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Literatura:

espaço fronteiriço
Maria Ivonete Santos Silva
Maria Elisa Rodrigues Moreira
(Organização)

Literatura:
espaço fronteiriço
Copyright © dos autores, 2017.

Projeto Gráfico: Clock-t Gracia Regina Gonçalves, UFV


Imagem da Capa: Pixabay.com Joelma Santana Siqueira, UFV
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Conselho Editorial José L. Foureaux de Souza Jr, UFOP
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Glen Goodman, UIUC Thiago Ianez Carbonel, UNICEP
Victor Rocha Monsalve, UDP

Silva, Maria Ivonete Santos.


S586l Literatura: espaço fronteiriço. / Maria Ivonete Santos Silva, Maria Elisa
Rodrigues Moreira, organizadoras. – Colatina/Chicago: Clock-Book,
2017.

182p. – (Acadêmica)

Inclui bibliografia.
ISBN (e-book): 978-85-92525-13-2
ISBN (impresso): 978-85-92525-14-9

1. Crítica Literária. I. Título. II. Autor. III. Série.

CDD: 801.95
CDU 82.09

1ª Edição – 2017. Todos os direitos reservados.


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Brasil Estados Unidos


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SUMÁRIO

PREFÁCIO - A literatura sem fronteiras ......................................................7


Eneida Maria de Souza

Entre ................................................................................................................. 11
Cássio Eduardo Viana Hissa

Divertir o leitor é uma tarefa séria: o cômico, o cósmico e as


cosmicômicas calvinianas............................................................................... 29
Adriana Iozzi Klein

Literatura, Ciência, Gonçalo M. Tavares ..................................................... 43


Maria Elisa Rodrigues Moreira

Narrar por imagens: fricções entre cinema e literatura ............................. 59


Leonardo Francisco Soares

Ensaio sobre a tradução coletiva: Presos pelo estômago, livres pelo


filme .................................................................................................................. 75
Augusto Rodrigues Silva Júnior, Eclair Antonio Almeida Filho e Lemuel
da Cruz Gandara

Identidad y cultura en el occidente de México: una aproximación


metafórica a las fronteras del sujeto desde los apodos en Tonila,
Jalisco ................................................................................................................ 93
Gloria Ignacia Vergara Mendoza, José Manuel González Freire e Lucila
Gutiérrez Santana
Arte e política nos “anos de chumbo”: Carlos Heitor Cony e a
“contraestrutura de sentimento” ................................................................. 113
Maurício Guilherme Silva Júnior

La frontera de la literatura: utopía, resistencia y Dictadura ..................... 133


Mónica Bueno

Antonio Carlos Viana: um “outro” que sempre sou ................................ 165


