo um desenvolvimento tecnológico.

A título de exemplo, veja-se o trabalho de Kepler (1561-1630). O papel da


ciência nesse momento histórico foi tão importante que acabou por moldar
a própria imagem da Idade Moderna. Sabe-se que Kepler, após esforços re-
petidos, conseguiu operar uma importante mudança na imagem do universo,
passando do circular para o elíptico, passa de uma imagem clássica para outra
nova e desestabilizadora. Sua concepção das órbitas planetárias constitui um
avanço que extrapola os domínios da física para interagir com todo o contexto
vigente, num momento em que se sentia uma necessidade urgente de dar
forma e embasar as atividades humanas em curso, desde as navegações até
as ordens sociais, políticas e econômicas em formação. A relação de Kepler

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com a ciência moderna é apenas uma das muitas contribuições em diversos
campos do saber.

Após esse breve esboço histórico já é possível passar a uma releitura epis-
temológica das “ciências dos números” – matemática, geometria e física
– observando como os “deuses primordiais” têm mandado seus “anjos men-
sageiros” para guardar a episteme das tentações de mil demônios caóticos.
Anjos, diga-se de passagem, nada inofensivos, parecidos com aquele de Paul
Klee, cujo olhar não deixa de transparecer certa falta de ingenuidade (como
no interessante “Anjo com guizo” de Paul Klee (1939) (Figura 2).

Figura 2
Paul Klee, “Anjo com guizo”,
1939
Fonte: Imagem disponível para
uso não comercial/acadêmico.
Fair Use. Disponível em: http://
www.studiolum.com/wang/
indrikov/klee-angel-2-293.jpg.

36 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
CAPÍTULO 2
TRILHAS
EUCLIDIANAS
Donzelas com esquadros
e compassos, velando
as lousas estelares

E um anjo dos números,


pensativo, voando
do 1 ao 2, do 2
ao 3, do 3 ao 4.

Riscavam e borravam
a luz dos ares gizes
e apagadores frios.

Nem sol, lua, nem estrelas,


nem repentinos verdes
do ar e do relâmpago,
nem o ar. Só névoas.

Donzelas sem esquadros,


sem compassos chorando.

E pelas mortas lousas,


voa o anjo dos números,
sem vida, amortalhado
sobre o 1 e o 2,
sobre o 3 e o 4...

(“O anjo dos números”, Rafael Alberti, 1993)


No poema de Rafael Alberti caminha etereamente o anjo dos números, pen-
sativo, amortalhado, em escolas, laboratórios, entre lousas e livros.

A obra de Rafael Alberti cola-se à efervescência de um período histórico,


o início do século XX, sobretudo as décadas de 1920 e 1930. Em “Sobre os
Anjos” (publicada em 1928) atingiu seu ponto alto colocando lado a lado
preocupações poéticas e cósmicas. Para Ian Gibson (1988), “Como Lorca, os
outros poetas de sua geração, notadamente Alberti, também vinham sentindo
a atração do irracional nesse final de 1928” (p. 32). Libertados da preocupação
formal, estavam em “vésperas de produzir alguns de seus melhores trabalhos”
(PINHEIRO, 1993, p. 16).

A imagem que Alberti escreve/descreve do universo dos números está


permeada pela tensa carga de angústia que aflige os cientistas ao se de-
pararem com a “certeza da incerteza”. É justamente na década de 1930,
mais precisamente em 1931, que o matemático Kurt Gödel expõe suas teses
sobre a inconsistência de certos sistemas matemáticos. Encontra-se aí uma
sincronicidade não descartável, ombreando inquietações emergentes em
campos cujo contato vem sendo restringido pelas metodologias de trabalho
e tendências à especialização.

Amálio Pinheiro (1993) faz a tradução e, também, um estudo sobre esse


conjunto de escritos e observa que: “´Sobre os Anjos’ quer ser uma es-
pécie de equação poética das mais fundas questões da cultura espanhola”
(p. 16) e, ainda, nos mostra que em “O Anjo dos Números”, reivindicando
uma prática menos “amortalhada” por parte dos matemáticos e daqueles
que lidam com ela:
Rafael Alberti expõe a ligação entre estruturas ocultas e cósmicas,
onde se trava a luta entre mundos de sombra e ar-luz, e uma estrutura
com contornos político-históricos estrategicamente “catalogável”.
Instaura nos versos uma crítica aguda à pobreza relacional, índice
do tédio seqüencial dado pelo mero alinhamento dos números
(PINHEIRO, 1993, p. 77).

Seu anjo dos números voa também nos estúdios, ateliês, pousa em telas, sobre
esculturas, atravessa ruas e perde o halo em meio a lodaçais de macadame.

38 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
No seu percurso carrega poesia e contamina equações. A criatividade está
nos números tanto quanto arte.

Possível veículo de trânsito entre campos, o caráter universal da matemática


tem sido exaustivamente discutido. Desde os pitagóricos – cultores da máxima
“Tudo pode ser escrito em forma de números” (pressupondo, então, ser esta
a lógica fundante do pensamento, abarcando o modo como “contamos” o
mundo, o ordenamos e o representamos) – até hoje, como está expresso nas
palavras do físico Heisenberg: “Se as matemáticas servem como expressão
do pensamento humano são expressões do pensamento em si, não somente
do pensamento humano. Onde quer que haja pensamento, as matemáticas
serão sempre as mesmas” (HEISENBERG, 1974, p. 137).

Inferia, com isso, que outros “[...] ‘seres pensantes’, em universos diferentes,
a conceberiam tal como nós” (HEISENBERG, 1974, p. 137). Mesmo não sendo
possível, ainda hoje, comprovar tal hipótese, o núcleo da proposição de
Heisenberg faz da matemática um produto da mente humana, dando-lhe
amplitude, mas, deixando de lado o aspecto contextual, ou seja, as condições
materiais nas quais as matemáticas se desenvolvem.

Nesse sentido, a preocupação em aproximar a matemática das bases às quais


se vincula, retirando-a de uma possível dimensão idealista, limitante, concorre
para auxiliar na compreensão do universo em que vivemos.

A tendência para o plano das ideias remonta aos primórdios da civilização


grega, do mesmo modo que a exigência de rigor. É preciso lembrar: “O rigor
matemático, como qualquer outra forma de rigor, assenta num critério de
seletividade e que, como tal, tem um lado construtivo e um lado destrutivo”7
(SANTOS, 1990, p. 27). Tradicionalmente tem-se apontado com muito mais
frequência às vantagens do rigor, colocando “sob o tapete” os inevitáveis em-
perramentos pertinentes ao próprio processo de produção do conhecimento.

7 Santos (1990) critica o rigor exagerado, mas estabelece uma dicotomia rígida colocando de um lado
o construtivo e de outro o destrutivo.

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Durante séculos, mais de 20, as superfícies matemáticas construíram-se sobre
o rigoroso alicerce grego, euclidiano. Euclides (300 a.C.) foi quem primeiro
sistematizou o pensamento matemático grego, reunindo num conjunto de
livros (13 volumes) praticamente todo o conhecimento matemático conhecido
então8. Sua obra (Elementos, do grego “Stoicheia”) serviu como base para toda
a teoria matemática posteriormente desenvolvida. Embora os treze volumes
não constituíssem a melhor forma de estruturar esse conhecimento, sua
organização e os critérios de precisão impressos ao trabalho levaram à sua
adoção, privilegiada, entre outras razões por essa organicidade, que não es-
tava presente noutras formas de reunir o conhecimento matemático, algumas
delas mais significativas, no sentido de proporcionar uma leitura relacional
da matemática. Entretanto, em muitos casos, as anotações encontravam-se
dispersas, compostas de um amontoado de notas e comentários difíceis de
serem utilizados e, principalmente, difundidos.

Se, por um lado, a “enciclopédia” euclidiana teve uma importância fundamen-


tal, inclusive pedagógica9, por outro, seu uso como verdade absoluta baniu
certos aspectos e apontou para uma direção muito mais restrita da matemá-
tica. A matemática de povos, como os árabes ou chineses, ficou esquecida,
tendo sido retirada das gavetas apenas recentemente, suprimidas que foram
pelas “facilidades” oferecidas pelos “Elementos”.

Na obra de Euclides (300 a.C.) não vemos a interação da matemática com


outros campos, como a filosofia ou a arte, prática comum na matemática árabe,

8 Para observar a forma de estruturação de seu pensamento, aponto algumas de suas proposições:
“1 – Duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si; 2 – Se parcelas iguais forem adicionadas a
quantias iguais, os resultados continuarão sendo iguais; 3 – Se quantias iguais forem subtraídas das
mesmas quantias, os restos serão iguais; 4 – Coisas que coincidem umas com as outras são iguais;
5 – O todo é maior que as partes” (EUCLIDES, 2009).
9 A título de ilustração no que se refere ao caráter pedagógico da geometria euclidiana, transcrevo uma
epígrafe escrita numa lápide de criança datada do século II d.C.: “Penetrei as doutrinas de Pitágoras e
de outros sábios, li os líricos, li os sagrados textos de Homero, aprendi os ensinamentos matemáticos
de Euclides. E gozei também de brincadeiras e animadas diversões” (MANACORDA,1989, p. 84). Ainda
cabe citar que, no século XIII, momento em que surge a universidade, os programas escolásticos
adotam a concepção geométrica de Euclides: “Na faculdade de Artes em Paris, a lógica e a dialética
se sobressaem, sendo comentado quase tudo de Aristóteles [...], em Bolonha se enfatiza entre outras
coisas, as ciências matemáticas e astronomia, especialmente com Euclides e Ptolomeu” (LE GOFF,
1989, p. 67).

40 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
onde eram estudadas conjuntamente. É, nesse sentido, uma sistematização
claustrofóbica, criando um conjunto fechado de argumentações, sustentadas
por axiomas pretensamente incontestáveis, funcionando, mais ou menos,
como uma bíblia, na qual são encontrados dogmas irrefutáveis e a partir dos
quais se deve iniciar e fundamentar qualquer construção teórica.

A bidimensão era o tônus dessa geometria primeira, e aí tem início o processo


de reticulação no qual temos nos encontrado, uma vez que sua tridimen-
sionalidade beirava o terreno da metáfora, seu suporte eram as superfícies.

Nossa visão dos objetos nem sempre é tridimensional; somente o movimento


do observador pode transformar a imagem em tridimensão. O volume surge
do movimento, da rotação em torno do objeto ou, ainda, da memória desse
movimento já efetuado.

Euclides alicerçou sua geometria sobre alguns conceitos chave: ponto, reta e
plano. Tomemos como exemplo uma superfície matemática euclidiana: uma
região delimitada do plano. Tal região é formada por infinitos segmentos de
retas, que por sua vez são formados por infinitos pontos. Euclides10 definiu
ponto como sendo “aquilo que não tem partes”; consequentemente não
tem também extensão, é adimensional; logo, uma superfície matemática é
constituída por não partes, não sendo, teoricamente, palpável.

10 Newton da Costa, a respeito de Euclides, observa: “Na matemática o método axiomático vem sendo
praticado desde Euclides que aplica o método no desenvolvimento da geometria, embora do ponto
de vista lógico a obra não seja perfeita. Segundo a tradição oriunda de Euclides, na exposição siste-
mática da geometria parte-se de determinadas noções tidas como claras (ponto, reta...) e de certas
proposições admitidas sem demonstração. Estas proposições normalmente se dividem em duas
categorias: a primeira, que podemos denominar categoria dos axiomas, compõe-se de enunciados
comuns a todas as ciências, como ‘o todo é igual à soma de suas partes’; na segunda, a categoria
das proposições chamadas postulados, que exprimem propriedades estritamente geométricas (às
vezes não tão evidentes quanto os axiomas), incluem-se enunciados como ‘por um ponto dado fora
de uma reta, passa no máximo uma paralela a essa reta dada’”, [esse enunciado é chamado de pos-
tulado das paralelas; estou fazendo menção desse fato pois ele será trabalhado quando tratar mais
especificamente das geometrias não euclidianas], e, ainda: “A obra de Euclides não é inteiramente
satisfatória, entre outras razões, porque o geômetra grego, em suas demonstrações, lança mão, em
diversas oportunidades, de suposições que não enunciou de modo explícito. Por conseguinte, Euclides
não se limitou a tirar consequências exclusivamente das proposições primitivas que explicitou, donde
sua axiomática não era perfeita” (COSTA, 1992, p. 50).

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Esse raciocínio complexo, aparentemente paradoxal, vai tornando-se cada vez
mais intrigante. Para chegar à noção abstrata de ponto, um longo caminho
foi percorrido. A ideia de ponto foi associada a um pequeno seixo, a partir do
qual foram sendo elaboradas outras abstrações: a linha seria uma sucessão
de pontos – seixos – e assim por diante. No bojo dessa discussão aparece a
dificuldade de discernir entre o contínuo e o descontínuo (LEFEBVRE, 1983,
p. 167). Vejamos a seguinte observação:
Um ponto, segundo Aristóteles deveria estar “em contato” com
aqueles pontos que estão sobre a semirreta limitada pelo ponto,
e isto não pode acontecer, já que o “contato” não poderia fazer-se
senão sobre uma “parte” do ponto, e um ponto “não tem partes”
(DIEUDONNÉ, 1990, p. 229).

Assim pensando, deve-se ressaltar que:


Se não desenharmos nenhuma linha de contorno, a existência de
figuras geométricas só poderia estabelecer-se na imaginação, pois
sua superfície só adquire realidade ao aparecer como contorno de
um corpo material [...]. Do ponto de vista geométrico puro, sem em-
bargo, o corpo não é nada além de um nada vaporoso: constitui um
recorte mental ao que atribuímos uma forma. Considerados, pois, os
conceitos desde um ponto de vista estritamente teórico não “existem”,
“em realidade”, mais que corpos, já que o mesmo finíssimo risco de
lápis sobre um papel delgadíssimo é uma acumulação de finíssimas
partículas corpóreas sobre uma base também corpórea. [...]. As formas
geométricas são puros entes mentais que só anotamos simbolica-
mente, valendo-nos do desenho para sua conservação e comunicação
[...] e a palavra “desenho” resulta, já em seu mais fundo significado
lingüístico, altamente reveladora, porque mediante o desenho se
traçam signos, ou seja, símbolos (COLERUS, 1952, p. 47-48).

Contemporaneamente, nem todas as formas geométricas são passíveis de


«anotação», ampliando, consequentemente, o nível de abstração do pensa-
mento matemático. No âmbito matemático trabalha-se simultaneamente com
categorias concretas e abstratas sem, entretanto, delimitar suas fronteiras
explicitamente, provocando um movimento pendular contínuo, na direção
da dissolução de seus limites. A relação estabelecida entre ambos – abstrato

42 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
e concreto – é bastante complexa, especialmente quando pensados longe de
definições, comumente, dicotômicas. Langevin (1934) expressa de maneira
mais drástica essa interação de (aparentes) contrários, afirmando: “o concreto
(...) é o abstrato que se torna familiar pelo uso” (LANGEVIN, 1934, p. 45, apud
PATY, 1995, p. 25).

O qualificativo “abstrato” serve como designação daquilo que não podemos


reconhecer de maneira mais imediata, ou seja, dependente de uma “visua-
lização” complexa, elaborada, envolvida com a decifração de códigos não
óbvios, enfim, demandando um repertório mais apurado. Muito embora,
até agora, tenha tratado mais de perto a relação concreto-abstrato dentro
do território da matemática, cabe salientar que tal preocupação permeia
diferentes campos do pensamento e das produções científica e artística. As
discussões aqui apresentadas procuram não desvincular-se de um contexto
mais amplo, das formas de entendimento do mundo, das relações de força
operadas numa determinada época. A matemática parte de um “ponto”
material; lembremo-nos dos seixos, para, a partir desse “material”, gerar
cada vez mais, concretos pensados, que deveriam não ficar restritos apenas
a realizações teóricas idealistas, desprovidas de amarrações mais densas e
articuladas.

A história das mudanças significativas que ocorreram na matemática e na


geometria, não se dá isoladamente, mas é consequência de um estado de
coisas, de processos em ação, impulsionando-a ao questionamento de seus
próprios argumentos, da mesma forma que o homem vive fases de inquietação
e põe em xeque aspectos antes sequer tocados. Nesse sentido, ter em mente
o desenvolvimento das forças produtivas, a existência de condicionamentos
ideológicos e que “O capital dispõe da ciência e da tecnologia, e dispõe em seu
mais amplo sentido: determina onde se investiga, o que se investiga, o que
se produz, como se produz, o que se desenvolve, o que se deixa em suspen-
so” (SERRANO, 1988, p. 106), significa inserir a ciência, e também a arte, na
dinâmica da vida, deixando de pensá-las como independentes e autônomas.

Buscar a consciência dos entraves inerentes à produção científica não significa


adotar uma postura determinista/imobilizadora, renunciando aos espaços

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 43
marginais abertos contracorrente, mas, antes, instiga a um comportamento
subversivo inquisidor, capaz de sobrepujar ao máximo o corte proposto pelas
estruturas detentoras do poder de ditar direções a serem seguidas.

Cada conjuntura tem seu próprio modo de lidar com o concreto e o abstrato.
Os deuses gregos assumiam formas humanas e não podiam livrar-se dos
problemas típicos da humanidade – amor, ódio, vingança, prazer, guerras,
inveja, ou seja, não se encontravam “acima” dos vícios e fraquezas por nós
enfrentados. Sua abstração, com base nesses dados, não era uma abstração
como a entendemos hoje. Os Pitagóricos, ao traduzirem tudo em números,
pretendiam uma ordenação do cosmos, pretendiam dar concretude ao que
lhes rodeava, em última instância, procuravam o concreto e não o abstrato.
É verdade que ao desenvolverem o conceito de número deram início a um
processo que vai, paulatinamente, colocando o homem na esteira de uma
complexificação das relações estabelecidas entre os âmbitos do pensado e
do experenciado. Se isso ocorre é porque acontece, simultaneamente, uma
série outra de fatos importantes. A modificação no pensamento matemático
encontra-se aliada ao desenvolvimento social e político das cidades-estado
da Grécia e à evolução da lógica, entre outros fatores.

A geometria grega, uma matemática de figuras, não empenhada em primeira


instância em resolver problemas práticos – como no caso da geometria dos
egípcios – realiza um exercício de sistematização, reunindo elementos que
permitissem criar uma estrutura em forma de escada, com cada novo conhe-
cimento sempre apoiado em conhecimentos anteriores. Tal estrutura foi tão
bem alicerçada que precisou de muitos séculos para que fossem encontradas
algumas rachaduras. Mesmo assim, sua argumentação não se destina, hoje, à
demolição, apenas abre-se um espaço para a tentativa de aproximar a teoria
matemática de uma compreensão mais contemporânea do universo:
Ainda que a abstração grega tenha traços próprios, conferidos pelo
pitagorismo que a viu nascer, pelo platonismo em cujo seio se de-
senvolveu, sem esquecer os fatores técnicos (pense-se no “escândalo
dos irracionais”). A abstração da matemática grega é uma espécie
de abstração de primeiro grau, semelhante à abstração das ciências

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naturais, muito distante da abstração que introduzirá a álgebra ou
da abstração quinta-essência da matemática de hoje. As figuras da
matemática grega não são entes abstratos muito diferentes dos ele-
mentos químicos, dos gases perfeitos, das espécies biológicas, das
formas cristalográficas (BABINI, 1985, p. 124)11.

Por isso o desenvolvimento de outras geometrias, rompendo parcialmente


com os “sagrados” pressupostos de Euclides e também com o ideário do
mundo grego, funcionou como alavanca para estimular uma revisão na ordem
da geometria tradicional.

Geometrias dissidentes assustaram e assustam ainda. Há teóricos que


acreditam na existência de uma geometria única, como Zadra (1995), que
afirma: “De fato, basta apenas conhecer uma geometria, as demais poderão
ser geradas a partir desta primeira, fazendo-se mudanças de coordenada e
de escala” (p. 141). O problema não parece ser assim tão simples. Além das
mudanças de escala e coordenada, muitas vezes é preciso haver uma mudança
em aspectos centrais, isso equivale a dizer que um dos degraus do sistema
construído em forma de escada poderia precisar ser retirado, colocando em
risco essa formação. Às vezes trata-se de uma mudança muito mais radical,
de grandeza não meramente escalar, mas epistemológica.

O desenvolvimento das geometrias não euclidianas propicia uma mudança


de suporte: da superfície para o volume; “A geometria deixa de ser um modo
de redução da complexidade da experiência natural a algumas formas funda-
mentais para se tornar um modo de alargar o processo de racionalização da
consciência visual de campos cada vez mais vastos” (SARDUY, 1974, p. 44).

A abertura para outro tipo de geometria não determina a “aposentadoria


compulsória” da geometria euclidiana na história de nosso pensamento,

11 Números irracionais são aqueles que não podem ser expressos sob a forma de uma fração, isto é, sob
a forma a/b, como, por exemplo, a raiz quadrada de três. A infinitude de tais números foi motivo de
medo e incompreensão. “Sabe-se que os pitagóricos da Grécia antiga, que levaram o crédito de have-
rem descoberto no sexto século a.C. a natureza infinita dos números irracionais, ficaram maravilhados,
confusos e cheios de temor diante dessa descoberta. Tentaram, então, mantê-la em segredo, a ponto de
instituírem a pena de morte para quem ousasse revelá-la. Diz a lenda que um violador dessa proibição
fugiu para o mar e afogou-se. Sua morte foi atribuída ao castigo divino” (DOCZI, 1990, p. 5).

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ela continua intensamente presente no cotidiano, multifacetada, submersa,
replicante, escandida, estrategicamente escondida sob capas coloridas, mas,
todavia, fortemente, presente. Como lembra Heisenberg, “Se tem procurado
que, para todas as nossas medições, seja válida a geometria de Euclides e que
nada se alheie a ela” (HEISENBERG, 1974, p. 115). Historicamente tem-se ten-
tado adequar os problemas apresentados aos referenciais teóricos disponíveis.

Entretanto, a quebra da exclusividade euclidiana inaugura uma nova pers-


pectiva, permitindo que fossem esclarecidas muitas questões, emperradas
pela argumentação que esta apresentava:
Com o advento das geometrias não euclidianas, passou-se a consi-
derar a geometria não como um estudo do espaço real, mas como
estrutura lógica abstrata: dado que existem várias estruturas desse
tipo, isso acarreta que existem várias “geometrias” matematica-
mente possíveis. O matemático puro pode estudar quaisquer dessas
geometrias, cabendo ao físico saber qual categoria de espaço, entre
os espaços assim criados pelo matemático, deve ser empregada no
estudo da realidade física (COSTA, 1992, p. 16).

