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espaço fronteiriço
Maria Ivonete Santos Silva
Maria Elisa Rodrigues Moreira
(Organização)
Literatura:
espaço fronteiriço
Copyright © dos autores, 2017.
182p. – (Acadêmica)
Inclui bibliografia.
ISBN (e-book): 978-85-92525-13-2
ISBN (impresso): 978-85-92525-14-9
CDD: 801.95
CDU 82.09
Entre ................................................................................................................. 11
Cássio Eduardo Viana Hissa
8
linguístico dos nomes próprios mexicanos – corpus recolhido de Tonila –
a necessidade de comunicação com o outro, por colocarem o sujeito nas
fronteiras de sua identidade: “El nombre próprio es suplantado,
desplazado, olvidado muchas veces; el apodo se convierte en un vertedero
de aspectos sociales, religiosos, culturales de los nombrados y los que
nombran”.
As reflexões de Maurício Guilherme Silva Jr. aproximam literatura
e política, discorrendo sobre o papel de Carlos Heitor Cony em época de
ditadura militar, ao denunciar os males sofridos pela arte nos “anos de
chumbo”. enquanto os ensaios de Mónica Bueno, Rosane Cardoso e
Maria Ivonete Santos Silva se desenham em torno da necessidade de
preservação da memória e do elogio do esquecimento como forma ativa
de reviver e de apontar os vazios dos acontecimentos. São analisadas
narrativas de resistência à ditadura na Argentina, pelos relatos de exilados
descritos por Mónica Bueno; regionalismos e construções enunciativas na
narrativa indiana peruana, por Rosane Cardoso; e o trabalho mais
específico da memória na obra do escritor Antonio Carlos Viana, com a
assinatura de Maria Ivonete Santos Silva.
Diante da multiplicidade de informações regida por rigoroso
espírito analítico, os ensaios que compõem Literatura – espaço fronteiriço
oferecem ao leitor prova mais que contundente do trabalho sério e
inovador que está sendo produzido no meio acadêmico latino-americano.
9
10
Entre
Cássio Eduardo Viana Hissa
1 Desconsidera-se, aqui, também, a distância entre o objeto e a imagem por ele formada.
A referida questão é tomada como exclusivamente pertencente à física e, particularmente,
ao campo da ótica. Entretanto, a presença da subjetividade e da cognição ‒ além de vários
outros processos relacionados às particulares experiências e histórias de vida dos sujeitos
‒ constrói compreensões variadas acerca da percepção dos objetos, da distância entre
eles e a imagem que formam em nós, assim como da própria distância entre eles.
2 Tal como aqui empregada, a imagem da existência dos olhos sintetiza a existência da
capacidade de ver ‒ não exatamente de olhar, mas de construir visões a partir de todos
os sentidos ‒, de nomear e de encaminhar significados aos objetos e ao seu mundo. Não
existiria, portanto, autônoma, a existência dos objetos e da distância que se estabelece
entre eles. Para ampliação de reflexões, sugere-se a leitura dos diversos ensaios contidos
na obra organizada por Adauto Novaes (1989) e da obra de Italo Calvino (1994).
11
portador de identidades entrecortadas, constituído por relações variadas e
de múltiplas naturezas.
A primeira abordagem à questão parecerá óbvia, mas, de todo
modo, poderá produzir reações: o espaço entre, por si só, pressupõe a
existência de um e de outro- ou de vários - que, por sua vez, são
supostamente distinguíveis. Mais adiante, já poderíamos pensar: caso se
considere o espaço entre como espaço vazio, território do nada e lugar de
ninguém, ele servirá mais como uma representação do limite. Entretanto,
como já se discutiu em abordagens à temática, a instituição do limite já
institui a fronteira. Nesses termos, o entre existe em decorrência da
existência de um e de outro ou de vários; ou seja, aquilo que separa atua,
simultaneamente, como aquilo que, em princípio, reúne ou faz misturar.3
Imaginemos o corpo no topo da colina a ver a cidade. Ver: o que
existirá entre o corpo -cérebro-mente4, olhos - e a cidade? Ver e ler a cidade:
o que haverá entre o cérebro-mente e uma ponta de lápis a deslizar,
articulando palavras e ideias, rabiscando croquis e traduzindo a processada
visão da cidade5 através do espaço em branco de uma caderneta sem
3 Portanto, para acessar interpretações mais aprofundadas por mim desenvolvidas acerca
da temática referente às fronteiras, sugere-se a leitura de Cássio Hissa (2002, 2008, 2011,
2013). Em analogia, poderíamos pensar outros estatutos que se criam simultaneamente,
como, por exemplo, razão e crise da razão, tal como concebidas por Francis Wolff (1996).
Por sua vez, Jacques Rancière (1995, p. 7) é importante referência para se refletir acerca
da natureza desse espaço entre: “partilha significa duas coisas: a participação em um conjunto
comum e, inversamente, a separação, a distribuição dos quinhões. Uma partilha do
sensível é, portanto, o modo como se determina a relação entre um conjunto comum
partilhado e a divisão de partes exclusivas.”
4 A separação entre cérebro/mente e corpo é também interrogada por Antonio Damásio
especialmente, no âmbito das culturas modernas e ocidentais. Muito do que aqui se refere
está contido em reflexões presentes em documentário produzido por João Jardim e
Walter Carvalho (2001). Ainda, breves notas soltas sobre a cidade: “Do alto, a cidade
pode ser vista como um tecido, cujo cuidadoso bordado parece desmanchar o labirinto
e os becos dos interiores urbanos. Do alto, emanam feixes de visão que gravitam em
torno de uma perpendicular. Procura-se desenhar a cidade, construindo o seu mapa
mental, espraiada em uma imagem delicada de recortes que se entrecruzam. Saliências,
volumes e curvaturas do desenho urbano, do alto, estão suavemente achatados, como se
estivessem transformados em blocos aplainados de imagem. [...] Mais do alto, ainda,
atravessada por rabiscos quase imaginados, a cidade já se transforma em névoa que
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pautas? O que haverá entre corpo e cidade - esta, por si só, explicitamente,
uma espécie de diversidade entrelaçada de corpos6 de variadas naturezas?
Uma representação de mundo7: superposições e interseções, desmedido
universo de ressonâncias entre células - complexas, por si, mas, sobretudo,
em suas ramificadas relações entre elas e o seu ambiente exterior; um
conjunto plural de silêncios e de vazios fabricados por ignorâncias, acasos
históricos, processuais ou efêmeros, espaço fronteiriço constituído de
excessos que também dizem o mundo.
Talvez, seja mesmo mais essencial do que a reflexão sobre mundos
aparentemente distantes - e que, paradoxalmente, se atravessam -, a
reflexão acerca do que os separa e, simultaneamente, do que os une. Está
posto para se pensar: o corpo-limite- que se faz corpo-fronteira- separador de
mundos é o mesmo que os agrega e, ao mesmo tempo, passo a passo, os
transforma.
II
redesenha os sons do mundo com o propósito, conforme José Miguel Wisnik (1989, p. 30),
13
No âmbito dos territórios, o limite está voltado para os seus interiores,
como se fosse um duplo de colchetes a encerrar aquilo que contém. Por
sua vez, a fronteira está voltada para os exteriores, como se desejasse ser
compreendida como um duplo de colchetes invertidos e de costas para os
territórios: à frente, fronte, front- originário do francês arcaico - tributários
do latim frons. O que está à frente já ultrapassou o limite demarcatório do
território que, por sua vez, aqui, já é empregado como metáfora de
diversos outros termos com significados variados, dentre os quais destaco:
mundos, lugares, espaço-tempo, corpos, eu, outro, ciências, saberes e
práticas.
Entre um corpo e outro - e demais outros -, há espaço que, por sua
vez, vai se fazendo como rizoma a partir de um e de outro, assim como
de demais outros. O que existirá, então, entrecortado, não é exatamente
um limite que separa, mas uma espécie híbrida de corpo atravessado - um
corpo-travessia, um corpo-passagem feito de atravessamentos - e alimentado
pelo trânsito de um corpo para outro e outros. Este corpo-travessia, corpo-
fronteira, é mesmo o entre: esse território de ocupação de espaços
intervalares entreum e outro que, por sua vez, também se modificam no
contato, pois, além de conceder a existência a um terceiro corpo, eles se
transformam na relação com essa espécie de terceira margem. Entretanto, esse
corpo que se vai construindo não é feito de limites, pois é espaço de
trânsito aberto. Caso pensemos uma epistemologia dos territórios
disciplinares, por exemplo, estaríamos diante de uma epistemologia que,
portanto, é por natureza disciplinar. Nesses termos, pensaríamos as
epistemologias disciplinares referentes aos diversos campos do
conhecimento científico: a cada campo - ou território do conhecimento -
corresponderia uma epistemologia particular que, por sua vez, abrigaria
reflexões acerca das parcelares histórias disciplinares, dos seus métodos,
metodologias e técnicas, práticas específicas de pesquisa e mesmo de
ensino, dentre tantos tópicos que dizem respeito às particularizadas
de “[...] extrair-lhes uma ordenação.” Não há som nem ruído, sem o silêncio. “O mundo
é barulho e é silêncio. A música extrai som do ruído [ruído do mundo] num sacrifício
cruento, para poder articular o barulho e o silêncio do mundo”, diz o pensador e músico
José Miguel Wisnik (1989, p. 32). O ruído e o som da música não são apenas mediados
pelo silêncio, mas, ainda, pela escuta criativa do sujeito. O silêncio está entre o ruído e o
som da música, assim como o sujeito que escuta e cria está entre ambos.
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epistemologias. Ao contrário do convencional e por oposição às tradições,
caso houvesse uma epistemologia do entre- desse corpo híbrido - haveria de
ser uma epistemologia aberta, uma epistemologia de fronteira.
Este espaço de trânsito aberto –entre- é produzido, no âmbito do
conhecimento científico, por campos aparentemente distintos. Pensemos,
por exemplo, esse espaço entre que se refere às temáticas urbanas: ele é
território aberto, uma espécie de contradição extrema que se faz no âmbito
da ciência, pois, para ele, além dos denominados conhecimentos
científicos, convergem saberes originários de variados campos: sociologia
urbana, geografia urbana, antropologia urbana, filosofia, biologia,
literatura, artes plásticas e visuais, economia urbana, psicologia social,
história, engenharias, arquitetura e urbanismo, dentre tantos outros, além
de variadas práticas sociais de caráter urbano. No entanto, há o que dizer
de muito importante acerca das referidas convergências. As disciplinas e
os saberes não são moventes, ou seja, não são precisamente eles que se
movimentam, mas os sujeitos do conhecimento e do saber. São eles que
fazem o trânsito e que ocupam os espaços fronteiriços. São eles que
compreendem mais o seu campo disciplinar quando estão em trânsito ou
povoando espaços exteriores aos territórios aos quais, em princípio,
julgam pertencer. É deles o trânsito que faz o suposto trânsito da
disciplina. Por sua vez, este espaço entre- este entre-lugar ou entre-território- é o
espaço da invenção, da aventura do conhecimento e dos saberes, da
entrega plena, do improviso, de uma espécie de espaço de jazz a mobilizar
todas as práticas e processos criativos; é exatamente esse espaço de
abertura que possibilita a mais ampla transformação de conhecimento em
saber pleno de sabedoria.
Entretanto, esse espaço entre, em sua condição híbrida, feito de dois
ou mais, não poderá ser um e, tampouco, outro. Esse espaço entre são
muitos: não é singular, mas plural e, sobretudo, pluralidade em processo
de diálogo criativo. Ele é a expressão da transgressão, da mistura, do
atravessamento e da troca, assim como a negação do conhecimento
institucionalizado, canonizado, a despeito, por exemplo, da presença do
discurso acadêmico em prol da transdisciplinaridade a qual, nos termos
postos, procurei denominar de transdisciplinaridade moderna- já que
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referenciada pelos paradigmas da ciência moderna9; ou seja, profere-se o
discurso em prol da transdisciplinaridade na desconsideração da presença
insinuante do espaço entre e, contraditória e simultaneamente, na
consideração da manutenção da disciplina científica tal como ela é. É no
espaço entre que se realiza o trans e, portanto, não há sentido em se defender
o estéril isolamento daquilo que existe apenas como potência e que,
contudo, se faz existir como arte e como sabedoria, como território aberto
de cultivo, apenas no espaço entre. Como diz Jacques Rancière (2015 [1987],
p. 55), “a ponte é a passagem, mas também a distância mantida.” O esforço
de preservação da autonomia disciplinar nas sociedades modernas, no
âmbito das universidades e do território das ciências, é apenas uma espécie
de manifestação de controle e da explicitação de poderes.10
III
O que se diz das ciências deverá também ser pensado acerca das
artes, pois, a despeito do desejo de construção de suas identidades
particulares11, elas se tocam e se entrecortam, anunciando perspectivas de
IV
17
A sala de aula, também, na consideração de como ela se dá, poderá ser pensada a partir
do conhecimento que ali se produz. Compreendo o espaço da aula como o da
representação e o da pesquisa, da reflexão sobre o que se lê e o que se cria. É espaço de
criação. O espaço da aula é também o da troca, da exposição que se dá no corpo difuso de
diálogo entre vários. É espaço entre. Diz Gilles Deleuze (1987) sobre a aula, devendo isso ser
pertinente tanto para as artes quanto para a ciência: “para mim, uma aula não é destinada
à sua compreensão em sua totalidade. A aula é uma espécie de matéria verdadeiramente
em movimento; e, por isso, ela é musical. Em uma aula, cada um, cada grupo ou cada
estudante absorve o que lhe convém. Uma aula ruim é aquela que não convém a ninguém.
Mas não se pode dizer que tudo convém a todos, não importando quem sejam eles. [...]
É evidente que haverá alguém adormecido. [Será um mistério] que ele acorde no
momento que lhe concerne? [...] Uma aula é emoção. É tanto emoção quanto inteligência.
Caso não haja emoção, não há mais nada, não há interesse algum. [Portanto], não é uma
questão de tudo seguir e de tudo escutar, mas se trata de acordar a tempo de [escutar] o
que, pessoalmente, lhe convém. Por tal motivo, é muitíssimo importante que haja um
público muito diversificado; pois se sente muito bem os centros de interesse que [se
deslocam de um ao outro, de um lugar a outro]. Isso constitui uma espécie de esplêndido
tecido, uma espécie de textura.”
18 Diante da paisagem, com a sua capacidade de compreensão, o sujeito se desloca na
direção desse espaço entre: ele vê através de uma espécie de entre construído a partir dele
mesmo e da paisagem.
20
do sujeito, ela, a paisagem, adquire um estatuto ontológico que, por sua
vez, mobiliza a existência do sujeito que lê; ela adquire presença.19
Há, portanto, um espaço intermediário, uma espécie de entre lugar, tal
como sugerido por Silviano Santiago.20 Emanuele Coccia (2010, p. 19-20),
aparentemente com os mesmos olhos de Silviano Santiago, enfatiza a
existência desse espaço intermediário em que “[...] as coisas se tornam
sensíveis” e, portanto, “[...] é desse mesmo espaço que os viventes colhem
o sensível com o qual, dia e noite, nutrem suas próprias almas.” Emanuele
Coccia (2010, p. 19-20) ainda fortalece o argumento que aqui se
desenvolve: “[...] é sempre fora de si que algo se torna passível de
experiência: algo se torna sensível apenas no corpo intermediário que está
entre o objeto e o sujeito.” Sobre a natureza desse espaço intermediário,
de Emanuele Coccia (2010, p. 20) são extraídas passagens que dialogam
com o pensamento que aqui procuro trabalhar: “[...] esse espaço não é um
vazio. Sempre é um corpo, sem nome específico e diferente em relação
aos diversos sensíveis, mas com uma capacidade comum: aquela de poder
gerar imagens.”
Ciência e literatura são mundos que se querem distintos, mas que,
com o uso da palavra, podem experimentar perspectivas de construção de
um terceiro corpo entre ambos e, sobretudo, de se transformarem a partir dele.
Nessas circunstâncias, pode haver traços de certa ciência na literatura, assim
como traços de literatura na ciência-saber; ou mesmo poderão ser indistintos
23
isso, o silêncio seria a expressão do pouco que se sabe, ou do quase nada
que se sabe. Entre o não saber e a escuta que recobre o silêncio de saber,
haveria um corpo feito de ambos, um terceiro a construir rotas à procura da
sabedoria e da palavra que diz o mundo. O silêncio: manifestação basilar
do saber que nos chega. O excesso de palavras recobre o mundo de pouco
saber e, mais, de sabedoria quase ausente. Diante de tanta informação
circulante, esse paradoxal estado de pouco saber ‒ ou de quase saber
nenhum ‒, o mundo se expressaria através de parcos, titubeantes e tímidos
sussurros. A escuta e os silêncios são manifestações de saber, pois já
exteriorizam a presença de uma espécie de cartografia do desejo de mais
saber. O paradoxo: simultaneamente, mais informação ‒ mais anúncio de
conhecimento informativo distante de saber ‒ e menos capacidade de
processamento, menos sabedoria, mais palavras a dizer o pouco de mundo
proferido pela profusão de palavras que pouco ou nada dizem; e,
contraditoriamente, mais convicção e arrogância.
O gosto pelo mundo dar-se-ia através do gosto pelas palavras: é o
que nos diz Boaventura de Sousa Santos (1987), em aula magna proferida
na Universidade de Coimbra. Por sua vez, esse gosto pelas palavras se
expressaria, também, através do seu uso preciso. Mas a profusão de termos
destituídos de mundo implica o desgaste das palavras e,
consequentemente, o enfraquecimento do gosto, dos significados de
mundo e de vida sobre os quais se procura saber. Ressalta Jacques
Rancière (2014 [1992], p. 101) que “a ‘geografia’ [exigida pela] nova
história [...] é, em primeiro lugar, espaço simbólico que dá aos reis uma
boa morte e funda a condição primeira da ciência histórica: que nenhuma
palavra fique sem lugar.” Ainda: que esse lugar seja preciso em sua
imprecisão territorial — originária desse terceiro corpo, estímulo do vaguear
e do trânsito — tão criativa e desejosa de cultivo: esse espaço entre.
24
REFERÊNCIAS
25
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SACKS, Oliver. Um antropólogo em Marte: sete histórias paradoxais. São
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sociologia das emergências. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.).
26
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revisitado. São Paulo: Cortez, 2004. p. 777-821.
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São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
WOLFF, Francis. Nascimento da razão, origem da crise. In: NOVAES,
Adauto. A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 67-82.
27
28
Divertir o leitor é uma tarefa séria: o cômico, o
cósmico e as cosmicômicas calvinianas
Adriana Iozzi Klein
30
substitutivas, englobantes e autônomas, capazes de transformar a própria
realidade em um reflexo, em um caso possível, em um fragmento parcial
ou consequencial do modelo literário. A criação literária transforma-se
numa representação da vontade do escritor de desafiar a complexidade do
mundo.
O tema retorna com insistência em seus escritos ensaísticos e
aparece reelaborado de maneira mais orgânica anos depois, em uma das
conferências publicadas em Seis propostas para o próximo milênio:
[...] em nossa época a literatura se vem
impregnando dessa antiga ambição de
representar a multiplicidade das relações em ato e
em potencialidade.
A excessiva ambição de propósitos pode ser
reprovada em muitos campos da atividade
humana, mas não na literatura. A literatura só
pode viver se se propõe a objetivos
desmesurados, até mesmo para além de suas
possibilidades de realização. Só se poetas e
escritores se lançarem a empresas que ninguém
mais ousaria imaginar é que a literatura
continuará a ter uma função. No momento em
que a ciência desconfia das explicações gerais e
das soluções que não sejam setoriais e
especialísticas, o grande desafio para a literatura é
o de saber tecer em conjunto os diversos saberes
e os diversos códigos numa visão pluralística e
multifacetada do mundo. (CALVINO, 1991, p.
127)
A relação com a ciência estimula a literatura a questionar sua forma
de conhecimento e de expressão. E é exatamente esse o ponto de partida
de Calvino para a elaboração de um projeto narrativo que, entre
publicações, edições e reedições, ocupou-o por quase vinte anos, de 1965,
data da publicação de As cosmicômicas, passando por T=zero (1967), A
memória do mundo e outras cosmicômicas (1968) até As cosmicômicas velhas e novas
(1984). As três coletâneas fazem parte de uma série de narrativas
31
pseudocientíficas e fantásticas e são classificadas na sua totalidade como
Cosmicômicas (recolhidas posteriormente no volume Todas as cosmicômicas).
Com As cosmicômicas,Calvino propõe a investigação de uma
literatura apta a dialogar com as mais variadas formas de conhecimento.
As contaminações entre linguagem poética e linguagem científica, a
inserção de materiais da linguagem científica no tecido narrativo mostram
a necessidade do escritor de encontrar uma síntese entre método científico
e consciência literária. Essa busca de renovação formal reconhece como
matriz as maiores experiências da tradição italiana e Calvino assume, em
várias ocasiões, que a linguagem que moldava seu estilo narrativo era sem
dúvida uma linguagem cada vez mais próxima àquela científica, tanto pela
sua articulação quanto pela precisão de definições. Trata-se, é claro,
daquele ideal herdado de Galileu Galilei, que aos poucos vai tomando
corpo na obra de nosso autor na forma de experimentação de uma língua
literária precisa e sem redundâncias.
De fato, precisão da linguagem e construção de conjeturas são as palavras-
chave para definir seu trabalho narrativo e sua atividade de ensaísta a partir
dos anos sessenta. Quase duas décadas depois, Calvino elencará entre os
seis valores que gostaria que fossem transmitidos para a literatura do
século XXI também aquele da exatidão. E, como ele próprio afirma, a
exatidão na sua escrita segue sempre em duas direções, ou seja, a tentativa
de reduzir os acontecimentos contingentes a esquemas abstratos (que
permitem o cálculo e a demonstração de teoremas) e o esforço de fazer
com que as palavras deem conta, com a maior precisão possível, do
aspecto sensível das coisas:
A palavra associa o traço visível à coisa invisível,
à coisa ausente, à coisa desejada ou temida, como
uma frágil passarela improvisada sobre o abismo.
Por isso o justo emprego da linguagem é, para
mim, aquele que permite o aproximar-se das
coisas (presentes ou ausentes) com discrição,
atenção e cautela, respeitando o que as coisas
(presentes ou ausentes) comunicam sem o
recurso das palavras. (CALVINO, 1991, p. 90)22
22
Como não notar nessa afirmação de Calvino o eco das palavras do admirado poeta
Paul Valéry? “Cada palavra, cada uma das palavras que nos permitem atravessar tão
32
Importante lembrar que em 1967 Calvino muda-se para Paris,
onde viverá por um longo período. Ali entra em contato com os grandes
expoentes da vanguarda francesa, frequenta os cursos de Roland Barthes,
estreita a amizade com Raymond Queneau, conhece os escritores do
grupo Ou.li.po (Laboratório de Literatura Potencial), dentre os quais
Georges Perec. É nesse contexto que nasce seu gosto pela comicidade
paradoxal e ratificam-se seu interesse pela ciência e sua paixão por toda
forma de arte que seja ao mesmo tempo clássica e experimental.
Calvino segue com atenção os debates franceses que surgem na
época a propósito das novas relações que se instauram entre a literatura e
a ciência, sobretudo aqueles ligados às discussões que envolvem
publicações de figuras muito próximas a ele, como é o caso de Roland
Barthes e de Raymond de Queneau.
Em um conhecido artigo de 1967, “Science versus Literature”,
Barthes inicia uma polêmica ao indicar uma nítida separação entre a
linguagem literária e a linguagem científica, identificando a literatura com
o próprio ato de escrever, isto é, com uma linguagem que, por isso, nunca
se refere a algo externo ou a um conteúdo pré-existente à escritura, ao
contrário da ciência, cuja linguagem seria para o crítico francês um
instrumento puramente neutro, apto a veicular conteúdos pré-formados e
independentes dela própria. Na concepção de Barthes, a literatura seria
detentora da verdade absoluta e a ciência, para conservar-se como tal, teria
de sair do equívoco constituído pelo código referencial que lhe era próprio
por tradição e transformar-se, seguindo o exemplo da literatura, em
escritura integral.