Maria Ivonete Santos Silva

SOBRE OS AUTORES ............................................................................... 179


PREFÁCIO - A literatura sem fronteiras
Há muito tempo a crítica literária tem se debatido a favor do
inevitável diálogo entre a literatura e outras disciplinas, incluindo aí o
universo das artes e das ciências. Se a separação tivesse logrado êxito, hoje
estariam enfraquecidas as conquistas relativas à transdisciplinaridade,
dispositivo metodológico assumido pelos responsáveis pela abertura da
visão pluralista e heterogênea dos discursos das ciências humanas. A
perspectiva adotada pelo pensamento contemporâneo descarta a falácia
do etnocentrismo e da hierarquia entre os saberes, ao se opor à dimensão
vertical exclusivista e a endossar a horizontalidade como procedimento
analítico. O que daí se conclui reside na intenção de apontar o valor
relativo das disciplinas, colocá-las lado a lado sem a intenção de privilegiar
esta ou outra manifestação artística/disciplinar. Nesta operação, em que
se propõe a ruptura com a prioridade concedida ao aspecto temporal e ao
espacial – prisão ao cronológico e ao lugar de origem –, o trânsito entre
disciplinas acentua o deslocamento como princípio gerador do
movimento. Na defesa da posição horizontal e igualitária, a crítica deverá
trabalhar ainda com a noção de superfície e de defesa da exterioridade
como forma de expor a alteridade e a diferença. A transdiciplinaridade
convive tanto com a quebra de hierarquias quanto com o endosso da
tensão e do diálogo vivo entre manifestações que se digladiam e se
solidarizam, sem perder espaço entre elas. Artistas, pensadores, cineastas,
escritores, envolvidos na árdua tarefa de serem transmissores de dúvidas,
verdades ou inquietações, reconhecem as limitações e lacunas da
linguagem, na busca insana de totalidades e de respostas para as
racionalidades impostas.
É com agradável surpresa que recebo esta coletânea de ensaios
organizada por Maria Ivonete Santos Silva e Maria Elisa Rodrigues
Moreira, intitulada Literatura: espaço fronteiriço, como convite para
prefaciá-la. O volume reúne pesquisadores de instituições distintas, tanto
nacionais quanto estrangeiras, com o claro objetivo de apontar as múltiplas
possibilidades que a literatura oferece de interagir com outros domínios
do saber e de agrupar um número significativo de autores de diversas
universidades. A relação interinstitucional evidencia a tendência, nos dias
atuais, de congregar estudiosos em torno de pesquisas comuns, no intuito
7
de ampliar não só as fronteiras disciplinares como as acadêmicas, em busca
de maior entrosamento e de saída para o suposto esfacelamento das
universidades. O empenho do grupo justifica a vontade de divulgar o que
se desenvolve no interior dos debates entre professores e alunos, para que
as ideias ganhem espaço e sejam igualmente compartilhadas pelo público-
leitor.
A literatura, à medida que se relaciona com outras áreas do saber,
como a teoria, a ciência, a política, a memória, a história, a arte, a imagem,
a linguagem e a tradução, aparece como mobilizadora de uma sintonia de
vozes em diversos tons.
Os artigos de Cássio Eduardo Viana Hissa, Adriana Iozzi Klein e
Maria Elisa Rodrigues Moreira discutem a fraca oposição entre ciência,
teoria e literatura. De caráter mais teórico, o texto de Hissa defende a
noção de hibridismo para a legitimação do trânsito disciplinar, por
acreditar no diálogo enriquecedor entre ciência e literatura. Italo Calvino,
um dos expoentes literários voltados para a associação estreita entre
ciência e literatura, é tema do ensaio de Adriana Iozzi Klein, no qual a
precisão e o refinamento da linguagem, a contaminação entre linguagem
cientifica e poética constituem o perfil deste eminente escritor. Maria Elisa
Moreira encontra no autor português Gonçalo M. Tavares solo fértil para
encaminhar a discussão dos “saberes que se configuram como ato estético
e político”. Apoia-se no argumento e perguntas de Cássio Hissa em sua
obra, ao lançar o desafio: “ciência é arte?”, em que a narrativação do saber
desempenha um tempo compartilhado com a literatura.
Leonardo Francisco Soares, em “Narrar por imagens: fricções
entre cinema e literatura”, reitera a poética de Greenaway ao recusar a
ilustração da literatura pelo cinema e responde pela desestabilização dos
lugares considerados fixos dos discursos, reconhecendo a diferença
instaurada entre registros diversos e a impossibilidade da troca ingênua
entre estes. O filme Estômago, por suavez, recebe cuidadosa interpretação
de Augusto Rodrigues Silva Júnior, Eclair Antonio Almeida Filho e
Lemuel da Cruz Gandara, ao associar sexo e comida, comida e morte, com
o objetivo de explorar o grau de criatividade e de internacionalização do
cinema brasileiro contemporâneo.
Gloria Ignacia Vergara Mendoza, José Manuel González Freire e
Lucila Gutiérrez Santana consideram a utilização dos apelidos no universo

8
linguístico dos nomes próprios mexicanos – corpus recolhido de Tonila –
a necessidade de comunicação com o outro, por colocarem o sujeito nas
fronteiras de sua identidade: “El nombre próprio es suplantado,
desplazado, olvidado muchas veces; el apodo se convierte en un vertedero
de aspectos sociales, religiosos, culturales de los nombrados y los que
nombran”.
As reflexões de Maurício Guilherme Silva Jr. aproximam literatura
e política, discorrendo sobre o papel de Carlos Heitor Cony em época de
ditadura militar, ao denunciar os males sofridos pela arte nos “anos de
chumbo”. enquanto os ensaios de Mónica Bueno, Rosane Cardoso e
Maria Ivonete Santos Silva se desenham em torno da necessidade de
preservação da memória e do elogio do esquecimento como forma ativa
de reviver e de apontar os vazios dos acontecimentos. São analisadas
narrativas de resistência à ditadura na Argentina, pelos relatos de exilados
descritos por Mónica Bueno; regionalismos e construções enunciativas na
narrativa indiana peruana, por Rosane Cardoso; e o trabalho mais
específico da memória na obra do escritor Antonio Carlos Viana, com a
assinatura de Maria Ivonete Santos Silva.
Diante da multiplicidade de informações regida por rigoroso
espírito analítico, os ensaios que compõem Literatura – espaço fronteiriço
oferecem ao leitor prova mais que contundente do trabalho sério e
inovador que está sendo produzido no meio acadêmico latino-americano.