Dessa forma, as geometrias não euclidianas, resultantes das pesquisas de


Gauss, Riemann e Lobatchevisky, renovam alguns conceitos, modificando a
compreensão e, sobretudo, os pontos de vista:
Deu-se nas matemáticas uma verdadeira mutação, tendo sido criados
novos “objetos matemáticos” inteiramente diferentes dos objetos
“clássicos”: números e “figuras”; com uma abstração, muito mais
abrupta (já que deixam de apoiar-se apenas em “imagens” sensíveis)
(DIEUDONNÉ, 1990, p. 14).

Uma ciência considerada exata começa a lidar com “objetos visíveis apenas
para o pensamento” (DIEUDONNÉ, 1990, p. 53), tanto que na obra de Lobat-
chevisky (1793-1856), “Pangèometriè”, não aparece uma única figura; é um
trabalho “imaginário”. Os novos objetos matemáticos deixam de ter “imagens”
acessíveis aos sentidos e seguem por dimensões impensáveis plasticamente,
mas não poeticamente. E os olhos de Pedro Salinas (em seu poema “Ver lo
que veo”, de 1974) tateiam tentando “ver na córnea”, traduzir ao imaginário
o que os números já viram e mostraram:

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VER LO QUE VEO

QUISIERA MÁS QUE NADA, MÁS QUE SUEÑO,


VER LO QUE VEO.
NO BUSCAR HONDOS SIGNOS POR CELESTES
MUNDOS SUPREMOS.
ESTRELLAS, A MI ALCANCE, ESTOS GUIJARROS,
DUROS LUCEROS.
(SALINAS, 1974, p. 53).

Na geometria de Riemann (1826-1866), “[...] ‘linha reta’ se interpreta como


significando a trajetória ao longo da qual um raio luminoso atravessa um meio
de refração uniforme” (BARKER, 1976, p. 59), deixando para trás a tradicio-
nal definição de reta como “A menor distância entre dois pontos distintos”.
A noção de superfície extrapola aquela de Euclides: “Uma superfície é aquilo
que só tem comprimento e largura; Uma superfície plana é uma superfície
traçada uniformemente, com suas retas sobre si” (2009, p. 51). Tais defini-
ções enclausuravam o conceito de superfície no “retângulo” da bi-dimensão,
nomeando os espaços euclidianos de “espaços chatos”.

À geometria parabólica de Euclides vêm somarem-se geometrias hiperbólicas


– de Lobatchevisky e elípticas – de Riemann.

Pioneiro na articulação de uma inovação nas linguagens geométrica e ma-


temática, pesquisador inconformado, Gauss (1777-1855), partiu em busca de
um novo meio para tratar a questão da geometria e, consequentemente, as
superfícies matemáticas, estudando o postulado das paralelas, segundo o qual:
por um ponto fora de uma reta só pode passar uma única reta paralela à reta
dada, percebeu que este fato vale para o plano, mas não para a tridimensão,
pois, nesse caso, tanto podem existir infinitas paralelas – na geometria de
Lobatchevisky como nenhuma – na de Riemann.

Gauss, por sua vez, projetava:


Escrever uma geometria não euclidiana, convencido de que a
prescindência do postulado das paralelas não conduziu a nenhuma
contradição, ainda que à primeira vista, muitos de seus resultados
oferecessem um aspecto paradoxal. Sua mentalidade matemática

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 47
superou obstáculos construídos através da intuição geométrica
imposta pelo mundo exterior e o hábito mental imposto pelos
“Elementos”, [...] elaborou de forma rigorosamente dedutiva um
novo edifício geométrico (BABINI, 1952, p. 124).

Enfim, é importante perceber como foi capaz de escapar de um contexto


onde parecia estar imerso, decalcado, conseguindo acrescentar uma dimen-
são a mais a seu campo visual. Aliás, Gauss costumava dizer que a álgebra
e a geometria eram ciências do olho. A visão é um sentido extremamente
importante para a geometria. A esfera, por exemplo, volume que nos supor-
ta, é um espaço fechado a duas dimensões mergulhado num espaço a três
dimensões; assim, o centro de um espaço a três dimensões poderia situar-se
num espaço a quatro dimensões. Podemos observar que se alguma coisa
está mergulhada numa dada dimensão, passa a habitar a curvatura de modo
a pertencer a ela, não se tem mais a visão de conjunto, fica-se como uma
“decalcomania”, colada, completamente inserida no espaço que a contém.
Desse modo, a terceira dimensão assim pensada seria uma construção cere-
bral/cultural, uma correção da retina.

O século XV é um marco no que diz respeito ao início da ciência moderna no


ocidente. Com o domínio dos otomanos sobre Bizâncio e sua posterior fuga
para o ocidente, há uma recuperação dos clássicos gregos, provocada pela
capacidade dos bizantinos traduzirem diretamente do grego. Os clássicos
são retomados e com eles toda uma série de conceitos, incorporados à lógi-
ca da produção européia. À tradução verbal dos textos clássicos soma-se a
tradução visual das artes gregas, originando recriações de edifícios clássicos,
transplantados, cultuados na Europa.

O caminho da ciência vai enfrentando desestruturações formais, isto é, de-


sestruturações nas formas subjacentes à epistemologia em vigor. Do círculo
para a elipse e desta para o informalismo das configurações fractais.

A circularidade, como tem sido vista ao longo desse estudo, remonta à pré-
-história, pelo menos, e persiste até hoje. Augusto de Campos lança mão
dessa circularidade para produzir seu OVONOVELO, um exercício que leva
às últimas consequências os princípios arquetípicos, mandálico-ancestrais

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dessa forma, evitando, entretanto, fechar o poema nos seus limites, deses-
tabilizando o centro que surge no “pé” do poema, fixando outros centros e
outras circunferências (como em “OVONOVELO”, de Augusto de Campos,
escrito em 1955).

(CAMPOS, 2000, p. 94).

Citando apenas mais um exemplo, entre um número praticamente infindável,


a aquarela de Paul Klee, “Ab ovo” (Figura 3) remete à forma original – de novo
o ovo: “Pois eu estava lá, onde está o começo. Eu estava em casa da minha
adorada Madame Célula Original; é o mesmo que falar de fecundidade” (KLEE,
apud PARTSCH, 1992, p. 41).

Figura 3
Paul Klee, “Ab ovo”,
1917
Fonte: Imagem de
Domínio Público.
Disponível em: https://
commons.wikimedia.org/
wiki/File:Paul_Klee_-_Ab_
ovo.jpg.

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 49
Ptolomeu (11 d. C.) escreveu no “Almagesto”:
Tudo é medida, música, tudo está de acordo; os corpos emitem ou
recebem luz; segundo o lugar que ocupam – realidade cinzelada,
geométrica: xadrez como na cúpula de estuque os polígonos estre-
lados [...] o tempo, a Terra está no centro, fixa; à sua volta os corpos,
inseridos em esferas distintas, deslocam-se em movimentos perfeitos,
quer dizer circulares e uniformes (SARDUY, 1974, p. 36).

É sabido que o círculo é uma forma que sempre aparece nos achados
antropológicos, na vasta documentação iconográfica que nos foi legada.
A presença marcante da forma circular no pensamento humano tem sido fonte
de muitas complicações, visto que se tem tentado, historicamente, conformar
nossa realidade a um modelo de perfeição comandado pelas equações que
regem a circularidade.

O apego aos procedimentos clássicos, e sua constante retomada, aparece,


mais uma vez, com Copérnico (1473-1543). Ao corrigir Ptolomeu, não vai con-
tra os clássicos, pelo contrário, procura fazer justiça as suas interpretações,
julgando ser o geocentrismo ptolomaico consequência de uma avaliação
errônea dos ensinamentos gregos. Copérnico continua trabalhando com um
espaço ordenado, finito e fechado; procura retomar os princípios clássicos
da maneira mais fiel possível, indo buscar em Aristarco de Samos, o modelo
de um primeiro sistema heliocêntrico formulado para, a partir daí, passar a
construir sua própria argumentação.

A teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico foi merecedora da fervorosa


oposição da Igreja Católica e da resistência dos homens, incapazes de aceitar
o fato de serem reduzidos a meros componentes de um universo do qual a
Terra não era mais o centro. Esta nova proposição/constatação, não represen-
tou uma revolução propriamente dita: “[...] a ordem sem falhas das esferas,
a euritmia, permaneciam intactas. Copérnico vem perturbá-las [...], institui a
seu modo, uma relatividade dos centros, [...] modifica o sistema, mas não o
subverte; não se trata de uma revolução, mas de uma reforma” (SARDUY, 1974,
p. 38-39). Não se deve minimizar os efeitos em relação aos desdobramentos

50 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
subsequentes, reformar significa formar de novo e, assim, ao relativizar os
centros, ele alterou significativamente a ordem cósmica.

Descentrado, o homem reage, contesta, apega-se à “segurança” e somente


muitos anos depois Copérnico vai ser oficialmente reconhecido. Ao expulsar
a Terra do seu locus central destinando-a a periferia cósmica, proporciona-
va uma mudança de eixo. Há uma contradição a respeito de uma possível
antecipação de Leonardo Da Vinci em relação a Copérnico no que tange à
formulação de um modelo heliocêntrico. As palavras “O sol não se move” são
às vezes tomadas como reforço dessa ideia (GOMBRICH, 1988, p. 224-225).
Por outro lado, Bramly refuta esta proposta, avisando: Leonardo da Vinci
jamais supôs a existência de um modelo heliocêntrico (BRAMLY, 1989). Em
todo caso, a sua ligação com a matemática não é questionada, embora não
fosse um matemático notável. Cansou de advertir: “Quem não for matemático
não me leia” (DA VINCI, apud RICHTER, 1883, p. 11). Nesse sentido, segundo
Manacorda (1989), “Nenhuma investigação humana pode ser considerada ver-
dadeira ciência se essa não passar pela matemática [...]. Aquele que despreza
a máxima certeza das matemáticas apascenta-se na confusão das sofísticas
ciências” (p. 184). Quando fala de matemática, Da Vinci fala muito mais de
rigor que de álgebra, muito mais da matemática clássica que de qualquer
outra forma dissidente. Uma desconstrução geométrica das linhas de força
da “Ceia” (Figuras 4 e 5) mostra a preocupação com a centralidade da figura
de Jesus e uma interessante comparação pode ser feita com a obra de Andy
Warhol, “Last Supper”12 (Figura 6), 1986, serigrafia marcada por retângulos
que reconstroem a perspectiva.

12 Em “Last Supper”, datada de 1986, época da restauração das obras de da Vinci, Andy Warhol cria
serigrafias de tamanho grande e em versões diferentes, convidando o público a substituir as imagens
tradicionais. A superexposição do trabalho de da Vinci, denunciada pelo estilo de Warhol, reflete
uma tendência encontrada, também, nos livros especializados em história da arte, onde se percebe
a recorrência de algumas obras. Ao optar por colocar aqui a desconstrução justamente da “Ceia”
foi porque além de representar um momento que reflete uma orientação geométrica específica da
representação, ela aprece com bastante frequência nos livros consultados, parecendo, mesmo, ser
presença obrigatória, sem a qual seria criada uma “lacuna imperdoável”.

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 51
Figura 4
Leonardo Da Vinci,
“A Última Ceia”,
1495-1497
Fonte: Imagem de Domínio
Público. Disponível em:
https://commons.wikimedia.
org/w/index.php?curid=24759.
Figura 5
Linhas de força em
Leonardo Da Vinci,
“A Última Ceia”,
1495-1497
Fonte: Intervenção da autora
sobre Imagem de Domínio
Público. Disponível em:
https://commons.wikimedia.
org/w/index.php?curid=24759.

Figura 6
Andy Warhol,
“Last Supper”, 1986
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais/acadêmicos.
Fair Use. Disponível em:
http://www.wikiart.org/en/andy-
warhol/the-last-supper-1986.
Ainda, para Huyghe:
Le Christ, à líntersection de l’axe vertical de symétrie et de lorizon-
tale de la table, sous la fenêtre centrale, seule incurvêe selon un
tracé dont il est le centre, le Christ, placé encore au point précis òu
viennent se fondre toutes les lignes de fuit du sol est élegantment
le lieu géométrique si l’on peut dire, de l’attencion passionne et si
humainement varieé des Apôtres. Par le même miracle se noue ici
tout ce qui existe de réatités physiques, de conceptions plastiques,
de sentiments profonds dans l’oeuvre (HUYGHE, 1955, p. 225).

Também Galileu (1564-1642) manteve-se apegado ao círculo e aos gregos:


“Só refuta as deduções de Aristóteles na medida em que as acha insustentá-
veis” (SANTOS, 1990, p. 14)13. Galileu não chega a «[...] formular uma teoria
cosmológica moderna; precisamente porque tem de explicar o que observa:
a queda dos corpos, o movimento circular dos planetas” (SARDUY, 1974,
p. 47) (tradução da autora), mas, sem dúvida, estabelece um nível de matema-
tização da física responsável pela resolução de questões há muito pendentes.
Ao iniciar a tarefa de matematização (continuada por Torricceli, seu discípulo)
Galileu tem de levar em conta uma estrutura social adversa ao tipo de “arte”
que pretende empreender. Trabalha no sentido de derrubar alguns dogmas
extremamente úteis à manutenção da ideologia vigente.

Se não consegue “livrar-se” completamente dos “deuses primordiais” é porque


está muito arraigada a toda produção à que tem acesso. Ainda assim, vai além
das expectativas do conhecimento disponível para a época. Os efeitos de sua
obra superam as adversidades das condições em que foi produzida. Sua vida
tem sido objeto de discussões e de adaptações literárias e cinematográficas,
gerando polêmicas em torno do seu modo de se posicionar diante da ciência e
da filosofia, recolocando em pauta que, envolto ao trabalho do artista/cientista
estão os próprios condicionantes pessoais. “Certos trabalhos da ciência, e da
matemática em particular, apresentam tal limpidez na armação que diríamos
ser a obra de ninguém. Tem algo de inumano” (VALERY, 1991, p. 140).

13 Aristóteles, note-se, era partidário de uma cosmologia esférica e, como Platão, escreve muitas vezes
em forma de diálogos.

54 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
O mistério da criação seja ele de que tipo for, está distribuído em múltiplas
camadas, como acontece com um cientista ou com um artista, portador de
olhos que procuram expressar o sensível, o invisível, o que está diante de nós
e foge ao nosso entendimento, aquilo que não passa de uma possibilidade,
de uma impressão ou uma forma que nos escapa. Talvez nenhuma busca
tenha sido tão cruel quanto à de Kepler (1561-1630). Gastou a vida modifi-
cando conteúdos para dar suporte a uma forma – a circularidade das órbitas
dos planetas para descobrir, quase no fim, que o engano estava na forma.
Mas quem poderia, então, questionar e ir contra a fantástica perfeição do
círculo? Parecia ser antinatural pensar que os planetas se movessem sobre
outra trajetória, parecia ser uma heresia, era lógico manter a continuidade
do movimento no sentido de obedecer ao “natural”.

Durante praticamente toda a sua vida, Kepler procurou conformar as


órbitas dos planetas ao modelo proposto pelos antigos (Figura 7). Mas foi
somente quando abandonou o apego a circularidade que pôde explicar o
movimento dos planetas, não sem gerar reações e perplexidade, através
das órbitas elípticas (Figura 8).

Figura 7
Modelo de Kepler dos
sólidos platônicos
para o sistema solar,
publicano no “Mysterium
Cosmographicum”, 1600
Fonte: Imagem de Domínio
Público. Disponível em:
https://commons.wikimedia.
org/w/index.php?curid=37300.
PLANETA

Figura 8
Interpretação esquemática SOL
da Lei de Kepler – Órbita F1 F2
elíptica
Fonte: Elaboração própria.
IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 55
A crise formal vivida por Kepler encontrou escândalo igual e contemporâneo
na obra de Caravaggio. Em especial numa encomenda feita por uma igreja de
Roma, que deveria conter a imagem de São Mateus escrevendo o evangelho,
acompanhado por um anjo simbolizando a inspiração divina. O quadro foi
recusado em sua primeira versão (Figura 9) por reapresentar São Mateus
como uma figura que fugia dos cânones clássicos. A obra recusada teve uma
segunda versão (Figura 10), mais “conformada”, de acordo com a imagem
que a igreja esperava de um santo, um homem de qualidades quase divinas.

Uma série de anjos vem invadindo esse capítulo sobre os números. O “anjo”
nº1 de Caravaggio (Figura 9) não agradou; o nº2 foi mais “feliz” (Figuras 10).

Figuras 9 e 10
Caravaggio, “São Matheus e
o Anjo I”, 1601-1602 e “São
Matheus e o Anjo II”, 1602
Fonte: Imagens de domínio
público. Disponíveis em: http://
www.unicamp.br/chaa/Imagens/
neville/pq-042.jpg (Figura 9)14
e https://commons.wikimedia.
org/w/index.php?curid=136502
(Figura 10).

14 Versão colorizada com base em foto em preto e branco, em função da destruição da obra original de Cara-
56 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
vaggio, que se encontrava no “Kaiser-Friedrich-Museum”, Berlin, durante bombardeio dos aliados em 1945.
Retomando Kepler, ele também tinha seus anjos. Extremamente místico,
tenta encontrar explicações transcendentais para o que foge à racionalidade
científica, embora não deixe de lutar por um modelo que esteja de acordo com
essa racionalidade. Assim, nomeia para cada um dos planetas um “angelus
rector”, uma espécie de anjo da guarda, cuja função é preservar, conservar,
proteger.

Se junta à figura do círculo a da elipse; relativizam-se os centros. De um centro


único, no círculo, passa-se para dois, na elipse, um visível e um virtual. Elipse,
em grego, significa “falta”, aquilo que falta para um círculo perfeito (SARDUY,
1974, p. 68). A era elíptica inaugurada com Kepler, trás à tona a imperfeição,
a incompletude, o inexplicável, tanto na ciência quanto na arte.

Mergulhando no cotidiano, pesquisando problemas resultantes da interação


com o mundo que o cercava, Isaac Newton (1642-1727) representa um passo
importante no sentido da compreensão das forças que atuam no universo.
William Blake, em 1795, desenha um Newton apolíneo às voltas com a reso-
lução de problemas matemáticos (Figura 11).

Da imagem construída por Blake salta um cientista preocupado em explicar


o universo como uma engrenagem gigante, construída pelo criador, movida
por um ideal de harmonia, onde tudo estava inexoravelmente amarrado e
por isso, era explicável sem dar margem para o acaso:
Segundo a mecânica newtoniana o mundo da matéria é uma máquina
cujas operações se podem determinar exatamente por meio de leis
físicas e matemáticas, um mundo estático e eterno a flutuar num
espaço vazio; um mundo que o racionalismo torna cognoscível por
via de sua decomposição nos elementos químicos que o constituem.
Esta ideia de um mundo-máquina é de tal modo poderosa que se
vai transformar na grande hipótese moderna, o mecanicismo. Pode
parecer surpreendente e até paradoxal que uma forma de conheci-
mento, assente numa tal visão do mundo, tenha vindo a construir um
dos pilares da idéia de progresso que ganha corpo no pensamento
europeu a partir do século XVII e que é o grande sinal da ascensão
da burguesia (SANTOS, 1990, p. 17).

58 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Figura 11
William Blake, “Newton”,
1795-1805
Fonte: Imagem de Domínio
Público. Disponível em: https://
upload.wikimedia.org/wikipedia/
commons/0/0e/Newton-
WilliamBlake.jpg.
Nas pegadas dessa ascensão seguem estratégias de marcação do tempo de
cuja precisão decorre um encolhimento progressivo de nosso tempo. A um
encurtamento do tempo disponível soma-se paradoxalmente uma ampliação
do “dia”15, reordenado por uma “luz” digital que nos coloca “on line” 24 horas
por dia. Essa plugagem não representa um «ganho» já que o tempo só poder
ser esticado através da supressão de outro tempo, o do sono/descanço. Não
é a toa que no século XVIII se comparava o universo a um relógio; a ideia de
relógio, como se sabe, expressa uma possibilidade de controle, e equalização,
e estabelece uma analogia com o uso dos processos mecânicos tecendo/
marcando o ritmo da sociedade na esteira da revolução industrial. O avanço
das pesquisas, e o consequente avanço da tecnologia, modificaram teoriza-
ções e modos de vida. A coerção cronométrica traduz-se na citação de Atalli
(1993): “Todo processo que mede o tempo contém violência [...] a cada grande
alteração do poder, mudam também a medida e a concepção do tempo: o
relógio solar, a clepsidra, o relógio de quartzo são signos anunciadores das
profundas rupturas da ordem social” (172).

Se a força da duração vem conferindo permanência a determinados “estados


teóricos”, na “contramão” vemos surgir outras possibilidades, ainda que não
imediatamente incorporadas, fazendo entrever a existência de epistemologias
diferentes, que não se coadunam a uma herança histórica, procuram, isto sim,
deixar o isolamento e partir para universos mais amplos.

A esse pensar diferenciado procurarei acrescentar, de modo mais conti-


nuado, a presença marcante da arte, esta também em busca de suas novas
epistemologias.

15 Pode-se dizer que a extensão do dia deveu-se, em primeiro lugar, ao estabelecimento de um dia
químico – marcado pela iluminação à luz de velas; depois se seguiram os dias elétricos – energia
elétrica e, os dias chamados eletrônico-digitais – permitindo a comunicação ininterrupta com uma
série de serviços e, inclusive, com o mercado financeiro que pode permanecer sempre acordado. Para
uma leitura mais atual sobre o tema ver Crary (2014).

60 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
CAPÍTULO 3
OUTRAS BASES
EPISTEMOLÓGICAS
Tudo que faço ou medito
Fica sempre na metade.
Querendo, quero o infinito.
Fazendo, nada é verdade.

Que nojo de mim me fica


Ao olhar para o que faço!
Minha alma é lúcida e rica,
E eu sou um mar de sargaço —

Um mar onde boiam lentos


Fragmentos de um mar de além...
Vontades ou pensamentos?
Não o sei e sei-o bem.