Respondendo em aberta e acalorada polêmica ao artigo de Barthes,
Queneau, signatário do grupo Ou.li.po e de sua premissa de
experimentação e aplicação de métodos formais matemáticos à criação
literária, publica no mesmo número daquela revista um artigo intitulado
“Science and Literature”, em que sustenta, depois de especificar na história
23 Mas é com os integrantes do Ou.li.po que Calvino, não por acaso, se sente mais à
vontade. E, numa entrevista dada a Ferdinand de Camon, em 1973, entendemos o
porquê: “Quello che mi li rendi vicini è il loro rifuito della gravità, questa gravità che la
letteratura francese impone dappertutto, anche dove sarebbe necessaria un pó di
autoironia.Questi qui no: considerano la scienza non in modo grave, ma come gioco,
secondo quello che è sempre stato lo spirito degli scienziati veri, del resto. Certo anche
in loro, in questo scherzare per partito preso, in questa meticolosità da collaboratori della
Settimana Enigmistica, c’è una dimensione eroica, un nichilismo disperato”.
(CALVINO, 1995, p. 2789)
34
As cosmicômicas de 1965, por exemplo,são compostas por doze
narrativas e têm como tema central as teorias cosmológicas e astronômicas
formuladas pela ciência moderna. Cada cosmicômica abre-se com um
enunciado científico, que pode ser sobre o distanciamento da Lua ocorrido
em relação à Terra, sobre o Big-bang que originou o universo, sobre a
evolução das primeiras espécies animais, sobre o tempo empregado pelo
Sol para fazer uma revolução completa da Galáxia, ou ainda sobre a
ausência de cores antes da formação da atmosfera terrestre. Disso o
escritor tira inspiração para criar narrações divertidas e paradoxais, nas
quais cenários cosmogônicos e interplanetários são o pano de fundo para
situações típicas do cotidiano mais banal, em que bactérias, átomos,
partículas e dinossauros dialogam como personagens de qualquer
narração. Cósmica é a ambientação que reconstrói galáxias, nebulosas e
planetas da época da origem do universo; cômico é o efeito criado pela
junção entre a enormidade da moldura e a absoluta normalidade das
situações e das formas de expressão imaginadas por Calvino.
As células primordiais que falam e se comportam como seres
humanos e as teorias sobre a origem do cosmo sugerem uma nova
perspectiva para entender os mecanismos da nossa época, na qual também
o mito se torna uma possível chave de leitura do real. E é por meio da
criação e da descrição de uma dimensão fora do tempo e da realidade que
Calvino encontra uma maneira de buscar as verdades originárias do
mundo e da vida.
O protagonista das narrativas cosmicômicas, cujo nome é um
impronunciável palíndromo (Qfwfq), é um ser indefinido, um organismo
primordial, uma criatura muito velha que existe desde a criação do
universo e do aparecimento do gênero humano. Não há acontecimento de
milhões ou bilhões de anos que não tenha presenciado como “testemunha
ocular” ou participado em primeira pessoa. Ele fala dos cataclismos
geológicos e dos dinossauros como se fossem acontecimentos ou criaturas
de sua infância e juventude.
Nada se sabe sobre o protagonista, que não pode nem mesmo ser
considerado um personagem; ele é, como esclarece Calvino no texto da
contracapa do livro, “uma voz, um ponto de vista, um olho (ou um piscar
de olhos) humano projetado sobre a realidade de um mundo que parece
sempre mais refratário à palavra e à imagem”.
35
Não se trata, portanto, de ficção científica, como muitas vezes
Calvino fez questão de enfatizar; enquanto a ficção científica projeta a
visão em direção ao futuro ainda desconhecido e normalmente representa
a materialização dos medos do presente, as narrativas cosmicômicas
voltam o olhar para um passado ancestral, para uma época em que o
homem era ainda uma entidade não distinta do mundo vegetal, animal ou
mineral, para um tempo em que ainda não havia sido formulado nenhum
código comunicativo, nenhum cânone estético ou moral. As
cosmicômicas propõem um desafio, ou seja, aplicar a imaginação artística
ao rigor objetivo dos enunciados científicos: a literatura, com uma ironia
ágil e sutil, é capaz de apropriar-se das fórmulas frias da ciência para fazê-
las funcionar como uma espécie de filtro, de lente deformadora que nos
permite ver e interpretar o mundo de uma forma jamais imaginada.
O conto “Tudo num ponto”, por exemplo, parte do tema da
origem do universo, um árduo campo de estudo que está no centro da
reflexão religiosa, científica da humanidade desde os tempos mais
remotos. Mas a hipótese científica segundo a qual a matéria cósmica, antes
de começar a expandir-se, estava toda concentrada em um único ponto
serve de premissa a partir da qual o protagonista das Cosmicômicas
desenvolve uma série de imagens fantásticas que tem por objetivo lembrar
como se desenvolvia a vida dos habitantes do mundo, espremidos naquele
ponto original. As suas considerações poderiam parecer divagações
superficiais, e, todavia, de tais divagações, emergem mensagens de
surpreendente atualidade: a denúncia da intolerância, do incômodo e do
ódio recíproco; a celebração da solidariedade, do afeto e da generosidade.
Por meio das lembranças de Qfwfq esse remoto microcosmo se
parece com o mundo atual; o ponto fora do tempo e do espaço encerra
dentro de si uma superpovoada sociedade similar àquela em que vivemos.
Aos dados da ciência sobrepõem-se as imagens típicas da vida cotidiana e
dessa contaminação resulta a força humorística do texto.
Na narrativa destaca-se a figura da Sr.a Ph(i)NKo: uma mulher
inesquecível, de gosto vagamente felliniano, capaz de um gesto tão
“extraordinário” a ponto de dar “início no mesmo momento [...] ao espaço
[...] e ao tempo”, isto é, à dilatação da vida no universo. “Preparar um
tagliatelle”: esta é a ação emblemática, com a qual a personagem, com sua
serena e generosa fisicidade, superando a mesquinhez e a “mentalidade
36
fechada” que dominam aquele primordial concentrado de humanidade,
inicia o processo de dilatação que leva à formação do universo. Calvino
propõe aqui, à luz do significado simbólico da personagem, a meditação
sobre os sentimentos de afeto pelos outros, a alegria de trabalhar para o
bem do próximo, a generosidade cheia de energia produtiva. Estas seriam
as várias manifestações do amor, a partir das quais o universo teria tomado
sua forma, e das quais a vida humana necessita para continuar a existir.
“A ciência contemporânea não nos dá mais imagens para
representar”, nos explica Calvino ainda na apresentação do livro; “o
mundo que nos abre está além de qualquer possibilidade de imagem. E,
ainda assim, ao profano que lê livros científicos uma frase, de vez em
quando, desperta uma imagem. Tentei assinalar algumas delas e
desenvolvê-las em narrativas cosmicósmicas (ou cosmicômicas)”.
(CALVINO, 1992)
No conjunto dessas narrativas, os temas dominantes são aqueles
evidentemente ligados à mitologia: o tema do nascimento (da vida, do
homem, da Lua, da Terra, do Sol, do universo), o tema da mudança (a
evolução humana, o sistema Terra-Lua), que também pode ser visto como
uma variante do primeiro, e, enfim, o tema da morte.
Não se trata obviamente de um procedimento inédito nas relações
que se estabelecem entre a ciência e a tradição literária italiana, como
lembrará Calvino em uma entrevista de 1968:
[...] também Dante buscava construir uma
imagem do universo mediante a palavra literária.
Esta é a vocação profunda da literatura italiana,
que passa de Dante a Galileu: a obra literária
como mapa do mundo e do saber, a escrita
movida por um impulso cognoscitivo que ora é
teológico ora especulativo ora bruxesco ora
enciclopédico ora de filosofia natural ora de
observação transfiguradora e visionária. É uma
vocação que existe em todas as literaturas
europeias mas que na literatura italiana foi, diria,
dominante, nas mais diversas formas, e faz dela
uma literatura tão diferente das outras, tão difícil,
37
mas também tão insubstituível. (CALVINO,
2009, p. 222-23)
Tempos depois, discorrendo sobre o conceito de visibilidade, que
iria compor outro dos seis valores a serem preservados na literatura do
nosso milênio, o tema retorna nas reflexões de Calvino:
Meu intento era demonstrar [nas Cosmicômicas]
como o discurso por imagens, característico do
mito, pode brotar de qualquer tipo de terreno, até
mesmo da linguagem mais afastada de qualquer
imagem visual, como é o caso da linguagem da
ciência hodierna. Mesmo quando lemos o livro
científico mais técnico ou o mais abstrato livro de
filosofia, podemos encontrar uma frase que
inesperadamente serve de estímulo à fantasia
figurativa. Encontramos aí um destes casos em
que a imagem é determinada por um texto escrito
preexistente (uma página ou uma simples frase
com a qual me defronto na leitura), dele se
podendo extrair um desenrolar fantástico tanto
no espírito do texto de partida quanto numa
direção completamente autônoma (CALVINO,
1991, p. 105).
Constatamos, assim, que a adoção de uma linguagem científica não
significa para Calvino somente a busca de um raciocínio exato, a
demonstração rigorosa, apta a definir um pensamento racional mas, ao
contrário, comprova a crença do escritor em relação às inesgotáveis
possibilidades da literatura.
Para melhor ilustrar e, enfim, concluir essa reflexão, citemos mais
um exemplo, o do emblemático conto “O conde de Monte Cristo”,
publicado incialmente no volume T zero, de 1967, considerado por Calvino
um de seus textos mais bem elaborados, tanto no aspecto estilístico como
no conceitual.
Trata-se, evidentemente, de um trabalho de reescritura do famoso
romance de Alexandre Dumas, cujo foco da narração concentra-se nos
personagens Edmond Dantès e Abade Faria, trancafiados dentro da
esmagadora fortaleza de If. Faria quer projetar e executar a fuga perfeita, a partir
38
da sondagem dos pontos fracos da fortaleza, e tudo o que faz é confrontar-
se com dificuldades e obstáculos cada vez mais intransponíveis, metendo-
se em becos cada vez mais sem saída. Dantès, ao invés disso, parte do
pressuposto contrário e acredita que somente haverá uma possibilidade de
fugir da fortaleza caso sejam pensadas para ela barreiras cada vez mais
intransponíveis.
Os personagens, como fica claro ao leitor desde o princípio,
apresentam-se como duas diferentes abordagens cognitivas da realidade,
ou seja, indutiva no caso de Faria e dedutiva no caso de Dantès. Trata-se
de um problema de método e o ponto de partida teórico dessa narrativa,
como já notaram alguns estudiosos da obra de Calvino, é muito
provavelmente a polêmica com a escola do noveau roman, representada aqui
por meio da negação do registro da realidade e do método indutivo, do
qual contesta-se a eficácia: a representação do mundo-prisão que circunda
o homem, prisioneiro em uma cela, é necessariamente falseada pela
perspectiva individual, deformada pelo fato do personagem encontrar-se
no interior, dentro das coisas. Ao puro registro da realidade, inútil e em
última análise impossível por ser parcial, Calvino contrapõe o exercício
lúcido da inteligência: o único modo de fugir da condição de prisioneiro é
entender como é feita a prisão.
O método empírico, com seus procedimentos analíticos, revela-se
aqui ineficaz porque aplica um raciocínio indutivo, como o de causa-efeito,
a uma realidade contraditória que não permite a demonstração de qualquer
tipo de hipótese. Quanto mais se tem conhecimento do real, mais
aumentam os problemas e, consequentemente, mais eficiente mostra-se o
método de Dantès que, passando das imagens complexas àquelas cada vez
mais simples, consegue elaborar um sistema mental abstrato a partir do
qual pode compreender a realidade.
Para Calvino, tal método torna-se, de maneira emblemática, a base
para novas estruturas e para a construção de realidades hipotéticas, que
correspondem, no campo da literatura, a uma narrativa organizada a partir
dos já apontados princípios matemático-combinatórios. Para o escritor, a
tarefa da literatura não seria, portanto, indicar a saída da prisão-labirinto,
mas sim apresentar um método que possibilitasse a construção de um
outro mundo, do qual o livro seria metaforicamente um projeto. Nessa
perspectiva, a fuga de Dantès significa, entre outras coisas, a aspiração a
39
uma renovada pesquisa literária e ao estabelecimento de novos códigos
literários. A literatura do “desafio ao labirinto” de Calvino é também uma
literatura que, ao ampliar as suas fronteiras, comprova a possibilidade de
criação de novas formas.
40
REFERÊNCIAS
41
42
Literatura, Ciência, Gonçalo M. Tavares
Maria Elisa Rodrigues Moreira
43
versos, que são apresentados nas Breves notas sobre ciência24 de Tavares sob
o título “Classificação”. Afinal, não é à classificação que remetemos
quando tentamos categorizar os textos, os pensamentos, quando
propomos a identificação do que seria ciência, do que seria literatura, do
que não seria uma coisa nem outra, do que talvez seja as duas coisas? A
questão da classificação foi, e continua a ser, abordada por diversos
pensadores, que tomam como objeto de reflexão o seu lugar no processo
de produção de conhecimento (GIL, 2000) e, muitas vezes, consideram-
na essencial para este (VIGNAUX, 2000); mas vem, também, sendo
problematizada em várias frentes, que apontam suas insuficiências frente
ao mundo, ao saber e à arte (FOUCAULT, 2002; PEREC, 2001;
MACIEL, 2009).
Nessa perspectiva, talvez a mais significativa abordagem a ser aqui
retomada seja a de Michel Foucault, que em As palavras e as coisas (2002)
dedica-se a refletir sobre essa questão (entre outras) tomando como
provocação um texto de Jorge Luis Borges, “O idioma analítico de John
Wilkins” (2007), no qual a classificação é subvertida pelas vias da ficção.
No prefácio ao livro, Foucault começa por citar a enciclopédia chinesa
incluída por Borges no texto em questão, e afirma que o desconforto que
tal enciclopédia provoca advém justamente da classificação que ali se
propõe, uma vez que esta não toma como critério essencial a construção
de uma ordem baseada no mesmo, na semelhança, para constituir seus
agrupamentos. A enciclopédia chinesa narrada por Borges revelaria, assim,
uma “impossibilidade do pensamento”, ou, ao menos, do “nosso
pensamento”, daquele “que tem nossa idade e nossa geografia”
(FOUCAULT, 2002, p. IX), uma vez que a “extravagante” classificação
de Borges teria um único espaço possível para se realizar, qual seja, o “não-
24Breves notas sobre ciência (2006) é um dos volumes que compõem a série “Breves notas”,
ao lado de Breves notas sobre o medo(2007) eBreves notas sobre as ligações [Llansol, Molder e
Zambrano] (2009). No Brasil, os três volumes foram lançados em 2010, numa coedição
entre a Editora da UFSC e a Editora da Casa, reunidos em uma “caixa-estante” que
funciona sob o protocolo de leitura da rubrica com a qual o autor os tinha nomeado na
edição portuguesa: Enciclopédia. A caixa traz ainda um “caderno de apresentação” (O
impacto da impressão, as breves notas), de autoria de Julia Studart, que se encarrega de
apresentar autor e obra numa perspectiva crítica, e que pode funcionar como uma espécie
de bússola para se transitar pelos volumes dessa “enciclopédia”. Vale destacar que em
2015 Tavares lança Breves notas sobre música, ainda sem edição brasileira.
44
lugar da linguagem”. Esse deslocamento da prática classificatória que se
evidencia na linguagem é retomado por Maria Esther Maciel, em seu As
ironias da ordem, para ressaltar justamente o “uso crítico-criativo dos
sistemas de classificação do mundo e do conhecimento” que é feito por
artistas plásticos, cineastas e escritores que, desse modo, revelam “a
insuficiência e a arbitrariedade dos sistemas de organização legitimados
pela racionalidade ocidental” (MACIEL, 2009, p. 11), colocando em xeque
a classificação como um lugar pacífico no que toca ao conhecimento.
É também a esse uso crítico-criativo que recorre Gonçalo M.
Tavares, não só ao estabelecer uma aproximação direta entre ciência e
poesia – identificar a classificação com uma poesia unânime é atribuir
àquele que é considerado um elemento central da constituição do
pensamento científico, o processo de classificar, aquilo que dele escaparia,
ou mesmo que a ele se contraporia, ou seja, o poético – mas, também, ao
fazer da ciência matéria narrativa, ao propor um pensamento poético
sobre o que se pautaria, exclusivamente, pela racionalidade e pela exclusão
de qualquer pessoalidade e experiência estética.25 A epígrafe de Tavares
continua sua prática subversiva tecendo no segundo verso uma nova
aproximação, desta vez menos linear, mais enviesada: o classificar, que
seria um atributo da ciência, mostra-se como ato inútil para o indivíduo,
como o é todo ato poético.26 A ciência se vê assim esvaziada, de uma só
tacada, de duas daquelas que seriam consideradas suas características
fundamentais, a classificação e a utilidade – o texto tavariano provoca, na
rapidez e incisão de sua construção, um movimento reflexivo dos mais
25 Ressalte-se que remeto, aqui, à ciência moderna tal qual criticamente abordada por
Boaventura de Sousa Santos (2003, 2007, 2008, 2009), Edgar Morin (2002, 2007, 2008) e
Isabelle Stengers (2002), a qual ainda hoje se apresenta como o paradigma científico
dominante no cenário da produção de conhecimento – mesmo que se proponham várias
formas distintas, resistentes, para se pensar a ciência na contemporaneidade, como
aquelas que pontuam os próprios Santos e Morin, além de Humberto Maturana e
Francisco Varela (2001), Ilya Prigogine (1996), Bruno Latour (1994) e Michel Serres
(2007), para citarmos alguns exemplos.
26Cabe ressaltar que se pensa aqui a questão da utilidade da literatura tomando por
referência o que se considera como útil em relação à ciência moderna, que especula por
usos práticos diretos e por resultados quantitativos que daí possam proceder. A questão
“para que serve a literatura?” (e, poderíamos ampliá-la, “para que serve a arte?”) é uma
constante nos estudos de teoria da literatura: para uma visão contemporânea, mas que
articula um panorama histórico da questão, cf. Compagnon (2009).
45
potentes, um movimento desestabilizador, perturbador (“a literatura tem
que perturbar alguma coisa”, diz o escritor português em uma entrevista
[TAVARES, 2011]), um movimento que leva ao desequilíbrio.
É justamente esse desequilíbrio que aparece, segundo Tavares,
como o mobilizador essencial da investigação, seja ela em arte ou em
ciência (ou, como discutiremos adiante, em uma possível ciência-arte). Nas
Breves notas sobre ciência, em texto intitulado “Investigações e desequilíbrio”,
assim afirma o escritor português:
Debruçai-vos sobre o futuro: no limite só os pés
permanecem sobre o solo, a cabeça foge para a
frente.
Investigar sem desequilíbrio é avançar em cima
da lama: alguém se afunda. (TAVARES, 2010b,
p. 36)
O desequilíbrio nos tira o chão, faz com que nos debrucemos
sobre o ainda inexistente, com que nos lancemos sobre o vazio mantendo
apenas os pés no solo, mas é esse desequilíbrio que garante nosso
movimento, que impede que nosso peso nos faça afundar sobre um
terreno lamacento, do qual não é possível sair sem que a diferença do
desequilíbrio, ou o vazio do ainda não conhecido, façam com que nos
projetemos adiante. Esse posicionamento ecoa no diálogo estabelecido
entre Gonçalo M. Tavares e Cássio Hissa no livro Conversações: de artes e de
ciências (2011), quando Tavares assim se manifesta em relação à arte:
Eu diria que, na arte, é necessário um entusiasmo,
uma força que empurre para algum lado, e,
portanto, um desequilíbrio qualquer. [...] O que
penso ser importante: na arte, o ponto de partida
não poderá ser um ponto morto, um ponto neutro;
pelo contrário, ele deverá ser um ponto em
andamento. (TAVARES in TAVARES; HISSA,
2011, p. 126, grifos do autor)
Seria necessário assim, seja em ciência, seja em literatura, um
movimento produtivo pautado pela aventura no desconhecido ou rumo a
este, pelo desconforto, pela desarmonia, pela insegurança, pela diferença.
Tal movimento seria algo como a metodologia da mão esquerda, analogia
benjaminiana a que Tavares recorre para refletir sobre a relação entre
46
pesquisa e metodologia, entre sujeito e investigação. É a partir dessa
analogia que ele afirma que se deveria, “na ciência e nas artes, tentar
metodologias que não são parecidas conosco, e que nos são estranhas”
(TAVARES in TAVARES; HISSA, 2011, p. 127), que se deveria buscar
em terrenos desconhecidos resultados capazes de nos surpreender. E é
justamente por esses terrenos desconhecidos que parecemos caminhar ao
ler os textos tavarianos, pois o tempo todo esses textos nos tiram de nossas
zonas de segurança, dos espaços que dominamos, e nos impelem a traçar
outros percursos; provocam rupturas entre o que habitualmente
identificamos como a linguagem da ciência e a linguagem da arte, que são
então baralhadas, sacudidas e subvertidas como na epígrafe já discutida,
colocando em questão a própria possibilidade de uma separação absoluta
entre elas.
É o caso, por exemplo, de “Aviação e pensamento” (TAVARES,
2014b), texto publicado na revista brasileira Bahiaciência,27 o qual é
atravessado de ponta a ponta por esses deslimites da linguagem (assim
como nós, leitores, também o somos). O texto se constitui de sete notas
enumeradas, as quais são acompanhadas por duas fotografias produzidas
por Os Espacialistas, um coletivo de artistas-arquitetos portugueses que
centram seus projetos nas relações espaciais, em suas mais diversas
formas. As produções do coletivo acompanham boa parte dos textos de
Gonçalo Tavares publicados em veículos de divulgação, assim como estão
presentes no Atlas do Corpo e da Imaginação.28 Não me deterei aqui nessas
27A Bahiaciência publicou, em suas três edições de 2014, a seção “Outros olhares”, com
textos do escritor português que giram em torno da ciência. A publicação em veículos de
divulgação é prática de Gonçalo Tavares: nos sites portugueses Notícias Magazine e Revista
Pais e Filhos é possível encontrar cerca de 90 textos de sua autoria disponibilizados online;
a Revista Visão, também portuguesa, conta com diversos textos seus, aos quais
infelizmente só consegui acesso esparsamente, uma vez que não estão disponibilizados
online.
28Nesse livro, que ainda não conta com edição brasileira, as mais de 500 páginas são
ocupadas por cerca de mil imagens d’Os Espacialistas, as quais dialogam com o texto de
caráter prioritariamente ensaístico que dá “corpo” ao livro –que deriva da tese de
doutoramento de Tavares, defendida em 2005, sob o título Corporeidade, Linguagem e
Imaginação – e com os textos narrativos/poéticos, em formato de legendas, breves ou
longas, que as acompanham. Já a série “Dicionário ilustrado”, publicada no Notícias
Magazine, traz a cada verbete uma ou mais imagens do grupo dialogando com o texto
tavariano.