Eneida Maria de Souza

9
10
Entre
Cássio Eduardo Viana Hissa

O espaço entre dois corpos é espaço vazio, território do nada, lugar


de ninguém? A questão reúne os seus precários motivos a partir da
frequência com a qual se pensa nesses mesmos termos. Assim, entre um
objeto físico e outro1, haveria um espaço tomado como vazio, na
desconsideração de que os objetos sejam espaços e de que, além disso, a
existência afastada de um e de outro se dê também em razão da existência
criativa dos olhos2 que lhe encaminham significados e que também
compreendem os objetos em sua distância física; esses olhos, feitos de
história, de imagens teóricas e de vivências, que encaminham significados
à referida existência afastada de um e de outro e que, além disso, nomeiam
e concedem existência significante aos próprios objetos. Esse entre dois
corpos ou objetos, por sua vez, pode resistir às cartografias convencionais,
pois entre os corpos pode não haver contiguidade espacial; ou seja, uma
distância feita de corpos aparentemente estranhos àquilo que faz a
existência do entre, uma distância preenchida por híbridos diversos. Como
abordagem inaugural à questão, na consideração de que há uma espécie de
intervalo entre objetos físicos, o que se pode dizer é que o referido
intervalo é feito de um corpo-rizoma, um terceiro corpo feito de aberturas,

1 Desconsidera-se, aqui, também, a distância entre o objeto e a imagem por ele formada.
A referida questão é tomada como exclusivamente pertencente à física e, particularmente,
ao campo da ótica. Entretanto, a presença da subjetividade e da cognição ‒ além de vários
outros processos relacionados às particulares experiências e histórias de vida dos sujeitos
‒ constrói compreensões variadas acerca da percepção dos objetos, da distância entre
eles e a imagem que formam em nós, assim como da própria distância entre eles.
2 Tal como aqui empregada, a imagem da existência dos olhos sintetiza a existência da

capacidade de ver ‒ não exatamente de olhar, mas de construir visões a partir de todos
os sentidos ‒, de nomear e de encaminhar significados aos objetos e ao seu mundo. Não
existiria, portanto, autônoma, a existência dos objetos e da distância que se estabelece
entre eles. Para ampliação de reflexões, sugere-se a leitura dos diversos ensaios contidos
na obra organizada por Adauto Novaes (1989) e da obra de Italo Calvino (1994).
11
portador de identidades entrecortadas, constituído por relações variadas e
de múltiplas naturezas.
A primeira abordagem à questão parecerá óbvia, mas, de todo
modo, poderá produzir reações: o espaço entre, por si só, pressupõe a
existência de um e de outro- ou de vários - que, por sua vez, são
supostamente distinguíveis. Mais adiante, já poderíamos pensar: caso se
considere o espaço entre como espaço vazio, território do nada e lugar de
ninguém, ele servirá mais como uma representação do limite. Entretanto,
como já se discutiu em abordagens à temática, a instituição do limite já
institui a fronteira. Nesses termos, o entre existe em decorrência da
existência de um e de outro ou de vários; ou seja, aquilo que separa atua,
simultaneamente, como aquilo que, em princípio, reúne ou faz misturar.3
Imaginemos o corpo no topo da colina a ver a cidade. Ver: o que
existirá entre o corpo -cérebro-mente4, olhos - e a cidade? Ver e ler a cidade:
o que haverá entre o cérebro-mente e uma ponta de lápis a deslizar,
articulando palavras e ideias, rabiscando croquis e traduzindo a processada
visão da cidade5 através do espaço em branco de uma caderneta sem

3 Portanto, para acessar interpretações mais aprofundadas por mim desenvolvidas acerca
da temática referente às fronteiras, sugere-se a leitura de Cássio Hissa (2002, 2008, 2011,
2013). Em analogia, poderíamos pensar outros estatutos que se criam simultaneamente,
como, por exemplo, razão e crise da razão, tal como concebidas por Francis Wolff (1996).
Por sua vez, Jacques Rancière (1995, p. 7) é importante referência para se refletir acerca
da natureza desse espaço entre: “partilha significa duas coisas: a participação em um conjunto
comum e, inversamente, a separação, a distribuição dos quinhões. Uma partilha do
sensível é, portanto, o modo como se determina a relação entre um conjunto comum
partilhado e a divisão de partes exclusivas.”
4 A separação entre cérebro/mente e corpo é também interrogada por Antonio Damásio

(1996) e por Oliver Sacks (1995, 1998).