(PESSOA, 2005, p. 29)

A ciência moderna amadureceu com o desenvolvimento da noção de função


(y=f(x)), desconhecida na antiguidade greco-romana, mas já esboçada pelos
algebristas árabes. Desenvolvida no século XVII por Descartes e Newton,
recebe de Leibnitz sua expressão definitiva. A partir dela surge o cálculo
diferencial, revendo as noções de limite, aprimorando o trabalho sobre o
infinito. Fernando Pessoa (em “Tudo o que faço ou medito”, publicado em
1933) não deixa por menos.
Uma função expressa uma relação, a partir dessa relação passa-se a incorporar
o infinito à pesquisa cotidiana, através, especialmente, do cálculo diferencial,
importante ferramenta matemática, instrumento imprescindível na física,
torna-se um fomentador de modificações. Apresenta algo de novo, lançando
novas luzes sobre antigas (algumas até então inquestionáveis) certezas e
fornecendo bases para ir mais longe teoricamente. Uma figura convencional
passa a representar o infinito: ∞, sua presença indica o imensurável; reedita-se
sobre uma tela de Rubens (“La Kermesse”, 1635-1638) (Figura 12) mostrando
a viagem da câmera sobre a tela desenha linhas dando a sensação de que foi
construída sobre o módulo dos símbolos do infinito, de acordo com Huyghe
(1955, p. 56) (Figura 13).

Os teóricos tratados até aqui têm sido constantemente mostrados em “pro-


ximidade” com ideias provenientes dos primórdios da civilização ocidental,
reforçando a dificuldade em se romper com alguns conceitos que se mostraram
incompatíveis, mas continuaram sendo empregados.

“Para Lezama Lima a história é um jogo de campos magnéticos” (MORSE,


1990, p. 19), polos que se atraem, se saturam, para depois se repelirem. A com-
paração de Lezama sintetiza um pouco dessa aproximação entre os saberes
e um pouco do lugar imprescindível da física na compreensão do universo.

Historicamente estamos atravessando um período de atração/retração, ou


melhor, de atrações/retrações. Campos diferentes da ciência e da arte, iman-
tados pelo desejo de vazar a dimensão em que se encontram decalcados,
aliam-se na busca de outro foco de visão. As ciências sofrem um constante
processo de alargamento do mundo visível. Ou, melhor, adentram no universo
do invisível, do incomparável, fazendo considerações antes só permitidas ao
terreno artístico.

Segundo essa ótica, acentua-se a inseparabilidade existente entre as muitas


faixas do conhecimento. Rutherford considerava a física uma classe por si
mesma, se ocupava de grandes assuntos, de universais; as demais ciências,
em sua opinião, “não passavam de estudos dos detalhes, das variações locais”
(CLINE, 1992, p. 35). Para mostrar como a suposta hegemonia da física sobre as

62 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Figura 12
Peter Paul Rubens,
“La Kermesse”, 1635-1638
Fonte: Imagem de Domínio
Público. Disponível em: https://
commons.wikimedia.org/w/
index.php?curid=30142901.

Figura 13
Linhas de força simulando o
símbolo do infinito na obra
de Peter Paul Rubens, “La
Kermesse”, de acordo com
HUYGHE, 1955
Fonte: Elaboração própria com
base em discussão de HUYGHE,
1955, p. 56. Linhas desenhadas
sobre Imagem de Domínio
Público. Disponível em: https://
commons.wikimedia.org/w/
index.php?curid=30142901.
outras ciências não passava de uma radicalidade extrema de Rutherford, basta
lembrar que ele ganhou o prêmio Nobel em química, pois a área de estudos
por ele desenvolvida pertencia ao universo da química; só posteriormente
é que passou a integrar o âmbito da física. Quando Heisenberg afirma que
“existe na geometria algo notavelmente estranho e emocionante” (CLINE, 1992,
p. 194), demonstra o quanto à mudança na geometria significou para a física.

Com Prigogine (1996), vai ser possível compreender melhor a atual posição da
física no conjunto das ciências, através da Teoria das Estruturas Dissipativas,
que, promove uma mudança:
[...] da ordem através de flutuações, estabeleceu sistemas abertos,
funcionando nas margens da estabilidade. A importância dessa teoria
está na nova concepção da matéria e da natureza que propõe uma
concepção dificilmente compatível com a herdada da física clássica.
Ao invés do determinismo e do mecanismo, a imprevisibilidade.
A superação do mecanicismo através de uma síntese com o orgânico
constitui, sem dúvida um dos problemas básicos do homem, neste
fim de século XX (p. 11-12).

Constantemente tenho me referido (metaforicamente ou não) a um reper-


tório de palavras ligadas ao sentido da visão – ver, enxergar, olho, ponto
de vista, visível, invisível, visualidade, modo de ver, retina, córnea, e varias
outras palavras empregadas nesse sentido, remetem a uma macro-esfera:
compreender o mundo embute o ato de poder enxergá-lo, daí a relação entre
o olho da ciência e o da arte, o olho que vê e o olho que “pensa”, o olho “eu-
clidiano-monocular” e o “olho-binocular-fractal-contemporâneo”, composto
por todas as células desse sistema nervoso em que estamos irremediavel-
mente decalcados. A persistência no seu uso deve-se, sobretudo à crise de
parâmetros e, mesmo de referenciais para imaginar muitas das descobertas da
geometria, matemática e física: “Os buracos negros, os quasares e o universo
são inimagináveis” (EKELAND, 1988, p. 36), ora, então, a imaginação já não
mais pode ser considerada um locus que tudo pode conter.

A imaginação não é uma atitude passiva do conhecimento. Uma imagem ina-


dequada pode atrapalhar e atrasar a ciência: a imagem da órbita dos planetas
como sendo circular e não elíptica, consumiu cálculos, tempo e a paciência

64 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
de cientistas como Kepler. O vício da circularidade – que tem no círculo a
forma mandálica, implícita nas articulações do braço – como resposta, ofus-
cou os olhos que demoraram a enxergar dentro de outra lógica. Uma lógica
não circular. “Traçar um círculo: o gesto mais imediato e universal, anônimo,
pulsão primeira da mão, escondida sobre milênios de técnica e cultura [...]”
(SARDUY, 1974, p. 105).

O mesmo deu-se com o modelo atômico concebido por Neils Bohr, em 1912
(Figura 14), uma espécie de micro sistema solar, dotado de um núcleo em
cujas órbitas gravitavam elétrons. Sabe-se hoje que a comparação muito se
distancia da realidade. Não é assim que o átomo se comporta, é de modo
bastante diferente, de uma forma que não se pode descrever. Essa dificuldade
de visualização fez com que o modelo de Bohr continuasse sendo utilizado,
colaborando para dificultar os avanços nas pesquisas sobre o átomo.

Na tentativa de unificar as forças do universo elabora-se uma teoria do caos.


Repensando os sistemas e caracterizandoos como dinâmicos, os cientistas
descobriram uma grande dose de caos na ordem antes encontrada. Tais
considerações, tratadas inicialmente por um matemático chamado Benoit
Mandelbrot (MANDELBROT, apud GLEIK, 1990, p. 90), na década de 1970,
deram origem ao que vem chamando de ciência do caos, englobando tur-

Increasing energy
n=3 of orbits

n=2

n=1

Figura 14
Modelo do átomo de Neils
Bohr, 1912
Fonte: Imagem de Domínio A photon is emitted
Público, de Enoch Lau. with energy E = hf
Disponível em: https://
commons.wikimedia.org/w/
index.php?curid=180152.
IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 65
bulência, imprevisibilidade, trabalhando diferentemente com os conceitos
de ordem e desordem. As barreiras que separavam as disciplinas científicas
foram novamente enfrentadas e, transformando em parcial e insatisfatória a
análise isolada de um fator. Vejo nas telas de Jackson Pollock uma similaridade
antecipada à proposta da teoria do caos, seu trabalho não reflete a atitude
de quem conta com somente com o acaso, mas de quem sabe da imprevisi-
bilidade existente em sua técnica, “[...] empregando os instrumentos de seu
ofício, as telas e as tintas, de maneira contrária a todas as regras” (ARGAN,
1993, p. 622), mescla ação e acaso, como em “No. 5”, de 1948 (Figura 15).

O mote central da teoria do caos é o chamado “Efeito Borboleta” – um acon-


tecimento caótico, segundo o qual “Uma borboleta agitando o ar hoje em
Pequim pode modificar no mês seguinte sistemas de tempestades em Nova
York” (GLEIK, 1990, p. 8), são pequenas causas interferindo em grandes siste-
mas - o acaso ocupando espaço no cenário científico, como mostra o poema
“Sem falhas no sistema”, de Eugene Gomringer:
sem falhas no sistema
sem alhfas no sistema
sem alhfas no sistema
sem alhfas no sistema
sem alhafs no sistema
sem alhasf no sistema
sem alhasn fo sistema
sem alhasn of sistema
sem alhasn os fistema
sem alhasn os ifstema
sem alhasn os isftema
sem alhasn os istfema
sem alhasn os istfema
sem alhasn os istemfa
sem alhasn os istemaf
fse malhas no sistema
sfe malhas no sistema
sef malhas no sistema
sem malhas no sistema
(GOMRINGER, 1988, p. 12)

66 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Figura 15
Jackson Pollock,
“No. 5”, 1958
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais/acadêmicos.
Fair Use. By Taken from Art
Market Watch.com., Fair use,
https://upload.wikimedia.
org/wikipedia/en/4/4a/
No._5%2C_1948.jpg.
Como afirmou Demócrito, cinco séculos antes de cristo: “Tudo o que existe
no universo é fruto do acaso e da necessidade” (DEMÓCRITO, apud MONOD,
1971, p. 54), ou, contemporaneamente, Jacques Monod (1971): “O acaso e
somente o acaso está na origem de toda inovação” (p. 122) e, poeticamente
Ana Hatherly em “A deslocação no espaço ou no tempo”:
A DESLOCAÇÃO NO ESPAÇO OU NO TEMPO

O acaso é uma noção científica.


O uso do acaso é um acaso como a utilização humana dos seres
humanos.
A utilização dos seres humanos é um acaso usual como os seres
humanos são acaso.
O acaso é cientificamente ocasional e como tal é usado.
E tudo o que é usado é ocasional
como o não usado
enquanto tudo é acaso, noção científica do instante em série.
O acaso é uma progressão serialmente ordenada e harmonicamente
conjugada e como tal, ocasional.
Cientificamente o acaso é o que é constantemente recolocado no
seu ser não
estando
e constantemente se deslocando finalmente se coloca fora de seu
ser em tudo
estando e não
serialmente acontecendo e não sendo
pela sua deslocação constante no espaço e no tempo ou no
acontecimento.
A utilização humana do acaso é a consequência do acontecimento
do acaso humano
que utiliza
e por ele é utilizado.
O acontecimento humano é um acaso que o todo instante necessita
de colocação no espaço ou no tempo ou no próprio acontecimento
do acaso em sua fronteira. E
buscando a sempre deslocada fronteira do acaso a si próprio se
desloca. Se
deslocando se desloca e desse modo sempre procura colocar-se
paralelamente ou

68 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
do outro lado do acaso se chamará passar para o outro lado
Ou cruzar a fronteira do acaso é buscar o uso da colocação a utilidade
intrínseca do
acontecimento deslocado no movimento do acontecimento.
O viajante que a todo o instante tenta cruzar a fronteira do espaço ou
do tempo ou do acontecimento arde na intensa pira do acontecimento
perseguido e no espaço ou
no tempo ou no movimento ocasiona o núcleo invisível da fronteira
que separa um, acontecimento do outro e tudo reúne sob a forma
de deslocação.
O acaso está sempre em estado de ser colocado e a todo o instan-
te procurado se recoloca no acontecimento instante do seu ser
entretanto
acaso único e usual utente.
E no desfazamento entre o que é acaso e o que ocasionalmente é
ocasionado está o acaso permanentemente descolocado.
(HATHERLY, 1967, p. 30).

Certo determinismo embutido perpassa a colocação da total responsabilidade


sobre o acaso. Afirmá-lo como causa motriz única parece-me tão grave quanto
negá-lo, posto que assim pensando, acaba-se por eliminar a ação histórica do
homem, inclusive como uma das formas de implementar esse acaso.

A geometria fractal detona uma avalanche que vai abalar nossa concepção de
ciência, arte e, como não poderia deixar de ser, de mundo. Fractal deriva de
fractus – que significa: irregular, interrompido. A linguagem fractal identifica,
na complexidade do real “coisas extremamente simples”, confere formas
geométricas, encontra equações e modelos matemáticos para situações antes
impensáveis. Um objeto fractal pode ser descrito, em sentido intuitivo, como
“[...] qualquer coisa cuja forma seja extremamente irregular, extremamente
interrompida ou descontínua, seja qual for a escala em que a examinemos.
Um ‘objeto fractal’ é, pois, um objeto físico (natural ou artificial) que mostra
intuitivamente uma forma fractal” (CALABRESE, 1987, p. 135).

A formação fractal pode ser observada em vários momentos, quando a


arte desenha-se fractal mesmo quando não se sabia fractal. É interessante
comparar as imagens: “Mosaico Romano” (Figura 16), o “Símbolo da Academia

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 69
Leonardo Da Vinci” (1478) (Figura 17) e “Espiral de Fraser” (1908) (Figura 18),
para perceber a proximidade.

Figuras 16, 17 e 18
Mosaico Romano (século
II), Símbolo da Academia de
Leonardo da Vinci (1490) e
Espiral de Fraser (1908)
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais/acadêmicos.
Fair Use. Disponível em: http://
www.didatticarte.it/public/
simmetria-radiale-mosaici.jpg
(Figura 16). Imagem de Domínio
Público. Disponível em: https://
commons.wikimedia.org/wiki/
File:Emblem_of_school_of_
Leonardo_da_Vinci.jpg
(Figura 17). Imagem de Domínio
Público. Disponível em: By
Mysid – Self-made in Inkscape;
based on en:Image: Frasers.
gif., Public Domain, https://
commons.wikimedia.org/w/
index.php?curid=2543680
(Figura 18).

70 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
A auto similaridade foi precocemente empregada por Escher, levando às
últimas consequências, ao limite do visível, a repetição de um padrão (como
em “Samaller and Smaller”, de 1958) (Figura 19).

Figura 19
M. C. Escher, “Smaller and
Smaller”, 1956
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais/acadêmicos.
Fair Use. Disponível em: http://
www.wikiart.org/en/m-c-escher/
not_detected_204750.
IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 71
Radiografando Escher, aparece com maior evidência, ainda, a estruturação
sobre uma forma matemática perfeitamente simétrica, subdividida em partes
também perfeitamente simétricas.

Outros cânones se impõem. A auto similaridade cria um novo topos poético:


o topos de uma não localidade. A topologia é a geometria com formas de
borracha, onde se pode, por exemplo, falar da quadratura do círculo ou de
figuras pentadimensionais (e novamente nos deparamos com a impossibili-
dade de visualização, já que uma forma pentadimensional não possui uma
expressão capaz de ser detectada pelo nosso olho). Leibniz (1987), em sua
teoria da monadologia, colocava cada parte de cada animal como contendo
uma multiplicidade infinita de animais e vegetais. Essa ideia de multipli-
cidade, de cada parte conter um todo, é levada às últimas consequências
pelos fractais, que desdobram incessantemente a mesma forma; o infinito
não é visto apenas como algo extremamente grande, mas, também, como
extremamente pequeno.

Vemo-nos, novamente, diante da dificuldade de criar uma “paisagem” men-


tal que dê conta da abstração resultante da plurisignificação dos conceitos
acima propostos.

Infinitamente fragmentadas as paisagens macro e microcósmicas perdem


parte dos pontos de apoio tradicionais e precisam ser encaradas sob o ângulo
da teoria quântica.

Há na Física dois momentos primordiais: o da mecânica clássica, newtoniana,


e o da mecânica quântica. No primeiro, as explicações acerca do universo
podem ser, de certa forma, traduzidas por analogias com figuras do nosso
mundo cotidiano. Já no âmbito dos quanta, as explicações fogem das imagens
clássicas e os termos empregados não correspondem a “ideia” que deles
temos, como nos diz Gribbin (1984): “A verdadeira história da mecânica
quântica é uma verdade muito mais estranha que qualquer ficção [...]” (p. 11).

A passagem do newtoniano para o quântico pressupõe um momento tenso,


a física precisa romper:

72 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Há que abandonar a noção Aristotélica de substância como o extrato
básico de que se compõem as coisas do mundo, bem como toda a
ambição de uma previsibilidade e determinismo absolutos; toda forma
é precária, pois toda essência é imprecisa e se dissolve em acidentes,
e o futuro é inexoravelmente probabilístico. O que chamamos de
“mundo objetivo” seria então a expressão macroscópica de uma trama
infindável de relações quânticas que não padecem, elas mesmas, de
“objetividade” (NOVELLO, 1995, p. 88).

O mundo quântico (quantum – do latim que significa “que quantidade”) é


um outro mundo. Nele nada é real, a não ser aquilo que vemos (e a palavra
“vemos” não quer dizer exatamente a mesma coisa do que quando é empre-
gada para o universo não quântico).

Mais de duzentas partículas subatômicas já foram descobertas: “As partículas


elementares se dividem, se rompem, com freqüência em inúmeros pedaços;
tais troços não são nem menores nem mais rápidos que as partículas elemen-
tares antes de sua divisão” (HEISENBERG, 1974, p. 26).

O verbo dividir sempre esteve próximo da noção de repartir, partir de novo,


traduzir em pedaços, enfim, transformar o todo em segmentos menores.
Como explicar que algo se parte e dá origem a partículas não menores que o
todo que as continha? Conforme afirmava Pauli, “a mera lógica não é capaz
de dar conta do que é captado pelos sentidos e o que é apresentado pelos
conceitos” (HEISENBERG, 1974, p. 43).

Um vácuo teórico (entendendo-se por vácuo um contexto, uma situação de


ausência e não um vazio)16 nos sustenta: “Aquilo a que chamamos de vazio é
na realidade um mar de elétrons de energia negativa” (GRIBBIN, 1984, p. 91).

O impalpável cada vez mais invade nossas vidas, “o vazio quântico não é
uma privação, mas uma flutuação com a marca da multiplicidade, por conter
potencialmente todas as partículas possíveis que surgem constantemente
para desaparecer de imediato” (ALLIEZ, 1988, p. 88).

16 Tal distinção faz-se necessária, pois algumas correntes da física afirmam: “O vazio e a matéria são a
mesma coisa” (PETIT, 1982, p. 67).

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 73
Na mecânica quântica não deveria haver verdades absolutas, os aconteci-
mentos comportam certa dose de relatividade (é interessante ver o trabalho
de Escher, “Relativity”, 1953) (Figura 20).

Mas mesmo essa relatividade pode ser questionada, na medida em que só


existe como contraposição ao absoluto ou, como afirmava Max Planck, um dos
“pais” da mecânica quântica: “Tudo o que é relativo pressupõe a existência
de algo que é absoluto, e só tem sentido quando se justapõe a algo absolu-
to” (CLINE, 1992, p. 117). A argumentação acima pode parecer paradoxal, a
menos que se compreenda estar ela inserida num contexto regido não por
uma lógica trivial, mas por outras lógicas, onde é possível ser, a um só tempo,
absoluto e relativo.

Se na matemática, o espaço é inicialmente definido por pontos, pontos adi-


mensionais; na física, o tempo encontra-se numa situação similar. Estrutura-se
na noção de instante e o instante não dura: “Que é a velocidade de um móvel
em um instante determinado, sabendo que, por definição, um instante não
dura [...]” (EKELAND, 1988, p. 44). A velocidade é o resultado da divisão de
um espaço por um tempo. Um espaço abstrato, um tempo abstrato, uma ve-
locidade igualmente abstrata. Mas a velocidade altera o tempo e à velocidade
da luz o tempo pára.

Quando falamos em átomos, somos automaticamente remetidos para De-


mócrito que se pronunciava afirmando que só existiam os átomos e o vazio
(BORNHEIM, 2003). Entretanto, a ideia de átomo só foi aceita muito recen-
temente. O químico Lavoisier, no século XVIII, ao estudar a combustão, traz
de volta os átomos. No século XIX, contudo, os maiores físicos da época ainda
opunham-se a hipótese atômica.

Albert Einstein, no âmbito da física, com a Teoria da Relatividade, empreende


uma ruptura extremamente significativa, estabelecendo um corte que se
percebe simultaneamente ligado a outros setores da produção do conhe-
cimento. Trabalha sobre a associação da ideia de espaço à ideia de tempo,
de modo que um, definitivamente, não mais pode ser pensado sem o outro.
Desse continuum espaço-temporal, inauguram-se novas investigações sobre

74 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Figura 20 – M. C. Escher,
“Relativity”, 1953
Fonte: Imagem para fins não
comerciais/acadêmicos. Fair
use. Disponível em: https://
en.wikipedia.org/w/index.
php?curid=29612930 .
o universo, interferindo no cotidiano do homem. Foi preciso que Einstein,
no início deste século, conseguisse dar ao átomo vestimenta matemática,
uma fundamentação teórica rígida para que as dúvidas fossem sanadas.
A força da matemática, mais uma vez, é usada para dar sustentação e conferir
respaldo a uma estrutura, ingressando no mundo do infinitamente pequeno
e assustadoramente poderoso: o universo quântico.

Dentro dele as palavras perdem seu significado habitual, as imagens não


se prestam mais às explicações, as analogias tornam-se cada vez mais dis-
tantes da realidade. Mesmo os cientistas que trabalham com a realidade
quântica com ela se assustam: “Quem não se sentiu chocado com a teoria
quântica não pode tê-la compreendido”, revela-nos Neils Bohr (BOHR, apud
PANDA, 1991, p. 73), até mesmo Einstein sentiu-se “embaraçado” com ela
e com seus demônios.

Perpassando as discussões levantadas encontra-se a questão da lógica, ou


melhor, das lógicas. Cabe, então, analisá-las um pouco mais de perto, sem,
entretanto, entrar em seus aspectos técnico-formais, já exaustivamente estu-
dados por um sem número de textos específicos, alguns deles extremamente
bem elaborados.

Importa, antes, pensá-la em relação com números e imagens, como estrutura


fundante de vários tipos de ordens, presença marcante nada inofensiva. Como
salienta Lefebvre, “A história da lógica é uma história social. Na medida em
que não apenas a ‘cultura geral’, mas também os ‘valores sociais’ se fundam
sobre o que se chama ‘conservadorismo’; o mundo parece imóvel porque se
deseja imóvel” (LEFEBVRE,1983, p. 182).