47
imagens, as quais suscitam questões para futuras reflexões, restringindo-
me a trazer para a cena dessa conversa que aqui traço com o escritor
português apenas o texto de sua autoria. A primeira nota remete a Ludwig
Wittgenstein, que ainda jovem estudava engenharia e desejava construir
um aeroplano, e sobre quem Bertrand Russell, responsável por recebê-lo
na Universidade de Cambridge, teria dito: “O meu alemão vacila entre a
filosofia e a aviação”. É em torno dessa aproximação entre o aeroplano e
a filosofia, entre a aviação e a ciência, que Tavares constrói seu texto,
afirmando na terceira nota:
Pensar de certa maneira é isto: planar dois metros,
cem metros, acima do que está a acontecer neste
momento; mil metros, digamos assim, acima do
presente. Pensar de forma concentrada é não ver
o que está à frente, é ver outra coisa. E ter um
projecto na cabeça é sempre construir
mentalmente, mesmo que simbolicamente, um
aeroplano. Quem não quiser construir um
aeroplano que não entre nesta sala! – eis o que a
ciência poderia exclamar. (TAVARES, 2014b, p.
3)
Ver outra coisa que não o que está à frente, construir mentalmente
“um volume que suspenda por momentos, minutos, horas – a força da
gravidade” (p. 3) deveria ser, nessa perspectiva, o método do pensamento
da ciência. Pautada essa aproximação, o texto passa a propor, no tópico 4,
uma divisão, uma classificação da espécie humana entre os “seres vivos
que um dia pensaram em construir sozinhos um aeroplano” e os “seres
vivos que nunca na vida pensaram em construir um aeroplano”, e indica
que os pertencentes à segunda classe deveriam ter sua entrada proibida
numa “escola de artistas e cientistas” (p. 3) – aproximando assim
novamente arte e ciência, alocadas aqui num mesmo espaço, a escola,
pautado por um certo “método do aeroplano”, digamos assim...
Em seguida, o escritor traça a diferença entre desenhar um
aeroplano e desenhar um carro, e chega na nota 6 à questão do peso como
um dos elementos diferenciadores entre os dois processos:
Interessante também pensar na questão do peso.
Um aeroplano, mesmo que com igual número de
48
quilogramas (kg) de um automóvel, pesa sempre
menos. Sem dúvida alguma. O que voa não pesa
o seu peso; o seu peso não vem em gramas, mas
em expectativa e algum espanto; metade espanto,
metade expectativa. (TAVARES, 2014b, p. 3)
O pensamento (científico e artístico, lembremos), assim, passa a
ser abordado pela via de uma subtração do peso, pelo que nele há de
imprevisto, pelo espanto: “o leve é aquilo que se afasta da terra, das leis
habituais, da monotonia obediente”, diz o português em Atlas do corpo e da
imaginação (2013a, p. 267). Esse movimento de afastamento do terreno
seguro em direção ao leve e ao espantoso me incita a traçar duas ligações
com passagens das Breves notas sobre ciência. Na primeira delas, Tavares
remete ao perigo como sendo o fundamento de qualquer criação em
ciência: “Claro que o Perigo é a origem dos métodos científicos mais
eficazes. Se o Homem fosse imortal não teria ainda inventado a roda
[poderias dizer]” (TAVARES, 2010b, p. 9). Na segunda, uma vez mais
aproxima a ciência do voo e da suspensão de peso a que ele remete:
A ciência parte sempre do princípio de que tem o
mapa certo. E, assim, acredita que é só procurar.
Julga que lhe basta o esforço, o suor.
[E, afinal, muitas vezes não deve escavar, mas
voar – algo que lhe é fisicamente impossível.]
(TAVARES, 2010b, p. 109).
É aí, no lugar da impossibilidade, que uma outra ciência se pode
fazer, uma ciência que não pense o mapa como um terreno já determinado
no qual basta buscar o tesouro enterrado: de que vale um mapa do solo se
o necessário é alçar voo? É nesse espaço de risco que é o pensamento que
se pode constituir uma ciência pautada tanto pelo peso quanto pela
expectativa em oposição à ciência apenas do peso e do suor; uma ciência
para quem o mapa seja uma possibilidade entre outras, ou, ainda mais, uma
ciência que desenhe o mapa enquanto perfaz percursos pelo território. É
com a abertura para essa outra ciência, dada na sétima nota e que funciona
como “uma máquina de produzir inícios”29, que Tavares encerra seu texto:
29Em Atlas do corpo e da imaginação (2013a, p. 41), Tavares reflete sobre o fragmento, o qual
trata como um “distribuidor de começos”: “O fragmento é, pela sua natureza, um ponto
onde se inicia; um fragmento nunca termina, mas é raro um fragmento não começar algo.
49
Ciência que apenas pesa o seu peso versus ciência
que tem peso e expectativa. Duas ciências.
Quem deixar de querer construir um aeroplano
deixou de ser cientista. (TAVARES, 2014b, p. 3)
Essa outra ciência é aberta às sensações, aos sentimentos, ao
poético, ao perigo, à expectativa, ao espanto, enfim, ao humano, ao
mundo; ela se pauta justamente por este lugar de desequilíbrio no qual é
possível que um aeroplano levante voo, por este lugar de suspensão que é
o pensamento. Tal ciência não poderia ser, e agora procuro me inserir na
conversação já traçada entre Gonçalo Tavares e Cássio Hissa, uma
“ciência-arte”, uma ciência que se paute pelo exercício da arte como
prática? Discutindo a questão da “improvisação” como método, Hissa
afirma que na perspectiva da ciência moderna não se admite que as
abordagens criativas do mundo sejam também poderosas ferramentas de
saber, ou sequer se aceita “o trabalho artístico criativo também como um
resultado de exercícios metodológicos” (HISSA in TAVARES; HISSA,
2011, p. 128). Com isso, uma série de “poetas e escritores, que interrogam
a ciência moderna e produzem conhecimento preciso, pleno de ricas
metáforas e de pensamentos, através de uma escrita prenhe de poesia e de
encantamentos”, é desconsiderada como produtora de saberes, como se
não fosse aceitável o que há nesses autores de uma “resistência crítica
produzida pela arte de pensar e de criar” (p. 128). O que dizer de um
escritor que, como Tavares, afirma ver a literatura “como uma
investigação que não termina” (TAVARES, 2013b) e a poesia como “um
método de investigação, de obtenção de conhecimento” (TAVARES,
2002)? Não poderíamos defender a hipótese de que ali se está a fazer uma
“ciência-arte”, uma ciência que acredita em diferentes movimentos,
percursos e métodos para o pensamento?
Cássio Hissa dá continuidade às reflexões sobre essa questão em
seu Entrenotas: compreensões de pesquisa (2013), quando na seção “Ciência-
saber: arte” (p. 17-22) ressignifica essas três palavras por meio de seu
realocamento em diferentes combinações. Nesse texto, ele se pergunta, e
pergunta a nós, leitores: a ciência é arte? Na tessitura de uma resposta para
Poderemos dizer que o fragmento é uma máquina de produzir inícios, uma máquina da
linguagem, das formas de utilizar linguagem, que produz começos – pois tal é a sua
natureza.”
50
a questão, aponta perspectivas que rivalizam entre si: de um lado aquelas
da ciência moderna, que se pauta pela “ausência do sujeito do
conhecimento e das subjetividades”, pela “razão pura”, pela “emoção
excluída”, aquela ciência “que apenas pesa o seu peso” e que afirma, com
toda a certeza que lhe é inerente, que “a ciência não é arte”; de outro,
aquelas que creem na impossibilidade de uma razão pura (ou de qualquer
tipo de pureza), de um sujeito neutro e desvinculado do mundo, de uma
ciência esvaziada da arte e da linguagem, perspectivas que se pautam pela
certeza de que “pensamento e experimentação do mundo se entrecortam:
estimulam-se e se reconstroem, ou se redesenham, simultaneamente”
(HISSA, 2013, p. 20). Essa ciência, que se quer uma ciência do aeroplano,
na qual peso, expectativa e espanto caminhem juntos, responderia que
“existem territórios de resistência em que se cultiva a arte da ciência, de
modo a disseminar a sabedoria, a paciência, o amor pelo mundo, o diálogo,
o vagar, a utopia, o prazer, o sabor, o cuidado” (HISSA, 2013, p. 22, grifo
meu).
Esta última ciência seria, ainda dizendo com Hissa, uma “ciência-
saber”, por meio da qual haveria uma forte expressão da arte; uma ciência
fronteiriça, na qual o sujeito está presente, e que se constitui pela
“mistura”, pelo “envolvimento”, pelo “compartilhamento”: “todos os
materiais são misturados”, nos diz Gonçalo M. Tavares, “por exemplo, o
que seria uma frase que pensa e o que seria uma frase que conta uma
história? Eu não sei a diferença.” (TAVARES, 2014a, p. 182-183). Nessa
ciência da partilha, a palavra predominante seria o “e” em lugar do “ou”,
não o “e” que elimina qualquer diferença, mas aquele que faz com que o
diverso conviva, de modo que por meio do atrito e do contraditório surja
uma resposta nova, provoquem-se questões outras, “multipliquem-se as
possibilidades de verdade” (TAVARES, 2013a, p. 67-68). Afinal,
Só acrescentas algo ao Mundo 1 – quer este seja
uma disciplina científica ou apenas uma ideia – se
trouxeres algo do Mundo 2.
Dito de outro modo, e sendo óbvio para avançar:
Nada que pertença ao Mundo 1 é novo para o
Mundo 1.
Queres trazer-te o novo? Sai de ti.
51
Queres trazer algo de novo a esta caixa quadrada
de 1 metro por 1 metro?
Então procura algo fora dela.
Eis o pressuposto óbvio de uma investigação.
Como entender, pois, os especialistas?
(TAVARES, 2010b, p. 37)
Aproximar, pois, o diferente, criar para esses diversos modos de pensar o
mundo que são a ciência e a arte um espaço de amizade (TAVARES,
2013a, p. 68) no qual possam conviver e potencializem as possibilidades
de saber, de compreender o mundo.
Essa ciência-saber de que nos fala Hissa encontra, ainda, outros
trajetos que podem aproximá-la da literatura, tal qual desejada e defendida
por Gonçalo M. Tavares, dos quais destaco dois para encaminhar o final
desta reflexão: um é aquele que diz do “vagar”, da “paciência”, da
“lentidão” e da “artesania” (HISSA, 2013, p. 21) a ela inerentes, de forma
que ciência e literatura teriam um “tempo” em comum, um ritmo
compartilhado; o outro, aquele no qual “o potencial estético das palavras”
é valorizado tanto pela literatura quanto pela ciência, que sabe que a
linguagem é também uma parte fundamental de seus procedimentos e
métodos (TAVARES in TAVARES; HISSA, 2011, p. 137).
No diálogo com Tavares, referindo-se à universidade
contemporânea e ao ritmo acelerado que certa visão produtivista imprimiu
às práticas que ali se realizam, Cássio Hissa pergunta ao escritor português:
“Não seria a lentidão o instrumento da precisão de quem cria e de quem
brinca com ideias, redesenha conceitos, produz saberes através de
diálogos?” (HISSA in TAVARES; HISSA, 2011, p. 134). Para sua
resposta, Tavares uma vez mais recorre a Wittgenstein, aquele “que vacila
entre a filosofia e a aviação”:
Estou perfeitamente de acordo com o tom da
pergunta, ou seja, para mim é claro que a
produção em quantidades, rapidamente, é algo
que se parece com o absurdo ou que nos faz entrar
no absurdo. Wittgenstein (1889-1951), numa
pequena passagem em um de seus livros, diz que
se dois filósofos se encontrassem na rua, o que
deveriam dizer um ao outro seria: mais devagar. É
52
o que penso. Duas universidades, caso se
cruzassem na rua, deveriam dizer uma à outra:
mais devagar. Porque as grandes obras são as que
se fazem com certo amadurecimento das coisas.
O tempo faz com que as ideias deixem cair as suas
partes mais fracas e há, com isso, um adensamento
de partes mais fortes. [...] Em determinadas
situações, sobre o cientista e o escritor, penso que
é quase o tempo que nos auxilia a fazer o nosso
trabalho. Nesse sentido, o tempo é o colaborador do
cientista, do escritor. O tempo é o nosso colaborador
mais antigo e mais sensato. É um luxo dispensá-
lo. Quando o homem dispensa o tempo como
colaborador é porque, talvez, tenha perdido o
discernimento. (TAVARES in TAVARES;
HISSA, 2011, p. 135-136, grifos originais)
Tavares retoma, assim, seu desejo de experimentar a literatura
como um lugar de paragem, estendendo-o também à ciência (TAVARES,
2011). O tempo do pensamento, o tempo do saber, cultivado com vagar.
O tempo necessário ao diálogo, à troca, à mistura, às ligações. O tempo
indispensável para que o saber seja reinventado no mundo, junto aos
sujeitos do mundo. Ciência e literatura se aproximariam, assim, como
“tempos de pensar” (HISSA, 2013), como movimentos para que se possa
compreender o mundo e frente a ele posicionar-se política, ética e
esteticamente. Pois, sim, nessa “ciência-saber”, ou no que proponho ser
possível pensar também como uma “ciência-arte”, o trabalho com a
palavra é fundamental, uma vez que a “pesquisa é escrita” (HISSA, 2013,
p. 62), que a escrita “é um acto de investigação” (TAVARES, 2010d). Uma
“ciência-arte” compreende que não deve se desvincular da linguagem, da
escrita, a qual faz parte do próprio processo de investigação e produção
de saberes. O potencial estético das palavras, nessa perspectiva, não é uma
preocupação necessária apenas à literatura, mas apresenta-se como
fundamental à essa ciência reinventada, que resiste em sua busca por
tempo, que resiste em seu trabalho artesanal com a palavra: “Eu acredito
que a ciência e a filosofia”, afirma Gonçalo Tavares, “também, podem
passar muito por esse encontro raro de palavras; ou seja, uma ideia nova,
53
criativa, pode muito ser o encontrar uma asserção rara de linguagem, porque a
linguagem está sempre entre a nossa investigação e os outros” (TAVARES in
TAVARES; HISSA, 2011, p. 138, grifos do autor).
Ciência e literatura, ciência e arte aproximadas, assim, por meio de
um movimento de linguagem, por meio de um hífen que provoca sua
união sem superposição, que provoca aberturas em uma e outra, que faz
com que ambas deslizem de seus lugares comuns para territórios outros,
contaminando-os e sendo por eles contaminadas, deixando-se misturar,
buscando mesmo esse compartilhamento. Ciência e literatura voltando-se
para o mundo, pensando-se junto ao mundo, rompendo com a ideia de
que existem frases que pensam e frases que contam histórias, objetos
poéticos e objetos científicos, e tomando-se como a ciência-arte das
ligações, tão ricamente pontuadas pelo escritor português nas suas Breves
notas sobre as ligações, e às quais recorro para encerrar este texto:
Incapacidade de desligação. Estou vivo:
impossível separar-me.
Ou: estou vivo: estou obrigado a ligar-me. [...]
As coisas aproximam-se. E mesmo: as coisas
afastam-se.
Porque o afastar é ainda um movimento de
ligação, movimento que prova a existência de
ligações com o outro; se me afasto é porque existe
algo de que me afasto.
Estou vivo porque me ligo e estou vivo porque
me afasto. (TAVARES, 2010a, p. 31-32).
54
REFERÊNCIAS
56
TAVARES, Gonçalo M. Atlas do corpo e da imaginação: teoria, fragmentos e
imagens. Alfragide: Caminho, 2013a.
TAVARES, Gonçalo M. A literatura é uma investigação que não termina.
Entrevista a Isabel Lucas. Público, 25 dez. 2013b. Disponível em:
http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/a-literatura-e-uma-
investigacao-que-nao-termina-328998. Acesso em 02 out. 2014.
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José Eduardo (Org.). Ofício da palavra. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. p.
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2, p. 3, jul./ago. 2014.
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ciência: o golpe decisivo com a mão esquerda. In: HISSA, Cássio Eduardo
Viana (Org.). Conversações: de artes e de ciências. Belo Horizonte: Editora
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VIGNAUX, Georges. O demónio da classificação: pensar/organizar.
Tradução de Sylvie Canape. Lisboa: Instituto Piaget, 2000.
57
58
Narrar por imagens: fricções entre cinema e
literatura
Leonardo Francisco Soares
Cohen-Séat entre fato cinematográfico e fato fílmico. O primeiro é constituído, a princípio, por
tudo que é exterior ao filme propriamente dito, o conjunto de condições exteriores do
cinema antes da realização do filme (financiamentos, legislações, tecnologias), já o
segundo abrange o próprio filme, como texto: a arquitetura das imagens, a composição
expressiva do relato, a relação entre a subjetividade do autor, o desempenho dos atores e
a interpretação dos espectadores. (METZ, 1980, p.11-12)
60
da produção, do vir a ser de sentidos e suas metamorfoses. Assim, as
imagens-sons projetadas na tela e o traço riscado na página estarão na
mesma cadeia significante: “[t]exto, tecido, teia, colcha, retalho, bordado.
Rede que produz sentidos e é produzida no tempo e no espaço”, para
dizer mais uma vez com Vera Casa Nova (1996, p.11).
Se escolhi começar pelas fricções do subtítulo, importa, agora,
tomar o mote principal deste ensaio, o narrar por imagens. Para tanto, é
preciso voltar ao cinema dos primeiros tempos.Coube aos Irmãos Lumière
o feito de realizarem a primeira projeção, com razoável perfeição técnica,
de apresentação do cinematógrafo; primeiro, em 28 de setembro de 1895,
no sudeste da França, e depois, em 28 de dezembro de 1895, no Grand
Café, em Paris. A exibição consistia de um programa de dez minutos com
10 filmes rodados pelos próprios Auguste e Louis Lumière, incluindo-se
nesse rol o famigerado L'arrivée d'un train en gare de La Ciotat (1895).32 Por
tal façanha, os irmãos franceses ganhariam a alcunha de pais do cinema.
Por sua vez, foi outro francês, Georges Méliès, quem abriu uma
nova possibilidade de agenciamento entre o real, o fictício e o imaginário,
um novo jeito de contar histórias, através das imagens-movimento.33 Depois
de assistir à exibição dos Lumière, Méliès, mágico e ilusionista, encanta-se
pela novidade e aposta em suas potencialidades, sendo o pioneiro no uso
de atores, cenários, figurinos e maquiagem na produção de um filme.
Opondo-se ao empenho “realista e documentarista” dos Irmãos Lumiére,
Méliès será o primeiro a desenvolver o potencial narrativo do Dispositivo34
fílmico, ao passar da imagem à narratividade, pois, como bem observa
Christian Metz: “[p]assar de uma imagem a duas imagens, é passar da
imagem à linguagem.” (METZ, 1977, p.63).
O episódio já foi bastante contado e recontado, chegando a ganhar
ares de “lenda”: conta-se que, certa vez, ao projetar uma cena que acabara
de rodar na Praça da Ópera, com uma câmara defeituosa, George Méliès
viu um ônibus transformar-se num carro – na verdade,a película prendeu-
se de algum modo no aparelho, sendo que este parou durante alguns
poucos segundos, sem que Méliès percebesse o problema, e voltando a
rodar o filme logo em seguida. O defeito virará efeito já em Escamotage
61
d’une Dame chez Robert Houdin (1896),35 quando Méliès filma uma mulher
sentada em um set de filmagem, com cenário de fundo pintado, e espera
ela sair do quadro para depois filmar a cadeira vazia: na cena projetada, a
mulher parece evaporar-se. Visando aperfeiçoar o truque, Méliès, que no
curto filme interpreta um elegante ilusionista, substitui a mulher por um
esqueleto humano, criando um jogo de aparição e desaparição, que,
seguidamente, fará a alegria do público dos seus primeiros filmes.
Começava, nesse acidente cinematográfico de percurso, um capítulo
importante na construção da imagem fílmica.
Do interesse inicial em se criar o ilusionismo – a partir de técnicas
de fotografia, maquiagem e decupagem mínima – para impressionar os
primeiros espectadores, George Méliès passa a investir no intento de
narrar histórias com as imagens projetadas pelo cinematógrafo. Para tanto,
o precursor francês buscará na literatura os modelos narrativos com os
quais dialoga e dos quais se distancia. Duas de suas adaptações de textos
literários para a tela são bastante lembradas: Cinderella (1899)36 e Le Voyage
dans la lune (1902).37 Ter-se-ia, aí, uma primeira possiblidade de contato do
cinema com a literatura. Por seu caráter de agenciamento de diferentes
signos, a narrativa literária impregna o cinema, que se torna,
majoritariamente, um meio de contar histórias através dos recursos da
imagem-movimento, sendo que, mais tarde, o fato fílmico fornecerá temas e
procedimentos específicos à literatura. Em importante estudo, César
Guimarães (1997, p.109-142) chama a atenção para o fato de que esse
“circuito de mão dupla”, aparentemente legítimo, guarda alguns
pressupostos que precisam ser problematizados. Em primeiro lugar,
haveria a dupla defasagem – temporal e técnica – que paira sobre esse
sistema de circularidade. A questão posta é a seguinte: a recorrência de
empréstimos sanaria a defasagem, fornecendo a ilusão de que a diferença
temporal – o “atraso” do cinema em relação à performance narrativa dos
textos literários – foi recuperada a partir da equivalência dos meios
técnicos – com a literatura incorporando temas e procedimentos
constitutivos das imagens-movimento.
62
Tudo se passa como se literatura e cinema
disputassem uma corrida que, embora não possua
um mesmo ponto de partida, estranhamente
possui uma linha de chegada equivalente: a
narratividade, para o cinema; e o modo
“cinematográfico” de narrar, para a literatura. O
problema – para ficar com a metáfora da corrida
– é que cinema e literatura não apenas correm em
pistas distintas (embora seus tempos às vezes se
aproximem, outras vezes se distanciem), mas
também não almejam o mesmo prêmio. Há que
se esclarecer, portanto, em que ocasião e sob
quais condições um tipo particular de cinema
aproxima-se de um determinado modelo literário
e vice-versa, isto é, como e quando determinados
textos aproximam-se de um regime particular de
cinema. (GUIMARÃES, 1997, p.112).
Além disso, outras questões se apresentam: seriam essas
potencialidades narrativas inerentes ao Dispositivo fílmico? O cinema seria
um veículo para narrativa?
Ao longo da história do cinema, em especial a partir de David W.
Griffith, que marca o início da consolidação de um Modo de
Representação Institucional (M.R.I.),38 à dinâmica do mostrar sobrepõe-se
a do contar, o texto fílmico é tomado pelo logro da representação, a
imagem como uma analogia, uma semelhança, um efeito de real.
Conforme salienta César Guimarães (1997, p.119), o romance realista irá
contribuir para reforçar uma dupla tendência do Modo de Representação
Institucional: “naturalista”, ao buscar a identificação estrita da imagem
com os aspectos físicos imediatos do mundo fora da tela, e,
66
naquela ocasião foi Le Repas (de Bébé).41 A câmara é postada de modo
bastante aproximado a uma mesa localizada em um jardim de uma casa,
propiciando uma visão de conjunto de uma cena familiar, que poderia ser
sumariamente descrita da seguinte maneira: um bebê aparece sentado em
uma mesa entre seus pais alegres, no caso Auguste e Marguerite Lumière.
Enquanto o pai o alimenta com uma colher, a mãe está despejando café
em sua xícara. O pai dá ao bebê um biscoito. Apesar do incentivo dos pais,
o bebé agarra o biscoito, mas não o come. O pai retoma a alimentação do
bebê com a colher; fim do filme. Na configuração do quadro, o bebê
ocupa o centro da tela (e da mesa) cercado por seus pais. Ao fundo, é
possível ver, por trás da casa, as árvores do jardim sendo agitadas pelo
vento enquanto a sequência de 41 segundos tem andamento. Por essa
configuração da imagem, o espectador é convidado a olhar as caretas do
bebê e os mimos e sorrisos dos pais.
Reza a lenda – “quando a lenda é maior que o fato, publique-se a
lenda”42 – que um espectador presente àquela sessão não achou graça
nenhuma naquela cena típica de um gênero futuramente bastante popular,
o filme de família. Este espectador era ninguém menos que Georges
Méliès. Mèliès desviou seu olhar para um pormenor aparentemente inútil
no desenvolvimento da cena, e que para ele significava o prodígio do
cinema: as folhas das árvores se movendo ao fundo no canto da tela.