5 A visão não é construída exclusivamente pelos olhos: sentido hipertrofiado e,

especialmente, no âmbito das culturas modernas e ocidentais. Muito do que aqui se refere
está contido em reflexões presentes em documentário produzido por João Jardim e
Walter Carvalho (2001). Ainda, breves notas soltas sobre a cidade: “Do alto, a cidade
pode ser vista como um tecido, cujo cuidadoso bordado parece desmanchar o labirinto
e os becos dos interiores urbanos. Do alto, emanam feixes de visão que gravitam em
torno de uma perpendicular. Procura-se desenhar a cidade, construindo o seu mapa
mental, espraiada em uma imagem delicada de recortes que se entrecruzam. Saliências,
volumes e curvaturas do desenho urbano, do alto, estão suavemente achatados, como se
estivessem transformados em blocos aplainados de imagem. [...] Mais do alto, ainda,
atravessada por rabiscos quase imaginados, a cidade já se transforma em névoa que
12
pautas? O que haverá entre corpo e cidade - esta, por si só, explicitamente,
uma espécie de diversidade entrelaçada de corpos6 de variadas naturezas?
Uma representação de mundo7: superposições e interseções, desmedido
universo de ressonâncias entre células - complexas, por si, mas, sobretudo,
em suas ramificadas relações entre elas e o seu ambiente exterior; um
conjunto plural de silêncios e de vazios fabricados por ignorâncias, acasos
históricos, processuais ou efêmeros, espaço fronteiriço constituído de
excessos que também dizem o mundo.
Talvez, seja mesmo mais essencial do que a reflexão sobre mundos
aparentemente distantes - e que, paradoxalmente, se atravessam -, a
reflexão acerca do que os separa e, simultaneamente, do que os une. Está
posto para se pensar: o corpo-limite- que se faz corpo-fronteira- separador de
mundos é o mesmo que os agrega e, ao mesmo tempo, passo a passo, os
transforma.

II

Limite e fronteira são termos correntemente utilizados para


designar o mesmo: o que separa. Entretanto, certas diferenças entre ambos
serão sempre indispensáveis para a construção de uma espécie de teoria do
entre- ou uma espécie de teoria do entre que abrigasse ou que estivesse
articulada a várias outras: teoria do inter e teoria do trans, do comum, da partilha,
da distância e da proximidade, do pertencimento, do intervalo, da fronteira e do
limite, da passagem e da transição, do silêncio e do ruído, ou do ruído e da música.8

obstrui transparências. O delicado bordado já é feito de um entrelaçado profuso,


derramado através das fronteiras, que mistura cores indefinidas aos olhos do alto”
(HISSA, 2006, p. 87-88). De modo a perturbar a razão contida no suposto olhar objetivo:
“[...] a cidade é constituída de cidades por entre as quais atravessam fronteiras [entres]:
como muro, como transição, como passagem” (HISSA, 2006, p. 89).
6 O corpo da cidade também pode ser compreendido como um acúmulo progressivo de

tempos em variados ritmos e, mais precisamente, como uma sobreposição vertical de


espaços-tempos ‒ o que nos daria, por princípio, a possibilidade de pensar a cidade a
partir de uma arqueologia de camadas de história.
7 É o que nos diz Milton Santos (1996): a cidade, a mais representativa expressão de lugar,

é o espaço onde a vida acontece.