A lógica aristotélica, chamada também de lógica formal ou clássica. Como


uma de suas denominações já indica, trata-se de uma lógica das formas, em
que o conteúdo é suprimido ou resumido a um mínimo. “Em certo sentido,
portanto, o formalismo economiza pensamento. Contudo, a vantagem capital
do formalismo é a de que mediante ele, pode a razão efetuar o processo de
idealização, ao estender o núcleo primário das noções lógicas (e matemáticas)”
(COSTA, 1992, p. 35).

76 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Proveniente da lógica aristotélica uma argumentação da forma: se “a=b” e
“b=c” então “a=c”, não importando o que “a”, “b” ou “c” signifiquem, tornou-
-se uma atitude tão arraigada aos processos de comunicação que tem sido
muito difícil deixar de lado todo o condicionamento imposto por séculos de
aristotelização de nossas linguagens. É trivial mencionar a linguagem verbal
como veículo portador da dicotomia aristotélica. Ao mesmo tempo em que se
tem denunciado sua contínua utilização, vemo-nos inegavelmente atrelados
a ela. Sob a lógica formal subjaz uma orientação metafísica, instituída por
Aristóteles. Conforme Lefebvre, “Chamamos de metafísica, por definição,
aquele pensamento que separa o que é ligado” (LEFEBVRE, 1983, p. 53).

Tomada, freqüentemente, em sua acepção aristotélica, a palavra lógica vem


sendo utilizada como ablativo de todo prazer. Muitos dos condicionantes
impostos pela sociedade valem-se do qualificativo “lógico” para apontar
procedimentos aceitáveis dentro da norma vigente. A palavra “lógica” é
quase sempre confundida com um sinônimo de racionalidade17 e coerência.
Por exclusão, ou se é racional 18 – e consequentemente lógico – ou irracional.
Tal (con)fusão coloca maior peso-importância no extremo historicamente
designado como positivo. As atitudes consideradas não racionais sempre são
tidas como indesejáveis, a serem banidas ou exiladas do convívio social. O
racional, a razão, tem sido localizada no “cérebro”, na “mente”, na “cabeça”.

Na história da arte uma série de obras traduz essa conjuntura, provendo uma
desconstrução das “cabeças”: “Cabeça”, de Pablo Picasso, 1928 (Figura 21);
“Cabeça”, 1928, de Alberto Giacometti (Figura 22); “Senecio”, de Paul Klee,
1922 (Figura 23); “A cabeça mecânica, o espírito do nosso tempo”, de Raoul
Haussman, 1921 (Figura 24); “Fish and Balcony, Still Life by Moonlight”, de
Salvador Dali, 1928 (Figura 25), entre outras.

17 “O lógico e o racional, em certo sentido, coincidem. Os princípios basilares da razão (ou do contexto
racional) constituem, na realidade, as leis da lógica (matemática) tradicional” (COSTA,1994, p. 17).
18 Sobre esse tema, Lefebvre escreve: “A lógica dialética teve que superar a oposição entre o racional
e o real, e descobrir um novo movimento do pensamento” (1983, p. 171).

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 77
Figura 21
Pablo Picasso, “Cabeça”,
1928
Fonte: Imagem para fins
não comerciais/acadêmicos.
Fair use. Disponível em:
https://s-media-cache-ak0.
pinimg.com/736x/e0/8d/bc/
e08dbc2f02886596df1d1aaeecc
f46bf.jpg.

Figura 22
Alberto Giacometti,
“Cabeça”, 1928
Fonte: Imagem para fins não
comerciais/acadêmicos. Fair
use. Disponível em: http://www.
thecityreview.com/giacom9.gif.
Figura 23
Paul Klee, “Senecio”, 1922
Fonte: Imagem de Domínio
Público. Disponível em: http://
uploads5.wikiart.org/images/
paul-klee/senecio-1922(1).
jpg!Large.jpg.
Figura 24 Figura 25
"A cabeça mecânica, o "Fish and Balcony,
espírito do nosso tempo”, Still Life by Moonlight",
de Raoul Haussman, 1921 de Salvador Dali, 1928
Fonte: Imagem disponível Fonte: Imagem de Domínio
para finas não comerciais/ Público. Disponível em:
acadêmicos. Fair Use. By http://img.wikioo.org/Art.
Source, Fair use, https:// nsf/O/8XYV5R/$File/Salvador-
en.wikipedia.org/wiki/index. Dali-Still-Life-by-Moonlight.JPG.
php%3Fcurid%3D18106762.

O princípio de separação, de divisão em duas partes aparece em Parmênides:


ser e não ser; Demócrito: cheio e vazio; Platão: episteme e dianóia; Descartes:
res cogitans e res extensa; na separação existente entre onda e corpúsculo,
entre o verdadeiro e o falso, o zero e o um, o símbolo e o diabolo (o “diabo”
significa a divisão em dois, a oposição), a ausência de mediação, do termo
médio (o tertium non datur); a obsessão por classificar tudo em termos do
“Bem” ou do “Mal”.

80 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Sucessivas desestruturações tornaram imperativas as mudanças no sistema
lógico, abrindo espaço para o estabelecimento de outros conjuntos de pro-
posições, capazes de superar a rigidez, até então, irrefutável. O fio que nos
une à lógica não foi desatado, reforçando o fato de “Estarmos ainda hoje
densamente influenciados pelo modo de pensar dos gregos, sobretudo pela
lógica aristotélica, que nos vem ‘ensinando’ como dicotomizar o mundo e
pensar de maneira excludente” (SANTOS, 1990, p. 5), mesmo com as surpreen-
dentes transformações ocorridas. No entender de Newton da Costa, “O fato
de a lógica ter permanecido praticamente invariável durante dois mil anos
deve-se a fatores culturais, em sua maior parte externos a ela, derivados das
contingências de sua história” (1994, p. 27).

No transcorrer desse século, a matemática sofreu sérios abalos epistemológi-


cos, um deles desferido por Kurt Gödel (em 1931), que ao tratar do problema
da consistência, que vinha preocupando os matemáticos através dos séculos,
colocou por terra a suposição de que o método axiomático19 seria suficiente
para desenvolver toda a matemática e mostrou que ele estava repleto de
limitações: “É impossível estabelecer a consistência lógica interna de uma
amplíssima classe de sistemas (...) é impossível dar garantia absolutamente
impecável de que muitos ramos significativos do pensamento matemático
estejam inteiramente livres de contradição interna” (NAGEL e NEWMAN,
1973, p. 17-18). Desconcertados, cientistas foram arrancados de seu conforto
teórico, garantia de controle e precisão que deram à matemática o título de
ciência exata. Se era “permitido” pensar em apenas dois valores possíveis – o
verdadeiro ou o falso – hoje já precisam ser levadas em conta as inúmeras
possibilidades intermediárias de rearranjo. “Mente/corpo, caos/ordem,
intuição/análise, experiência/linguagem, natureza/cultura, não funcionam
como opostos irreconciliáveis [...] Constituem, ao contrário, polaridades ou
disjunções da condição de ser. Não se trata de exclusão, mas sim de inclusão»

19 Os teoremas de Gödel podem ser enunciados assim: “I – Toda axiomática consistente da aritmética
é completa. II – A consistência de qualquer axiomática consistente da aritmética não pode ser de-
monstrada nessa axiomática”. Os teoremas de Gödel mostram que o método axiomático está sujeito
a grandes limitações. (COSTA, 92, p. 57).

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 81
(HAMILTON, Catálogo para a 21ª Bienal de São Paulo). Acrescento, não cabe
mais sequer pensá-los em termos de oposição.

A operação de sistemas computacionais cada vez mais complexos obrigou-nos


a ter em mente a restritividade das distinções absolutas – 0 e 1, sim e não,
certo e errado. A lógica da computação foi estruturada sobre uma funda-
mentação de ordem binária, trabalhando a tradução da linguagem através
da codificação em “zeros e uns”, num processo de digitalização do verbal, do
sonoro e do visual.

Outras lógicas vêm sendo desenvolvidas: não triviais (Trivalentes (dialéticas),


Polivalentes, Infinitovalentes), Para-consistentes (ou inconsistentes), Nebu-
losas (ou lógicas “Fuzzy”), difusas, incertas, todas admitindo a contradição
e proporcionando uma série de nuances entre os extremos polares. Tomar
consciência de tal restritividade não implica necessariamente numa ação
mais efetiva para superá-la, uma vez que tem se mostrado extremamente
difícil vencer tais amarrações.

Considerações como as acima descritas costumam causar a sensação de que


estamos diante de abstrações pertinentes a uma esfera inacessível para os
“não iniciados”. Entretanto a arte pode ajudar a compreender melhor essas
novas lógicas. Para tanto, reproduzo um trabalho do pintor René Magritte, que
coloca em xeque as certezas pré-estabelecidas e acarreta reflexões sobre a
relatividade da noção de lógica : “Isto não é um cachimbo”, de René Magritte,
1928-1929 (Figura 26).

Figura 26
René Magritte, “Isto não é
um cachimbo”, 1928-1929
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais/acadêmicos.
Fair Use. By Image taken from
a University of Alabama site,
“Approaches to Modernism”: [1],
Fair use, Disponível em: https://
en.wikipedia.org/w/index.
php?curid=555365.
82 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Repensar a lógica requer repensar conjuntamente toda a ciência. Quando na
física, constata-se a impossibilidade de explicar/controlar tudo, o elemento
caótico passa a ser presença constante nas pesquisas. O cristal líquido, por
exemplo, é uma substância (cujo próprio nome nos revela) que possui proprie-
dades tanto dos sólidos quanto dos líquidos. A luz apresenta características
ora de onda, ora de partícula, deixando evidente seu caráter eminentemente
material, muitas vezes esquecido. Os átomos de carbono, de acordo com a
forma como se arranjam na natureza, originam diamante, grafite ou ainda,
uma substância chamada buckminsterfullerene. Na microfísica, Heisenberg
descobriu que “Os átomos e as partículas não são tão reais, eles formam,
antes, um mundo de potencialidades, do que um mundo de coisas e fatos”
(HEISENBERG, apud COSTA, 1992, p. 125). Esse princípio ficou conhecido como
o Princípio da Incerteza20.

Como podemos observar,


A lógica aristotélica não era capaz de adaptar-se ao formalismo
matemático da teoria quântica. Foi preciso buscar outras lógicas [...].
Mesmo assim, a lógica não aristotélica resulta tão desacostumada para
o pensamento humano, que os físicos se viram na situação de apenas
podê-la utilizar [...] [entretanto] ao falarmos e escrevermos com essa
nova lógica utilizamos, sem nos darmos conta, a lógica aristotélica
[...] consciente ou inconscientemente (HEISENBERG, 1974, p. 118-119).

Por outro lado, conforme Newton da Costa, “[...] na matemática tradicional


a lógica subjacente é a clássica, por ser a mais simples e cômoda, no sentido
de se afigurar como a que melhor se amolda à citada ciência. Na mecânica
quântica continua-se empregando a clássica espacialmente por motivos de
simplicidade e de facilidade” (COSTA, 1994, p. 47).

Gregório de Matos antevia, quem sabe, a impossibilidade das coisas serem


absolutamente exatas, traduzíveis em termos dos valores aristotélicos, como
revela o poema que se segue:

20 O princípio da incerteza leva a pensar que a física assumiu uma condição ilógica. Para um maior
detalhamento desta questão veja-se a obra de Newton da Costa, “Ensaios sobre os fundamentos
da lógica”.

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 83
Carregado de mim ando no mundo,
E o grande peso embarga-me as passadas,
Que como ando por vias desusadas,
Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.

O remédio será seguir o imundo


Caminho, onde dos mais vejo as pisadas,
Que as bestas andam juntas mas ornadas,
Do que anda só o engenho mais profundo.

Não é fácil viver entre os insanos,


Erra quem presumir que sabe tudo,
Se o atalho não soube dos seus danos.

O prudente varão há de ser mudo,


Que é melhor neste mundo o mar de enganos
Ser louco cos demais que ser sisudo.
(MATOS, 1968, p. 442).

Ao avaliar-se a interferência de tais mudanças nos demais campos das ciências,


pode-se notar que uma série de desdobramentos vem ocorrendo em todos os
níveis. Nas palavras de Hayakawa (1978), “Todos nós estamos familiarizados
com o fato de que a teoria da relatividade, a moderna mecânica dos quanta,
a matemática moderna, etc., reformularam não apenas nossas noções do
universo, como também as hipóteses sobre as quais vêm sendo construídas
nossas convicções” (p. 266). Temos sido lançados num jogo de contrários,
“Contraste sem mediação entre zona de sombra e zona de luz. Supressão de
toda transição entre um termo e o outro, por uma justaposição abrupta dos
contrários” (SARDUY, 1974, p. 27).

A luta que se estabelece é uma luta assimétrica. Georges Vantongerloo queria


a arte no “Domínio da geometria do assimétrico, da proporcionalidade do irre-
gular, da lógica não silogística” (VANTONGERLOO, apud ARGAN, 1993, p. 91).

O físico italiano Carlo Rubbia afirma que “[...] a maior realização da física nes-
tes 40 anos foi ter entendido o papel da simetria [...] É preciso achar simetria
num mundo que não a mostra claramente [...] as propriedades das partículas
também têm uma relação com a propriedade da simetria. Elas seriam o resul-
tado de princípios invariáveis. Confirmando o papel-chave das propriedades

84 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
invariáveis, começa-se a perguntar por que elas estão tão ocultas à primeira
vista” (RUBIA, 1992, p. 8) (grifo meu). A necessidade de encontrar uma si-
metria é um indicativo de que a sua ausência causa um profundo incômodo.

A interação cérebro/máquina antecipa a importância futura da inteligência


artificial. John Von Newman, ao desenvolver a máquina calculadora, sentiu
que a lógica da matemática tradicional não era suficiente, precisou criar outra
lógica que comportasse e desse suporte à suas pesquisas.

Nesse sentido, o brasileiro Marcelo Dascal vem pesquisando a arquitetura da


mente. Sua área de interesse, a ciência cognitiva, utiliza conceitos de mate-
mática, neurologia, antropologia, psicologia, filosofia, lingüística e inteligência
artificial. Essa é uma tentativa conjunta de compreender mais sobre o que se
passa dentro de nosso próprio limite corpóreo (DASCAL, 1991).

“A razão não é estática” (COSTA, 1992, p. 16). Ela está, pois, em constante
movimento. O cérebro é, ainda, um labirinto. Temos lhe imputado um com-
portamento linear, enquanto que sua capacidade de complexificação nos
remete para uma absoluta não linearidade. Estamos novamente diante da
desordem. Quando parecemos estar prestes a tocar uma das “paredes” do
labirinto mais um novo caminho nos é apresentado. O físico Rogério César
de Cerqueira Leite, descreve o intelecto como sendo um “empilhamento de
matrizes de percepção”. Estas matrizes estariam recebendo informações e
organizando-as dentro de um quadro mais amplo. Nossa memória parece
antever que determinadas informações nos serão indispensáveis em um
futuro próximo e as armazena cuidadosamente. O esquecimento exerce um
papel fundamental dentro do âmbito da cultura. Sua função é a de seleção:
Nossas culturas só se lembram esquecendo: só se mantém rejeitando
uma parte daquilo que experimentaram dia-a-dia. A seleção saneia,
assim é que ela criva. Ela desconecta; corta o contato imediato que
temos com nossa história no momento em que vivemos. Afasta-nos
um pouco permitindo que seja criada uma perspectiva (...) esse
esquecimento é dinâmico: é rejeição em vista de. Ele não aniquila,
mas, pole, apaga, e assim clarifica o que abandona a lembrança [...]
(ZUMTHOR, 1988, p. 83).

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 85
A cultura, no futuro, acena com possibilidades inacreditáveis. O filme “Total
Recall”, estralado por Arnold Swartzneagger, baseado num romance de Philliph
K. (“Nós relembramos para você”), mostra a memória sendo artificialmente
implantada, a partir de opções do indivíduo, de modo que ele não poderá
distinguir entre o que ocorreu realmente e o que lhe foi implantado. Isso de-
terminaria uma impensável estrutura social, onde a oscilação seria assimilada
e a instabilidade integrada.

Reconhecer é uma necessidade muito forte, do mesmo modo que a nomea-


ção, como se esta pudesse, por si só, resumir ou substituir as significações
ali presentes.

Arnaldo Antunes com seu poema “O nome do homem”, traduz um pouco


dessa ansiedade e brinca com os rótulos:
Algo é o nome do homem
Coisa é o nome do homem
Homem é o nome do cara
Isso é o nome da coisa
Cara é o nome do rosto
Fome é o nome do moço
Homem é o nome do troço
Osso é o nome do fóssil
Corpo é o nome do morto
Homem é o nome do outro.
(ANTUNES, 1993).

86 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
CAPÍTULO 4
REBELIÃO DE
CONCEITOS
DE pronto, sin motivo:
graznido, palaciego,
cejijunto, microbio,
padrenuestro, dicterio;
seguidos de: incoloro,
bisiesto, tegumento,
ecuestre, Marco Polo,
patizambo, complejo;
en pos de: somormujo,
padrillo, reincidente,
herbívoro, profuso,
ambidiestro, relieve;
rodeado de: Afrodita,
núbil, huevo, ocarina,
incruento, rechupete,
diametral, pelo fuente;
en medio de: pañales,
Flavio Lacio, penates,
toronjil, nigromante,
semibreve, sevicia;
entre: cuervo, cornisa,
imberbe, garabato,
parásito, almenado,
tarambana, equilátero;
en torno de: nefando,
hierofante, guayabo,
esperpento, cofrade,
espiral, mendicante;
mientras llegan: incólume,
falaz, ritmo, pegote,
cliptodonte, resabio,
fuego fatuo, archivado;
y se acercan: macabra,
cornamusa, heresiarca,
sabandija, señuelo,
artilugio, epiceno;
en el mismo momento
que castálico, envase,
llama sexo, estertóreo,
zodiacal, disparate;
junto a sierpe... ¡No quiero!
Me resisto. Me niego.
Los que sigan viniendo
han de quedarse adentro.

(Oliverio Girondo, “Rebelión de Vocáblos”, 1942)

Muitos dos conceitos comumente utilizados têm sofrido remodelações ao


longo da história, deixando para trás seu sentido inicial. Outros, em contra-
partida continuam carregando o peso da fundamentação que os construiu. Ao
empregar-se um determinado termo, simultaneamente revelam-se relações
com um substrato epistemológico, de modo a integrar o texto numa corrente
ou conjunto de correntes teóricas.

Definições podem ficar viciadas e palavras podem adquirir força suficiente


para desarticular uma argumentação, armadilha da qual nunca se está com-
pletamente livre. Em busca de menor linearidade, “palavras valise” aparecem
agindo antes como proposta de instigação, comportando-se menos como

88 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
átomos componentes de um sistema, mas como derivam para um modo de
ação subatômico, carregando em sua face significante um aparente reco-
nhecimento e por trás dela a frenética agitação de muitas partículas movi-
mentando-se, obrigando-nos a ter em mente o fato de não corresponderem
a uma noção única; como adverte Morin (1977), são de conceitos-enigmas a
serem continuamente desvendados.

Partindo-se do princípio de que há vários metatextos, sobre/sob o processo


de argumentação a comunicação desdobra-se numa atividade completa-
mente inovadora, sendo possível passar para um nível de interpretação
antiestrutural, tendendo muito a um campo de possibilidades do que para
uma finalidade conclusiva.

É fato que alguns conceitos têm se tornado inadequados em face às contínuas


modificações imputadas aos diferentes setores do conhecimento. Isso se
deve, em parte, à carga histórica que cada termo carrega, gerando alterações
de significado reforçadas na afirmação de Kuhn (1989), ao falar sobre uma
circunstância por ele vivida: “Cada um de nós estava fundamentalmente
preocupado por mostrar que os significados dos termos e conceitos científi-
cos mudavam freqüentemente segundo a teoria em que apareciam” (p. 96).

Conceitos não são estáticos, acompanham a dinâmica da sociedade. Nos


primórdios da civilização, o conceito de universo restringia-se à fração co-
nhecida do planeta. Posteriormente, essa noção ampliou-se, incorporando
novos elementos provenientes da ciência e da tecnologia e assimilando as
especificidades da prática cotidiana.

Nem sempre é possível encontrar uma definição que faça jus ao que se
quer expressar. Determinados objetos de estudo precisam conviver com
explicações aproximadas e até mesmo imprecisas, não correspondendo ao
rigor pretendido pela ciência, para cada uma de suas partes. “Um conceito
não é uma coisa, mas não é tão pouco somente a consciência de um con-
ceito. Um conceito é um instrumento é uma história, isto é, um feixe de
possibilidades e de obstáculos envolvidos num mundo vivido” (GRANGER,
apud BARTHES, 1988, p. 13).

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 89
Esse fato aponta a necessidade, imprescindível, de historiar-se um conceito,
considerando toda a complexidade das palavras, como mostram os versos
de Huidobro:
ALTAZOR

Hay poesiai que tienen sombra de árbol


Otras que tienen poesiaio de astros
Hay vocablos que tienen fuego de rayos
Y que incendian donde caen
Otros que se congelan com la lengua y se rompen
(al salir
Como esos cristales alados y fatídicos
Hay poesiai com imanes que atraen los tesoros
(del abismo
Otras que se descargan como vagones sobre el
(alma
(HUIDOBRO, 1931).

Assim, lê-se o conceito de “universo” com acepções próprias para os tempos


de Ptolomeu, Copérnico, Galileu, Einstein, por exemplo, ganhando contempo-
raneamente ainda mais elasticidade ao fazer-se acompanhar por questiona-
mentos que vêm mostrando a existência de um modo de pensar paradoxal,
oscilante em seus pólos, criativo em sua gênese, desestabilizador. Um pensar
paradoxal incorpora, sem o que não teria sentido, um forte viés crítico, pois
está sempre se autocriticando, assumindo-se precário e transitório. Convém
ressaltar que precário emprega-se aqui não pejorativamente, mas no que tem
de mais débil, difícil, incerto e insuficiente.

A luta travada com a linguagem, antes destino/privilégio reservado a artistas,


termina por bombardear e lançar minas em alvos como a geometria.

O uso da palavra Geometria pouco tem a ver com as intenções iniciais que
a escolheram:
Gy e Metron-palavras gregas que significam Terra e medida, já não
correspondem ao objetivo da Geometria como ciência. [...] A Geo-
metria é a ciência do espaço ou, dito de outro modo, o espaço está
em todos os corpos (COLERUS, 1952, p. 19).

90 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
O conceito lato de geometria desprende-se das suas origens, escapa das
dimensões da mensuração terrestre e vai invadir a arte, onde sempre esteve,
ainda que sutilmente, presente.