Estaria ali a novidade, a possibilidade de o cinema capturar o efêmero, o
fugidio, o que não se repete. Ainda em tom anedótico, pode-se afirmar
que, espécie de leitor de Roland Barthes, avant la lettre, Méliès visualizou
nas folhas que se movem, que insistem em marcar presença, o que Barthes
irá caracterizar como o “terceiro nível de sentido”, que ultrapassa os níveis
informativo e simbólico, um sentido “que se pode situar teoricamente,
porém não se pode descrever” (BARTHES, 1990, p.58), forma alternativa
de atenção ao fragmento, leitura oblíqua da cena que recupera o que está
lá como “excesso” na imagem. Ou ainda a noção de punctum, trazida em
A câmara clara (1984), para se referir ao que fisga o olhar do espectador
diante da fotografia.
43Realizo uma leitura ampliada do filme em diálogo com o romance A força do destino, de
Nélida Piñon, em minha pesquisa de mestrado, citada anteriormente. (cf. SOARES,
2000).
44A sequência encontra-se disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=oapv4ybSfwc >.
68
velha câmara de projeção. Depois desses planos, autônomos e
autossuficientes, da multidão no cais, emerge uma espécie de
caleidoscópio do universo felliniano, com seus clowns e suas matronas,
enquanto a câmara inicia os primeiros movimentos de eixo. A seguir
surgem “ruídos realistas”, os do navio, para aparecer em seguida, como
nos filmes mudos, o uso do gráfico, os intertítulos, a primeira cartela:
“Perguntam o que está acontecendo. Quem sabe?”. Aos poucos, as
imagens vão ganhando uma certa linearidade. Finalmente, ao som do
piano, com a chegada do carro fúnebre, o espectador é informado a
respeito das cinzas de Edmea Tetua, o motivo da viagem; nesse momento,
a cor aparece lentamente, assim como as vozes, os diálogos, os amplos
movimentos de câmara e a primeira ópera: La forza del destino, de Giuseppe
Verdi.45 O navio segue sobre o mar de plástico, enquanto os passageiros
cantam: “Sigamos sobre as vagas da alegria e do pesar. A rota mais
romântica do navio que vai.”
Nas vagas do mar assumidamente de plástico, Federico Fellini opta
pelo simulacro, consciente de que a imagem encerra, na ausência do objeto
que reproduz, um certificado de presença, pois, como nos adverte Roland
Barthes, com o advento da fotografia, “[...] o passado, doravante, é, tão
seguro como o presente, o que se vê no papel é tão seguro como aquilo
que se toca.” (BARTHES, 1984, p.130). É como afirma uma passageira do
Glória N, ao ver o sol se pondo no horizonte: “Veja... que lindo... nem
parece real”. Na verdade, a intenção é justamente essa, descolar-se do
referente para apoiar-se no simulacro, pois este fabrica um “hiper-real”
mais verdadeiro e funcional que o próprio referente. Assim, o cinema de
Federico Fellini passa da era da representação para a era da simulação;
poder-se-ia dizer, provocativamente, do Modo de Representação
Institucional para o Modo de Representação Primitivo, tomado este
último como o que rompe com o modo de representação dominante.
45La forza del destino, a primeira ópera a irromper em E la nave va, irá marcar a viagem do
Glória N. O tema musical do “Destino”, toda a composição de abertura e outras
passagens da ópera de Giuseppe Verdi, com libreto de Francisco Maria Piave e Antonio
Ghislanzoni, serão ouvidos, ao longo do filme de Federico Fellini, ao lado de trechos de
outras óperas de Verdi, assim como obras de compositores como Rossini, Bellini e
Tchaikovski, citados e transcriados pelo olhar do cineasta italiano. Sobre as relações do
filme de Federico com a ópera, ver Soares (2000).
69
“Tudo que é passado recai no cristal e nele fica”, afirma Gilles
Deleuze (1990, p.109), em suas reflexões sobre a imagem-tempo; no caso do
filme de Federico Fellini, o cristal vem sob a forma do mar de plástico, a
imagem especular do simulacro, que engole as cinzas de Tetua, as cinzas
de um imaginário, e sob o qual o navio se move.
Nas sequências finais do filme, o cineasta italiano exibe o aparato
técnico utilizado na sua produção.46 Em depoimento a Charlotte Chandler,
Federico Fellini lembra: “[o] mar era feito de polietileno. O pôr-do-sol
artificial era lindíssimo e também devia parecer artificial, foi nossa
intenção. No final, mostro o estúdio e a mim mesmo atrás da câmara.
Desvendo todo o encanto mágico.” (CHANDLER, 1995, p.198). Nesse
momento, o jogo de mostras e máscaras faz-se nítido. Ao revelar-se a
câmara que foca o navio e todo o arsenal técnico utilizado na construção
do texto fílmico, o espectador tem por um instante a sensação de estar
diante de um desmascaramento total dos artifícios do espetáculo
cinematográfico. No entanto, trata-se de um logro, pois há um outro olhar:
afinal, a câmara que foca o navio está em foco. O espectador vê uma
imagem mediada por um olhar exterior que organiza a cena, estabelecendo
uma ponte mas também se interpondo entre ele e a tela. O real converte-
se em virtual e vice-versa, reiniciando-se o jogo de mostras e máscaras,
que abre a cena ao infinito.
É exatamente em torno de outros sentidos, como as folhas
capturadas pelo olhar de Méliès, as letras e corpos de Peter Greenaway,
que se movem as imagens de E la nave va. Real e espetáculo se atravessam,
se justapõem de maneira surpreendente e em níveis que criam um estado
de indiscernibilidade. Esse estado de indiscernibilidade é da ordem do que
Deleuze irá chamar de imagem-cristal, uma imagem bifacial, a um só tempo
atual e virtual: “o objeto real reflete-se numa imagem especular tal como
no objeto virtual que, por seu lado e ao mesmo tempo, envolve ou reflete
o real: há ‘coalescência’ entre os dois” (DELEUZE, 1990, p.87-88), em
um duplo movimento, uma face dupla que não se confunde ou anula, mas
tem na unidade indivisível de uma imagem atual e de sua correspondente
virtual o seu caráter distintivo. “É como se o real e o imaginário corressem
um atrás do outro, se refletissem um no outro, em torno de um ponto de
71
REFERÊNCIAS
72
E LA NAVE va. Direção: Federico Fellini. Itália/França, 1983.
ESCAMOTAGE d'une dame chez Robert Houdin. Direção de Georges
Méliès. França, 1896. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=u3VERvzjeEs>. Acesso em 25
mar. 2015.
GREENAWAY, Peter. Cinema: 105 anos de texto ilustrado. Aletria:
Revista de Estudos de Literatura, Belo Horizonte, n.8, p.9-12, 2001.
GUIMARÃES, César. Algumas aproximações entre literatura e cinema.
In: GUIMARÃES, César. Imagens da memória: entre o legível e o visível.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997. p.109-142.
O HOMEM que não matou o facínora. Direçaõ: John Ford. EUA, 1962.
(Tradução de THE MAN Who Shot Liberty Valance).
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(Tradução de THE PILLOW book).
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Perspectiva, 1980.
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Disponível em:
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SHÔNAGON, Sei. O livro do travesseiro. Tradução Geny Wakisaka et al. São
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SOARES, Leonardo F. Rotas Abissais: mimese e representação em A força
do destino, de Nélida Piñon e E la nave va, de Federico Fellini. 2000. 141f.
Dissertação (Mestrado em Letras-Estudos Literários) - Faculdade de
Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2000.
LE VOYAGE dans la Lune. Direção: George Méliès. França, 1902.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=9m830jhUi3E>.
Acesso em 25 mar. 2015.
XAVIER, Ismail. As aventuras do Dispositivo (1978-2004). In: XAVIER,
Ismail. O discurso cinematográfico. 4.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. p.175-
207.
73
XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do
olhar no cinema. In: PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão.
São Paulo: Senac/Instituto Itaú Cultural, 2003. p. 61-90.
74
Ensaio sobre a tradução coletiva: Presos pelo
estômago, livres pelo filme
Augusto Rodrigues Silva Junior
Eclair Antonio Almeida Filho
Lemuel da Cruz Gandara
76
Esse aspecto foi motivado pelo processo de elaboração coletiva do
roteiro cinematográfico (em coautoria com Silvestre e Cláudia
Natividade). O diretor Marcos Jorge estudou cinema na Itália. Essa
formação, numa concepção bakhtiniana, foi refratada em Estômago; por
exemplo, o personagem italiano Giovanni já aparecia nos primeiros
tratamentos do roteiro e já havia referências a cineastas italianos como
Federico Fellini e Sergio Leone: “Sendo Estômago o meu primeiro longa-
metragem, busquei colocar nele uma série de pequenas homenagens ao
cinema que amo e que me inspira” (JORGE, 2007). Dessa forma, a
negociação com a produtora Indiana (na Itália) foi possível e, por ser um
acordo igualitário, a nacionalidade foi compartilhada.
Outro fato, e o mais importante para conectar o filme com o
cinema literário brasileiro, é o diálogo entre os movimentadores da Pós-
Retomada. Além de Cidade de Deus, em 2002, outro filme traduzido da
literatura para o cinema foi O invasor (Beto Brant, 2002). O longa-
metragem também se tornou basilar para entendermos as mudanças de
paradigmas do cinema nacional. De acordo com Jorge (2007), “a escolha
do Paulo Miklos para o personagem do Etecetera foi também uma
pequena homenagem ao cinema brasileiro da Retomada”. Assim, o diretor
trouxe para o interior do filme as referências italianas e brasileiras. Isso
reflete, esteticamente, nossa ideia de cinema literário brasileiro Pós-
Retomada e fundamenta nossa leitura pelo viés da cultura italiana.
Efetivamente, o filme estreou em 11 de abril. A obra, como já
sinalizamos, trouxe novo fôlego em questão de estética fílmica, narrativa
e possibilidades de reconfiguração do literário, além de se vincular
diretamente à linhagem de Cidade de Deus e de O invasor por meio da
apresentação de questões sociais semelhantes: a violência, a cidade, o
universo masculinizado de “homens mais com nome de cadeia mesmo”
(00:12:32), como diz Alecrim a caminho da cela. Com esse panorama,
podemos perceber várias camadas do que consideramos uma estética da
criação cinematográfica no âmbito brasileiro.
Estômago, enquanto obra de tradução coletiva, passou por
inúmeros processos de criação e recepção. Nasceu de um conto específico,
mas também retoma outros textos do livro intitulado Pólvora, gorgonzola e
alecrim (2005). O conto gerou o filme; e este, por sua vez, deu origem a
dois livros, um com o roteiro e outro com as receitas. Assim, temos um
77
filme que se insere no cinema literário brasileiro ao propor uma tradução
coletiva de uma obra nacional e expande, em celuloide e outros medias, a
biografia de seu protagonista (Raimundo Nonato/ Nonato
Canivete/Alecrim).
Dentro de uma estética da criação cinematográfica que vimos
pensando a partir dos estudos do filósofo russo Mikhail Bakhtin, Estômago,
como já ressaltamos, pode ser considerado como parte do cinema literário.
O conto “Presos pelo estômago” possibilitou o filme, que se apresenta
como resposta artística enformada na tradução coletiva. Por seu turno,
essa especificidade de tradução visa analiticamente os vários leitores que
colocam em movimento sua recepção por meio da função que exercem na
produção fílmica.
Gadamer afirma que “toda tradução já é, por isso, uma
interpretação, e inclusive pode-se dizer que é a consumação da
interpretação, a qual o tradutor deixa amadurecer na palavra o que se lhe
oferece” (1999, p. 560). Nesse sentido, seja por via dos figurinos ou da
direção, o tradutor somará sua leitura ao todo acabado do filme (SILVA
JR.; GANDARA, 2013, p. 84). Essa ideia também é partilhada por Lusa
Silvestre: “Cinema é trabalho em grupo. Os atores acrescentam vida aos
personagens. [...] O montador dá um corte que simplifica. O roteirista
refaz os offs. Enfim: esporte coletivo, todo mundo jogando pra fazer gol”
(2008, p. 8). Dessa forma, podemos pensar o filme a partir de vários
pontos de vista. No nosso caso, nos atentaremos mais ao roteiro
cinematográfico.
Duas narrativas separadas pelo tempo, mas que se fundem ao final,
contam as trajetórias do retirante nordestino, com referências ao Ceará e
à Paraíba, como é corrente no país. Recém-chegado numa Curitiba que
não se deixa definir exatamente como tal, mas como uma cidade grande e
inóspita, Raimundo Nonato passa por uma série de conflitos éticos e
sociais com os habitantes da cidade, algo que nos remete ao protagonista
de Marcovaldo, escrito por Italo Calvino (2013). O personagem convive
com donos de bar e de restaurante, com prostitutas e presos. Nas quatro
situações ele “se prende”, aprende no seu jeito naif de ser e apreende no
seu jeito trickster de ser, numa dialógica da malandragem. A obra estabelece
um diálogo com a linhagem projetada por Cidade de Deus no início do Pós-
Retomada ao mostrar os conflitos de indivíduos marginalizados no meio
78
urbano, propor uma violência masculinizada em lugares que não estão na
ordem do dia e reinterpretar ordens sociais segundo o espaço de
confinamento físico e psicológico percorridos por Nonato: preso num
quartinho de bar no dia em que chega na cidade, agregado, em relação de
amizade, com um italiano dono de um restaurante para uma classe mais
alta e na cadeia.
Ao mesmo tempo em que trata de temas indigestos como uma
dose de maria louca (bebida elaborada e tomada pelos detentos), a obra
também ganha a leveza aromática que leva o público a aproximar-se
empaticamente do protagonista Alecrim. Essa ideia nos faz recordar os
cogumelos de Marcovaldo no meio do mundo cinza e miserável
(CALVINO, 2013), circunstância emblemática da obra do italiano e que
reflete sua inclinação a “uma escrita lúdica, que visava, acima de tudo,
divertir o seu leitor” (ALMEIDA FILHO, 2011, p. 285). No filme, essa
leveza-lúdica se deve ao processo de aprendizado da gastronomia iniciado
pelo personagem, pela configuração de um homem de vocabulário
econômico, mas capaz de recontar, de forma brejeira, tudo aquilo que
aprendeu com Seu Geovanni. Sua ambição é desmedida, mas, por vezes,
confusa, pois não percebe o habitus do meretrício e do restaurante granfino.
Ao passo que o da cadeia ele assimila, e atua bem entre pares – pela ação,
pela argumentação e por perceber que o “ser humano fraqueja, amolece”
(00:38:54).
No conto, as questões gastronômicas, além de temperarem a
violência, a tornam mais digerível, como nesta passagem em que
Raimundo Nonato (cujo nome, riobaldianamente, sofre metamorfoses)
diz aos companheiros de cela que sabe cozinhar:
– Esta comida está uma merda.
– Quer que eu chame o garçom pra você
reclamar?
Dois dos detentos de beliche conversam.
79
– Um filho da puta.
– Mas cozinhava.
– Sabe que se colocar um alecrim e um pouco de
queijo ralado, melhora?
Os dois se voltaram pro Nonato.
– Você sabe como faz pra cozinhar?
– Sei. Trabalhava com isso.
(SILVESTRE, 2005, p. 23)
No diálogo, ficamos sabendo que o ex-detento cozinheiro, que
fora transferido para o presídio de Taubaté, morreu (“já Elvis, foi pro
saco”), o que desperta a curiosidade e um certo instinto de sobrevivência
de Nonato, até então silenciado, ocupando a sarjeta da cela e trabalhando
como faxineiro. Ele interpela a conversa de forma quase sussurrada e dá
dicas para melhorar a comida. Essa atitude garante ao personagem uma
ascensão entre os presos e permite que ele tenha a confiança de Bujiú, o
líder da cela. Pela palavra, como Riobaldo diante de Zé Bebelo, Alecrim
torna-se uma espécie de bandido em ascensão. Se o jaguncismo e os
sertões apresentam menos presença no literário, os “bandidos” continuam
instigando novas visadas da violência brasileira: presos pelo estômago,
“invasores” e moradores de cidades de deus invadem páginas e telas.
A inserção do lado culinário e as piadas suavizam a morte brutal
do preso de “cabelo ruim” e a condição marginal dos personagens exilados
do convívio social. Nesse mesmo viés, o filme nos permite pensar sobre a
violência ressentida no cinema brasileiro, a qual não é exposta através do
sangue, mas pelas ações sutis que provocam o mesmo impacto (XAVIER,
2006). Na tradução coletiva, a comida envelhecida e as larvas no prato,
elementos criados pela diretora de arte Jussara Perussolo, são balizadas
pela reação dos detentos depois da revelação dos saberes gastronômicos:
a câmera capta em close o rosto estupefato de cada personagem, como se
ter um cozinheiro fosse uma redenção possível dentro de uma cadeia:
80
Figura 1: A reação dos detentos ao saberem que Alecrim sabe cozinhar em
Estômago (00:29:37)
81
prisão e a se tornar Alecrim. Do livro ao roteiro, do roteiro ao filme, em
tradução coletiva:
Roteiro cinematográfico
A câmera passeia pelo flanco e pelas costas de Íria
até chegar em seu rosto. Na beira da cama, Íria
está... Comendo. [...] A câmera continua o
movimento e desce em direção ao colchão, onde
encontra uma marmita aberta, com dentro uma
boa porção de macarrão, preparado com molho
à putanesca. Íria pega um bocado de macarrão e
leva à boca (JORGE, SILVESTRE E
NATIVIDADE, 2008, p. 161/2, grifo nosso).
Roteiro cinematográfico
INT. SALÃO DO RESTAURANTE – NOITE
Giovanni chega na mesa com a sobremesa e Íria
ataca o prato. Giovanni senta-se ao lado dela e,
enquanto esta come, tenta dar-lhe um beijo. Íria
acaba a sobremesa, apanha um guardanapo, limpa
rapidamente a boca, e beija Giovanni na boca,
82
longa e sensualmente (JORGE, SILVESTRE E
NATIVIDADE, 2008, p. 240, grifo nosso).
84
Woodpeecker) criado por Ben Hardaway, Walter Lantz e Alex Lovy em
1940. Mesmo na miséria não perde o bom humor, traz certas doses de
“maldade”, quer sempre levar vantagem, “nunca ficar por baixo” –
ressalte-se sua tatuagem de “pássaro louco” mostrada na cena do grande
banquete. Assim, temos um personagem dialógico em sua composição.
Ao mesmo tempo agregando o talento culinário, multifaces que
reverberam no ato de cozinhar para o outro e uma capacidade discursiva
de argumentar na composição das cenas. Nonato é autônomo nos modos
de fazer e nos modos de discursar.
O aspecto estético gerado pela comida e pelo ato de cozinhá-la no
filme se desdobrou em dois medias próprios da era da reprodutibilidade
técnica preconizada por Walter Benjamin (2012). O primeiro foi a versão
em DVD com as receitas em easter egg. Sempre que Nonato/Alecrim ou
Giovanni cozinham aparece um ícone que indica a receita integral da
iguaria – desde pratos requintados da ceia final à famosa coxinha do nosso
dia a dia. Esta, por sua vez, no segundo media, se tornou uma marca do
personagem e foi estampada na capa do livro de receitas do filme. O
interessante desse livro é que o Alecrim cinematográfico retorna enquanto
voz-escrita-narrativa:
Olhe, a idéia foi a seguinte: juntaram o povo desse
negócio de blog – blog de comida, né – e pediram
pra eles assistirem o filme. Eles assistiram,
gostaram, muitos elogios (vou até fazer outro
dicionário), e daí depois eles do blog inventaram
receitas inspiradas no filme, percebe? Filme de
comida dando ideia pra fazer uns pratos de
comida. Então. Daí que o povo dos blogs criou,
por exemplo, o “Filé do Etecétera”, a “Coxinha
da Íria” (devia de ser coxão, eita saudade), e um monte
de outros pratos. Os melhores, a gente pôs aqui,
nesse livro. Depois, se der certo, se as pessoas
gostarem e disserem “gostei, viu?”,daí capaz da gente
publicar em página escrita mesmo, não sabe? Mas por
enquanto, é aqui. É gostoso. Vocês vão comer de
limpar o prato. E melhor ainda: é tudo receita que
dá certo. Não é igual aquelas receitas que a gente
85
vê na televisão, que fica linda na tela, mas depois
quando a gente faz nas panelas, fica pior que dançar
com irmã em formatura. Ave Maria. (GUERRA et al,
2008, p. 5, grifos nossos)
As partes grifadas equivalem às marcas prosódicas de Alecrim, no
filme, que foram estilizadas pelo ator João Miguel. Além disso, também
temos índices da narrativa fílmica, por exemplo: “devia de ser coxão, eita
saudade”; “Ave Maria”. Dessa maneira, Alecrim surge no conto, tem sua
biografia expandida no filme e retorna à palavra já revestida de imagem,
sonoridade cinematográfica, blog. Temos um “universo paralelo” no
movimento dialógico da obra, pois o filme e as receitas são interpretação no
sentido proposto por Bakhtin: “o correlacionamento de dado texto com
outros textos. O comentário. A índole dialógica desse correlacionamento”
(BAKHTIN, 2003, p. 400). Neste caso, o cinema literário se vê expandido.
A voz do personagem, na vocalidade do ator, na captação da sonoplasta
Maricetta Lombardo, na ação dos outros atores-personagens diante desta
voz de cozinheiro o leva a outros horizontes – no âmbito de uma estética
da criação cinematográfica e/ou numa espécie de respondibilidade, para
ficarmos no plano aberto de uma estética da criação verbal.
É interessante perceber que, além de “Pra comer”, o filme
estabelece relação com outros contos de Lusa Silvestre. Trazemos a
referência ao futebol (que o próprio autor já usou ao falar da coletividade
fílmica). No conto “Areias”, o jogo se dá entre o time da cidade-título
contra o da fazenda de Zé Magalhães – em um momento de tensão social
e de campanha política. No filme, os presos formam times e a figura de
Bujiú ganha destaque numa espécie de “dono da bola”, por ser o dono da
cadeia (00:48:45). Durante os jogos, há trocas de mercadorias
contrabandeadas entre os “jogadores” e os carcereiros. O interessante é
que, diferente dos pedidos habituais, Alecrim pede ingredientes
gastronômicos para cozinhar para seus colegas de cela.
No pátio da penitenciária, Nonato e Boquenga
assistem a uma partida de futebol entre os
detentos. Bujiú lidera um dos times e reclama
muito durante o jogo. Vagnão carcereiro chega, e
aproxima-se de Nonato.
86
VAGNÃO CARCEREIRO: – Alecrim!!! Vê aí se
é isso que você queria.
Vagnão coloca um pacote no colo do Nonato.
Nonato abre e olha o conteúdo: é um pedaço de
queijo parmesão. Nonato observa com atenção,
cheira mais de uma vez o queijo, dá uma bela
risada e sentencia:
NONATO: – É isso mesmo! Maravilha!
(JORGE, SILVESTRE E NATIVIDADE, 2008,
p. 182/3)
Tanto no conto quanto no filme, o jogo de futebol é apenas um
meio para que outras relações sejam desenvolvidas. Política e cultura
popular em um, comida e política no outro. Os jogos se multiplicam.
Todos são adversários, todos querem chegar ao gol mas, ao invés da
coletividade, como no fazer do filme, tudo é individualista e
individualizado.
Na obra de Jorge, Alecrim usa seu talento culinário inicialmente
para aproximar-se dos detentos e evitar futuros atos de violência. À
medida em que ele consegue uma ascensão na cela, muito bem ilustrada
com a posição dos beliches, seus objetivos são revistos e surge um desejo
revelado somente no final antropofágico. Na sequência do banquete de
recepção a Etecetera na “cozinha principal da prisão”, Alecrim mata o
chefe Bujiú envenenado e toma a liderança da cela.