8José Miguel Wisnik (1989, p. 30): “o jogo entre som e ruído constitui a música.” A música

redesenha os sons do mundo com o propósito, conforme José Miguel Wisnik (1989, p. 30),
13
No âmbito dos territórios, o limite está voltado para os seus interiores,
como se fosse um duplo de colchetes a encerrar aquilo que contém. Por
sua vez, a fronteira está voltada para os exteriores, como se desejasse ser
compreendida como um duplo de colchetes invertidos e de costas para os
territórios: à frente, fronte, front- originário do francês arcaico - tributários
do latim frons. O que está à frente já ultrapassou o limite demarcatório do
território que, por sua vez, aqui, já é empregado como metáfora de
diversos outros termos com significados variados, dentre os quais destaco:
mundos, lugares, espaço-tempo, corpos, eu, outro, ciências, saberes e
práticas.
Entre um corpo e outro - e demais outros -, há espaço que, por sua
vez, vai se fazendo como rizoma a partir de um e de outro, assim como
de demais outros. O que existirá, então, entrecortado, não é exatamente
um limite que separa, mas uma espécie híbrida de corpo atravessado - um
corpo-travessia, um corpo-passagem feito de atravessamentos - e alimentado
pelo trânsito de um corpo para outro e outros. Este corpo-travessia, corpo-
fronteira, é mesmo o entre: esse território de ocupação de espaços
intervalares entreum e outro que, por sua vez, também se modificam no
contato, pois, além de conceder a existência a um terceiro corpo, eles se
transformam na relação com essa espécie de terceira margem. Entretanto, esse
corpo que se vai construindo não é feito de limites, pois é espaço de
trânsito aberto. Caso pensemos uma epistemologia dos territórios
disciplinares, por exemplo, estaríamos diante de uma epistemologia que,
portanto, é por natureza disciplinar. Nesses termos, pensaríamos as
epistemologias disciplinares referentes aos diversos campos do
conhecimento científico: a cada campo - ou território do conhecimento -
corresponderia uma epistemologia particular que, por sua vez, abrigaria
reflexões acerca das parcelares histórias disciplinares, dos seus métodos,
metodologias e técnicas, práticas específicas de pesquisa e mesmo de
ensino, dentre tantos tópicos que dizem respeito às particularizadas

de “[...] extrair-lhes uma ordenação.” Não há som nem ruído, sem o silêncio. “O mundo
é barulho e é silêncio. A música extrai som do ruído [ruído do mundo] num sacrifício
cruento, para poder articular o barulho e o silêncio do mundo”, diz o pensador e músico
José Miguel Wisnik (1989, p. 32). O ruído e o som da música não são apenas mediados
pelo silêncio, mas, ainda, pela escuta criativa do sujeito. O silêncio está entre o ruído e o
som da música, assim como o sujeito que escuta e cria está entre ambos.
14
epistemologias. Ao contrário do convencional e por oposição às tradições,
caso houvesse uma epistemologia do entre- desse corpo híbrido - haveria de
ser uma epistemologia aberta, uma epistemologia de fronteira.
Este espaço de trânsito aberto –entre- é produzido, no âmbito do
conhecimento científico, por campos aparentemente distintos. Pensemos,
por exemplo, esse espaço entre que se refere às temáticas urbanas: ele é
território aberto, uma espécie de contradição extrema que se faz no âmbito
da ciência, pois, para ele, além dos denominados conhecimentos
científicos, convergem saberes originários de variados campos: sociologia
urbana, geografia urbana, antropologia urbana, filosofia, biologia,
literatura, artes plásticas e visuais, economia urbana, psicologia social,
história, engenharias, arquitetura e urbanismo, dentre tantos outros, além
de variadas práticas sociais de caráter urbano. No entanto, há o que dizer
de muito importante acerca das referidas convergências. As disciplinas e
os saberes não são moventes, ou seja, não são precisamente eles que se
movimentam, mas os sujeitos do conhecimento e do saber. São eles que
fazem o trânsito e que ocupam os espaços fronteiriços. São eles que
compreendem mais o seu campo disciplinar quando estão em trânsito ou
povoando espaços exteriores aos territórios aos quais, em princípio,
julgam pertencer. É deles o trânsito que faz o suposto trânsito da
disciplina. Por sua vez, este espaço entre- este entre-lugar ou entre-território- é o
espaço da invenção, da aventura do conhecimento e dos saberes, da
entrega plena, do improviso, de uma espécie de espaço de jazz a mobilizar
todas as práticas e processos criativos; é exatamente esse espaço de
abertura que possibilita a mais ampla transformação de conhecimento em
saber pleno de sabedoria.
Entretanto, esse espaço entre, em sua condição híbrida, feito de dois
ou mais, não poderá ser um e, tampouco, outro. Esse espaço entre são
muitos: não é singular, mas plural e, sobretudo, pluralidade em processo
de diálogo criativo. Ele é a expressão da transgressão, da mistura, do
atravessamento e da troca, assim como a negação do conhecimento
institucionalizado, canonizado, a despeito, por exemplo, da presença do
discurso acadêmico em prol da transdisciplinaridade a qual, nos termos
postos, procurei denominar de transdisciplinaridade moderna- já que