Colocar em contato o geometrismo e a história da arte, não se resume a


recontar sua história através da armadura geométrica que sustenta as obras,
embora possa ser extremamente interessante e necessário, num ballet de
linhas, ora cobrindo toda superfície, ora chegando ao ponto máximo da de-
puração e limpeza. Radiografando o esqueleto, a ossatura, proceder dessa
forma é esquecer que uma geometria é, também, demanda de corpo, que
conjuga, além dos determinantes matemáticos, elaborações filosóficas e
uma visão de mundo.

Grande parte dos estudos a esse respeito reveste-se, ainda, de uma fala en-
trecortada, sintoma da extensão da proposta de pesquisa, da recorrência de
elementos e da complexidade inerente à proposta de pensar arte e geometria
de modo não meramente complementar, mas intercomplementar.

Imbricadas, a produção artística e a geometria demonstram-se inextrincá-


veis, cambiando elementos e informações – (veja-se, por exemplo, o estudo
da geometria da visão, como parte das técnicas picturais desde o século V)
– passando pela trilha de posturas dicotômicas em função das teorias que
analisam essas representações.

Diante de terreno tão movediço, cada termo, palavra ou conceito parece


distanciar-se de sua origem, passando a não mais esclarecer, senão mesmo
a embaçar a capacidade de entendimento, especialmente quando não nos
damos conta dessa dificuldade. Ciência, geometria e arte vêem-se às voltas
com a extremamente complexa presença do espaço, dos espaços, com os
quais convivemos cotidianamente. Interiorizados, mecanizados, deixam de
receber o crivo fundamental que implementaria reconstruções criativas no
sentido de refletir sobre o espaço, em toda sua variedade de significações,
macro ou micro. Estas considerações levam ao encontro de considerações
a respeito de um posicionamento crítico frente aos problemas tratados.

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O espaço de Vallejo é um lugar que parece desaparecer sob seus pés,
refletindo angústia, tensão, desterro:
TRILCE

Há um lugar que eu me sei


há neste mundo, nada menos,
onde nunca chegaremos.

Onde ainda se nosso pé


chegasse a dar por um instante
será, em verdade, um não estar-se.

Esse é um sítio que se vê


a cada passo nessa vida,
de um em um, andando em fila.

Mais aquém de mim mesmo e de


meu par de gemas, entrevi-o
sempre distante dos destinos.

[...]

Mas o lugar que eu me sei


cá neste mundo, nada menos,
vai ombreando com os reversos

[...]

Esse é o lugar que eu me sei.


(VALLEJO, 1922).

Vallejo distancia-se do tratamento aristotélico quando trabalha sobre a temá-


tica do espaço, tanto quanto é possível sob a ditadura da sintaxe verbal, que
ele, aliás, subverte, encarando o espaço como presença/ausência, destronando
a relação de oposição entre estar/não estar, numa composição desestabili-
zadora das certezas, incomodando sobremaneira aos que se querem sempre
seguramente situados.

Tem-se tentado arduamente encontrar uma definição de espaço. Não, nenhu-


ma definição que possa ser tomada como a mais abrangente ou a mais correta,
pois estão vinculadas a uma série de fatores epistemológicos, ao desenvolvi-

92 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
mento das ciências e à reorganização sócio-histórica do homem. Há sempre
um componente circunstancial envolvido, como a falta de conhecimento de
um determinado aspecto, causada pela insuficiência de meios disponíveis e/
ou pelas barreiras político/culturais estabelecidas.

Pode-se observar o quanto o espaço tem sido investigado e observado


através da história. Vejamos: Platão o considerou um “conceito híbrido”
(é bom notar que híbrido em grego significava ultraje); Demócrito o defi-
niu dizendo: “o espaço é o não ser”; Bérgson o via como um “conjunto de
pontos em que podemos transitar”; para Worringer “o espaço não é nada
além de vibração”; “se o espaço é alguma coisa, o que pode existir nele?”,
escreveu paradoxalmente Zenão.

Isaac Newton estabeleceu um espaço matemático que não deve ser confundi-
do com o espaço de nossa experiência cotidiana; Berkley afirmou: “o espaço
matemático de Newton era imaginário, pontos e linhas não são objetos físicos
nem psicológicos“21.

Tantas indefinições, pinçadas de tempos históricos diferentes, demonstram


tentativas de estabelecer parâmetros para pensar “espaço”, uma noção a qual
se colam muitas outras.

Assim acontece com a igualmente complexa tentativa de conferir ao universo


uma forma.

Platão, no “Timeo”, colocava o cubo como representação da Terra e o dode-


caedro como a figura do universo; Kepler relacionava cada um dos planetas
conhecidos a um dos cinco sólidos regulares circunscritos: Saturno era repre-
sentado por um cubo circunscrito, Júpiter por um tetraedro, Marte por um
dodecaedro, a Terra por um icosaedro, Vênus pelo octaedro e mercúrio era
representado pela própria esfera; Galileu afirmava que “o livro da natureza
está escrito em caracteres geométricos: triângulos, círculos e quadrados”;
Santo Agostinho retoma as noções primitivas de espaço, em que o universo

21 Uma discussão mais detalhada sobre a questão do espaço encontra-se em minha dissertação de
mestrado: FRANÇA, 1994.

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possuía a forma de um tabernáculo construído no deserto por Moisés; hoje,
a Terra é sabidamente esférica e o universo que habitamos continua sem
uma configuração exata; alguns físicos o vêem como tendo a “forma inversa
de uma esfera”, isto é, ele não pode ser encarado como algo fechado, deli-
mitado; outros o vêem como “um círculo cujo centro está em toda parte e a
circunferência em parte alguma”22, enfim, como algo bastante complexo, o
que contribui para aumentar a angustia de um homem que desconhece seus
limites, temendo ser engolido por um buraco negro, bem como temeu des-
pencar de um abismo ao chegar ao final de um planeta plano. A mudança de
referenciais vai atravessar inúmeras etapas, abrangendo discussões internas
e externas, específicas e contextuais.

No terreno das artes a mutabilidade do espaço foi distintamente traduzida


como acontece, entre outras circunstâncias, nas configurações surrealistas,
como em “The architectonic angelus of Millet”, Salvador Dali, 1933 (Figura 27),
na perspectiva cubista de “Guitar ang jug on a table”, Pablo Picasso, 1918
(Figura 28), na síntese dos espaços nas telas de Klee, como em “Cosmic
Composition”, 1919 (Figura 29), “rigidamente”, nas obras de Piet Mondrian,
como em Piet Mondrian, “Tableau I”, 1921 (Figura 30), nos móbiles de Calder,
apontando para um universo matematizado, (Figura 30), que busca o equi-
líbrio, a harmonia, tal como foi representado em “Blue Feather”, 1948, na
geometria do cinema de Eisenstein, na literatura “labiríntica” de Borges
(1969) ou na obra de Octávio Paz, que fala de maneira poética desse espaço:
Ele é um onde. Nos rodeia e nos sustenta e o sustentamos e o rodea-
mos. Somos a sustentação do que nos sustenta e o limite do que nos
limita. Somos o espaço em que estamos. [...] A fronteira de onde eu
termino e começa o outro, o alheio, está em perpétuo movimento,
em contínua erosão. Na medida em que penetro em mim, me alieno
a mim, ando dentro de mim como em um país desconhecido; é mais
um país que se faz e desfaz sem cessar. O limitado limita todos os
limites. O espaço é pensável: apenas o tocamos e ele se desvanece
(PAZ, 1986, p. 218).

22 Essas expressões aparecem nos estudos de vários físicos, entre eles Stephen Hawking.

94 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Figura 27
Salvador Dali, “The
architectonic angelus of
Millet”, 1933
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais. Fair Use.
Disponível em: http://www.
wikiart.org/en/salvador-dali/the-
architectonic-angelus-of-millet.

Figura 28
Pablo Picasso, “Guitar ang
jug on a table”, 1918
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais. Fair Use.
Disponível em: http://uploads6.
wikiart.org/images/pablo-
picasso/guitar-and-jug-on-a-
table-1918.jpg!Large.jpg.
Figura 29
Paul Klee, “Cosmic
Composition”, 1919
Fonte: Imagem de Domínio
Público. Disponível em: http://
uploads7.wikiart.org/images/paul-
klee/cosmic-composition-1919(1).
jpg!Large.jpg.
Figura 30
Piet Mondrian,
“Tableau I”, 1921
Fonte: Imagem de Domínio
Público. Disponível em: https://
commons.wikimedia.org/w/
index.php?curid=37668615.

Figura 31
Alexander Calder,
“Blue Feather”, 1948
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais. Fair Use.
Disponível em: http://uploads4.
wikiart.org/images/alexander-
calder/blue-feather-1948.jpg.
A escolha de outros espaços rompe com a obrigatoriedade da moldura, faz com
que a poesia apareça em jornais, cartazes, camisetas. Cada movimento dialoga
com o novo e o antigo, como o cubismo, onde adota um novo espaço de luta:
A um espaço compartimentado sucede-se outro, homogêneo que cor-
responde ao “subjetivismo” moderno e que prevalece até o cubismo:
espaço simbolizado, na sua representação, pela convergência num
ponto ideal, embora definido no quadro, das linhas de fuga; todas
as ortogonais coincidem nesse ponto único, o que corresponde à
geometrização progressiva do universo nele compreendido, na sua
expressão pelas coordenadas cartesianas” (SARDUY, 1974, p. 130).

Próximo destas indagações, José Teixeira Coelho fala do espaço como “um
conjunto analisável de signos” (1979, p. 21), e aponta para a necessidade de
se pensar de maneira inter-relacional tudo o que está ligado à espacialidade.

Levando em conta um pouco dessa indeterminação conceitual que nos assola,


sintoma de um momento repleto de inquietações, e considerando o espaço
que habitamos, não estruturado trivialmente, com cada ponto ligando-se a to-
dos os outros, poderemos tentar uma aproximação com alguns dos caminhos
que conduziram a arte até o ponto em que se encontra na contemporaneidade.

Na medida em que se ampliaram as possibilidades de pensar não eucên-


tricos, pôde-se perceber a capacidade de fundir elementos aparentemente
excludentes. A comunicação direta entre ciência e arte há muito experimenta-
da pela ciência árabe e agora redescoberta, enriquecendo as novas pesquisas
ao mesmo tempo em que devolve a dignidade às disciplinas ligadas à arte23.

A afirmação de Rilke de que: “As obras de arte nascem sempre de quem afron-
tou o perigo, de quem foi até o extremo de uma experiência, até o ponto que
nenhum ser humano pode ultrapassar. Quanto mais longe a levamos, mais
nossa, mais pessoal, mais única se torna uma vida” (RILKE, apud BACHELARD,
1989, p. 253-254), mostra o combate empreendido pela arte.

23 Para maiores informações sobre a ciência Ocidental e não-Ocidental, ver R. Rashed (1984), especial-
mente o apêndice: “La Notion de Science Occidental”.

98 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Talvez se possa falar em “prazo de validade das imagens”, isto é, uma imagem
adequa-se ao tempo-espaço em que é produzida, ligando-se aos determinan-
tes científicos, às teorias matemáticas, à disponibilidade dos meios para sua
execução e ao entendimento que a sociedade tem da vida e do universo, os
quais o artista consegue elaborar e plasmar, sintetizando numa obra a efer-
vescência do cotidiano. Novamente friso a importância de ter em conta os
aspectos conjunturais, pois se evita, dessa forma, estabelecer comparações
valorativas, sem sentido. Por isso, Herbert Read (1957) prefere não pensar em
termos de desenvolvimento ou de evolução da arte, mas numa complexifica-
ção e diferenciação, de acordo com cada contexto espaço-temporal.

De fato, o homem pré-histórico não se limitava à imitação dos animais. Seus


desenhos tinham um sentido animista e eram, a um só tempo, “a repre-
sentação e a coisa representada” (HAUSER, 1969). Um exemplo clássico é a
presença de um elemento abstrato na famosa vaca da caverna de Lascaux,
ou melhor, “[...] hay uno restángulo muy preciso debajo de um dibujo de un
venado roxo en Lascaux” (READ, 1957, p. 47) (Figura 32), um retângulo que
substituiria a pata do animal; isto há 35.000 anos. Intencional ou acidental,
a marca da abstração já se estabelece.

Cerca de 20.000 anos depois, no período Neolítico, a preocupação deixa de


ser somente com a imagem e passa a ser também com a ideia, “[...] a apre-
sentação da figura humana se faz parcialmente estilizada” (SALORT, 1983,
p. 21). O homem do Neolítico chega à abstração como representação da vida:
“O estilo geométrico foi o grande escolhido, pois como os dedos dominavam
as fibras, o homem, ao trançar, trançava o mundo que o diagramatizava”
(OLIVEIRA, 1987, p. 61). A estrutura geométrica surge através da manipulação
de um código eminentemente material: o trançado.

È possível arriscar dizer que a arte pré-histórica já possuía os três tipos de


funções que Mukařovský diferencia em sua Tipologia das funções da arte:
funções imediatas – práticas e teóricas; funções de signo – simbólicas e
estéticas e a função mágica – que conjuga a função prática mais a função
simbólica (MUKAŘOVSKÝ, 1981).

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 99
Figura 32
Detalhe de “La Grande
Vache Noir” – Caverna de
Lascaux, França, período
neolítico
Fonte: Imagem de Domínio
Público. Par HTO — Travail
personnel (own photo),
Domaine public, Disponível
em: https://commons.
wikimedia.org/w/index.
php?curid=6909479.
Hoje, numa era em que se buscam “pós-imagens”, ainda permanecem as
indagações: O que é arte concreta? O que é arte abstrata? O que é concre-
to? E abstrato? Costumava-se considerar como concreta a arte inspirada na
natureza, ou melhor, a própria definição de arte se colava a este clássico
pressuposto, que retomou Amaral (2001): “Arte é a natureza vista através de
um temperamento” (p. 63). A Abstrata não utilizaria nenhum modelo natural,
não teria nenhuma relação imediata com o mundo. Ambos os conceitos já não
podem mais ser assim considerados, outras implicações precisam ser levadas
em conta. Contra argumenta-se que a arte concreta é, na verdade, abstrata,
pois se trata de uma representação do real, que, conforme Júlio Plaza, pode
ser expresso como “[...] uma espécie de conjunto polifônico de mensagens
parciais que realizam um contraponto, determinando a inteligibilidade maior
ou menor do conjunto” (PLAZA, 1987, p. 86).

Importante para esta discussão é o trabalho de Wilhelm Worringer, “Abstração


e Natureza” (1975). Encontramos nele a referência a dois24 tipos extremos de
obras de arte: as dotadas de empatia e as abstratas. Worringer (1975) não
prioriza qualquer uma das formas de arte, mas pretende, antes, traçar as
linhas que as colocam em planos diferentes.

É interessante lembrar que “Einfühlung”, o termo utilizado (em alemão)


para designar empatia, pode ser também traduzido por “sentir-se dentro”.
Essa qualidade da arte, a qual chama de projeção sentimental, traz, algumas
vezes, no reconhecimento de formas orgânicas, a capacidade de conduzir o
expectador para uma dimensão de “conforto” quase uterino.

No dizer de Gombrich: “Quanto maior for a importância biológica que


um objeto tem para nós, mais estaremos capacitados a reconhecê-lo – e
mais tolerante será, portanto, nosso padrão de correspondência formal”
(GOMBRICH, apud ARNHEIM, 1988, p. 43).

24 A divisão em dois tipos de obras proposta por Worringer será utilizada nesse estudo apenas como
referencial contextualizador, uma vez que existem inúmeras formas intermediárias entre o que ele
chama de “empatia” e “abstração”.

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 101
A arte abstrata relaciona-se com o público por meio de outros processos de
interação, trabalhando a conexão formal através de intrincados pressupostos.
Koestler, no seu livro “Jano”, nos apresenta a história de duas pessoas con-
versando, em uma sala, sentadas próximas a uma pintura abstrata numa das
paredes. O visitante não conseguia desligar-se da tela e, intrigado, olhava-a
ininterruptamente. Angustiado, pergunta ao dono da casa o que significava,
e recebe, como resposta, o título da obra. Essa nomeação do desconhecido
fez com que ela se encaixasse dentro de parâmetros reconhecíveis, cessando
o diálogo e o questionamento, afinal “aquilo” era um por do sol, mesmo que
não se parecesse com um (KOESTLER, 1981). Um bom exemplo dessa expe-
riência pode ser visto em “The Morning Star (from Constellations)”, de Juan
Miró, 1941 (Figura 33).

Segundo a artista plástica Ann Hamilton, “O processo de nomear pode inibir


a elasticidade, o que se justificaria pela quebra da tensão, justamente o elo
enriquecedor da informação transmitida”. (HAMILTON, apud HAIAKAWA,
1977, p. 271). Hayakawa (1977), a este respeito, observa que:
Uma tensão suscetível de ser observada é a de muitas pessoas que
se defrontam com um objeto sem nome, tensão que geralmente
desaparece tão logo se atribua um nome à tal objeto. Em termos
de reações semânticas, esse comportamento indica em todos os
níveis, uma tendência das pessoas a se ajustarem aos nomes e não
aos objetos (p. 271).

O estranhamento causado por esse tipo de obra leva a uma rejeição inicial,
pois não é o tipo de expressão que acalente ou embale, pedindo uma leitura
que promova ebulição interior, distante da produção direcionada para “épater
le burgeois”.

Nesse sentido vale observar dois exemplos de Pollock, “Untitled”, 1951


(Figura 34), ou seja, sem título, deixa a obra ainda mais em aberto e outra
de Pollock, “Number 23”, 1948 (Figura 35), que joga com a duplicidade do
nome e faz o leitor buscar “um número doze” ou pensar que ela é a déci-
ma segunda tela de uma série. Em ambos os casos a percepção é levada e
estimulada a uma reação.

102 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Figura 33
Juan Miró, “The Morning
Star (from Constellations)”,
1941
Fonte: Imagem disponível
para fins não comerciais/
acadêmicos. Fair Use. By Source,
Fair use, Disponível em: https://
en.wikipedia.org/w/index.
php?curid=33391022.

Figura 34
Jackson Pollock, “Untitled”,
1951
Fonte: Imagem disponível
para fins não comerciais/
acadêmicos. Fair Use.
Disponível em: http://uploads0.
wikiart.org/untitled-1951(1).
jpg!Large.jpg.

Figura 35
Jackson Pollock, “Number
23”, 1948
Fonte: Imagem disponível
para fins não comerciais/
acadêmicos. Fair Use. Disponível
em: http://uploads6.wikiart.org/
number-23(1).jpg.
Segundo Peirce (1977) “Somos compelidos a pensar certas coisas como
estando mais próximas entre si do que outras” (PEIRCE, 1977, p. 16); seria o
caso da tendência a se classificar uma obra naturalista, como estando mais
próxima da natureza do que outra, abstrata, comparação esta, incompatível
com um pensar mais cuidadoso, considerando todo um estado de coisas que
resultaram numa determinada obra.

Assim, quando “No século XIX a noção tradicional de espaço se transformava


principalmente por meio do Impressionismo” (PEIRCE, 1977, p. 214), esboça-
va-se uma primeira ruptura. Passando a preocupar-se com o fugaz, com o
transitório, com a visão do instante, o pintor não pinta mais o que vê, mas
o que sente, “[...] se prescinde de tudo o que não seja uma pura sensação
ótica” (SELDMAYR, 1955, p. 31). Novos temas são trazidos para a tela, além
dos temas alegóricos, dos retratos, paisagens e naturezas-mortas.

Muitas certezas são postas em xeque. Descobre-se que a tela de Ingres,


“A Banhista de Valpinçon”, tida como exemplo de fidelidade à natureza, era,
na verdade, uma abstração, pois ele havia colocado uma vértebra a mais “na
modelo”, para acentuar a sensação de verticalidade do quadro (Figura 36).

Se 1907 marcou uma mudança de paradigma nas ciências, com a teoria da


relatividade de Einstein, 1910 inaugurou, uma revolução na arte, com “Primeira
aquarela abstrata”, de Kandinsky, 1910, (Figura 37).

Ainda que seus quadros não tivessem nenhum elemento figurativo, alguns
críticos reconheceram em suas telas padrões do mundo “concreto”, compa-
rando-as a uma colônia de bactérias vista ao microscópio; um mundo que o
olho não pode ver sem o auxílio de um instrumento. Quantos outros mundos
existem que ainda não podemos ter acesso? A representação da estrutura de
uma célula seria uma abstração na pré-história.

O processo de abstração segue, pelo menos, por dois caminhos: o primeiro parte
de um objeto, ou elemento da natureza, e vai reelaborando-o, até encontrar
sua estrutura básica, como o fez Picasso em “Bull”, 1945 (Figura 38); o segundo
foge a essa referência formal, trabalhando diretamente com o inorgânico, como
foi o caso de Piet Mondrian.

104 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Figura 36
Dominique Ingres,
“A Banhista de Valpinçon”,
1808
Fonte: Imagem de Domínio
Público. Disponível em: http://
uploads6.wikiart.org/images/
jean-auguste-dominique-ingres/
the-bather-of-valpin%C3%A7on.
jpg!Large.jpg.

Figura 37
Wassily Kandinsky, “Primeira
Aquarela Abstrata”, 1910
Fonte: Imagem de Domínio
Público. Disponível em: http://
uploads1.wikiart.org/images/
wassily-kandinsky/first-abstract-
watercolor-1910.jpg!Large.jpg.
Figura 38
Pablo Picasso, “Bull”, Partes
I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX
e X, 1945
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais/acadêmicos.
Fair Use. Disponível em: (Parte
I) http://uploads2.wikiart.org/
images/pablo-picasso/bull-
plate-i-1945.jpg!Large.jpg ;
(Parte II) http://uploads2.wikiart.
org/images/pablo-picasso/
bull-plate-ii-1945.jpg; (Parte
III) http://uploads3.wikiart.org/
images/pablo-picasso/bull-plate-
iii-1945.jpg; (Parte IV) http://
uploads3.wikiart.org/images/
pablo-picasso/bull-plate-iv-1945.
jpg!Large.jpg ; (Parte V) http://
uploads2.wikiart.org/images/
pablo-picasso/bull-plate-v-1945.
jpg!Large.jpg ; (Parte VI) http://
uploads3.wikiart.org/images/
pablo-picasso/bull-plate-vi-1945.
jpg!Large.jpg ; (Parte VII) http://
uploads4.wikiart.org/images/
pablo-picasso/bull-plate-vii-1945.
jpg!Large.jpg ; (Parte VIII) http://
uploads4.wikiart.org/images/
pablo-picasso/bull-plate-viii-1946.
jpg ; (Parte IX) http://uploads2.
wikiart.org/images/pablo-
picasso/bull-plate-ix-1946.jpg ;
(Parte X) http://uploads2.wikiart.
org/images/pablo-picasso/bull-
plate-x-1946.jpg!Large.jpg ; (Parte
XI) http://uploads2.wikiart.org/
images/pablo-picasso/bull-plate-
xi-1946.jpg.
A busca de um novo ideal de uma pintura “pura” faz Mondrian projetar-se (do
latim “projicere”, lançar-se, arrojar-se) na busca de composições purificadas,
numa imposição espiritual apoiada em princípios geométricos.