Bakhtin reflete que as imagens de banquete são “profundamente
conscientes, intencionais, filosóficas, ricas em matizes e ligações vivas com
todo o contexto que as envolve” (2002, p. 246-247). Nesse sentido, o
banquete final do filme (Fig. 4), onde estão reunidos Bujiú e Etecetera
(dois dos “bandidos” mais perigosos do lugar), marca o momento em que
são revelados o crime que levou Nonato para a prisão e o plano dele para
se tornar o novo líder da cela para ficar no beliche mais alto. Ou seja, não
é apenas uma cena onde todos compartilham a mesma refeição, é também
onde as tramas da narrativa se encontram intencional e conscientemente.
A única diferença é que no banquete renascentista, estudado por Bakhtin
na obra de François Rabelais, a filosofia é sempre plena de abundância e
votos de ressurreição. Nos banquetes brasileiros, as mortes são iminentes,
87
a violência limita uma expressão positiva da ressurreição, mas as imagens
de abundância permanecem:
Figura 4: Bujiú (à esquerda) pronto para cortar o leitão assado para o Banquete
de Etecetera (01:41:49)
90
REFERÊNCIAS
91
XAVIER, Ismail. In: ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de Novo: Um
Balanço Crítico da Retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.
DOCUMENTOS ELETRÔNICOS
FILMES CITADOS
92
Identidad y cultura en el occidente de México:
una aproximación metafórica a las fronteras del
sujeto desde los apodos en Tonila, Jalisco
Gloria Ignacia Vergara Mendoza
José Manuel González Freire
Lucila Gutiérrez Santana
47
Ver la discusión sobre identidad en Vergara (2004).
93
espectro de la metáfora con relación a la metáfora cotidiana, Ricoeur ‒
anclado en el terreno del arte y de la intencionalidad como concepto que
deviene del pensamiento fenomenológico‒ retoma el principio aristotélico
de que la metáfora pone las cosas ante los ojos; es decir, revela, hace ver,
a partir de su capacidad sintética y relacional.
Según Ricoeur, la metáfora conserva su raíz literal. Gracias a esto
ocurre el sentido amplificador en el arte, pues la contextualización se
convierte en detonador, al momento de hacer la relación entre lo que es y
lo que no es. Así vamos concretizando, viviendo, experimentando en el
efecto mismo de las redes metafóricas que establece la textualidad de la
comprensión, más amplia y “completa” que el texto expresado; aunque
esto ocurre no de manera definitiva, porque la textualidad de la
comprensión está en constante cambio, haciéndose y “asiéndose” al texto
base48. Es decir, el principio metafórico no se reduce en este sentido; es
más bien un patrón de relaciones que se dan a partir de una palabra núcleo
para expandirse y crear incendios de sentido.
Por otro lado, al estudiar los apodos se hace patente que la riqueza
de la metáfora oral radica no sólo en los destilados juegos verbales de la
glosalia o los trabalenguas; sino que en estos textos-palabras, llamados
apodos, en que se finca el nombre, queda una historia latente que, cuando
se hace visible en la textualidad de la comprensión, expande el campo
identitario del sujeto y de su grupo o comunidad.
Revisando la historia de la gramática, podríamos partir del origen
de los apodos y sobrenombres, como el “nombre que suele darse a una
persona, en sustitución del propio, normalmente tomado de sus
peculiaridades físicas o de alguna otra circunstancia” (REAL, 2014). Con
base en lo anterior, podemos señalar la Onomástica (rama de la Lingüística
destinada al estudio de los nombres propios) como una disciplina poco
abordada en México; existen sólo algunos trabajos acerca de los apodos,
los cuales encierran tradiciones, tabúes e historias (TIBÓN, 1986).
En este terreno, en el que apenas iniciamos nuestro estudio, es
posible ver que lo arquetípico del sujeto sobresale en un apodo, de tal
suerte que llega a suplantar al nombre y su condición para enfatizar la
95
ORALIDAD, IDENTIDAD CULTURAL Y CULTURA
IDENTITARIA
96
objetos, es posible que se nombre de manera diferente a una persona, por
un nombre desconocido o poco utilizado en otros países; tomemos el
ejemplo del tlacuache, nombre proveniente del nahúatl que se da en gran
parte de México a las zarigüeyas.
49
Roman Ingarden afirma que la obra de arte literaria posee una estructura
esquemática y multiestratificada que contiene por lo menos 4 estratos: materia fónica,
unidades de sentido, objetos representados y aspectos esquematizados. Esta estructura
permite que la obra sea intersubjetiva, es decir que múltiples sujetos puedan acceder
a su comprehensióna través del lenguaje. En general, podríamos ampliar esta idea a
las diversas textualidades que tienen que ver con la palabra, en donde de hecho es
posible contemplar las textualidades emergentes de los apodos.
97
apodos tienen un complemento, como ocurre con: La tortilla con chile, la
changa de circo, las vacas de lidia, pico de gallina. Otros, se conforman como
construcciones nominales de artículo + nombre + adjetivo: Los ricos pobres,
el ángel dormido, el bule remendado, la campana mayor, el puerco ensebado, el gato
cursiento, el gallo cachetón o el perrito traidor. Pero la riqueza de estos apodos
emerge cuando se conoce el motivo por el que se nombra a los sujetos y
la historia de vida que se va configurando a su alrededor.
En los apodos estudiados aparece también la estructura de nombre
+ adjetivo o hipocorístico + adjetivo que guardan una analogía con la
relación nombre + apellido y que con ello acentúan la ironía o el sarcasmo
a través de la caracterización negativa del sujeto: Juana mocos o Nacho pedotes.
Otra construcción sintáctica excepcional que nos encontramos es la del
apodo Te gusta, en donde la acción acentuada en la segunda persona se
convierte en nombre como apodo. O el caso de un apodo para dos
personas inseparables: Juan de olor y Juan de amor.
Pero si vamos más allá de las estructuras y de lo fónico, podemos
encontrar una mayor riqueza en los campos semánticos que ponen de
manifiesto la comida, la flora y la fauna, que se convierten en la base
fundamental para nombrar al otro. Por ahora, en este punto, delimitamos
nuestro estudio a los apodos relacionados con la comida y los animales.
Veamos algunos aspectos de ellos en la tabla que se muestra a
continuación.
1. El chilito No se sabe.
7. La cuajada Era blanca y gorda. Por blanca y gorda. La hermana del padre.
Destaca estatura y color, pero además la
Requesón hecho de condición de ser hermana del sacerdote del
los residuos de la pueblo.
leche en el suero
después de hecho
queso, generalmente
agregando algo de
leche (REAL).
En México es la
leche que se cuaja
antes de hacer el
queso, parecida a la
panela, no al
requesón.
10. Los muéganos Son unos dulces. Manejaba el cine uno de los hermanos y allí
estaban diario vendiendo dulces que se
llaman muéganos.
Enfatizan acción y oficio.
100
2. El tecolote Tiene los ojos oscuros y está Por feo y ojos de
cejudo. tecolote.
Destaca la fealdad a
partir de los rasgos
físicos.
3.Elapalcuate Nomás los ojos le abultaban. El Por prieto.
apalcuate es bien prieto, hasta Describe el color
azulea de tan prieto. como un defecto.
5. Las calandrias Una mujer que vivía allá donde Por gritona y
ponen el tianguis. corajuda, porque las
calandrias hasta se
mueren de coraje
cuando las agarran.
Enfatiza el carácter.
101
9. El pichacuate Un pájaro que canta de noche. Porque estaba
Mucha gente cree que avisa hablando mucho
cuando ya se murió alguien. como cantan los
pichacuates.
No está en el diccionario de Destaca la acción.
mexicanismos, sí en
Colimotismos(p.140)
Serpiente en Sonora.
10.La changa de circo Andaba vestida como payasa. Porque traía los
pantalones de
colores y
acampanados.
Enfatiza el vestido
inadecuado para los
parámetros del
pueblo. Juzga la
apariencia.
102
día en La Esperanza. Ese fue el personas
gran torero. nombradas.
19. Los perritos Había dos familias que les decían Por peleoneros.
los perritos. Destaca la actitud.
103
23. Las tarascas Hormiga brava tarasca. (De or. Por prietas y bravas.
inc.).
1. f. Figura de sierpe monstruosa, Enfatiza el color y la
con una boca muy grande, que en actitud.
algunas partes se saca durante la
procesión del Corpus.
2. f. Persona o cosa temible por
causar grandes daños y gastos o
por su voracidad.
3. f. coloq. Mujer temible o
denigrada por su agresividad,
fealdad, desaseo o excesiva
desvergüenza.
104
Hijo de doña
Herculana.
Destaca la apariencia
física.
105
Destacan la actitud.
106
convierten en rasgos identitarios que emergen de la significación
centrífuga de la palabra.
Es importante destacar que la mayoría de estos apodos
animalizadores son metonimias de la parte por el todo. En ellos se les
otorga a los seres humanos una o varias de las características de los
animales, ya sea el color, el tipo de ojos, el carácter, la forma de
comportarse, lo cual puede comprobarse en la explicación dada para varios
de los apodos analizados: al Zopilote le dicen así por ser de piel muy morena
y a la Chachalaca por ser escandalosa, en un caso se trata de una
característica física y en el otro de comportamiento; aunque también se
encuentran metáforas de imagen, como se ha señalado anteriormente.
A pesar de que normalmente nos encontramos con la visión
sintética del nombrar en este tipo de expresiones, no siempre y no sólo los
apodos son muestra de economía del lenguaje o de la ley del menor
esfuerzo, como se cree. Los apodos revisados son palabras o expresiones
que como un iceberg muestran sólo la pequeña parte del contexto que
definen y ponen en juego al sujeto, pues quien es nombrado lleva en el
apodo una carga semántica que indica habilidades, rasgos, características,
origen, costumbres, creencias, etcétera, que no alcanzarían a verse en un
nombre propio como Juan, Ramiro o Nicanor. En este sentido, estamos
de acuerdo con Ramírez (2011), cuando afirma que los apodos “sintetizan
una gran cantidad de información, de intenciones comunicativas y de
actitudes convivenciales” (p. 52). El sobrenombre, apodo o mote
“constituye otra forma de identificar, nombrar, renombrar o renombrarse
que aporta valores, positivos o negativos, a quienes sobrenombra” (p. 54).
Pero su verdadero valor, como dice Moreu Rey, radica en su sentido
figurado. Así, podemos ver que lo que funciona en los apodos es su
metaforicidad, pues ponen ante nuestros ojos el imaginario individual y
colectivo, evidencian prejuicios, refieren relaciones personales y
manifiestan la organización política y social de una comunidad. En el
apodo, las características de un tema determinado (dominio origen) se
mapea hacia otro (dominio meta), y al concretarse este intercambio de
significados, es posible hablar de uno, utilizando los términos propios del
otro; así, la vida puede verse como un camino, una meta, un viaje, una
oportunidad, dependiendo de las categorías que se exporten de un
dominio determinado.
107
El nombre propio es suplantado, desplazado, olvidado muchas
veces; el apodo se convierte en un vertedero de aspectos sociales,
religiosos, culturales de los nombrados y los que nombran. El mismo
fenómeno se da al interior de la familia como en la comunidad y se
convierte en un juego que pone en evidencia al sujeto, quien se construye
en el vaivén retórico de la comparación, definición, hipérbole, ironía,
sinécdoque, antítesis y muchas figuras del lenguaje más que conforman las
redes de la subjetividad. Por esto una sola palabra que conforme el apodo,
ilumina el contexto lingüístico que aflora para proyectar un momento de
vida. Con los hipocorísticos también se dan fenómenos parecidos, sin
embargo, en ellos es necesario que el nombre esté presente, ya sea de una
manera acortada, insertando algún sufijo o haciendo otros cambios, tales
como asimilaciones, metátesis, inserciones y elisiones.
Los apodos son metáforas culturales (pragmáticas, éticas y
estéticas). Se debaten en el movimiento centrífugo y centrípeto del
lenguaje, pero su metaforización está constituida con base en
conocimientos y costumbres de una colectividad que identifica a los
individuos por cuestiones paralelísticas (sinonimia y antinomia) fincadas
en aspectos de la naturaleza contextual. Lo más inmediato en esta
naturaleza contextual de Tonila, Jalisco (el pueblo referido de México) son
los animales; específicamente los pájaros bravos. En el orden de mayor a
menor cantidad, aparecen después los objetos, las plantas, las comidas, el
vestido y físico, las enfermedades y defectos.
En cuanto a los rasgos que se enfatizan en la base imaginaria de
este pueblo del occidente mexicano, destacan los cacarizos, prietos,
güeros, blancos, gordos, chaparros, flacos, feos, chuecos. Sobre todo los
feos son señalados con una especie de estigmatización. Se relacionan al
color (prietos, negros), la complexión (gordo, flaca, cachetón) y la
apariencia (chueca, patilludo, cejudo). Es importante, sin embargo, señalar
que a pesar de la carga negativa que tiene el color (prieto o colorado) que
marca los extremos, no hay un estereotipo de qué es lo bello y qué lo feo,
en lo relacionado a la apariencia física del sujeto.
108
EL APODO Y LAS FRONTERAS IDENTITARIAS DEL SUJETO
109
la identidad individual y colectiva se vaya configurando a partir de rasgos
y defectos físicos, mañas, adicciones o enfermedades que se adhieren y se
suplantan; ponen al sujeto en las fronteras de su identidad porque éste, al
ser nombrado así, deja y recobra, pierde y construye sentidos que lo borran
y lo marcan en las relaciones metonímicas del entramado metafórico. Así,
el sujeto es y no es; es como otro.
110
BIBLIOGRAFÍA
111
ULLMAN, Stephen. Semantica: Introduccion a la ciencia del
significado. Madrid: Aguilar, 1986.
VERGARA, Gloria.Palabra en movimiento. Principios teóricos para la
narrativa oral. México: Praxis/Universidad Iberoamericana, 2004.
112
Arte e política nos “anos de chumbo”: Carlos
Heitor Cony e a “contraestrutura de sentimento”
Maurício Guilherme Silva Jr.
INTRODUÇÃO
114
Analogamente, ao tratar aqui da literatura produzida no Brasil dos
chamados “anos de chumbo”, afirma-se que os cidadãos se perceberam
no centro de tais paradoxos: de um lado, a história e suas perversidades e
razões coletivas [campo de possibilidades; integração]; de outro, a inevitável
experiência afetiva – e também estética, no caso dos artistas – em relação
à soturna sombra do medo [projeto; diferenciação].
No artigo “A prosa reinventada – a narrativa de ficção e a crônica
após 1960”, ao tratar das permanentes mudanças sociais, fruto do
desenvolvimento tecnológico, Fischer (2005) lembra, justamente, que a
arte, e mais especificamente, a literatura, jamais se apresenta imune ao
“ritmo do mundo”. De 1850 à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), por
exemplo, o gênero romance, de Balzac a Guimarães Rosa, assume o papel
de “desenhar”, e tornar compreensíveis, algumas das mais significativas
experiências políticas e históricas da humanidade.
A partir da década de 1960, uma série de ferramentas da indústria
cultural passa a substituir o papel até então desempenhado pela literatura.
Mesmo que não tenha morrido, o romance precisou redefinir suas funções
(FISCHER, 2005, p. 160). Além disso, percebe-se à época, em todo o
mundo, vertiginosa ampliação da produção de contos, gênero que assume
a função de discutir as “labirínticas” relações sociais pós-Segunda Guerra.
Soma-se a tal realidade a substituição do “antigo jornalismo” – lento,
descritivo, apaixonado – por uma observação do mundo baseada na
permanente busca por objetividade. Em tal cenário, a inserção de técnicas
como o lead1, no dia a dia dos repórteres, fará com que a representação –
principalmente, escrita – dos acontecimentos revele-se mais ágil e
dinâmica, mas bem menos aprofundada.
No Ocidente, e particularmente no Brasil, além da perda de
prestígio do romance e do fortalecimento dos gêneros conto e crônica,
revela-se como tendência, nos anos 1960, a disseminação e o crescimento
da venda de relatos biográficos e memorialistas, fato que, segundo Fischer
(2005), alterará o próprio padrão narrativo da prosa então produzida.
Neste sentido, outro importante elemento de discussão diz respeito à
valorização dos relatos ditos “verdadeiros”, estimulados, em grande
1
Trata-se do primeiro parágrafo do texto noticioso moderno, que deve responder, sem
retórica ou contornos desnecessários, às seguintes questões: “O que?”, “Quem?”,
“Quando?”, “Onde?”, “Como?” e “Por que?”.
115
medida, pelo turbilhão de acontecimentos sociais, políticos e
comportamentais do período.
Devido ao desenvolvimento da televisão e de outros meios
tecnológicos de transmissão de informações no Brasil, o romance acaba
por perder força entre os leitores. Neste cenário, os escritores lançam-se
em novas experimentações, como forma de reinventar a prática das
grandes narrativas. Se a geração que estreia nos anos 1930 – formada por
nomes como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Érico Veríssimo, José Lins
do Rego, Rachel de Queirós, Cyro dos Anjos, Dyonélio Machado, Cyro
Martins ou Guimarães Rosa – redefine linguagens e assume visão crítica
em relação à sociedade, os autores dos anos 1950 e 1960 encontram
dificuldade em dar novos rumos à prosa que desenvolvem.
Da década de 1950, Fischer (2005) destaca, como experiências
literárias de peso, a “clareza e a dicção feminina” de Clarice Lispector e
Lygia Fagundes Telles. Dos anos 1960, chama a atenção para o “caso” de
Carlos Heitor Cony, autor que, no período, “radicalizou seu
questionamento sobre os temas daquele momento, com a Ditadura Militar
escurecendo o horizonte” (FISCHER, 2005, p. 163). Nos termos do autor:
Espécie de existencialista, certamente
influenciado pelo clima sartreano que nos pós-
guerra tomou conta da intelectualidade ocidental,
Cony demonstrou um destemor admirável,
colocando em cena o problema do engajamento
dos intelectuais e artistas, expondo uma visão
cética de grande humanismo [...] (FISCHER,
2005, p. 163).
Além do Cony de Pessach, a travessia (1967), Fischer ressalta o
engajamento de Antônio Callado, outro importante nome da literatura
brasileira à época, que, principalmente em Quarup (1967), “colocou na
pauta do romance um tema candente, o das opções que os cidadãos
precisavam fazer frente aos dilemas mais urgentes, impostos pelas
mudanças históricas do tempo” (FISCHER, 2005, p.163). Por fim, ao
longo dos anos 1970, autores como Moacyr Scliar, Assis Brasil, Tabajara
Ruas e Márcio Souza buscam, através da escrita, passar a limpo a história
do País. Também neste período, o “realismo fantástico” de escritores
latino-americanos como Gabriel García Márquez e Mário Vargas Llosa
116
ganha força entre os brasileiros, de modo a influenciar a obra de nomes
como José J. Veiga e José Cândido de Carvalho.
2 A partir de 1964, com a instauração do regime militar, o Brasil passa a enfrentar um dos
maiores desafios sociopolíticos de sua história. Por obra do rigoroso regime ditatorial, as
liberdades cidadãs permaneceriam vigiadas e reprimidas por exatos 21 anos.
3Trata-se de estruturas definidas, por Raymond Williams (1979, p.133), como “qualidade
particular da experiência social e das relações sociais, historicamente diferentes de outras
qualidades particulares, que dá o senso de uma geração ou de um período”. O termo
“sentimento” é escolhido pelo autor como forma de ressaltar a distinção entre conceitos
formais de “visão de mundo” e “ideologia”. “Não que tenhamos apenas de ultrapassar
crenças mantidas de maneira formal e sistemática, embora tenhamos sempre de levá-las
em conta, mas que estamos interessados em significados e valores tal como são vividos
117
para o ideal de um Brasil como “potência do futuro”, Cony já se revelava,
como escritor, uma voz antípoda à euforia generalizada. Como ressalta a
crítica acerca do jubileu de ouro do lançamento de O ventre, publicada no
Jornal Rascunho, em 2008, o livro faz com que o leitor entre em contato
com uma personagem,
o misantropo José Severo, que narra as suas
primeiras desventuras sem afetação, com
realismo absolutamente verossímil, a ponto de
mostrar sua condição de rejeitado, ao mesmo
tempo em que o outro, o irmão, era sobremaneira
incluído e incensado na sua família. Como se lê
na história, o afeto se encerrara havia muito para
a vida de José Severo. E antes de ser um conto
cheio de som e fúria, a vida, na perspectiva deste
protagonista da obra de Cony, era uma porcaria.
A jornada de José Severo é propositadamente
dura, cheia de percalços, sem espaço para crer em
um futuro redentor. Representava o outro lado
de um País que poderia dar certo. Aliás, se é
verdade que a década de 1950, em especial o ano
de 1958, foi um período, na visão de alguns
cronistas, que não deveria acabar, em O ventre
estão as fissuras não-visíveis desse suposto
paraíso. Nesse caso em especial, havia como que
uma espécie de predestinação para que José
Severo fosse um autêntico perdedor, à margem
do triunfo burguês, mas inserido na tortura
existencial de seu tempo. É o próprio romancista
4 Disponível em:
http://www.carlosheitorcony.com.br/imprensa.aspx?nNOT_Codigo=37. Acesso em
22 maio 2016.
119
estava bom. O homem, Ele não viu que estava
bom. E tanto é assim que tentou exterminá-lo
diversas vezes e de várias maneiras. E não
conseguiu. O homem sobreviveu. Sobrepujou a
Deus, sobrepujou ao dilúvio, sobrepujou a todas
as catástrofes. Nínive, Sodoma e Gomorra foram
destroçadas, mas sempre sobrou alguém. Então,
o homem, realmente resiste. É impávido. Resiste,
e resiste contra quem? Resiste geralmente contra
o ser supremo que o criou. Então, o homem, já
por natureza, já na sua essência ontológica, é mau.
Agora, se a gente for olhar a história da
humanidade – não vou dizer a história de nós
todos, que somos pobres seres humanos, feitos
de barro, e todos sabemos perfeitamente que não
valemos nada, que vamos terminar no pó, e...
Enfim, não quero me prolongar nisso. Já basta o
que falei aqui de bobagem. Mas, para mim, é o
seguinte: o ser humano não me inspira respeito.
Eu respeito o ser humano, a mim e aos outros, só
por causa da polícia.5
Neste sarcástico depoimento, eis alguns dos elementos centrais à
obra e ao pensamento político-ideológico do autor carioca. Tal
posicionamento “declaradamente anti-tudo” tornará sua escrita, literária e
jornalística, bastante peculiar em períodos específicos da vida cultural
brasileira, particularmente ao longo da década compreendida entre os anos
de 1964 e 1974. No período, como não poderia deixar de ser, a “ironia”
permanecerá a demonstrar propriedades alquímicas na escrita de Cony.
Ao dizer do mundo “ao contrário”, o escritor “esfola” a realidade,
até que, assombradoe exausto, o leitor questione seu próprio – e,
obviamente, insignificante – “estar no mundo”. Em sua escrita, o autor
estimula, categoricamente, as tais arestas previstas por Linda Hutcheon
(2000), de modo a que suas “vítimas” – sejam os leitores dos romances,
5 Disponível em:
http://www.carlosheitorcony.com.br/noticia.aspx?nNOT_Codigo=84. Acesso em 22
maio 2016.
120
sejam os consumidores do “cronismo” diário e da realidade construída
pelos jornais – não encontrem mais do que duas saídas: responder
emocionalmente às provocações ou correr sem noção de destino. A “carga
emocional” estimulada por Cony nos leitores diz respeito à sua própria
memória íntima – e crítica – acerca da influência exercida pela máquina
capitalista – e repressiva, no caso específico do golpe militar de 1964 –
sobre o “ser” e o “fazer” dos cidadãos ocidentais.