15
referenciada pelos paradigmas da ciência moderna9; ou seja, profere-se o
discurso em prol da transdisciplinaridade na desconsideração da presença
insinuante do espaço entre e, contraditória e simultaneamente, na
consideração da manutenção da disciplina científica tal como ela é. É no
espaço entre que se realiza o trans e, portanto, não há sentido em se defender
o estéril isolamento daquilo que existe apenas como potência e que,
contudo, se faz existir como arte e como sabedoria, como território aberto
de cultivo, apenas no espaço entre. Como diz Jacques Rancière (2015 [1987],
p. 55), “a ponte é a passagem, mas também a distância mantida.” O esforço
de preservação da autonomia disciplinar nas sociedades modernas, no
âmbito das universidades e do território das ciências, é apenas uma espécie
de manifestação de controle e da explicitação de poderes.10

III

O que se diz das ciências deverá também ser pensado acerca das
artes, pois, a despeito do desejo de construção de suas identidades
particulares11, elas se tocam e se entrecortam, anunciando perspectivas de

9 “Se os territórios disciplinares estimulam a reflexão sobre possibilidades de diálogo


entre os corpos teóricos específicos do conhecimento, serão os próprios limites das
ciências assim como os da universidade moderna que dificultarão o trânsito democrático
do conhecimento [pelos sujeitos]” (HISSA, 2008, p. 21).
10 Para se pensar o limite, há que se refletir, também, sobre os mais variados exercícios

de controle, das práticas de cárcere e reclusão. Na contemporaneidade, tende-se mais à


construção de sociedades de controle no interior das quais ainda estão dispersos os
territórios sociais disciplinares: os cativeiros, os hospitais e até mesmo as escolas podem
ser trabalhados como universos de cerceamento às mais variadas formas de liberdade e,
do mesmo modo, às mais diversas espécies de cerceamento. A disciplina é um dos
instrumentos do poder e, consequentemente, do controle que já se vai fazendo global, já
na transição entre os séculos XX e XXI. Entretanto, como pensa Gilles Deleuze (1987),
as sociedades de controle, ao contrário das sociedades disciplinares, não necessitam e
podem prescindir dos territórios de reclusão. Posto o desenvolvimento da técnica, o
controle já se faz suficiente e independente dos territórios de cárcere, de reclusão. O
muro e os limites já estão presentes no corpo das sociedades modernas. Entretanto, ao
se edificar o muro, já se faz, simultaneamente, a construção abertura.
11 Não são incomuns, também nas artes, os desejos e os movimentos na direção de

parcelamentos que, em geral, atendem às demandas dos órgãos de fomento à pesquisa.


16
desconstrução de especificidades. Entretanto, as referidas perspectivas de
desconstrução - ou de construção de variados terceiros corpos, ou seja, de
espaços entre- se realizam exclusivamente através do trânsito dos sujeitos do
saber artístico, com suas formações que atravessam campos variados e
suas diversas práticas e vivências. Ainda será necessário sublinhar que a
construção de espaços entre- ou o povoamento criativo de fronteiras- implica a
progressiva estruturação de interrogações aos territórios particulares e
supostamente independentes.
Ao refletir sobre música contemporânea e teatro,
simultaneamente, escreve Rufo Herrera (2007 [1984], p. 35): “a proposta
mais recente da música contemporânea seria [assumir] aquilo que a música
tem de mais teatral e o teatro assumir o que ele tem de mais musical.” Está
vivo, presente nesse registro de Rufo Herrera, o espaço entre que se deve
construir e explorar12, esse terceiro corpo: “ao assumir isso, o músico não está
querendo substituir ou abandonar a música, mas ampliar as possibilidades
de expressão de um conteúdo qualquer.” A leitura das breves notas de
Rufo Herrera (2007 [1984], p. 36) permite uma compreensão
suficientemente clara acerca da necessária formação trans e,
consequentemente, da imprescindível construção desse terceiro corpo ou do
que, aqui, já passo a denominar de espaço entre:
No momento em que o músico entra no palco
com seu instrumento e vai interpretar uma
linguagem, ele está representando como um ator.
Não é possível separar uma arte da outra. Da
mesma forma o ator se estranha com a música
[...]. É que o ator não sabe que está fazendo
música enquanto representa determinado papel,