Tal seria a abstração pura. Com essa prática estabelecesse-se o Neo-Plasti-


cismo, fiel a horizontalidade/verticalidade, a força do ângulo reto – arrolado
a “retidão de vida” imposta pelo calvinismo, do qual Mondrian era seguidor
– as cores primárias e a planicidade da tela (Figura 39).

Mondrian, fugindo da guerra, vai para os Estados Unidos; lá compõe a série


denominada “Boogie-Woogie”, na qual podemos reconhecer a influência
que recebe do cinema, do jazz e da vida frenética de Nova York, uma série
conectada a sua mudança transoceânica de vida, entre elas a “Victory Boogie
Woogie”, 1943-1944, inacabado (Figura 40).

Na produção de Mondrian encontra-se a expressão máxima da matemati-


zação, com proporções reproduzidas ao infinito, numa fidelidade extrema
aos cânones por ele criados para o Neo-Plasticismo. Mesmo nas obras dessa
última fase, em que Mondrian vivia em Nova York, pode-se observar a divisão
segundo o “número de ouro”.

O que se pretende com tais informações, é apontar para a sutileza da fronteira


existente entre o “natural e o artificial”, “o real e o imaginário”, “o concreto
e o abstrato”, a “matemática pura e a arte pura”. Talvez uma rápida incursão
pelo universo da música possa ampliar a compreensão sobre a questão da
abstração. Se tomarmos como exemplo uma peça musical, como “O voo do
besouro” (1890-1900) de Rimsky-Korsakov, sua audição nos fará lembrar o
som produzido por um besouro voando. Seria estranho dizer que o compositor
tentava imitar o inseto. Parece mais sensato que ele estivesse buscando uma
evocação. Da mesma forma, um solo de contrabaixo pode nos trazer à mente
a presença de um elefante, algumas notas no piano podem nos fazer ouvir o
canto de um pássaro ou um trem.

A abstração pode estar presente na música de Jesuel ou Schöenberg, na


música eletrônica, “[...] no ballet de Oscar Schlemmer ou no teatro máquina
de Meyerhold” (SELDMAYR, 1955:73).

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 107
Figura 39
Piet Mondrian,
“Composição em Amarelo,
Azul e Vermelho”, 1937-1942
Fonte: Imagem de Domínio
Público. Por Piet Mondrian –
Disponível em: http://www.
tate.org.uk/art/artworks/
mondrian-composition-with-
yellow-blue-and-red-t00648
Domínio público, https://
commons.wikimedia.org/w/
index.php?curid=43911892.

Figura 40
Piet Mondrian, “Victory
Boogie Woogie”
(inacabado), 1943-1944,
Fonte: Imagem de Domínio
Público. Por Piet Mondrian –
Gemeentemuseum Den Haag,
Domínio público. Disponível
em: https://commons.
wikimedia.org/w/index.
php?curid=37614350.
No caso da fotografia instantânea, vista por muitos teóricos como um fla-
grante, com cada ponto devendo corresponder a um ponto real, represen-
tação «fiel» da realidade, mas como isso é possível, se já pratica um recorte
bidimensional dessa realidade?

A representação da realidade é um problema de origem ontológica. Preocupou


Heráclito (“as coisas mudam constantemente”), Parmênides (“as coisas, em
aparência, não mudam”), Nietzsche (“tem-se o pressentimento que sob essa
realidade em que vivemos e existimos existe outra”) e tantos outros. Para o
matemático René Thom, “A matemática não pode ter a pretensão de represen-
tar a realidade, a matemática pertence à esfera da abstração” (THOM, 1983).

A afirmação de Panofsky, de que “[...] nada está na mente a não ser o que
estava nos sentidos; mas é pelo menos igualmente verdadeiro que muita coisa
está nos sentidos sem nunca penetrar na mente” (PANOFSKY, 1976) nos coloca
diante da necessidade de legitimar as formas de representação do homem.

A maneira como vai ocorrer essa legitimação, através da invocação de sig-


nos comunicativos, varia de cultura para cultura, bem como nas diferentes
concepções de mundo de cada cultura, dependendo de como representam o
mundo visível. Assim como adultos e crianças têm suas maneiras particulares
de perceber e sentir os ambientes, cada povo, cada região, tem a sua.

Passam despercebidas, na maioria das vezes, as complexas interrelações cor-


po/mente/meioambiente – morar num iglu pode se tornar uma experiência
muito desgastante para alguém que não tenha nascido na região, mas morar
num núcleo urbano complexo, mesmo que nele se tenha nascido, causa igual
dificuldade – comprometendo o equilíbrio do homem. Embora “a capacidade
de adaptação a um meio ambiente variável seja uma característica essencial
dos organismos vivos e sistemas sociais” (CAPRA, 1990, p. 266), alguns
fatores devem ser respeitados na construção desses ambientes. A própria
concepção de mundo de uma época precisa ser considerada. A concepção
de espaço é muito diferente na Idade Média e no Renascimento, por exem-
plo. A delimitação espacial do egípcio não nos serviria hoje; “A figuração do
espaço à maneira egípcia ou bizantina é impensável no tempo da mecânica

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 109
ondulatória.” (FRANCASTEL, 1966), uma geometria de base euclidiana não
se adequa a uma realidade fractal.

Um objeto representado no espaço pode ter – teoricamente-nenhuma di-


mensão (dimensão nula), bidimensão, tridimensão ou ser multidimensional.
A representação tridimensional, no espaço R3 – chamado de espaço plástico
ou corpóreo – só foi possível devido a três circunstâncias: “... pelo sentido
muscular do próprio olho, pela visão binocular ou estereoscópica e pelo tato
e movimento...” (COLERUS, 1952, p. 52). É importante frisar que as formas
de visualização fazem uma fundamental diferença para a manutenção de
um paradigma. Como nos explica o físico teórico, Hermann Haken: “pode-
mos dizer que vivemos num sistema visual muito instável em que a mínima
flutuação da nossa percepção visual provoca rupturas na simetria do que
vemos” (SANTOS, 1990, p. 6).

O problema da representação quadrimensional, “[...] segundo o sentir das


pessoas a residência dos espíritos e dos fantasmas” (COLERUS, 1952, p. 45),
foi englobado pelo Cubismo, que se empenhou em representar a quarta
dimensão, ligando às dimensões espaciais a dimensão temporal, como em
“Guernica”, de Pablo Picasso (Figura 41).

Figura 41
Pablo Picasso, “Guernica”,
1937
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais/acadêmicos.
Fair Use. Por Papamanila –
Fotografia própria, CC BY-SA
3.0. Disponível em: https://
commons.wikimedia.org/w/
index.php?curid=9469068.

110 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
De qualquer modo, estarão presentes, nessa representação, uma forma e
um conteúdo. Numa obra de arte, assim como na geometria, é impossível
dissociar esses dois elementos. Classificar uma pintura abstrata como uma
expressão da forma, mas sem conteúdo, é minimizar a atividade de depuração
e de sintonia com a realidade.

Os trabalhos de Mondrian realçam essa duplicidade, apresentando uma


harmonia entre a percepção do imaginário e as condições biológicas da
percepção. A sensação de repouso, de equilíbrio que se encontra na tela não
se restringe a ela. Uma tela de Mondrian, ao ser pendurada em uma parede,
tem a propriedade de reorganizar todo o espaço a sua volta, num sintoma
do profundo dinamismo que a envolve. Enfim, pode-se dizer com Bouleau:
“La peinture n’est pas seulement surface plane; elle entreprend la conquête
de l’espace et les differérentes étapes de cette conquête s’exprimeront à leur
tour dans le composition: conquête par la geometrie, que recourt aux trois
dimensions” (BOULEAU, 1963, p. 11).

O gesto criador decorre de um processo de desenvolvimento extenso e com-


plexo. “O pensamento traduzido em linguagem atravessa os pólos concreto
e abstrato da realidade...” (PLAZA, 1987, p. 20), logo, a imagem que decorre
dele não é somente abstrata ou somente concreta, mas o resultado da inte-
ração dessas duas forças. Há um tipo de imagem que “[...] representa cenas
do mundo exterior ou interior do produtor. Um segundo tipo torna visíveis
vários pensamentos abstratos, por exemplo, proposições matemáticas ou
estruturas do conhecimento. Um exemplo pré-histórico do primeiro tipo de
imagem são os desenhos nas paredes das cavernas. Um exemplo pré-histórico
do segundo tipo de imagem são os tijolos mesopotâmicos com desenhos de
projetos para canalização de rios” (FLUSSER, apud BRILL, 1990, p. 199).

A questão aparece nas proposições de Paul Virilio, de acordo com as quais,


com a evolução dos meios de comunicação e a praticamente total simultanei-
dade das informações, a representação passa para o estágio da “presentação”
e entramos no mundo da realidade virtual: “[...] com a ‘lei da proximidade’
(eletromagnética), o distante se sobrepõem ao próximo [...] ‘Os que acham
que eu pinto muito rápido me olham rápido demais’ escreveu Van Gogh.

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 111
A clássica fotografia já não é mais nada do que uma imagem congelada [...]”
(VIRILIO, 1993, p. 109).

A paulatina incorporação da abstração pela da arte alinha-se a igual tendên-


cia por parte da ciência, de romper com estruturas tradicionais e incorporar
elementos subjetivos, indeterminados, acidentais, fragmentários. Fragmentos
de uma sociedade ocidental, capitalista, voltada para o consumo, são cap-
turados, transformados, destituídos de sua função para gerarem denuncias
e ácidas críticas.

Duchamp utiliza em seus ready-mades uma engenharia milimétrica, denuncia-


dora de uma crescente massificação do consumo e portadora de uma lógica
não trivial, a lógica que ganha a contemporaneidade, incorpora à obra o
inesperado, como no caso da quebra da obra de Marcel Duchamp, “The Bride
Stripped Bare by Her Bachelors, Even (The Large Glass)” durante o transpor-
te, fratura na ordem, fissura que expõe a precariedade das determinações
mecanicistas, falha incorporada, reelaborada, representativa de outra obra,
vitória do inesperado, a exemplo de (Figura 42).

Figura 42
Marcel Duchamp, “”The
Bride Stripped Bare by Her
Bachelors, Even (The Large
Glass)”, 1965
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais/acadêmicos.
Fair Use. Disponível em:
https://en.wikipedia.org/wiki/
112 File:Duchamp_LargeGlass.jpg.
IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Andy Warhol polemiza a fama, critica-a, ridiculariza-a ao mesmo tempo
em que dela se serve. Matematiza séries de «silk-screens», fractalmente
auto similares, dotadas do poder de extrair da saturação o novo. Dele não
escapam nem Elvis, nem Mick Jagger, nem Mao-Tsé-Tung, nem latas de sopa
(Figura 43), fazendo ver o visível invisível na profusão de signos em que se
encontravam imersos.

A arte arrebanha para seu terreno “atratores estranhos”, em produções


impossíveis de serem percebidas sem virar o rosto para o resto do mundo;
apavora galeristas com produtos efêmeros, dissipativos, transitórios e sem
chances de comercialização.

A ciência volta-se para a discussão da existência de possíveis universos para-


lelos e viagens através da dimensão temporal, conjuntamente, a matemática
procura uma geometria que traduza e dê suporte às forças em questão, a arte
manifesta estas preocupações em criações multimídias, em imagens holográfi-
cas e sons holofônicos, nos textos “cyberpunks” que fagocitam essa realidade
pesquisada e só são possíveis com a incorporação de elementos tecnológicos.

Figura 43
Andy Warhol, “Sopa
Campbell’s”, 1968
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais/acadêmicos.
Fair Use. Disponível em: https://
en.wikipedia.org/w/index.
php?curid=4268566.
IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 113
Estamos longe de enxergar a démarche, se é que ela existe, entre ciência e
arte, tão pouco de compreender que processos levam proposições teóricas
tão áridas a serem transformadas em obras de arte. Ainda atravessamos a
fase da tatilidade no que tange a estas questões.

Continuaremos incompreendendo o infinito, em todas as suas versões,


conceito fundamental para a matemática e para as ciências de um modo
geral, duplamente invisível, por caber simultaneamente no extremamente
grande, no extremamente pequeno. A amplitude de sua extensão significa-
tiva não encontrou expressão lingüística que se adequasse a ela; “a homo-
logia estrutural entre as línguas não resolve a ‘incomensurabilidade’ entre
a nova revolução científica e as comunidades científicas e lingüísticas em
vigor” (PINHEIRO, 1991, p. 171), e o infinito continua a ser representado de
maneira reticente. Giordano Bruno (1548 – 1600) considerava “o universo
um ‘TODO INFINITO’ porque não possui limite, nem termo, nem superfície;
digo não ser o universo ‘totalmente infinito’ porque cada parte dele que
possamos pegar é finita e cada um dos inúmeros mundos que contém é
finito” (BRUNO, 1995, p. 200).

Para Gauss “[...] o infinito não é senão um modo de falar” (GAUSS, apud
BABINI, 1952, p. 123), tamanha a complexidade que deriva de sua existência.
Riemann vai diferenciar ‘infinito’ de ‘ilimitado’, ponderando: “Quando se
estendem as construções do espaço ao infinito grande, há de distinguir-se
o ilimitado do infinito. O primeiro pertence às relações de extensão, o se-
gundo as relações métricas. Daí que a propriedade do espaço ser ilimitado
possui uma certeza empírica que nenhum outro dado empírico possui”
(BABINI, 1986, p. 152).

Um dos matemáticos que ousou propor uma geometria não euclidiana,


Riemann, modificou, entre outras coisas, o conceito entendimento do
princípio de simetria que vem preocupando artistas/ cientistas/ historia-
dores. Simetria, etimologicamente falando, vem de sun metron, isto é, com
medida. Os modos mais comuns de simetria são a simetria em relação a
um plano vertical e a simetria axial (em relação a um eixo), determinadas
pela observação do corpo humano, dos animais e vegetais. Entretanto a

114 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
forma de simetria mais interessante na arte é a simetria oculta, a que se
localiza em composições bem mais complexas, nas quais aparece como
um dos elementos, cuja preocupação não é a correspondência especular,
mas o equilíbrio, entendido como um “estado de distribuição no qual toda
ação chegou a uma pausa”; a busca de uma simetria, mesmo não explícita,
parece ser um desejo comum, uma vez que sua ausência desestabiliza e,
nem sempre, a desestabilização é bem vinda. Mesmo em produções artística
que se pretendem inovadoras, críticas e designadoras de novas formas de
representação, encontramos a preocupação com um “ideal de harmonia”,
ainda preso aos ditames clássicos do mundo helênico.

As alterações na codificação da simetria aproximam ainda mais arte e


ciência, territórios de interferência constante como pode ser percebido
através da seguinte citação: “As versões de mundo, criadas por Newton
e por Einstein não são superiores às versões de Homero, Sheakespeare,
Picasso ou Beethoven”25. Para Thomas Kuhn arte e ciência são termos que
se interdefinem, e para o matemático J. Bronowski “[...] as descobertas da
ciência, as obras de arte são explorações – mais que isso, são explosões de
uma similitude oculta» (BRONOWSKI, 1985, p. 33).

Admite-se a existência de um “estilo” na matemática, cujo apelo estético


pode ser de difícil definição “[...] mas pode-se dizer o mesmo da beleza
de qualquer outro tipo” (HARDY, apud BRONOWSKY, 1985, p. 79). O estilo
matemático conjuga o apelo ao “naturalismo” e à “abstração” parte da
identificação com formas da natureza, esquematizadas, codifica-as e vai
além. “A matemática é a metalinguagem das linguagens” (PIGNATARI, 1974,
p. 8), uma espécie de matriz geradora de formas (em seu sentido lato),
distante das restrições que a enceram numa dimensão teórica, algébrica,
demonstrativa, alienante. Premida pela desarticulação ocorrida muitas

25 A presente citação está sem os dados de autoria. Lembro-me de tê-la encontrado, há algum tempo
atrás, num documento mimeografado que circulava numa exposição de arte. Desse documento
só restou a cópia manuscrita das frases escritas sobre um pedaço de papel que mantive junto ao
material separado para trabalhar nesta pesquisa1.0000 Considero-a extremamente pertinente ao
assunto em pauta, por isso resolvi mantê-la assim mesmo, ainda que destituída das notas técnicas
que necessariamente deveriam acompanhá-la.

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 115
vezes, a matemática conta com a claustrofobia do encerramento num con-
junto de teoremas e a arbitrariedade dos que a pensam como ferramenta
capaz de, por si só, tudo explicar. O mais difícil é pensá-la como terreno de
trocas, recebendo/fornecendo informações e, por isso, está em constante
movimento, determinando e sendo determinada pelos segmentos que
fazem parte da vida.

Desde a Idade Média a arte vem se utilizando de uma ferramenta emi-


nentemente matemática: a secção áurea. Sua presença nas proporções do
corpo humano, nos níveis de energia dos átomos, na filotaxia dos vegetais,
nas espirais das conchas e num sem número de outras ocorrências, parece
revelar certo prazer estético demonstrado pela natureza, prazer este, que
foi adotado e empregado por artistas das mais variadas tendências.

O mais famoso tratado sobre a secção áurea é “A Divina Proporção”, escrito


por Luca Pacioli em 1509. Pacioli faz uma analogia entre essa propriedade
matemática e propriedades divinas:
1) Como Deus ela é única; 2) Como a Santíssima Trindade é uma
substância em três pessoas, ela é uma propriedade em três termos;
3) Como Deus não pode se definir em palavras, ela não pode ser
expressa por um número inteligível e por uma quantidade racional,
mas é sempre oculta e secreta e se chama, pelos matemáticos,
irracional (PACIOLI, apud BOULEAU, 1983, p. 76).

Conhecida pelos gregos, estudada pelos pitagóricos como detentora de


poderes mágicos, usada por Da Vinci, por David e por Ingres, a divina pro-
porção continua a aparecer em telas modernas. A pintura de Mondrian se
apóia nessa proporção para configurar áreas de cor, determinar as dimen-
sões de seus retângulos, definir planos e criar uma sensação de repouso e
equilíbrio estético.

Atualmente, a ciência atravessa uma fase de intensa mudança e lança/relança


mão de outros recursos que, assim como o “número de ouro”, são açambar-
cados pelo universo da arte, remodelados, reincorporados pela ciência.

116 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Conceitos, como temos visto, são mais que palavras. Estão em nossa mente/
corpo como um conjunto de informações sensórias ou não,
Toda palavra falada desperta em nós não só a impressão de algo
conhecido de antemão e que poderíamos designar como o signifi-
cado em geral da palavra em questão, senão que, ademais, a cada
palavra vai unida uma série de significações veladas e de associações
através da penumbra de nossa consciência, cada uma sendo quase
inapreciável (HEISENBERG, 1974, p. 108).

Conceitos são mais que imagens; construções plurívocas condensam “esta-


dos de coisas”. Conceitos não se limitam a nomear outros conceitos, como
adverte o paradoxo de Frege: “Para cada um de seus nomes, a linguagem
deve conter um nome para o sentido do nome”.

Nota-se uma ausência vocabular comprovada pelo aumento dos neologis-


mos26, construídos na tentativa de traduzir um conjunto de proposições,
tanto que a leitura de alguns textos obriga-nos a criar uma espécie de
“minidicionário de contracapa” ao qual recorremos constantemente para
compreender o léxico do autor. O fato se complica na medida em que os
termos vão sendo incorporados como assumidamente compreensíveis,
aparecendo noutras obras sem a devida nota de rodapé que o situava
anteriormente, tornando a leitura lacunar e muitas vezes incompreensível.

Se os neologismos surgem com tanta freqüência é sinal (quem sabe sin-


toma) de uma erupção prestes a ocorrer, melhor ainda, de uma erupção
homeopaticamente em curso.

Neologismo, nova lógica, transpassa a mera composição de palavras para


criar argumentos novos em todos os setores da produção humana,

26 Veja-se, por exemplo, a seguinte citação de DOCZI (1990, p. 3): “Desde que não existe uma palavra
adequada para esse processo universal de criação de padrões, um novo vocábulo – dinergia – é
proposto. Dinergia é formado por duas palavras gregas: ‘dia-através, por entre, oposto’ e ‘energia’”.

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 117
Portanto, estamos obrigados a aprender uma nova linguagem, estra-
nha em muitos aspectos à linguagem habitual. Uma nova linguagem
significa um modo novo de pensar, e por ele se lhe impõe à ciência,
com toda a sua agudeza uma exigência que já nesses tempos se
aprecia em muitos outros setores da vida (HEISENBERG, 1974, p. 125).

A “rebelião dos vocábulos”, a dificuldade de encontrar palavras para expressar


uma “realidade” aparece na composição de um poeta e nas páginas de um
livro sobre física quântica e, também, nos novos territórios da arte/tecnologia,
imagem/número.

118 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
CAPÍTULO 5
NÚMEROS E
IMAGENS

(“Numéricas”, Wlademir Dias Pino, 1960)

As alterações geradas pelo uso de novas tecnologias – redes de comunicação,


simultaneidade, “presentação”, velocidade de informações, acesso a bancos
de dados, digitalização de imagens, automação do trabalho, sistemas finan-
ceiros operando on line ininterruptamente, aperfeiçoamento das técnicas
médicas, desenvolvimento de sistemas digitais e outras tantas, misturam
microevoluções ocorridas na matemática (desenvolvimento da álgebra
booleana, do cálculo diferencial e integral, das operações com matrizes),
geometria (a incorporação de geometrias não euclidianas, por exemplo), física
(o aprofundamento da física quântica, a presença do princípio da incerteza,
do demônio de Maxwell), arte (a informatização, digitalização, substituição
de ferramentas usuais por máquinas eletrônicas), enfim, conjugam aspectos
sócio-econômico-político-culturais. Não tem sido sem medo ou resistência
que tais estruturas vêm tentando escapar à lógica que as têm sedimentado
no transcurso da história da humanidade.