Interessante ressaltar, neste sentido, a permanente autoironia de
Cony, principalmente ao tratar de seu posicionamento político. Em
crônica escrita em resposta ao questionamento de uma leitora – “Você é
de esquerda ou de direita?” –, o escritor, mais uma vez como mentor do
que aqui se convencionou como contraestrutura do sentimento, recorre à ironia
para, com divertida argumentação, tangenciar a resposta à questão central:
Até aqui não respondi se sou da direita ou da
esquerda. Pois lá vai a resposta. Sou que nem
aquele relógio do português que às vezes era de
ouro e às vezes não era. Uma coisa nunca fui nem
serei: do centro. Detesto os centros, tantos os
centros espíritas como os cívicos. De uma forma
geral, pendo às vezes para a esquerda, mas isso
não significa que seja realmente um esquerdista.
Considero a esquerda, principalmente a esquerda
brasileira, um aglomerado de imbecis que se
escoram uns aos outros em defesa de teses –
essas, sim – certas e necessárias. Quando um
camarada não consegue ter um pensamento
sequer, um juízo a respeito de si mesmo e do
mundo, procura o seio acolhedor das esquerdas.
E ali, no calor de um ideal, de uma pujança, de
um laboratório de idas e vindas que sempre levam
a um rumo certo, sentem-se compensados, firmes
e [...] sólidos (CONY, 2010, p. 203).
O jornalista/escritor, pois, encarrega-se de exprimir, dissecar,
divulgar e/ou ultrapassar os limites das “novas percepções” do cidadão
diante dos movimentos da política convencional: Cony não é de centro,
nem de esquerda, nem de direita. Ao mesmo tempo, parece partidário de
121
toda a tríade de possibilidades. Ao explicitar, nos próprios textos, tal
aparente onisciência com relação às questões do mundo, o cronista busca,
na verdade, decifrar os contornos do homem moderno numa nação
periférica como o Brasil do pós-golpe.
Trata-se, analogamente, do escritor que, no romance Pilatos (1974),
escrito dez anos após a instauração do regime militar no País, constrói uma
das personagens literárias mais controversas, e socialmente melancólicas,
da literatura brasileira: em um acidente, o protagonista perde seu pênis –
parte do corpo que será ironicamente chamada, pelo próprio dono
amputado, de “Herodes” –, e, a partir daí, revelar-se-á por demais cético,
vazio de sentimentos, alvejado pelo tédio e pela náusea6. O protagonista
de Pilatos irá redefinir os modos de viver em sociedade a partir de sua nova
condição, “cotidiana e histórica”, caracterizada pela ausência.
Em Pilatos, particularmente, tal ausência pode ser vista, como bem
acentuou Prata, para quem o livro revela a “escatologia do poder”, como
significativa da “cara do Brasil. Um Brasil de 74, dos anos 80 e de hoje.
Um Brasil sem tesão, um Brasil explorado. Pilatos é a energia arrancada do
corpo do brasileiro por militares, bispos e ociólogos, como diria o Millôr”7.
Sobre o processo de escrita de Pilatos, comenta Cony:
Eu estava enfarado da literatura e da máquina de
escrever. Então, fiz um livro, Pilatos, que ia
terrivelmente contra a literatura, contra a arte e o
ser humano. Inclusive o Ênio (Silveira), que era o
meu editor, passou quase dois anos sem publicá-
lo, achando que o livro era muito radical. Ele não
chega a ser pornográfico. Muito menos erótico.
Quem o lê passa dois anos sem pensar em transar.
Ele é antierótico de uma forma brutal, é bastante
escatológico. É a história de um homem que
perde o pênis num desastre de ônibus, o coloca
dentro de um vidro de compota, desses para
6 O termo aqui empregado é referência direta à obra A náusea, de Jean Paul Sartre, cujo
8 Disponível em:
http://www.carlosheitorcony.com.br/noticia.aspx?nNOT_Codigo=84. Acesso em 22
maio 2016.
123
se “aos outros em defesa de teses – essas, sim – necessárias”, logo após a
“revolução dos caranguejos”, o autor carioca não economiza em petardos
contra o outro lado da moeda: os militares e a direita católica brasileira.
Em depoimento ao Instituto Moreira Salles, como participante da
série O escritor por ele mesmo, Carlos Heitor Cony recorda-se, justamente, da
forma como sua posição de “maldito” – fruto do nãoengajamento político
–, é alterada com a eclosão do golpe militar de 1964, pois que, dois dias
após a “quartelada”, o escritor passaria a condensar, em suas crônicas no
Correio da Manhã, boa parte das indignações sociais mobilizadas, no
período, pela estrutura de sentimento então vigente, principalmente, nos
meios artísticos e intelectuais.
Tomado como escritor ao mesmo tempo coadjuvante e
protagonista da realidade brasileira após o golpe militar de 1964, reafirma-
se que o projeto literário e jornalístico de Cony realmente se aproximou, no
referido período, do universo político e social do País. Tal aproximação
entre ética e estética, contudo, dá-se de modo “caleidoscópico”9: nos anos
1960 e 1970, a obra de Cony – das crônicas aos romances – marca-se,
principalmente, pela variação de forma(s) e, em menor grau, de
conteúdo(s). Em seus livros e, também, nos textos para jornal, não há
fórmula unitária, nem assunto primordial, mesmo em se tratando dos
declarados embates com “atores” e acontecimentos ligados, direta ou
indiretamente, à “revolução dos caranguejos”.
A obra de Cony no período caracteriza-se – usando-se, neste
ponto, o conceito de Candido (2006) –, pela diferenciação: além da
permanente recorrência à ironia, o escritor carioca – como cronista ou
romancista – buscará realçar as tais peculiaridades e diferenças entre “uns
e outros”. Tal projeto calcado na diversificação, no que tange ao modo de
abordar literariamente o complexo campo de possibilidades da sociedade
brasileira pós-golpe, revela-se, de modo curioso, nas conclusões de Protesto
e o novo romance brasileiro, obra na qual o “brasilianista” Malcolm Silverman
(2000) investiga romances publicados no País entre os anos 1960 e 1990.
Nos livros, o pesquisador busca compreender o método usado por uma
série de escritores para “captar” a realidade vigente.
9Tal termo busca realçar a vitalidade dos atributos linguísticos e temáticos usados por
Cony em seu “cronismo”.
124
Como forma de facilitar sua investigação, Silverman divide as
centenas de obras por ele estudadas em dez distintas categorias de
romance (publicados), quais sejam: jornalístico; memorial; da massificação; de
costumes urbanos; intimista; regionalista-histórico; realista-político; da sátira política
absurda e da sátira política surrealista. Autor citado em mais de 20 ocasiões ao
longo das 429 páginas da obra de Silverman, Carlos Heitor Cony aparece
como representante de nada menos do que cinco das dez referidas
categorias de romance: jornalístico (com destaque para O caso Lou);
memorial (Informação ao crucificado); da massificação (obras diversas);
realista-político (Pessach: a travessia) e da sátira política absurda(Pilatos).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
125
e satírico. Em outras palavras, as raras
personagens cômicas de Carlos Heitor Cony
sempre terminam se degradando, extraindo
humor do pathos numa alquimia comum aos
escritores que mais o influenciaram, sobretudo
Machado de Assis e Eça de Queirós [...]. Todos
os nove romances de Cony, publicados entre
1958 e 1974, refletem essa visão desmoralizante,
diferenciando-se somente em três aspectos: a
trama varia, o tom oscila entre o frívolo e o
patético, e os personagens nunca reaparecem
com o mesmo nome (SILVERMAN, 2000, p.
130-131).
Se tal é o ambiente dos romances de Cony, importante ressaltar,
de modo específico, que, nas crônicas sobre o golpe militar de 1964, o
autor aproxima-se, simultaneamente, das duas tendências apontadas como
majoritárias no período, segundo Flora Süssekind: o jornalístico e o
alegóricoe/ou mágico. Em O ato e o fato, as técnicas de reportagem jornalística,
aliadas a forte carga de ironia, procuram influir, com contundência, no
processo de “desvelamento do real”. Em seu “cronismo”, por vezes, um
Cony “dramático”, metafórico, reveste de “realismo mágico” o universo
de personagens (homens, mulheres, casas, cidades etc.) do cotidiano –
amiúde, oprimidas e céticas, principalmente no período do golpe militar –
, mas em permanente “lógica onírica”.
Tal realidade, contudo, não se restringe às crônicas. Por isso,
revela-se importante, ao longo da análise da produção do cronista, a busca
de elementos do autor em seus romances, principalmente aqueles
publicados entre 1964 e 1974. Que o diga a passagem em que, levado pelo
recém-conquistado amigo Dos Passos – fascista e sonhador –, o
protagonista de Pilatos – dono de Herodes, o pênis arrancado que, a partir
do “corte”, viverá em um vidro de compota cheio de álcool – arranca os
próprios “pentelhos” para que possam produzir, em substituição às cordas
de um violino, “música afrodisíaca”. A melodia do inusitado instrumento
produz, a exemplo do aroma apoteótico de O perfume, do alemão Patrick
Süskind, cenas orgiásticas, repletas de nonsense:
126
Dos Passos entrou em transe. Do violino saía um
som hediondo, a depravação era geral. Agora,
todos estavam no chão, pelas cadeiras, em cima
da mesa, até mesmo em cima de um armário.
Excitado como um demônio diante de um
querubim pervertido, Dos Passos passou-me o
violino:
– Toque esta joça que eu vou ali.
O “ali” de Dos Passos era justamente em cima da
mulata do dono da casa (CONY, 2001, p. 117).
Na sequência deste trecho de Pilatos, os dois amigos, presos em
função da “noite de orgias” estimulada pelo afrodisíaco violino
improvisado, Cony revela, no livro, por meio da narração do protagonista,
o autoritarismo dos cárceres da época, e, por meio do discurso de Dos
Passos – pertencente a grupo fascista, liderado por um certo “coronel” –,
a lógica do regime opressor e do combate ao “perigo vermelho”, o
comunismo:
A prisão estava cheia. Sempre imaginara que as
celas eram desertas, silenciosas, frias. Aquela era
uma zorra. Mais experiente do que eu, Dos
Passos conhecera situações iguais e piores.
Explicou-me a razão de tantos presos:
– É uma medida profilática. Tem muito
subversivo solto por aí. O governo limita-se a
prender os mais ostensivos, dá sumiço em
poucos. Deveria acabar com todos de forma
sumária, imediata. Se eles tomassem o poder
seriam bem mais eficientes. Daí que as prisões
ficam repletas, cedo ou tarde a maioria será solta.
Se dependesse do meu coronel, de nosso grupo,
essa gente seria logo fuzilada. A condescendência
do governo será fatal. É uma pena que você não
entenda nada de política.
– Todo mundo aqui é comunista?
– Não. Há de tudo, subversivos de diversas
origens, os comunistas são mais espertos, sabem
127
se escafeder, são organizados, têm protetores em
toda a parte. Há também maconheiros, conheço
o tipo. Há ladrões ordinários, gente da pior
espécie. Nós somos uma exceção. Breve nos
virão soltar e nos pedirão desculpas. [...] Veja
agora: tratam os adversários do regime como
príncipes, com direitos humanos e o escambau.
Daí que me decepcionei com os militares que
estão no poder. Deviam ter fuzilado todos os
maus elementos, sem misericórdia. O sangue é o
esterco que limpa uma nação – esta frase é de um
liberal. O mais doloroso é que meus camaradas
de juventude estão todos aí, em postos
importantes, e eu aqui na prisão. São coisas da
vida. Mas fique descansado. Logo nos virão soltar
(CONY, 2001, p. 118-119).
Na referida cena, além do discurso de Dos Passos – em que o tom
exacerbadamente irônico de Cony encarrega-se de descrever o pensar
persecutório dos anticomunistas –, destacam-se elementos outros,
característicos da prosa do escritor carioca, também bastante presentes em
suas crônicas, de O ato e o fato à produção mais recente. Trata-se de
elementos que, a partir da temática da repressão militar, farão com que o
autor supervalorize, em sua escrita, o que o crítico Silverman identifica,
em Cony e outros escritores do período, já ressaltada tendência a tratar o
homem da burguesia urbana – principalmente o carioca, no caso do autor
aqui estudado – como “espécie intermediária entre os marginais e a elite”
(SILVERMAN, 2000, p. 130).
É justamente tal “visão desmoralizante”, detectada por Silverman
nos nove romances escritos por Cony entre 1958 e 1974, o elemento a ser
supervalorizado – em associação à ironia, ao cinismo e ao sarcasmo.
Também em O ato e o fato, o jornalista/escritor buscará revelar, ao então
leitor do Correio da Manhã, o que há de mais irracional na razão da ordem
estabelecida. Para tal, diferentemente dos recursos da “literatura
fantástica” – mas para além do mero naturalismo –, Carlos Heitor Cony
utiliza, como matéria-prima, a realidade imediata. Neste ponto, pretende,
em seu exercício de cronista, mostrar o quanto há de ridículo e de nonsense
128
no pathos positivista do governo militar, assim como de cruel na miséria –
material e, por vezes, existencial – do cidadão brasileiro em meio ao caos
de um Brasil que se moderniza à força. Neste sentido, contudo, o autor
carioca consegue encontrar, em seus textos, o complexo equilíbrio,
ressaltado por Walter Benjamin (1994), entre a tendência ao político e a
tendência ao literário.
Com relação ao golpe militar de 1964, interessante perceber, nas
crônicas de Cony – território por excelência da “contraestrutura do
sentimento” –, o modo como o escritor supervaloriza, justamente, para
contrapô-la diante do leitor, a ilógica, ridícula e melancólica ausência de
liberdades (políticas, civis e sociais), então imposta aos brasileiros. Tratar
de tal questão, em síntese – e nas palavras do próprio escritor carioca, em
crônica10 sobre o modo como milhares de vítimas da luta ideológica
“foram mortas, física e moralmente, pelos próprios companheiros” – é
falar de política, criação do homem que, “como ‘la donna’ da ópera de
Verdi, é ‘mobile’. Por meio dela, o Diabo não se dá por vencido, aliás,
nunca se deu, desde que foi expulso do céu, na primeira rebelião que para
sempre infernizaria, literalmente, demônios e homens” (CONY, 2011, p.
E12).
131
RIDENTI, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. São Paulo: Editora
Unesp, 2010.
SILVA, Mário Augusto Medeiros da. Os escritores da guerrilha urbana –
Literatura de testemunho, ambivalência e transição política (1977-1984).
São Paulo: Annablume/Fapesp, 2008.
SILVERMAN, Malcolm. Protesto e o novo romance brasileiro. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2000.
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar
Editora, 1979.
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade:na história e na literatura. São
Paulo: Companhia das letras, 2011.
WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e
sociedade. São Paulo: Boitempo, 2007.
132
La frontera de la literatura: utopía, resistencia y
Dictadura
Mónica Bueno
INTRODUCCIÓN
133
absoluta claridad es la matriz interpretativa que encierray que define las
épocas y las sociedades.11
Héctor Tizón, Antonio Marimón y Daniel Moyano eran escritores
reconocidos en los años de la Dictadura (1976-1983). Sus figuras son
emblemáticas porque son indicativas de un conflicto que se abrió entre los
intelectuales una vez finalizada la Dictadura. El exilio fue en ese momento
una matriz interpretativa y que generó debates académicos y polémicas
colocaciones. Tal vez, un poco antes de ese momento histórico, otro
escritor daba una lección definitiva sobre la conducta ética de quedarse o
irse. Leopoldo Marechal, un escritor de la vanguardia martinfierrista, de
filiación peronista, luego de la Revolución Libertadora, decide su exilio
peculiar en su departamento de la calle Rivadavia. Durante diez años, casi
no existirá a no ser por su mujer y tres o cuatro amigos que lo frecuentan.
Pero la certeza de su existencia se funda en dos confirmaciones: la escritura
y la patria. (“Para un hombre que ha dejado de tener una patria, el escribir
se convierte en un lugar para vivir”, señala Adorno [1999, p. 68).12
La Dictadura Militar es sin duda uno de los acontecimientos más
aciagos de nuestra historia reciente. Una herida social que no pudo cerrarse
hasta que la ley no reparó el crimen. La sombra del Juez que dirime y
11
Completamos la cita: “En el centro de ese volumen, impulsado por la esperanza de una
revolución inminente, se encuentra el largo ensayo en tres partes titulado ‘La reificación
y la conciencia del proletariado’, que alentó a filósofos y a sociólogos de toda una
generación a analizar las formas de vida imperantes en ese entonces como consecuencias
de la reificación social.” (HONNETH, 2007, p. 12). La lectura de Honneth, decíamos,
resulta sumamente lúcida ya que propone la reificación como matriz interpretativa de
nuestra época. Uno de los indicios que Honneth reconoce de esa vuelta al concepto está
enciertas producciones literarias. Dice Honneth: “retorna la categoría de la ‘reificación’
desde el abismo insondable de la República de Weimar y se incorpora nuevamente a la
escena del discurso intelectual. Son tres, si no cuatro, los indicios que permiten sustentar
la conjetura de que hay un cambio de tendencia en el diagnóstico de la época. En primer
lugar ‒ y de forma aún no muy llamativa ‒ puede señalarse la existencia de una cantidad
de novelas y relatos recientes que diseminan un aura estética de la economización furtiva
de nuestra vida cotidiana” (HONNETH, 2007, p. 13).
12Dirá en una entrevista de 1968: “Yo trabajé en muchas cosas a la vez, libremente, sin
134
castiga el delito, muestra que el asesinato deja huellas indelebles que exige
que se restañen las heridas. Cuando el crimen es del Estado, la falta es
inconmensurable y las consecuencias de la falta, insospechadas. Si no hay
juicio, no hay castigo, no hay reparación; si no hay reparación, la muerte
circunda indefectiblemente el futuro. Como Sarmiento en la célebre
evocación, tal vez, la estrategia sea cederle la voz a otro para poder hacer
el diagnóstico correcto. La literatura tempranamente exhibió la herida
social.
El vuelo del tigre de Daniel Moyano, La casa y el viento de Héctor
Tizón y El antiguo alimento de los héroes de Antonio Marimón son claros
ejemplos de una literatura que narra y ficcionaliza el horror y la muerte en
el pasado. Este trabajo es un homenaje a sus autores, que creyeron en la
fuerza de la escritura, que lucharon contra la agonía del exilio. Moyano y
Marimón murieron en tierra ajena, Tizón volvió a Yala, volvió a Jujuy, fue
constituyente, juez y siguió contando los relatos que escuchaba en la calle,
en el Juzgado hasta el final de su vida. (“Ex embajador, vagabundo,
exiliado y regresado” dice la solapa de uno de sus libros.)
13
Antonio Marimón nació en Argentina en 1944. Desde 1955 vivió en Córdoba, donde
estudió la carrera de Letras y participó activamente de las circunstancias políticas de la
época. Luego de las torturas recibidas por la Dictadura argentina, se exilió en México en
1977, donde murió en 1998. Escribió: La escritura blanca (poesía, 1981); El antiguo alimento
de los héroes (novela, 1988); La línea es la orgía (poesía, 1992); Último tango en Buenos Aires,
Diego y Mis voces cantando (1999).
135
Esa imagen final de la novela marca la perspectiva desde el aire
para reconocer los errores, los excesos, pero también el enigma y la utopía
de un relato de nación que se escamotea. No es sólo una geografía que se
aleja, si no la marca de la pérdida definitiva.
Primo Levi escribe Si esto es un hombre para exorcizar no sólo el
relato del horror en Auschwitz si no para conjurar a los muertos del olvido
definitivo: “El dolor del recuerdo, la vieja y feroz desazón de sentirme
hombre, que me asalta como un perro en el instante en que la conciencia
emerge de la oscuridad. Entonces tomo el lápiz y el cuaderno y escribo
aquello que no podría decirle a nadie” dice Levi (2000, p. 149). El
sobreviviente define en la escritura el acto ético que hace oír la voz acallada
del muerto. Como Antígona, que reclama para el hermano el ritual que
indica su lugar en la muerte frente a la arbitraria ley de Creonte y supera
así su propia imposibilidad individual. Aquél que logra poner en palabras
lo indecible deja su propia voz en la voz del otro.
En El antiguo alimento de los héroes, ésa es la empresa de Marimón. La
Advertencia lo expresa claramente: el texto reúne “una crónica que asoma
irregular desde sus caras”, “un haz oscuro de relatos”,“Una morosa y
quizás inescribible torre del lenguaje”.
Marimón cuenta la tortura de los presos políticos en la cárcel y,
como Primo Levi, describe la tensión brutal, descarnada entre la vida y la
muerte. Resistir es inventar maneras de hacer vida donde las condiciones
son de muerte. La cárcel permite la tecnología de poder sobre los cuerpos,
dice Foucault, una sintaxis que se escribe definitivamente y que puede
reconocerse aún mucho tiempo después:
Aquel individuo entró a la sala, saludó a alguno
de los presentes y, en un lapso indescifrable, al
cambiar el foco de su campo visual noté que se
distraía, se desunía de todos y aun de las cosas
íntimas, que miraba con el matiz lejano de un
ausente. Para mí esa era su marca de la prisión.
(MARIMÓN, 1988, p. 34)
La crónica de la prisión define el relato de la vida de un hombre
que busca, en otras imágenes perdidas, los componentes secretos de la
desolación. Un recuerdo de infancia se susbsume en la concatenación de
imágenes dolorosas o celebratorias pero vivas. En el recuerdo: la militancia
136
y la revolución, el cordobazo, la figura de su madre, la maestra de inglés.
Como una suerte de cajas chinas el relato se resuelve en la escena arcaica:
su madre suelta la mano del chico en la plaza del pueblo: la memoria trae
la imagen de la infancia y la imagen condensa el dolor, la soledad y el
abandono.
Como en El ausente (1987), el film que dirige Rafael Filipelli sobre
un guión que escriben Filipelli y Carlos Dámaso Martínez en base al relato
de Marimón, esa soledad que se representa en la novela es parte de su
posición ética frente al “hinchado coro de historias sin una escritura”. Y si
“Lorera” es el título del capítulo de la novela que cuenta el horror en la
prisión, “Cencerro” es el relato de la autocrítica de una generación que se
definía heroica. “Teníamos una visión de dioses” dice el narrador y admite
no sólo la derrota de la guerra sino el fracaso de su empresa. Esa es la
postulación ética de su escritura: “Me preocupa que el relato con su
rapidez e ignorancia, olvide el sufrimiento”. Un poema suyo,
“Diferencias”, escrito en México, muestra la polifonía que antes reconoce
no haber escuchado:
Se propagan las diferencias/ Y como más de ellas,
insensatas y crueles, llueven simulando agujas/
Por los bordes, los aleros, los canales de los
tejados/ Y horadan el núcleo, las raíces y la silueta
invisible de todas las cosas/ Y todas las criaturas
creadas, coral, vulvas, sanguijuela, rubíes/ Y de
las magnitudes numéricas sin medida originadas
en derredor del vacío/ También da vueltas el
folio de esta página/ Como relieve en el aire de
una Vía Láctea. (MARIMÓN, 1988, p. 45)
Marimón elige la primera persona y elabora así la forma del
testimonio que nos implica. Benveniste describió la primera persona como
una evidencia de la experiencia de lenguaje: “No bien el pronombre yo
aparece en un enunciado donde evoca explícitamente o no – el pronombre
tú para oponerse en conjunto a él, se instaura una vez más una experiencia
humana y revela el instrumento lingüístico que la funda” (BENVENISTE,
1979, p. 70).14
en boca de cada quien, una expresión cada vez distinta, esta experiencia no es descrita,
está ahí, inherente a la forma que la trasmite, constituyendo la persona en el discurso y
por consiguiente toda persona cuanto habla”. (BENVENISTE, 1979, p. 71)
15 Para Ricoeur (2004), todo testimonio es una forma de evidencia, y por lo tanto, limitada
a un contexto en particular, a saber: una disputa irresoluta. La disputa prima por sobre el
testimonio (Nota 29, p. 215). Esto significa que aquello que se declare sólo será
considerado testimonio si es relevante a la resolución de la disputa entre dos posiciones
antagónicas. En la medida en que toda aquella declaración que no pueda ser encuadrada
en la disputa acabe siendo descartada, el auditorio termina primando por sobre el testigo.