Com alterações dentro das delimitações pertencentes aos domínios dos “nú-
meros”, tradicionalmente voltados para manter certa “exatidão», o homem
(seja ele cientista ou não) obriga-se a olhar o mundo de outras formas.
Obriga-se a olhar diferente porque, justamente, está vendo diferente. Desta
visão surge a necessidade de rever os sistemas que davam suporte ao olhar;
outros postulados, premissas, axiomas, perspectivas, pedem reformulações
teórico-práticas, pois, é evidente, o simples uso de recursos tecnológicos não
garante, por si só, inovação ou originalidade. Nesse sentido é possível ser
bem menos euclidiano com papel e lápis se for empregada uma boa dose de
criatividade e se se mantiver a intenção de procurar subverter o código a que
se está arraigado há séculos.

Isso pode ser percebido no desenho de Paul Klee, onde as “garatujas” de Klee,
denominadas “exemplos figurados de aumento e diminuição” apresentam-se
como exemplo dessa subversão de códigos com papel e lápis (no caso bico
de pena). O que chama de “medição”, tendência matemática de mensurar o
mundo, representa muito mais uma “ocupação” do espaço, mostrando a preo-
cupação didática (resultado de seus trabalhos como professor na Bauhaus),
demonstrando de modo prático a relação matemática/arte, num exercício
de tradução criativa que lança mão de uma base teórica, de uma formação
dentro dos cânones tradicionais, e consegue modificá-la. As linhas, conceito
euclidiano, aparecem sobre o papel como visualização não trivial de eventos
cotidianos, inovando exaustivamente em temas já trabalhados27. Em obra

27 As imagens da série: “Exemplos figurados da medição artificial de aumento ou diminuição”, intituladas:


a.Chuva; b. Pagode no mar e c.Cidade, de Paul Klee, 1927, não estão disponíveis em domínio público
para a sua inclusão nesse estudo, mas podem ser vistas em: ARGAN, 1993, p. 322.

120 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Figura 44
Paul Klee, “Legend of the
Nile”, 1937
Fonte: Imagem de Domínio
Público. Disponível em: http://
uploads7.wikiart.org/images/
paul-klee/legend-of-the-
nile-1937(1).jpg!Large.jpg.

Figura 45
Frantisek Kupka, “Study in
Black and White”, 1924
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais/acadêmicos.
Fair Use. Disponível em: http://
uploads7.wikiart.org/images/
frantisek-kupka/study-in-black-
and-white-1924.jpg!Large.jpg.
posterior de Klee, “Legendo f the Nile”, 1937 (Figura 44), é possível observar
uma composição similar:

Na mesma linha encontra-se o trabalho de Frantisek Kupka, que busca sub-


verter as estruturas geométricas. Matematicamente, o triângulo é a forma
ligada ao equilíbrio e a estabilidade (três pontos não colineares determinam
um plano). Kupka ousa ao valer-se de uma figura geométrica tão rígida papa
produzir uma obra desestabilizadora, como em “Study in black and White”,
1924 (Figura 45). As propriedades do triângulo são levadas ao máximo,
saturadas, devolvem ao leitor um jogo de profundidades, uma quebra de
expectativas, sendo conduzido a movimentar “freneticamente” os olhos como
que em busca de “um ponto de apoio” que não existe.

Em “Diagonal Planes”, 1925 (Figura 46), Kupka faz com que cada plano envie
interaja com outros, mesclados por uma profusão de tons de verde, “saindo”
dos limites da tela, continuando além do chassis. Apesar de estarem presen-

Figura 46
Frantisek Kupka, “Diagonal
Planes”, 1925
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais/acadêmicos.
Fair Use. Disponível em: http://
uploads7.wikiart.org/images/
frantisek-kupka/diagonal-
planes-1925.jpg!Large.jpg .
122 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
tes muitos elementos da geometria euclidiana opera-se uma superação, na
medida em que Kupka utiliza-os para sair do convencional.

A mútua implementação ocasionada pela influencia dos números nas imagens


e das imagens nos números origina uma realidade outra, na qual a produ-
ção artístico-científica desobedece aos preceitos – até então – mais óbvios,
lançando os pesquisadores num turbilhão de dúvidas. Sorte, pois, como
ressalta Santaella, “A incerteza e a dúvida são os mais fortes componentes
da curiosidade” (SANTAELLA, 1989, p. 9); estes elementos terminaram por
contribuir para que se alinhavassem as bases de outras ordens. O homem
contemporâneo foi forçado a reconhecer “[...] o sentido avassalador, de quão
vasto, intratável e fora do controle individual ou mesmo coletivo tudo é”
(HARVEY, 1992, p. 315).

Números e imagens entrelaçam-se, confundem-se. Criam mundos virtuais,


universos “imateriais”28 e, mais que isso, traz a tona discussões impensáveis
anteriormente, cujas implicações éticas e estéticas provocam a geração e a
derrocada de alguns preceitos teóricos. Estudá-los significa entrar em contato
com uma série de questões movediças, para as quais falta até mesmo um
vocabulário capaz de “dar conta” do que está em pauta.

Não é a toa que muitos autores dediquem tão poucas páginas ao assunto
(veja-se o caso de David Harvey, que em seu livro, de cerca de 350 páginas,
Condição Pós-moderna, escreve apenas duas e meia páginas sobre “A obra de
arte na era da reprodução eletrônica e dos bancos de imagem”).

São notáveis algumas ligações entre números e imagens, matemática e arte,


desenhando percursos através dos quais ambos se tocam, se trocam, envol-
vendo desdobramentos filosófico-epistemológicos propiciados pela utilização

28 O termo “imaterial” padece de uma dessas confusões crônicas em nossa rede de conceitos. Frequente
encontra-se citações aonde a arte por computador ou a holografia, entre outros, são chamados de
imateriais. Levando-se em conta que a luz é o veículo suporte dessas manifestações e a luz já é
comprovadamente matéria (parte onda, parte partícula), então, nesse caso, imaterial só pode ser
escrito como uma metáfora. Quando se atribuem a tais manifestações o êxito de terem abandonado
a matéria, procede-se um corte, a meu ver equivocado e reducionista, pois a especificidade que lhes
permite “representar” o mundo diferente é de uma natureza bem mais complexa.

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 123
da computação gráfica e das técnicas de simulação/modelização, fundados
em modelos matemáticos.

Imagem numérica/ imagem calculada/ imagem de síntese/ hiper-imagem/


imagem virtual/ imagem potencial/ imagem interativa/ imagem manipulá-
vel/ imagem inteligente/ imagem real/ imagem objeto/ imagem banco de
dados/ imagem duplicatum/ imagem tangível/ imagem não-tangível/ imagem
ótico-química/ imagem eletrônica/ imagem tecnológica/ imagem/ imagem/
imagens. Imagem: retrato/quadro/semelhança. Imagem: ídolo.

Fisicamente, uma imagem é “[...] o resultado da interação de uma onda ele-


tromagnética (a luz do dia, por exemplo) com uma ‘onda material’ (o objeto)”
(QUÉAU, 1986, p. 110). A palavra imagem, entretanto, ultrapassa a significação
física e recebe outras atribuições, como ressalta poeticamente Paul Valéry:
“Uma imagem é mais que uma imagem e, talvez, mais que a coisa mesma,
onde a imagem se dá”. Tanto que as imagens sempre estiveram presentes na
história da humanidade, ocupando um espaço importante na caracterização
de cada sociedade.

Em “Woman encircled by the flight of a bird”, de Juan Miró, 1941 (Figura 47),
recompõe o voo de um pássaro ao redor de uma mulher, condensando
espaço-tempo em um jogo de linhas de força.

“Em algumas civilizações o que vem primeiro são certas figuras. No pa-
ganismo [...] o que existia inicialmente eram os ídolos. Eram, portanto
imagens, estátuas em torno das quais o texto se desenvolvia” (BUTOR,
1992, p. 30-36). As imagens, nesse caso, obedecem a uma característica
essencialmente estática, funcionando, quase sempre, como objeto de culto:
ídolos, ícones, totens, santos, deuses (como, por exemplo, acontecia com
a figura de Tumi, articulada a narrativas que cercavam as cerimônias de
sacrifícios na civilização incaica do Peru – Figura 48).

Concomitantemente, o culto das imagens tem deixado de encontrar espaço


somente nas esferas mítico-religiosas, ganhando especificidade própria.
Argumentações acostumadas a um enfoque metafísico-transcendental
reagrupam-se, são tomadas por disciplinas nas quais antes não caberiam,

124 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Figura 47 Figura 48
Juan Miró, “Woman Imagem de Tumi
encircled by the flight of a Fonte: Imagem disponível
bird”, 1941 para fins não comerciais/
acadêmicos. Fair Use. Disponível
Fonte: Imagem disponível para
em: By Sean Pathasema/
fins não comerciais/acadêmicos.
Birmingham Museum of Art,
Fair Use. Disponível em: http://
CC BY 3.0, https://commons.
uploads2.wikiart.org/images/
wikimedia.org/w/index.
joan-miro/woman-encircled-by-
php?curid=16278253.
the-flight-of-a-bird.jpg!Large.jpg.
vêem-se arroladas a outros repertórios, sofrem novos tipos de análise e
interpretação. A presença do elemento tecnológico reconfigura as práticas,
as técnicas de tratamento da imagem, remodelando-a quer como repre-
sentação de uma estrutura atômica, quer como motivo da criação artística.

O entalhe, o traço, a pincelada, meticulosos e artesanais, receberam um


primeiro impacto quando do aparecimento de um surpreendente meio de
composição de imagens: o fotográfico, capaz de trazer à terra retratos de
um universo distante, inacessível, enviadas do espaço, permitindo o alarga-
mento de nosso horizonte visual. A partir de então, as “paisagens” viram-se
sucessivamente recortadas pelos olhos da perspectiva clássica, albertiana,
que fundamenta o mecanismo da câmera. Inaugurou-se, então, uma era na
qual o homem estaria irremediavelmente ligado aos artefatos fotográficos.
A foto, de recordação, registro, destinada ao aconchego de álbuns e porta-
-retratos, passa a ser imprescindível no cotidiano da vida urbana. Veiculada
em jornais e revistas constituiu-se em fonte de informação; anexada aos
documentos chega a ser mais importante do que a pessoa que retrata: a foto
do R.G., por exemplo, valida quem a porta. A palavra – o verbo – não mais
serve como único meio de sustentação. A linguagem verbal sofre um abalo:
o documento verbo-visual (nome + imagem) é que possui força de aceitação
jurídica e institucional.

A fotografia foi inicialmente considerada como uma forma de representa-


ção extremamente fiel ao objeto. Fiel mas bidimensional, tanto que tribos
primitivas não conseguem associar o que vêem revelado sobre um papel
quimicamente preparado à sua própria pessoa, na verdade aprendemos a ver
na bidimensão a tridimensão, trata-se de uma construção sobretudo cultural.
Estática, a foto é sempre prisioneira de um tempo que já passou: o instante
em que o botão da câmara foi clicado.

Aproximando-se, em parte, de nossa dinâmica visual, mas ainda ligado a um


tempo já vivido, o cinema, como o próprio nome já diz, conta com a possibili-
dade do movimento. A sucessão rítmica, matemática, de fotogramas (aliada
à persistência da retina) cria uma ilusão, a qual vem somar-se um quadro de
intensas mudanças sociais contribuindo para que durante praticamente um

126 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
século, o cinema fosse a forma de expressão mais elástica, atingindo milhares
de pessoas, transpassando barreiras e atingindo grandes massas.

Na sua esteira vieram a televisão e o vídeo (imagens ótico-eletrônicas)


ingressando na era da simultaneidade. O tempo já não é mais o anterior,
é o agora. Eles permitiram que se pudesse visualizar a velocidade e, como
lembra Paul Virilio: “A velocidade é iluminação do mundo [...], a alavanca
do mundo moderno” (VIRILIO, 1989, p. 163): cavalos correndo, trens, car-
ros, aviões, naves espaciais e até mesmo mísseis a caminho da destruição.
Outros aparatos, outras linguagens, outras percepções, como já o fazia o
movimento futurista no início do século XX (Figura 49).

Figura 49
Giacomo Balla, “Abstract
Speed”, 1912
Fonte: Imagem disponível
para fins não comerciais/
acadêmicos. Fair Use.
Disponível em: http://
uploads4.wikiart.org/images/
giacomo-balla/abstract-
speed-1913.jpg!Large.jpg.

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 127
A contemporaneidade traz a imagem sintética, digital, numérica, apontando
para um tempo não vivido, o tempo da possibilidade. Típicas do universo tec-
nológico distinguem-se das imagens ótico-químicas e ótico-eletrônicas, pois
podem preceder a existência do objeto mostrado, retratando-o enquanto é
apenas um “estado latente” ou, como pensa Couchot, é o “caráter numérico e
descontínuo da imagem informática que a distingue das demais” (COUCHOT,
1982, p. 57). Quero crer que, além disso, esse “terceiro tempo”, não o passado
nem o simultâneo, nem o da adivinhação, somado ao desenvolvimento de
lógicas simbólicas complexas e a modificação parcial da perspectiva suporte
do olhar, pode encontrar na geração de imagens numéricas, espaço para uma
produção completamente diferente das demais.

Sintetizar a imagem significa compô-la a partir de dados numéricos, matrizes


e equações, mas as bases que sustentam tais imagens vêm mudando (embora
não reneguem completamente, a geometria euclidiana e a lógica aristotélica).
Para Pitágoras, todas as coisas eram constituídas por números, corpúsculos
formadores da matéria. Imaginava os números como pontos que determinam
formas, o que remete para a própria definição de imagem numérica de síntese:
“Não é mais a projeção ótica de um objeto pré-existente, mas a visualização
de um modelo numérico que simula o objeto» (POPPER, 1989, p. 150).

Objetos são decompostos em números; números modelam objetos existentes


ou não. «Ao objeto referencial não corresponde mais uma imagem-
duplicatum, mas uma série quase infinita de imagens, todas parecidas e
diferentes” (COUCHOT, 1982, p. 62).

Dentro dessa ótica “tudo é número”, mas também é muito mais que núme-
ro. A matemática e a geometria fornecem uma concepção, uma maneira de
interpretação da realidade, procurando, com “régua e compasso”, resolver
os problemas da humanidade.

A geração de imagens tecnológicas requer o tratamento conjunto de concei-


tos matemáticos, sem os quais não podem ser concebidas: “Uma imagem
numérica é uma imagem composta ponto a ponto [...], por certo número
de elementos descontínuos e determinados numericamente, totalmente

128 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
matrizáveis” (COUCHOT, 1992, p. 56-57). Esta primeira definição de imagem
numérica dialoga de imediato com um conceito básico: o de ponto. Não se
costuma definir ponto; embora seja freqüentemente empregado permanece
como um postulado, abstrato e adimensional; pode-se chamar qualquer coisa
de ponto29, desde que se estabeleça uma referência (ponto de partida, ponto
morto, ponto final, etc). O ponto transmite a ideia sem transmitir a imagem.
A partir de dois pontos, temos uma direção e dois sentidos, temos uma
reta, segundo a definição tradicional, imanipulável, porém mensurável.
A reta não ocupa espaço, mas organiza os espaços. Um conjunto de retas
(ou de no mínimo três delas) com determinadas propriedades, determina
um plano, uma espacialidade. Para se reconhecer esta espacialidade é
necessário obter uma identidade, transformar o espaço em forma, isto é,
conferir-lhe uma dimensão, uma proporção e uma estrutura.

Uma forma é um conjunto perceptivo composto por: cor, luz e configuração.


Segundo o pesquisador Michel Bret (1988) a imagem digital é possuidora de
“habilidade para simular o universo tridimensional” (p. 4), neste caso, substitui
partículas de grafite por partículas de luz, papel por tela de computador, cor
pigmento por cor luz, além de viabilizar a interação e manipulação.

A imagem virtual volta-se para uma função demiúrgica, tomando para si a


capacidade de modelar diferentemente os universos em que nos encontra-
mos encerrados. São, pois, limite, fronteira, espaço de fase, trânsito, entre o
“material” e o “imaterial”, o “real” e o “virtual”. Números e imagens juntos
criaram um novo campo de produção. Assustador, já que toca em pontos
delicados, como a modificação no significado da palavra real.

O assunto não é novo, mas o modo como é questionado e trabalhado, sim.


Dessa forma, observa Júlio Plaza:
A imagem sintética gerada por computador se lança num espaço
no qual se modula, como ocorria do outro lado do espelho de Alice,
quer dizer, em um mundo onde a capacidade de transformação não

29 Na imagem sintética o ponto é representado pelo “pixel”, como uma espécie de “unidade mínima de
significação”.

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 129
tem limites. Ao mesmo tempo, os signos eletrônicos – essa escritura
imaterial – invadem nossa cotidianidade, desfilando em nossas telas
de TV e deixando seus traços em nossas mentes (PLAZA, 1990, p. 98).

Parece-me arriscado falar na ausência completa de limites, mesmo porque


seria extremamente ingênuo isentar de condicionantes materiais qualquer
forma de produção. Percebe-se, atualmente, um direcionamento cada vez
mais forte para a desconstituição das fronteiras, tanto no que se refere às
fronteiras entre campos do saber, quanto às fronteiras entre-países, fundadas
na internacionalização da economia e os estabelecimentos de redes de comu-
nicação imersos no que se tem chamado de globalização. Entretanto, embora
não seja objeto desse trabalho, essa globalização tem que ser vista de modo
bastante crítico, levando em consideração às implicações dela decorrentes em
função da inserção diferenciada de cada país nessa nova “ordem mundial”.

O momento é tão aflitivo quanto aquele que precedeu a época das grandes
navegações: o homem temia despencar de um planeta plano. Hoje os abis-
mos são outros, buracos negros desconhecidos, inimagináveis. A percepção
digital deve associar-se a uma mudança radical de mentalidade, para além
da «ordem visual própria da cultura ocidental, que se pode definir como a
ordem da ‘re-presentação’” (COUCHOT, 1990, p. 60), ingressando na ordem
do intangível, mas de um intangível cuja natureza não é metafísica, mas de
uma abstração complexa. “A imagem de síntese não representa mais o real,
ela simula” (COUCHOT, 1990, p. 85), coloca o homem dentro do quadro, faz
com que deixe de ser expectador para participar da cena, obriga-o a intera-
gir, a reagir, a desviar de números que partem em direção de seu corpo, tão
reais quanto bolas de tênis, insetos ou naves, confundindo os sentimentos,
obrigando-os a uma «defesa». A realidade virtual paralisa, desarma, deixa
perplexos todos os que tomam contato com ela. Será possível no futuro rea-
lizar o irrealizável, o que não passava de sonho, como já é possível voar num
caça F-16 ou manejar um submarino atômico. As interfaces espacializam-se
tanto que é difícil imaginar o ponto a que possam checar.

Além de tudo, como afirma Couchot (1990), “As imagens numéricas são
eternas” (p. 121), quer dizer que não mais se pode falar em cópias, são todas

130 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
imagens originais; a informação virtual é sempre original, não degenera,
mantém a qualidade de seus atributos mesmo quando multiplicada ao in-
finito. Quando Couchot (1990) afirma serem as imagens numéricas eternas
faz, acima de tudo, um exercício de “futurologia”; não se sabe ao certo até
que ponto podem permanecer inalteradas com a ação do tempo. Ao acentuar
hiperbolicamente a durabilidade mostra seu fascínio pela permanência, pela
conservação de conjuntos de bits. Daqui a alguns séculos talvez seja possível
avaliar essa “eternidade”.

Aliás, possível e impossível são noções relativas, transitórias, em constante


reformulação. As questões ligadas a arte por computador, a utilização de sis-
temas de hipertexto, programação de computadores para produção artística,
realidade virtual, permanecem ainda em estado de wireframes (estruturas de
arame, uma espécie de esqueleto que estrutura o objeto, mas não o mostra
em sua forma acabada).

Uma das formas de apresentar a relação matemática/arte é fazer uma leitu-


ra de uma área recente, mas que vem ganhando um espaço importante no
conjunto das produções contemporâneas: o cinema eletrônico.

O cinema eletrônico é um desses espaços críticos, como chama Virilio (1989),


tensos, operando no limite das linguagens, típica concepção contemporânea,
híbrida, onde é difícil discernir imediatamente os domínios de cada campo.

Por isso mesmo, falar do cinema eletrônico implica sempre num risco, per-
tinente a tudo aquilo de que se trata sem ter ainda parâmetros claramente
estabelecidos. O cinema eletrônico integra-se às discussões sobre arte via
computador, “numerizada”, montada sobre a “mais pesada” matemática. Sua
similitude intensifica-se ao pensarmos na afirmação do poeta Murilo Mendes,
“só não existe o que não pode ser imaginado”.

Nessa aventura, muitos fatores aparecem, tornando o olhar-leitor uma


espécie de bio-câmera, aflita por “dar conta” da multiplicidade que se
apresenta na tela.

A imagem cinematográfica, os recursos da – poderosa – edição em vídeo,


técnicas de computação gráfica inserindo textos e caracteres gráficos, pulsam

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 131
diante dos olhos com uma intensidade táctil, ferindo a retina e movimentando
regiões do cérebro inalcançáveis pelos meios tradicionais.

Diante dessa tempestade, “ver o filme” significa, mais uma vez, “ler o filme”,
numa leitura escultórica, implicada às referências de cada pessoa e, especial-
mente, a sua visão de mundo, o que, se não é novo enquanto modo de ver o é,
certamente, enquanto processo. Ao conceber a película o cineasta deve fazer
uso de uma lógica diferente, distante da lógica formal, considerando o con-
teúdo como parte da forma, pensando não trivialmente, mas complexamente.

Destaco, dentro desse universo, a aparição do texto escrito, fundido, confun-


dido ao restante do texto. O código alfabético, graficamente rico, surge fora de
sua condição hegemônica, movendo-se não linearmente, reescrevendo-se na
tela, reorganizando sua sintaxe, passando a mexer com o público, com seus
modos de interpretação do verbal (como acontece em “Prospero’s Book”, de
Peter Greenaway, 1991, Figura 50). Tal (con) fusão inebria o expectador que se
vê diante de uma proliferação de recursos aparecendo simultaneamente nas
grandes dimensões da tela dos cinemas ou em pequenas televisões. Janelas e
mais janelas abrem-se na tela, micro-narrativas simultâneas: interagem; a tela
não se reduz a uma superfície plana, ganha volume e dimensões incontáveis.