16“El antiguo alimento de los héroes: / La falsía, la derrota, la humillación./En vano te
hemos prodigado el océano,/En vano el sol, que vieron los maravillados ojos de
Whitman;/Has gastado los años y te han gastado,/ Y todavía no has escrito el poema”
(BORGES, 1974, p. 874).
138
de su casa mientras Moyano está en la cárcel. Cuando se exilia en Madrid,
piensa en terminar la novela y manda a buscar el texto oculto. Excavan
inútilmente, el manuscrito ha desaparecido. Moyano reescribe la novela,
entonces y hace notar el episodio: al finalizar anota las dos fechas y los dos
lugares: La Rioja 1975, Madrid 1980.
Hualacato es un pueblo de músicos que quiebra su pequeña
armonía social cuando llegan los percusionistas que se instalan en cada una
de las casas y diseñan la vida de las familias. “Todo prohibido en
Hualacato”, declaran esos extraños seres que aparecen montados en sus
tigres. El Estado (el gobierno) ha decidido que se debe restablecer el orden
(un orden que desecha otras organizaciones posibles por subversivas). Los
Aballay, una de las familias de Hualacato, debe acostumbrarse a las
órdenes de Nabu el percusionista; todos deben aceptar la arbitrariedad de
las reglas, deben compartir el silencio: “Vengo a organizar las cosas, a
enseñarles a vivir en la realidad y sacarles los pajaritos de la cabeza, que ya
la han causado muchos sufrimientos si lo piensan bien” (MOYANO,
1981, p. 9).
El silencio en un pueblo de músicos. Sólo los ruidos de los
percusionistas y el robo de la identidad. Obligados a ser quienes no son y
a aceptar la definición de ese nuevo orden social. Los ruidos son las
palabras de un discurso homogéneo, que se autoabastece y define la
arquitectura de lo real. Moyano condensa la significación alegórica en la
cotidianeidad de una familia y muestra cómo las políticas del Estado
interfieren en la vida “pequeña” en un pueblo de provincia. Nos muestra
Moyano cuánto de perverso puede ser el abstracto orden del Estado.
Nabu, como un Hobbes provinciano, dice ‒ nos dice ‒ que su interés
principal está en lograr la paz y el orden: “Así que en primer lugar yo pongo
como una inclinación general de toda la humanidad un deseo perpetuo y
sin reposo del poder tras el poder, que sólo cesa con la muerte”
(HOBBES, 2003, p. 23). De esta manera, Thomas Hobbes justifica y
establece la racionalidad primera de la creación del Estado como un
contrato para proteger al hombre de los demás hombres. Leviatán define
el artificio de un hombre artificial. Sin embargo, como explicó Edgar Allan
Poe con respecto al célebre jugador de ajedrez, un niño o un enano pueden
esconderse adentro del artificio. Esta máquina, esta persona artificial
protege al hombre de su estado natural, el estado de guerra. Sin embargo,
139
no basta con que los hombres tengan la voluntad de renunciar a sus
derechos naturales, como nos dice Hobbes, debe de haber un pacto
obligado que se cumpla. La Máquina del Estado represor hace funcionar
el discurso de Nabu en la pequeña casa de los Aballay donde instaura una
nueva geografía con fronteras imaginarias que separan lo prohibido:
paredes que no existen pero que no pueden franquearse, pasillos y carteles
que deciden cuál es el camino que la familia debe recorrer. Sin embargo,
las fisuras de este orden artificial empiezan pronto a verse, el mundo
natural se rebela: todos los gatos del pueblo durante la noche enloquecen
con sus lamentos a los Percusionistas. Un grito de dolor: la voz natural del
que reclama. (La voz de las madres que piden justicia en un viejo
noticiero). En la novela, el grito desata la guerra: Nabu dispara su arma,
acalla el grito y refuerza la ofensiva con un monstruoso perro atento a las
directivas de su amo. Comienza el viejo juego de la guerra: ataque y
defensa, avances y retrocesos. Enroques ocultos.
Según Nabu, hay una sola realidad, compacta y homogénea. Es un
discurso que se autoabastece, que no permite la entrada de otras
posibilidades de representación del mundo. Por ello es que, frente a esta
manifestación autoritaria, los Aballay deberán buscar diferentes formas de
resistencia y ensayar nuevas estrategias para agrietar ese universo unívoco
en el que se encuentran entrampados.
La novela de Moyano nos enseña que la resistencia al poder
omnímodo debe ser comunitaria. Esta pequeña comunidad familiar, como
todas, impele una nueva forma identitaria que se subsume en el prefijo
“com”. La comunidad requiere que el individuo se transforme en
integrante y construya para sí un nuevo sujeto. Espósito llama a esta
construcción “Nuestro ser distinto de nosotros”.17
El grito silenciado deviene silencio organizado. Los Aballay
deciden resistir en el recuerdo de su historia familiar, saben que su
identidad está resguardada en la fuerza de la memoria colectiva. Las
imágenes del pasado se restablecen en lareconstrucción ‒ fragmentaria y
dinámica ‒ del álbum familiar que Nabu ha requisado. Los Aballay han
17
Espósito, al analizar la insoslayable reflexión de Bataille sobre la comunidad, concluye:
“Hace falta, en cambio, que el desbordamiento del yo se determine al mismo tiempo
también en el otro mediante un contagio metonímico que se comunica a todos los
miembros de la comunidad y a la comunidad en su conjunto” (ESPÓSITO, 2007, p. 198).
140
perdido las fotos y deben recordarlas. El relato, sin embargo, no tiene
lenguaje. Es necesario inventar uno: “Los idiomas nacen solos, por
necesidades extremas. Cuando algo necesita ser nombrado, el primer
sonido que surja ya le corresponde, ya está la palabra. Las cosas entran en
lo real buscando la palabra” (MOYANO, 1981, p. 48).
Entonces los Aballay van creando lentamente un complejo sistema
cuyos signos son los sonidos de las cucharas y los tenedores. El abuelo
registrará cada nueva palabra y construirá el diccionario y la gramática. Las
derrotas del viejo lenguaje son efectuaciones del lenguaje inventado: las
palabras se vacían, se pierden, mueren y, casi al mismo tiempo, renacen en
gestos y sonidos. En el nuevo nombre reaparecen las formas de la vida del
pasado, se recupera la propia identidad. El sentido de libertad ‒ que
implica decidir la manera de representar el mundo, de construir una
imagen propia en un lenguaje propio ‒ inserta la utopía. (Sabemos que una
de las condiciones de la utopía para desplegar su condición crítica de
“mundo al revés” es la construcción de una lengua hecha con restos de la
lengua del lugar que se ataca).
Es por eso que el silencio de los Aballay que Nabu traduce como
aceptación es un grito de lucha que se articula en los gestos de los cuerpos,
en los golpes diminutos de las cucharas. La quema de los libros, la orden
de aprender a hacer papirolas, los discursos ejemplarizadores de las
conductas son las estrategias de Nabu para clausurar el mundo de los
Aballay. Moyano diseña una alegoría sobre el poder y la dictadura
mediante la relación de los sonidos, los ruidos y el silencio. Como John
Cage, Moyano piensa el silencio como productor de sentidos. Se trata de
“La anarquía del silencio” para decirlo en términos de Cage. En la tensión
entre dos lenguajes se define la propuesta utópica de la novela, pero el
lenguaje nuevo tiene formas inventadas.
En la actual etapa de revolución, está justificada
una saludable anarquía. Es necesario llevar a cabo
experimentos golpeando cualquier cosa ‒
cazuelas de latón, cuencos, tuberías de hierro ‒,
cualquier cosa que caiga en nuestras manos. No
solo golpear, sino frotar, hacer sonidos de
cualquier forma posible (CAGE, 2002, p. 220-
222).
141
La cita de Cage parece la condensación del experimento narrativo de
Moyano.
El vuelo del tigre muestra con eficacia cómo el programa de la
resistencia comunitaria insiste en la fuerza de la utopía, nos enseña una de
las caras del Estado e instala el debate.
La muerte y el exilio precipitan el desenlace del relato. El asesinato
del Cholo y la confinación del abueloen el patio de la casa conjugan una
fractura que parece marcar el final de la familia. Sin embargo, el viejo
logrará la forma perfecta de la liberación. El mundo natural ofrece
significaciones que el anciano reconoce y sobre ellas adquirirá un saber y
una técnica que finalmente llevará al tigre por los aires, lejos de la casa,
lejos del pueblo. El happy end de la novela tiene, sin embargo, una vuelta
de tuerca en la construcción del futuro: “Tenemos que hacer un cerco que
no sea cerco, de modo que el tiempo no se quede ahí encerrado, porque
el tiempo es muy largo y contiene todas las migraciones. El tiempo tiene
que poder ir y volver como los pájaros” (MOYANO, 1981, p. 118).
Sabemos que la cita dice verdad. Sabemos que si el cerco que no
es cerco no se construye y no se mantiene con la memoria, con la ley
reparadora y con la fuerza de la justicia y de la equidad, el tiempo vuelve y
regresan las zonas más terribles y perversas de ese pasado. La historia de
la novela es comunitaria pero también lo es la definición de literatura que
Daniel Moyano tiene porque nos implica. Siguiendo a Jean-Luc Nancy,
piensa en la literatura como el lugar posible de la comunidad y acuña su
concepto de “comunismo literario” como una experiencia del “estar con”.
Cada escritor, cada obra, inaugura una
comunidad. De ese modo hay un irrecusablee
irreprimible comunismo literario, al cual
pertenece malquiera que escriba (o lea), o intente
escribir (o leer) exponiéndose – no imponiéndose
(y quien se impone sin exponerse en absoluto, ya
no escribe, ya no lee, ya no piensa, ya no
comunica). (NANCY, 2007, p. 89)18
18
Para fundamentar este concepto Nancy revisa la noción de comunidad en Marx así
como los atributos de las primitivas comunidades cristianas: “La comunidad significa aquí
la particularidad socialmente expuesta, y se opone a la generalidad socialmente
implosionada propia del capitalismo. Si hubo un acontecimiento del pensamiento
142
LA MEMORIA Y EL EXILIO
145
cruce de estos saberes marcará el cambio del narrador que aprenderá a
escuchar.
Pero antes de huir quería ver lo que dejaba, cargar
mi corazón de imágenes para no contar y a mi
vida en años si no en montañas, en gestos, en
infinitos rostros; nunca en cifras si no en ternuras,
en furores, en penas y alegrías. La áspera historia
de mi pueblo. (TIZÓN, 1984, p. 10)
Es en este sentido que La casa y el viento define ese doble sentido
del concepto de comunidad que señalábamos anteriormente. Si bien la
perspectiva del narrador en primera persona pareciera centrar el relato en
la experiencia individual, su “comunismo literario” funda un “nosotros”
en esa doble figura: relato y escritura. En La comunidad inconfesable (1999),
Blanchot – leyendo a Bataille ‒ piensa la comunidad desde dos modos
principales: encuentro en la escritura ylugar de los amantes. Para Blanchot,
estos modos definen y complementan el sentido de la experiencia interior.
La “pluralidad de otros” es condición del principio de incompletud que
constituye al hombre. Tizón subsume estos dos sentidos en la posibilidad
de la comunidad literaria, entendida como el lugar donde expongo mi
escritura y la hago comunicable para otro.
La historia de Belindo, el coplero, es el eje de los relatos de los
habitantes de la región. El que se va rescata la biografía del cantor a través
del relato de los otros y de sus propios recuerdos de infancia:
Cuentan que en el arte de parear versos nadie
igualó a Belindo de Casira. Mi abuelo, con las
imágenes mezcladas por la edad, acostumbraba a
citarlo como un testimonnio prestigioso al
recordar su propia niñez, pero también en la mía
su historia aúnera viva. Por ello es que elcantor
llegó a una edadinalcanzahle hasta entonces, o
enrealidad fuerondos o más los llamados con
igual nombre (TIZÓN, 1984, p.38).
El mito del coplero se diseña en una polifonía fragmentaria que
tiene dos notas fundamentales: la búsqueda del verso perdido de la copla
y la muerte en un duelo con un extranjero. Solo en el momento de su
muerte, el cantor tuvo acceso a la revelación de su búsqueda. Por lo tanto,
146
la comunidad no conoce el verso perdido de la copla. En ese verso parece
residir el conjuro contra el olvido. El viajero perseguirá, como antes lo
hiciera Belindo, esa clave remota y transformará el canto del coplero en
escritura. La experiencia individual del que huye se transmuta en Erfahrung
comunitaria porque el narrador puede escuchar las voces de los otros
donde están las resonancias del canto del coplero. Jean-Luc Nancyutiliza
el doble significado de la palabra entendre en francés (escuchar y entender)
para reflexionar sobre la forma en la que el sujeto experimenta el mundo.
“Estar a la escucha” es para Nancyuna suerte de revelación de una
resonancia secreta que permite al sujeto una percepción atenta de aquello
que casi no se distingue; es “ingresar a la tensión y el acecho de una
relación con uno mismo” (NANCY, 2007, p. 29).20 El narrador de Tizón
tiene esa doble capacidad para interpretar el mundo: escucha y entiende y
lleva en la memoria aquello que hará escritura. Transforma el mito en
literatura.
Foucault define el pensamiento del afuera como “El pensamiento
que se mantiene fuera de toda subjetividad para hacer surgir como del
exterior sus límites, enunciar su fin, hacer brillar su dispersión y no obtener
más que su irrefutable ausencia, y que, al mismo tiempo, se mantiene en el
umbral de toda positividad” (FOUCAULT, 1997, p. 17-18). Nos parece
que las novelas que presentamos están construidas desde ese pensamiento
que se mantiene en el exterior de sus límites y que, como señalábamos al
principio del artículo, lucha contra la reificación. Se trata de una literatura
que quiebra las fronteras para encontrar el vacío que le sirve de lugar de
enunciación y de experiencia. La ficción es una estrategia, un artefacto de
este pensamiento que busca crear pensamiento.21 De ahí la noción de
comunismo literario que citábamos anteriormente.
Berger (2000, p. 45). Es evidente que la experiencia da con respecto a la cosa en sí una
definición que el ojo reconoce. La experiencia estética trabaja de la misma manera, el
objeto (el artefacto) se define como objeto artístico y el ojo recupera esa definición.
148
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150
Regionalismos e construções enunciativas:
espaços, vozes e memórias na narrativa andina
peruana23
Rosane Cardoso
23
Este artigo foi publicado, com modificações, no periódico Cadernos do IL, 2016, sob o
título “Regionalismo e construções enunciativas na narrativa andina peruana”. No
referido artigo, são debatidos os escritores peruanos que formam o principal eixo da
discussão sobre indigenismo, bem como são ampliados os conceitos de transculturação,
heterogeneidade e hibridismo, à luz das reflexões de Ángel Rama e de Antonio Cornejo
Polar.
151
diferenciar o regionalismo do indigenismo. Em culturas nas quais o índio
tem um destaque tão acentuado, é natural que se faça essa distinção. Mais
do que natural, a diferenciação faz parte de uma longa trajetória de
reivindicações. Aldrich, em idos dos anos de 1980, propõe a seguinte
diferenciação entre um e outro:
A veces ambos términos se emplean como
equivalentes, pero conviene hacer una distinción:
el indigenismo comprende la literatura publicada
en países donde el indio es el tipo racial
preponderante – en especial región andina – en
la cual hay una clara preocupación en exponer y
denunciar la injusta situación del mismo. El
regionalismo se reserva para la narrativa no
andina en que tienen mayor importancia otros
tipos, el gaucho o el negro, por ejemplo, y otro
ambiente físico, la pampa o la selva. (ALDRICH,
1980, p. 3)
Estudos posteriores vão questionar imensamente a simplicidade
com que Aldrich observa a situação. O indigenismo é uma corrente
literária ligada ao regionalismo e de grande repercussão nos anos de 1940.
José Carlos Mariátegui (2009), reconhecido intelectual peruano, via no
indigenismo uma forma de tradução do estado de consciência de um novo
Peru. Buscando trazer à tona todas as reivindicações da cultura indígena,
obviamente extrapolou o âmbito da literatura, estabelecendo-se como um
ato social e político. Dentre os representantes literários, destacam-se José
María Arguedas e Ciro Alegría. São textos que sublinham o conflito entre
o mundo andino e o mundo ocidental. Nas obras, é possível perceber
tanto a opressão sofrida pelos indígenas como a permanência das
instituições coloniais, do ponto de vista do tratamento dado aos nativos,
assim como a legitimidade permitida a uma ordem social injusta. A nova
narrativa problematiza a chamada “novela de la tierra”, pois a fórmula
empregada pela narrativa criolla começa a esmaecer diante do vigor
indigenista (SHAW, 2005).
O indigenismo exige, de certo modo, que se fale do indianismo
que também esteve atrelado à literatura peruana, assim como à de vários
países colonizados. A imagem do índio, vinculada a uma ideia de nação,
152
compunha um tremendo paradoxo entre o homem ideal e o preconceito
mais explícito. Fosse ao longo do Romantismo, do Realismo ou do
Modernismo, sempre se mostrou como uma representação que não
contemplava o homem índio real, nem suas necessidades, ademais de sua
voz estar sempre sujeitada ao discurso de outrem. Esta é a principal
diferença entre o indianismo e o indigenismo, pois este consiste na
reivindicação dos direitos indígenas (CORNEJO POLAR, 1979), ainda
que recorra, como no indianismo, à idealização, mas aqui com base em um
passado de harmonia antes da chegada dos conquistadores:
En determinadas circunstancias aquel pasado se
retrotrae hasta la época prehispánica, lo que en
algún momento generó la utopía de una
restauración del Incanato, pero en otras
ocasiones, mucho más numerosas y significativas,
basta con fijar un tiempo anterior a la explotación
que se narra y denuncia. (CORNEJO POLAR,
1979, p. 63)
Segundo Franco (1983) e Cornejo Polar (1979), Aves sin nido,de
Clorinda Matto de Turner, escrita em 1889, é a precursora da literatura
indigenista, embora outros críticos nem sempre apoiem esta teoria, tendo
em vista que, apesar de tratar de problemas indígenas, é escrita da
perspectiva não indígena. Essa vem sendo, aliás, a discussão que permeia
os conceitos de indigenismo, de neoindigenismo ou mesmo de andino.
Mariátegui expõe sua preocupação com os limites tênues entre o
indianismo e o indigenismo no que tange à escritura literária: o exotismo
do primeiro substituído por uma fala não indígena sobre aquilo que seria
o compromisso reivindicatório que pressupõe o segundo. Em Aves sin nido,
a autora expõe os abusos sofridos por indígenas, as contínuas violações
perpetradas às mulheres e a impunidade dada aos agressores. Turner, no
entanto, está claramente alicerçada por uma obra anterior, de 1848, de
Narciso Ariéstegui, El padre Horán, em que as mesmas atrocidades fazem
parte do cotidiano dos índios. É claro o discurso reformista do autor e a
narrativa estabelece um dos motivos literários mais recorrentes da
literatura peruana até os dias de hoje, o de marginalidade indígena. À
diferença de Ariéstegui, Turner denuncia e cobra que o feudalismo
153
remanescente na estrutura social peruana dê lugar a uma sociedade liberal
baseada no progresso industrial (KRISTAL, 2004, p. 338).
O neoindigenismo, como tendência literária, nasce de um
argumento de Tomás Escajadillo (2015), defendido em 1971. Para ele, é
uma corrente que coincide com o boom e se iniciou em meados dos anos
de 1950. Portanto, compreende o realismo mágico, o real maravilhoso, é
urbanista andino e cosmopolita; constrói-se a partir de uma perspectiva
poética e pessoal sobre os Andes. Porém, logo essas concepções serão
derrubadas principalmente por Juan Zevallos, já que não se aplicam a
produções de referente andino, pois tanto Escajadillo quanto Miguel
Ángel Huamán – outro defensor da ideia – partem de um discurso
acadêmico limenho e, deste lugar “enuncian discursos con varias
mistificaciones concernientes a la producción literaria del indigenismo y
del neoindigenismo” (OROZCO, 2011, p.33). Essa tendência literária
rompe, em larga medida, com o realismo atinente ao indigenismo, pois
envolve um intenso misticismo, o que levou parte da crítica a situar
Arguedas no gênero.
Neste estudo, aborda-se a narrativa andina que, a partir dos
estudos de Huamán (OROZCO, 2011), possui destacada diferença do
regionalismo/indigenismo e do neoindigenismo. Nela se apresenta outra
problemática de ordem política, pois são os narradores considerados nas
categorias citadas que não aceitam tais denominações, preferindo o
reconhecimento como escritores andinos, como contraponto à crítica
miraflorina24, designação contumaz de Luis Degregori para referir a crítica
limenha. De acordo com Orozco (2011), o reconhecimento do aporte
andino não se reduz ao campesino, ao rural, ao racial e menos ainda ao
espaço geográfico. Ele se articula em termos culturais e políticos, como
proposta simbólica e estética capaz de construir sua própria escritura
literária. As especificidades da narrativa andina seriam, então: a) a
referência à tensão simbólica da cultura peruana: migrações, reforma
agrária, violência política; b) a adaptação da expressão indígena (o
castelhano andino); c) a utilização de técnicas da narrativa urbana de
vanguarda; d) a posição entre o indigenismo e a nova narrativa; e e) o
155
migrante provinciano em Lima, seus filhos ou as classes sociais letradas
das cidades e do interior do país; c) ocorre a ampliação do referente
andino, especialmente do sujeito e da cultura. O mundo representado é o
urbano serrano ou o costeiro andino, não o rural; d) a ampliação de
horizontes do escritor que tem inserção em qualquer espaço do mundo,
seja no modo de construir a narrativa, seja na recepção da obra; e e)
abordam a violência política no Peru, “depósito de nuestra memoria,
nuestra historia, y nuestro pasado.”(ESPEZÚA apud OROZCO, 2011, p.
45).
Porém, é necessário considerar, ainda, as diferenças entre a
narrativa andina e a narrativa criolla. Degregori (2007) destaca que tais
diferenças não são de caráter geográfico, como muitos postulam, mas
sociocultural. A narrativa andina, desde seu surgimento, sofre uma
situação de subalternidade por seu interesse por temas rurais e pelos pueblos
da serra, o que significa representar as vozes periféricas da realidade
peruana. Somente nos anos de 1990, o termo “narrativa andina” passa a
referir um tipo de produção literária diferente da criolla, com autores
unidos no esforço de oferecer uma imagem ampla do Peru, com variados
setores sociais e com temas pertencentes ao imaginário andino, à
revalorização da tradição e à violência política (LEIRIA, 2014).
Na mesma época, os autores criollos, até então voltados para temas
urbanos, também começam a escrever sobre o conflito armado entre o
Sendero Luminoso e o Estado e as consequências de “La Guerra
Sucia”.De acordo com Mark Cox, no ano de 2003, já existia um corpus
com 192 contos e 46 novelas publicados por 104 escritores, sem contar as
várias obras inéditas (COX, 2002).Destacam-se algumas obras dentro do
corpus de escritores andinos e criollos que refletem sobre a violência social
e política no Peru, segundo levantamento de Leiria (2014).