Vivemos um momento em que se busca, em todas as áreas, a produção


conjunta e inter-relacional. A exemplo dos sistemas multimídia, que operam
simultaneamente som, imagem e texto, cada vez mais próximos da intera-

Figura 50
Peter Greenaway, Frame do
filme “Prospero´s Book”, 1991
Fonte: Frame retirado de
“Prospero´s Book Fair Use
Clip”. Imagem disponível
para fins não comerciais/
acadêmicos. Fair Use. Disponível
em: https://www.youtube.com/
watch?v=46SmncwWVM0.

132 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
tividade, setores tradicionalmente mais “carrancudos”, no que toca a este
contado, estendem suas sondas por campos diferentes e inovadores. A física
vale-se da imagem de síntese para visualizar ocorrências no espaço sideral,
simulando a criação do universo. A matemática busca um meio de “ver”
dimensões “invisíveis”. A biologia cria moléculas virtuais.

Diante de tal fato, o cinema eletrônico ao juntar o texto gráfico/verbal com


as cenas mostradas, procura por fim a uma forte dicotomia, separando texto
e imagem no cinema. A reconciliação dos dois, apoiada pela tecnologia,
inaugura um sem número de possibilidades combinatórias, garantindo a este
modo de fazer cinema, espaço e contigüidade.

Lucrécio afirmava que “[...] as letras eram átomos em continuo movimento,


que com suas permutações criavam as palavras e os sons mais diversos”
(CALVINO, 1993, p. 39). A comparação acima expressa, revela uma preocu-
pação de certa forma cinematográfica, conferindo movimento aos quase
sempre estáticos sinais da escrita.

A cinematografia (escritura do movimento) “Encontra na mídia eletrônica, a pos-


sibilidade de recuperar a linguagem gráfica” (CALVINO, 1993, p. 90) fazendo-a,
como queria Lucrécio, exercer toda sua potencialidade de átomos lingüísticos.

Até então o texto aparecia no cinema como complemento, na tentativa de


superar a ausência do som, ou como uma narrativa paralela, acrescentando
dados ao enredo desenvolvido (Figura 51).

Figura 51
Cecil B. DeMille, Frames
extraídos de “The Cheat”, 1915
Fonte: Imagem de Domínio
Público. Public Domain Full
Movies. Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=-
IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
eExydVWC00. 133
Mantinha-se, dessa forma, um distanciamento entre texto e imagem. No cine-
ma mudo, contrapunham-se, havia um corte da imagem para o texto e deste
para a imagem. Entretanto, a linguagem empregada, por assim dizer, passível
de entendimento, em grande parte, sem a preocupação com as barreiras da
língua. No início do cinema falado os filmes americanos eram exportados
numa versão silenciosa, mantendo as características básicas do cinema mudo.

O som traz as legendas, que não dialogam com o que a tela exibe, ao contrário,
travam uma luta pela atenção do expectador, que não sabe se lê o texto escrito
ou o cinematográfico, as legendas são antes de tudo interferência (Figura 52).

O cinema eletrônico instaura uma era, por assim dizer, onde texto e imagem
se (con)fundem, originando uma composição que conta com a especificidade
do verbal e do visual.

Nas artes plásticas o texto aparece de modo mais marcante a partir de


Toulousse-Lautrec, em seus cartazes, incorpora o formato das letras à
composição dos desenhos, um “m”, por exemplo, poderia originar a saia
de uma bailarina assim como um “j” esboçaria uma sombrinha (Figura 53).

Paul Klee insere um “F” em “The Chapel”, 1917, “escreve” em “Once Emerged
from the Gray of Night”, 1918 e destaca um “R” em “Ville R”, 1919 (Figura 54).

Figura 52
Frame legendado da
entrevista “Cinema is dead,
long live Cinema” proferida
por Peter Greenaway na
Humboldt-Universtät em
Berlim, fevereiro de 2007
Fonte: Imagem de Domínio
Público. “Fronteiras do
Pensamento”. Disponível em:
https://www.youtube.com/
watch?v=zbhXug5OigU .

134 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Figura 53
Toulouse-Lautrec, “Avril”, 1893
Fonte: Imagem de Domínio
Público. Por Henri de Toulouse-
Lautrec, Domínio público.
Disponível em: https://commons.
wikimedia.org/w/index.
php?curid=1471809.
Figura 54
Paul Klee: “The Chapel”,
1917; “Once Emerged from
the Gray of Night”, 1918;
“Ville R”, 1919
Fonte: Imagens de Domínio
Público.
https://www.wikiart.org/
en/paul-klee/the-chapel-
1917?utm_source=returned&utm_
medium=referral&utm_
campaign=referral.

https://www.wikiart.org/en/
paul-klee/once-emerged-
from-the-gray-of-night-
1918?utm_source=returned&utm_
medium=referral&utm_
campaign=referral.

http://virusdaarte.net/wp-
content/uploads/2016/08/vir.jpg.
Picasso conversa com os tipos do jornal em várias telas: “Bottle, glass, violin”,
1912; “Guitar, Sheet music and Wine glass”, 1912 e “Student with newspaper”,
1913, entre outras telas em que letras e números invadem a geometria cubista
e nela se inserem perfeitamente (Figura 55).

Tais citações permitem observar que não se trata de uma incorporação aditiva
do tipo texto+imagem, ao contrário, cada letra é também uma pincelada, uma
forma, que, por sua vez, remete a um dado contexto.

Figura 55
Pablo Picasso, “Bottle,
glass, violin”, 1912; “Guitar,
Sheet music and Wine
glass”, 1912 e “Student with
newspaper”, 1913
Fonte: Imagens disponíveis para
fins não comerciais/acadêmicos.
Fair Use. Disponíveis em:
http://uploads0.wikiart.org/
images/pablo-picasso/bottle-
glass-violin-1912.jpg!Large.
jpg ; http://uploads5.wikiart.
org/images/pablo-picasso/
guitar-sheet-music-and-wine-
glass-1912.jpg!Large.jpg ; http://
uploads3.wikiart.org/images/
pablo-picasso/student-with-
newspaper-1913.jpg!Large.jpg.
Com o final da Segunda Guerra Mundial, 1945, surge na França, principalmen-
te, o movimento chamado “Letrismo”, que emprega o uso de letras e palavras
pelo seu valor gráfico-visual. Exemplos aparecem em: Jacques Villeglé, “Les
Ternes (Lettres Jaune sur Fond Rouge)”, 1957 (Figura 56) e Mira Schendel:
“Untitled (Alle)”, 1965 e “Untitled (Toquinho)”, 1965 (Figura 57).

Importar elementos de outras áreas foi condição fundamental para a estética


da condensação que se instaura nos limiares das telas. O significado não está
nas imagens, mas sim nas relações entre as partes, entre os detalhes, na sín-
tese, na edição, na junção de planos diferentes, na busca por uma imagem
instável, reciclada, colada e adulterada.

Figura 56 Figura 57
Jacques Villeglé, “Les Ternes Mira Schendel, “Untitled
(Lettres Jaune sur Fond (Alle)”, 1965 e “Untitled
Rouge)”, 1957 (Toquinho)”, 1965
Fonte: Imagem disponível para Fonte: Imagens disponíveis
fins não comerciais/acadêmicos. para fins não comerciais/
Faire Use. Disponível em: http:// acadêmicos. Faire Use.Disponível
uploads3.wikiart.org/images/ em: http://uploads2.wikiart.org/
jacques-villegl/les-ternes-lettres- images/mira-schendel/untitled-
jaune-sur-fond-rouge-1957.jpg. alle-1965.jpg!PinterestLarge.
jpg; http://uploads6.wikiart.
org/images/mira-schendel/
untitled-toquinho-1970.
138 jpg!PinterestLarge.jpg.
IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Multiplicidade é a palavra do momento, tudo está sendo colocado em rela-
ção: simultaneidade de informações, trama complexa, busca sem tréguas
de eventos relacionáveis, acompanhando o “[...] percurso velocíssimo dos
circuitos mentais que captam e reúnem pontos longínquos do espaço e do
tempo” (CALVINO, 1993, p. 61).

Na enxurrada de bits em alta velocidade Antonio Muntadas cria, em 1982,


“Media Ecology Ads” (Figura 58), onde um gerador de caracteres faz correr
de uma torneira aberta palavras em alta velocidade. As palavras “perdem”
significado e significante na intensa similitude que estabelecem com a água,
liquefazem-se e escorrem diante de olhos perplexos, ao mesmo tempo em

Figura 58
Frame retirado de “Media
Ecology Ads”, Antonio
Muntadas, 1982
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais/acadêmicos.
Faire Use. Disponível em:
http://catalogue.li-ma.nl/
site-2013/?page=%2Fsite-
2013%2Fart_play.
php%3Fid%3D264.

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 139
que propiciam uma “renovação das coordenadas espaço-temporais do
imaginário” (BALZOLA, 1989, p. 51).

O imaginário é solicitado a fazer uma leitura mais densa, passando por


diferentes níveis de realidade, “a escritura digital que, subtraindo a co-
municação do vínculo de uma realidade originaria de reproduzir com o
máximo de realismo possível, a transforma em resultado tecnológico da
operatividade do modelo lógico-matemático” (FICHERA, 1989, p. 7), o que
significa um novo alento para a produção cinematográfica contemporânea.

Para Guatarri (1992) o trabalho com o computador “[...] conduz a produção


de imagens abrindo para Universos plásticos insuspeitados” (GUATARRI,
1992, p. 15), como pode ser visto na produção de Peter Greenaway.

Com Peter Greenaway a palavra renasce no cinema, ressuscita-o. Ele transita


do kino-glaz de Vertov ao olhar-video contemporâneo. De Vertov deve ter
lido seus manifestos, em nome do “Conselho dos Três”, tais como este: “Eu
sou o cine-olho. A um, tomo os braços, mais fortes e habilidosos, a outro
tomo as pernas, mais bem feitas e mais velozes, ao terceiro a cabeça mais
bela e expressiva e, graças à montagem, crio um homem novo, um homem
perfeito” (VERTOV, 1941, apud GRANJA, 1981, p. 43). E assim o faz, toma
um braço do cinema, outro do vídeo, pernas da matemática, cabeça das
artes e monta um cinema que muda o olhar, mas muda também o olho.

O fascínio que tem pelo texto está sempre presente, mesmo antes de in-
corporá-lo explicitamente; fez referências constantes a literatura e ao texto
escrito, como em: “O Cozinheiro, o ladrão, sua mulher e o amante”, 1989,
que tem como personagem principal um livreiro que lê livros num restau-
rante. Nesse filme, também a marcação do tempo é feita através de uma
sucessão de cardápios diários que tomam toda a tela, mostrando o dia/ o
prato do dia (Figura 59). Os caracteres usados para compor o cardápio foram
escolhidos de modo a fazer parte da cenografia, interagindo com ela. Estes
aspectos como tantos outros que poderiam ser retomados demonstram que
nos procedimentos de Greenaway nada é gratuito.

140 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
O mesmo acontece em “Afogando em números”, 1988, números vão surgindo
e “contando” a estória. O “2” pode estar escrito numa banheira, o “14” no
suporte de um telefone, o “13” na parede de um celeiro e assim por diante
(Figura 60).

Nesses dois filmes não havia a utilização do computador nem da edição mais
requintada das modernas ilhas de vídeo, mas, mesmo assim, as diretrizes que
viriam nortear os trabalhos seguintes se fazem presentes. Com a utilização
da tecnologia, a potencialidade latente observada anteriormente encontra
uma forma de expressão, resultando numa gama infinita de combinações.

Em “M is for man, music and Mozart”, 1991, movem-se, veloz e enciclopedi-


camente, dezenas de palavras iniciadas pela letra “M” (Figura 61). Acontece,

Figura 59
Frame retirado do trailer de
“O Cozinheiro, o ladrão, sua
mulher e o amante”, 1989
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais/acadêmicos.
Faire Use. Disponível em:
https://www.youtube.com/
watch?v=XprA_HPqST8.

Figura 60
Frame retirado do trailer
de “Afogando em números”,
1988
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais/acadêmicos.
Faire Use. Disponível em:
https://www.youtube.com/
watch?v=oTLfuOQRiEI.
IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 141
Figura 61
Imagem de divulgação de
“M is for man, music and
Mozart”, 1991
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais/acadêmicos.
Faire Use. Disponível em:
http://petergreenaway.org.uk/
mmm.htm.
então, um fenômeno de libertação do texto, como explica Lucrécia D’Aléssio
Ferrara: “[...] o texto verbal liberta-se da sucessão gráfica dos caracteres e
adiciona-se aos índices dispersos” (1981, p. 20), formulando um novo contexto
em conjunto com a imagem.

“A Última Tempestade” (“Prospero´s Book”), 1991, já mencionado no início do


capítulo, inspirado num clássico de Shakespeare, reúne, entre outros objetos,
livros manuscritos, copiados à bico de pena, mostrados detalhadamente ou
em alta velocidade, imbricados com elementos contemporâneos em contato
e mútua citação. A narrativa envereda, como nos textos de Jorge Luis Borges
(1969), por bibliotecas labirínticas, imaginárias, repletas de livros que nunca
existiram. Transparente, a tela deixa entrever camadas sobrepostas, uma
delas reveste-se de uma caligrafia gótica, digna de um copista medieval,
desenhando delicadas formas que reescrevem o enquadramento da cena:
A tempestade cinematográfica de Greenaway tenta reproduzir pode-
ríamos dizer ritualisticamente, na medida em que busca recuperar a
dimensão ritual que o teatro e também o cinema de hoje em grande
parte perderam, através da tentativa de por em concreto, aliás,
como acontece em todo rito, o diagrama qualitativo da passagem
de “caos” ao “cosmo” – esse momento seminal e convulsivo, em
que a desordem da origem experimenta o partejamento da ordem
(SEGOLIN, 1994, p. 60).

“Quem entrar aqui, abandone toda a esperança”, está escrito numa tabuleta à
porta do “Inferno” de Dante. O aviso serve para aqueles que se aventurarem
pela “TV Dante”, 1993, série produzida por Tom Phillip e Peter Greenaway
(Figura 62), para ser apresentada em capítulos na televisão, a “mania” classifi-
catória e enciclopédica de Greenaway é levada às últimas consequências, sua
fixação em dicionários, números, caligrafias, alfabetos, mapas, associam-se
a um texto repleto de citações, cenas, personagens, sons, cores, enfim, um
“inferno” queimando a retina.

Como se não bastassem os elementos citados, surge também uma versão


de “notas de rodapé falada” (recurso que invejava e por isso apropriou do
texto escrito), com diferentes especialistas falando e explicando trechos e

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 143
Figura 62
Imagens de divulgação da
“TV Dante”, 1992
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais/acadêmicos.
Faire Use. Disponível em:
http://petergreenaway.org.uk/
dante.htm .
dados relativos ao “Inferno” da “Divina Comédia”. Esse trabalho merece a
denominação de plural, com uma preocupação em intercambiar linguagens
e originar um produto absolutamente não linear.

No cinema de Greenaway a palavra adquire uma virtualidade vertiginosa,


atingindo um âmbito tri-dimensional que se soma ao seu aspecto gráfico,
sonoro, significante. Nunca se contenta com os dogmas existentes, derruba-os
e depois os ultrapassa. Na Bienal de Veneza, 1993, montou uma instalação,
denominada “Watching Water” (Figura 63), na casa do estilista Mariano For-
tuny, transformando a casa/ateliê do artista num cenário cinematográfico.

Enfim, melhor do que ninguém, Greenaway caracteriza a fragilidade dos


limites estabelecidos, deliciando-se em juntar o novo e o antigo, o “vulgar”
e o “erudito”, o para sempre e o nunca mais.

O cinema eletrônico é, sem dúvida, um território movediço, onde poucos se


arriscam. A possibilidade de trabalhar em conjunto diferentes setores colabora

Figura 63
Imagem de divulgação do
catálogo “Watching Water”,
1993
Fonte: Imagem disponível para
fins não comerciais/acadêmicos.
Faire Use. Disponível em:
http://www.anobii.com/books/
Peter_Greenaway._Watching_
water._Catalogo_della_mostra_
%28Venezia,_1993%29/97888
43544578/019d29ad539b1bef52.

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 145
para a diminuição da acirrada disputa existente entre a secular hegemonia
do verbal e a força da visualidade contemporânea. Vai tornando-se claro que
“[...] os diferentes registros semióticos que concorrem para o engendramento
da subjetividade não mantém relações hierárquicas obrigatórias, fixadas
definitivamente» (GUATARRI, 1992, p. 11), o modo de produção multicompo-
nencial abriga instâncias múltiplas, todas concorrendo de igual para igual na
obtenção de um resultado final.

O limite imagem/texto dilui-se, fragmenta-se, afinal, existem épocas para


estabelecer limites e outras para quebrá-los (Figura 64).

Figura 64
Peter Greenaway,
“Last Supper”, 2010
Fonte: Imagem de divulgação
“Park Avenue Armory”. Fonte:
Imagem disponível para fins
não comerciais/acadêmicos.
Faire Use. Disponível em: http://
www.armoryonpark.org/photo_
gallery/slideshow/last_supper_
peter_greenaway.
146 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Matemática e arte aproximam-se/afastam-se paradoxalmente, entrecruzam-
-se, embatem-se; pensá-las próximas pede um tratamento conjunto, plural,
criativo-desvelador.

O nexo de ligação encontra raiz nas bases fundadoras de ambas, quando


se percebe a possibilidade de “arrancar” da matemática “arte” e da arte
“matemática”. É pouco pensar em complementação, posto que vão além,
imbricam-se.

Apesar de se tratar de um trabalho de cunho muito pouco conclusivo, voltado


antes para a realização de uma proposta dedicada a colocar em relação campos
e códigos aparentemente distantes, emergem algumas considerações cabíveis
de apresentação, não a título de fechamento, mas de instigação.

Muitos dos estudos consultados limitam-se a relacionar matemática e arte


sob o ângulo da desconstrução da armadura geométrica estruturante da obra,
sem deter-se nas implicações subjacentes ao esquema escolhido e empregado
em sua construção.

Dessa preocupação exagerada, não digo que não seja importante, com linhas
e pontos de fuga, configurações elípticas ou circulares, intersecções de figuras
geométricas, resultam estudos que visam revelar formas ocultas, assumindo
uma postura formalista, presa/restrita a um exame interno da obra. Um pro-
cedimento necessário, embora insuficiente, posto que desconsidera aspectos
externos à obra, cuja contextualização pode alterar significativamente a
relação entre forma e conteúdo e consequentemente, engendrar uma com-
preensão mais complexa.
Esse tipo de análise deve considerar simultaneamente os elementos internos e
externos sem o que poderia incorrer-se num tratamento unilateral, separando
aspectos interligados radicalmente. A própria fronteira entre o que é conside-
rado interno ou externo aparece como extremamente sutil, obrigando a um
pensar radical que se opera na transformação dessas noções, relativizadas e
tratadas não como opostos irreconciliáveis, mas interligados.

As modificações sincrônico/diacrônicas ocorridas no contexto histórico em


que uma produção artística ou científica foi concebida são extremamente
importantes para entender a adoção/rejeição de um estilo.

Ao proceder algumas aproximações entre ciência e arte pude perceber a


constante recorrência de estruturas do pensamento, que num dado momento
histórico atravessam fronteiras, presentificando-se tanto numa obra de arte
quanto numa teoria científica. Veja-se o caso da ciência do caos, tomada
muitas vezes como panacéia, utilizada de modo restritivo, fazendo do acaso
uma “causa”, de onde provêm “todos” os “efeitos” conformando-o a uma
ordem muitas vezes a um determinismo positivista-mecanicista.

Numa via de mútua implementação, a matemática e a arte em questão, devem


considerar proposições que procuram, a partir de uma maior complexidade,
problematizar dimensões histórico-epistemológicas mais adequadas aos
processos espaço-temporais.

Na direção acima apontada situam-se as geometrias não euclidianas, que


se apresentam entrelaçadas, e entrelaçadas estão aos aspectos socioeco-
nômicos, políticos e culturais de uma determinada época, afinal ambos são
construções históricas.

Percebe-se uma resistência a “abandonar” uma estrutura fundante que re-


monta aos gregos. A manutenção desse ideário não se constituiu unicamente
numa espécie de escolha ou opção, mas em função de ter atravessado
tempos-históricos através de exílios e reincorporações, embatendo-se com
novas proposições, num processo de cristalização, não obstante assumindo
roupagens diversas ou utilizando-se, muitas vezes, de recursos lexicais, como
o uso do “neo”, para as suas reedições.

148 IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS
Apesar das profundas transformações por que passaram e vêm passando as
diferentes civilizações, constata-se certa permanência, chegando quase a
beirar uma espécie de “naturalização” de esquemas de pensamento como no
caso da lógica aristotélica e da geometria euclidiana, que só recentemente,
pensando-se do ponto de vista secular, têm sido postas fractais, a física quân-
tica, a microfísica, as lógicas não-triviais, entre outras, apresentando-se no
acelerado desenvolvimento tecnológico que vêm alterando as bases técnicas
de pensar e vivenciar o cotidiano; em outras formas de procurar entender
o universo; nas manifestações artístico-culturais, enfim numa proposta de
revisão de campos filosófico-epistemológicos, pondo em relação áreas até
então tidas como excludentes.

Deteriora-se a segurança de um modo de pensar regido por um condiciona-


mento à criação/delimita-ção de superfícies onde “cabiam” todas as infe-
rências. A gênese do processo que se instaura encontrasse num âmbito mais
amplo, nas próprias bases materiais da vida contemporânea, cuja complexi-
dade das relações escapa ao olhar tradicional/tridimensional, requerendo um
assustador volume de novas interpretações, sempre vinculadas aos diferentes
domínios de articulação das atividades humanas. Quero dizer com isso, que
as transformações aqui apontadas não se dão de modo isolado, intradermi-
camente, mas ao contrário, refletem um estado de efervescência comum aos
campos histórico/econômico/político/social. Talvez a simples menção deste
elo não seja suficiente para conferir ao trabalho o indispensável embasamento
para com as questões supracitadas, entretanto, fica registrada a intenção de
manter sempre no mesmo plano todos os referenciais, uma vez que a análise
buscada pretende “ver” um pouco mais que as “três dimensões” do universo
em que nos encontramos recortados.

IMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENSENÚMEROSEIMAGENS 149
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