Em Adiós Ayacucho (1986), Julio Ortega resgata do esquecimento
os mortos da guerra através da luta do povo andino para que o Estado se
mobilize contra os abusos cometidos pelos militares. Luis Nieto Degregori
se dedica ao conto de cunho social, publicando, em 1990, Con los ojos para
siempre abiertos e Señores de estos reinos (1995). Em Las mellizas de Huaguil, de
Zeín Zorrilla, são representados os dramas gerados pela transformação
das sociedades andinas devido ao processo de migração urbana. La violencia
del tiempo (1991), de Miguel Gutiérrez, assinala o achatamento das classes
156
sociais baixas pela opressão dos abastados em uma sociedade fortemente
marcada pela diferença social.
Destaca-se também o romance histórico através de Luis Enrique
Thord, com Sol de soles (1998), Fieta Jarque, com Yo me perdono (1998),
Francisco Carrilo, com Diario del Inca Garcilaso (1996) e Óscar Colchado
Lucio, com ¡Viva Luiz Pardo! (1996). Entre os romances sobre a violência
política, relacionados ao Sendero Luminoso, estão Abril rojo (2006), de
Santiago Roncagliolo, narrativa sobre um período posterior aos
enfrentamentos internos e suas sequelas, e Alonso Cueto, cujo
reconhecimento crítico ocorre com Deseo de noche (1995), Amores de invierno
(1994), El vuelo de la ceniza (1995),Cinco para las nueve y otros cuentos (1996),
Grandes miradas (2003) e La hora azul (2005).
Embora este levantamento seja exaustivo, ele é essencial para
captar-se a complexidade da literatura peruana e andina peruana que,
conforme se viu, supera o espaço – literatura sobre os Andes e sobre o
homem andino – para passar a discurso, o que em nada a simplifica, como
alerta Degregori: “Si se olvida que la sociedad peruana es pluricultural y
profundamente fragmentada, se puede caer muy fácilmente, al emprender
el estudio de sus literaturas, en la banalización de sus diferencias.”
(DEGREGORI, 2007, p. 56)
Contudo, não se pode negar que há o desejo de chamar a atenção
e em manter a identidade cultural dos Andes, como claramente acenam as
obras de Enrique Rosas Paravicino, que pauta seus textos justamente no
choque entre o tradicional e o contemporâneo. Uma de suas principais
obras, El Gran Señor, toma por objeto a peregrinação de El Señor de
Qoyllurit´i, festa que celebra os costumes do sul andino. Dela participam
peregrinos, aventureiros, curiosos e grupos musicais e de dança. O evento
é anual, acontecendo em meados de junho. Paravicino apresenta ao leitor
as tradições que sobrevivem ao tempo, a despeito das radicais mudanças
e “aborda un simbolismo donde la fe define un sincretismo religioso entre
lo pagano y la cristiandad” (AGUIRRE, 1996, p. 530):
Rosas Paravicino recrea el paisaje social y cultural
de las estribaciones de la Cordillera Oriental, con
un estilo introspectivo para describir las
características psicológicas de los personajes que
construye. El resultado motiva la reflexión
157
necesaria sobre el viajero arquetípico, y su
condición metafísica entre lo transitorio y lo
inmutable, entre la destrucción y la salvación.
(AGUIRRE, 1996, p. 531)
As palavras de Aguirre apontam para as questões sobre as novas
perspectivas regionalistas referentemente à tensão. Veja-se que o espaço e
os costumes construídos pelo autor ultrapassam a si mesmos, pois, de fato,
validam o homem na sua interioridade e no impacto que a cultura causa
nele. O retorno a um conhecimento ancestral se apresenta como
necessidade a ser vivenciada, tanto pelo indígena quanto pelo citadino. O
romance de Paravicino, porém, não se esquiva ao problema da violência.
Entremeados à retomada do folclore andino, bem como a várias histórias
que vão construindo o texto, aparecem grupos armados e se estabelece um
conflito violento entre os fiéis e os invasores. Com isso, a vilania se amplia
ao profanar o sagrado:
La guerra interna ha marcado a fuego vivo
nuestra cultura en las últimas décadas. Y como
parte de ello, la creación literaria, más
específicamente la novelística, por su condición
de género totalizador refleja y procesa de varias
maneras el ciclo violento que la sociedad peruana
vivió a fines del siglo XX. Siempre un novelista
aspira a comprender e interpretar su época. En
ese afán, extrae la savia de su creación de la mata
misma de los sucesos de su tiempo. Si la psiquis
colectiva está tatuada de tragedia y dolor, es
lógico que la novela peruana esté al nivel de ese
estado de ánimo. Rosa Cuchillo, Abril rojo, La hora
azul, Retablo, La niña de nuestros ojos, entre otras,
son evidencias de que hay una nueva ruta
avanzada en el
género.(PARAVICINO/VELITA, 2010)
Nesse contexto, também se destaca Óscar Colchado Lucio que,
segundo Galgo (2000), em seu referente geográfico, é regionalista. No
entanto, está distanciado do regionalismo da primeira metade do século
XX e mais próximo das obras dos anos de 1960 e 1970, pelo
158
experimentalismo, realismo mágico, crítica social e pela linguagem híbrida
que mistura quéchua e andino. Porém, uma leitura atenta da obra
demonstra que denominar o romance de regionalista ou juntar todas as
características supracitadas não é o suficiente, pois cada uma das premissas
de Galgo pode ser rebatida, conforme aponta Orozco (2011): “el texto no
solo efectúa una denuncia social, sino que esboza a su vez un proyecto
político; amén que el lenguaje híbrido es el castellano quechua o
andino.”(OROZCO, 2011, p. 32)
A par dessas considerações de Orozco, e contemplando-se outras
obras atuais, pode-se perceber que o projeto político da narrativa andina
contemporânea promove uma intensa vinculação com a memória. O
texto literário assume o papel de revigorar uma voz, um idioma ancestral,
seja por manter a denúncia sobre a violência, em sentido amplo, na pauta
do dia, seja por rememorar o que a história oficial não consegue, ou não
pode, ou não quer dizer.
Considera-se pertinente relacionar memória e região, ao discutir a
narrativa peruana contemporânea, justamente por esta vinculação com o
periférico, sejam as vozes que atualmente são ouvidas imiscuindo-se à
história oficial, seja pela grande variedade de textos literários que têm
como referente o mundo chamado andino. Como assinala Galgo (2000),
é uma produção de posição marginal e limitada, majoritariamente, ao
âmbito cultural peruano. Para o crítico, o regionalismo é uma manifestação
em constante movimento que deve ser entendida para além de uma
fórmula estética restrita, ou, conforme ensinou Ángel Rama, uma força
criadora que segue atuante no sistema literário latino-americano (RAMA,
1987). Nesse sentido, Galgo prefere o termo “literaturas regionais”.
O regionalismo – destacando o que entendemos por regionalismo,
isto é, a tensão entre o campo e a cidade, os movimentos migrantes, “lo
andino” como discurso – permite “un sentimiento de pertenencia a una
comunidad propicia a la solidaridad social necesaria para poder resistir a la
homogenización cultural que supone la globalización de la economía”
(GAGNON, 2005, p. 116). Os romances sobre os conflitos políticos,
étnicos, sociais, ressignificados pela memória, promovem a atualização da
diversidade cultural, os múltiplos sentidos dados à tradição, o hibridismo
estético, situações que remetem, em certa instância, à heterogeneidade
como expressão artística e cultural. A narrativa contemporânea em
159
questão regionaliza sem ser um gênero e sem opor-se à abertura global.
Ela acentua que o entre mundos pode criar realidades e identidades
importantes para os sujeitos. Representar determinada cultura, assim, é
estar possibilitado de posicionar-se frente ao global. Fala-se a partir de um
lugar, de uma tradição e de uma identidade que se ampliam para uma rede
de relações no mundo.
A narrativa andina se manifesta pela expansão permanente de
vários aspectos do mundo andino, sejam questões pessoais ou da vida
cotidiana que se mesclam com os conflitos sociais. Com isso, a percepção
pautada pela ideia de regionalizar a literatura andina, categorizando-a,
pouco a pouco vai se tornando um problema de enunciação, da
perspectiva do homem que observa o mundo andino a partir de si e do
seu entorno.
É essencial deixar claro que não se entende identidade regional
como algo estático, em oposição à constante mobilidade do mundo atual.
As narrativas sobre os conflitos comprovam isso ao romperem com
paradigmas de escritura, ao coadunarem testemunhos biográficos e
ficcionais, ao abandonarem a aparente dicotomia autor/narrador, ao
estabelecerem uma narrativa centrada no “eu” que precisa narrar e buscar
no “outro” um modo de compreensão para o passado que efetivamente é
necessário para a elaboração do presente. Dado que o entendimento é um
processo, compreende-se que a aproximação à história, aos costumes e
aos espaços do país é um modo legítimo de conhecer as variadas
identidades de um país de grandes contrastes culturais como é o caso do
Peru. A narrativa andina se constrói na heterogeneidade, mantém
proximidade tanto com o neo quanto com o indigenismo:
Lo andino no está dado por el lugar de
nacimiento o residencia de los autores sino en la
manifestación de una perspectiva andina, una
forma de sentir y pensar muy particulares, además
de los deícticos que representan el contexto
andino de las historias […] esta narrativa,
actualmente, expresa una nueva forma de ser de
la cultura andina que es una cultura mestiza.
(TICONA, 2003, p. 158).
160
Pode-se perceber que, ao longo dos tempos, excetuando o
indianismo, as demais manifestações de base regionalista sempre se
pautaram por dar voz a determinado grupo e não por enaltecer a cor local,
ou o tipo humano e seus costumes. Depois, no que diz respeito ao
discurso andino e criollo, estabeleceu-se outro viés: de onde se fala, de onde
provém a narrativa literária. Contemporaneamente, “lo andino” toma
outro espaço. Na extensa narrativa que denuncia os conflitos vividos no
final do século XX, ainda que se mantenha, como se viu, um lugar de onde
provém essas vozes, o andino se multifaceta e não se deixa prender pela
restrição espacial, temporal ou cultural. É migrante como são os
campesinos que deixam a serra, pessoas em trânsito, aculturando-se e
fomentando a cultura do outro.
A narrativa sobre a violência permite (re)elaborações da memória
traumática, favorecendo aos sujeitos possibilidades de regeneração
pessoal. Assim, as representações simbólicas como a literatura podem se
constituir uma memória emblemática mais significativa do que
monumentos que visem a congelar determinada memória de eventos
dolorosos. Nesse contexto, a narrativa peruana andina merece destaque
justamente porque é uma voz que se ergue depois de muito tempo de
ocultamento, depois de ser ela própria uma memória presa às dobras do
esquecimento.
161
REFERÊNCIAS
162
http://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/3303032.pdf. Acesso em: 10
jan. 2015.
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los casos de Enrique Rosas Paravicino y Oscar Colchado Lucio.
Disponível em:
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1998. In: BELAY, Raynald et al. Jean. Memorias en conflicto: aspectos de la
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na obra de Alonso Cueto. 2014. Dissertação (Mestrado em Letras) ‒
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TICONA, Juan Alberto Osorio. Literatura peruana contemporánea.
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2003. Disponível em:
http://sisbib.unmsm.edu.pe/bibvirtualdata/publicaciones/umbral/v03_
n05/a18.pdf. Acesso em: 28 ago. 2015.
VELITA, Niko. Entrevista a Enrique Rosas Paravicino.Viernes, 3 de
diciembre de 2010. Disponível em:
163
http://literaturayguerra.blogspot.com.br/2010/12/entrevista-enrique-
rosas-paravicino.html. Acesso em: 20 out. 2015.
164
Antonio Carlos Viana: um “outro” que sempre
sou
Maria Ivonete Santos Silva
25É o próprio Viana que, ao falar de seu processo de criação, atribui à sua característica
de “bom observador” um primeiro impulso que o levou a escrever sobre o mudo dos
desafortunados (VIANA, 2010b).
166
os fatos narrados se reportam a acontecimentos vividos no limite do
incomum ou do subumano; por isso mesmo, ressurgem na memória do
narrador e das personagens protagonistas como fatos extraordinários,
merecedores de registro. E para quê? E para quem, se ao constatar a
inutilidade das ações humanas, os pensamentos e os sentimentos
conduzem os indivíduos a uma atitude de pessimismo e de negligência
perante a vida?
Responder a estas perguntas significa compreender a dimensão e
a profundidade da produção contística de Viana que, apesar de se assumir
como “(...) um pessimista até o último grau”26, tem manifestado ao longo
da sua vida e do seu processo de criação uma postura coerente com tudo
aquilo que diz respeito não somente às questões políticas e sociais, mas, e
principalmente, às questões existenciais que se situam na ordem de uma
ética e de uma moral comprometidas com valores humanos. Em entrevista
concedida a Rinaldo Fernandes e publicada no Blog da Beleza, no dia 16 de
janeiro de 2011, ele expressa sua opinião sobre o papel do intelectual e
explica seu posicionamento em relação à importância da literatura
enquanto veículo “desalienante”, formador de uma consciência crítica
capaz de desvelar “novos horizontes”27.
... O papel do escritor é, em primeiro lugar, falar
daquilo que lhe é mais verdadeiro. Se ele fala de
algo que não lhe diz respeito profundamente, o
leitor percebe, sua voz fica débil, não funciona.
Eu mesmo, que tive uma infância pobre, sei falar
da pobreza, mas me coloque para falar da vida
dos milionários que eu vou ser falso, não sei
como é ser rico, imagino, mas não está dentro de
mim. Então a gente tem de procurar suas
sobre o que é o conto, Viana faz referência a Mario de Andrade dizendo:“Como dizia
Mário de Andrade, o bomconto nosdeixa com o olhar perdido no horizonte”. O “olhar
perdido no horizonte”, por sua vez, suscita abertura para que se possa alcançar “novos
horizontes”.
167
verdades mais profundas e falar delas. O nosso
papel é fazer a sociedade pensar sobre fatos que
muitas vezes passam despercebidos, personagens
para as quais ninguém olha, mas tudo isso sem
doutrinação alguma, sem panfletagem. Na hora
em que fazemos um determinado recorte do real,
chamamos a atenção para ele, lhe damos uma
dimensão diferente da que um outro meio de
comunicação lhe daria. A obrigação maior do
escritor é escrever bem, levar o leitor a sentir
prazer em lê-lo. Não sei muito o que adianta você
escrever para um ou dois leitores especializados.
Não estou querendo dizer com isso que devemos
cair no fácil. De forma alguma. Devemos
escrever para que o leitor se sinta inteligente.
Nas palavras de Viana identifica-se uma espécie de compromisso
com a busca de “verdades profundas” e com um tipo de produção literária
que não se limita ao puro entretenimento ou ao deleite de alguns “leitores
especializados”. Por estas e por outras colocações, é indiscutível a sua
posição a favor do trabalho de formação de um público leitor
“inteligente”, trabalho este que passa, obrigatoriamente, por uma
educação de boa qualidade e pela leitura de obras literárias mais alinhadas
aos tempos atuais, capazes, portanto, de suscitar a reflexão crítica e o
questionamento acerca dos distintos saberes e das distintas realidades. Em
outra declaração a respeito do ofício do escritor, ele afirma: “Escrever é
uma forma que temos de dominar o tempo, é quando temos a certeza de
que não o deixamos passar em vão”.28
A busca de Viana por uma verdade “verdadeira”, possível de ser
veiculada através da sua produção ficcional, remonta a inúmeras
discussões no campo da teoria e da crítica literárias, as quais há algum
tempo vêm se desenvolvendo a partir do entrecruzamento dos eixos
Tempo/Memória, Memória/História ou, ainda,
História/Memória/Esquecimento, também investigados por outras áreas
29Nos estudos sobre a memória e sua apropriação pela literatura de testemunho, a crítica
é praticamente unânime ao admitir a existência de dois tipos de narradores: superstes e
testis. O primeiro é aquele que viveu uma experiência traumática de muita violência e de
grandes rupturas e, por esta razão, em sua memória, as vozes são confusas; algumas são
169
narradas uma dimensão estética que ultrapassa a inócua discussão acerca
da dicotomia falso x verdadeiro.
Assim, ao mesmo tempo em que se apresenta comprometida com
uma realidade factual, portanto muito mais próxima da realidade à qual o
leitor tem acesso, sua produção contística, ao exibir uma galeria de temas
e personagens “retrabalhados” a partir de experiências “vividas” ou
“imaginadas”, se insere em uma das vertentes da produção
contemporânea de maior destaque nos meios literários e que se intitula
“novo realismo”.
Karl Erik Schøllhammer, em seu livro Ficção brasileira
contemporânea(2009), ao problematizar o conceito de “novo realismo”30,
afirma que o desejo de retratar experiências do mundo real se constitui no
maior desafio das atuais produções devido ao hibridismo de muitas formas
que se entrecruzam e se superpõem para “provocar efeitos de realidade
por outros meios” (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 53-54). Nos contos de
Viana, esses “outros meios” aos quais o crítico se refere se vinculam aos
mecanismos da memória (lembranças, reminiscências, rastros, indícios,
entre outros) que, uma vez articulados à trama narrativa das histórias
narradas, produzem um efeito capaz de “nocautear o leitor” 31, como se
verá na análise de “Três Lembranças”, um dos 28 contos que compõe seu
último livro, Jeito de Matar Lagartas. Antes, porém, algumas considerações
teóricas sobre memória, história e esquecimento tornam-se pertinentes,
haja vista que a não univocidade de conceitos acerca de tais temas, no
caladas pela dificuldade de narrar, outras encontram formas de expressão nem sempre
confiáveis. Assim, através do relato dos tais acontecimentos o indivíduo dá o seu
testemunho. Já o segundo narra experiências vividas por um “outro”, colaborando para
que as vozes caladas sejam verbalizadas, liberando aquele que foi alvo do acontecimento
traumático das angústias causadas pelas lembranças. Entretanto, a problemática da
narrativa testemunhal e de ficção vai muito além da discussão acerca da veracidade ou
não do testemunho, tendo em vista que as questões estéticas inerentes à arte literária
ultrapassam a simples confrontação do falso com o verdadeiro.
30 Segundo Schøllhammer, o “novo realismo” se expressa pela vontade de relacionar a
literatura e a arte com a realidade social e cultural da qual emerge, incorporando essa
realidade esteticamente dentro da obra e situando a própria produção artística como força
transformadora. (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 54).
31 Em uma referência a Julio Cortázar, escritor e crítico argentino que escreveu muitos
ensaios sobre a teoria do conto, Viana retoma sua afirmação a respeito de um dos
principais objetivos do conto: “nocautear o leitor”.
170
conto, é mantida como ponto de reflexão e de cotejamento entre alguns
argumentos e pressupostos defendidos por determinadas áreas do
conhecimento acerca dos referidos conceitos.
171
tempo, se desgastam “sem força sensível”, tal como ocorre com “moedas
que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal”
(NIETZSCHE, 1999a, p. 57).
Em Da utilidade e inconveniente da história para a vida (NIETZSCHE,
1999b, p. 273), o filósofo suscita uma reflexão acerca da hipótese: e se não
fosse dada ao homem “a força de esquecer”? A resposta, por mais
paradoxal que possa parecer, reforça o seu argumento em defesa do
esquecimento “ativo”, aquele que se insere em uma ordem dialética de
infinitas negações e contradições para, ao final, propiciar uma visão lúcida
do que é a verdade. É ele quem afirma: “é possível viver quase sem
lembranças (...), mas é inteiramente impossível, sem esquecimento,
simplesmente viver” (NIETZSCHE, 1999b, p. 273-274). Portanto, e
seguindo esta linha de raciocínio, lembrança e esquecimento, bem como
história e vida em seu incontinenti devir, são forças interdependentes e
imprescindíveis ao equilíbrio físico e psicológico dos indivíduos e da
sociedade.
Já na Segunda Dissertaçãode sua Genealogia da Moral (2009),
Nietzsche considera o esquecimento como uma condição que antecederia,
e de certa forma inibiria, a constituição de toda e qualquer memória. Para
o filósofo, a constituição da memória depende de estratégias que exigem
extremo esforço e imprimem ao homem dor e sofrimento; entretanto,
somente por meio dessas estratégias os homens serão capazes de “chegar
à vitória sobre o esquecimento” (NIETZSCHE, 2009, p. 348).
Sendo assim, e buscando nas proposições de Le Goff pontos de
contato com o pensamento de Nietzsche, pode-se afirmar que os eventos
traumáticos, mesmo quando vividos individualmente, ao serem
verbalizados contribuem para que a coletividade se posicione quanto à
gravidade de toda forma de violação cometida contra os sujeitos. Portanto,
não basta pensar isoladamente a violência ou a brutalidade de muitas
agressões, sejam elas físicas ou psicológicas, a partir da vítima. O problema
está nos desdobramentos, na desconstituição da sua integridade física,
moral e psicológica que, em razão da violência ou da agressão, sucumbe
diante de qualquer ação mais ostensiva de seu agressor. Além disso, há que
se considerar o contexto sociocultural e histórico no qual a vítima se
encontra inserida ‒ afinal, todo contexto apresenta-se comprometido com
172
estruturas macro ou micro de poder, haja vista que é nele e a partir dele que
a violência se reproduz.
Segundo Le Goff, a lembrança contribui para a não reincidência
nos erros do passado e essa atitude é que pode levar o homem a um
presente e a um futuro nos quais a liberdade deixa de ser uma utopia para
se tornar uma conquista real. Essa ideia já era cultivada por Nietzsche em
vários de seus escritos sobre o papel da memória na conturbada “era
moderna”.
“TRÊS LEMBRANÇAS”
174
A terceira e última lembrança que, segundo o narrador, decorre da
segunda má lembrança, se refere ao pedido de casamento do primo Toddy.
Quando ele apareceu todo de branco, até os
sapatos brancos, e pediu sua mão para casar o
mais rápido possível, dona Moara teve uma tal
crise dos nervos que precisou ser levada para
tomar uma injeção no pronto-socorro. O primo
sumiu e ela nunca mais falou nele nem em mais
nenhum outro que usasse perna de calça, como
dizia (VIANA, 2015, p. 121).
Quando a narrativa se encaminha para um final nada
surpreendente o narrador, mais uma vez, toma a palavra para justificar as
escolhas de “dona” Moara. Afinal,
Era muito mais confortável ver sapos indo em
direção ao brejo do que um cavaleiro para a cama
de uma princesa. Que a adormecida dormisse
para sempre, sem príncipe nenhum para acordá-
la, sobretudo, se ele viesse de branco, como o
primo Toddy em sua memória (VIANA, 2015, p.
122).
Apesar de construída à imagem e semelhança de uma pessoa
alienada, ao contar histórias nas quais os príncipes encantados se
transformam em sapos, a protagonista deixa transparecer uma “lógica”
insensata que lhe auxilia na manutenção de alguns princípios ou
“verdades” criadas por ela própria e que têm como finalidade minimizar
os efeitos dos traumas vividos na infância. As lembranças que ela nunca
conseguiu esquecer, de certa forma, criaram mecanismos de defesa
fazendo com que ela reagisse de maneira plausível às agressões e à
violência que continua a sofrer, devido ao seu comportamento desajustado
em relação à logica das normas sociais. Contar histórias de príncipes que
viram sapos é o seu modo de negar o efeito devastador das agressões e da
violência que restaram como herança dos traumas da infância, muito
embora ele afirme que gostaria de esquecer tudo.
175
CONSIDERAÇÕES FINAIS
176
REFERÊNCIAS
177
NUNES, Benedito. Narrativa histórica e narrativa ficcional. In: RIEDEL,
Dirce C. (Org). Narrativa: ficção e história.Rio de Janeiro: Imago, 1998. p.
9-35.
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SOBRE OS AUTORES
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Doutor em Letras: Estudos Literários. Professor adjunto do Instituto de
Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Estudos
Literários da mesma universidade.
Mónica Bueno
Doutora em Filosofia e Letras. Professora Adjunta na Universidade
Nacional de Mar del Plata, Argentina (UNMdP).
Rosane Cardoso
Mestre e Doutora em Letras. Professora na Universidade de Santa Cruz
do Sul (UNISC) e no Centro Universitário UNIVATES.
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