12 Excepcional presença contemporânea nos processos de construção desse espaço entre,


trabalhada pelo grupo Between Music, é patrocinada pela Fundação Dinamarquesa de Artes
‒Danish Arts Foundation. O exercício criativo do grupo incorpora uma rede internacional
‒ que se apresenta como multidisciplinar ‒ constituída por músicos, físicos, engenheiros,
fabricantes de instrumentos, neurocientistas, dentre outros. Desenvolve performances
corporais e experimenta sonoridades musicais sob a acústica no ambiente da água ‒
aquasonic. De acordo com a sua própria apresentação, o grupo trabalha no interior de um
corpo flutuante que se faz entre música, performance, artes visuais e tecnologias novas. Cf.
http://www.aquasonic.dk/
17
pois ele trabalha com palavras e gestos. Ritmo é
tudo isso; é também música.13
Portanto, esse espaço entre, terceiro corpo-entre- não é um, mas são dois
ou vários entrecortados. O terceiro, um corpo entre dois ou mais, não se trata
apenas de um excluído, desconsiderado, desconhecido, ou mesmo de um
terceiro oculto; mas ele diz respeito a um e a dois ou mais corpos
expandidos que se tocam e que, mediados pelos sujeitos, se atravessam e
estimulam, inclusive, aqueles que lhe concederam existência. O terceiro é
a fronteira; ou, para redesenhar a metáfora de João Guimarães Rosa (1975
[1962], p. 33), a terceira margem- também construída por diversas outras - do
rio feito de vários outros: “[...] outra sina de existir, perto e longe [...].”
Outro modo de compreender a existência: aqui e ali, simultaneamente;
aqui e ali, juntos, atravessados, que existem em razão da existência de um
e de outro; o agora, entre a existência daquilo que aparentemente se foi e
o devir que se faz desde o agora.
Há dificuldade de concepção desse terceiro corpo- esse entre14- no
âmbito das ciências como, também, no das artes. Há o desejo de ser ciência
e nada mais, valendo tal desejo também para as artes. Pensemos, portanto,
a existência de variados modos de dizer o mundo, de interpretá-lo, de
compreendê-lo, de representá-lo. A literatura diz o mundo. A ciência diz o
mundo, também, mas por caminhos supostamente diferentes: é este o
desejo da ciência, que, por sua vez, através do discurso que profere - o dos
cientistas -, se dá o direito de dizer o que é, mas, também, o que não é
científico. Ao proferir tal discurso, exterioriza e inferioriza o discurso dos
demais saberes e práticas de tal modo que, a partir de então, se afirma

13 Os escritos de Rufo Herrera são extraídos da obra de Ione de Medeiros (2007),


publicados originalmente em entrevista concedida ao jornal Estado de Minas, em 25 de
abril de 1984. Passagens extraídas de Renato Cohen (2004, p. 50) complementam o
argumento: “Essa ‘babel’ das artes não se origina de uma migração de artistas que não
encontram espaço nas suas linguagens, mas, pelo contrário, se origina da busca intensa,
de uma arte integrativa, uma arte total, que escape das delimitações disciplinares.”
14 Ele existe como espaço aberto de guerrilha. Não se trata de um território estruturado

a partir de um núcleo de poder. Entretanto, ele é invisibilizado pelos campos delimitados


do conhecimento ‒ e parece se deixar ser ‒ e, no entanto, com isso, se fortalece como
espaço de resistência crítica e criativa. A leitura de Boaventura de Sousa Santos (2004,
2010), acerca das sociologias das ausências e das emergências, permitiria avanços maiores
na compreensão desse terceiro corpo, de modo como pretendo aqui desenhá-lo.
18
como discurso hegemônico. Talvez, seria acertado afirmar que o desejo da
literatura não é o da ciência; e, ainda, através de percursos também
supostamente diferentes, ela se satisfaça e se baste ao se afastar dos
caminhos percorridos pela ciência. Mas com a radicalização da
modernidade, o discurso científico - alicerçado, também, vigorosamente,
no modo de pensar cientificamente, como diz Milton Santos (2011)15 - tornou
progressivamente hegemônico o modo científico de dizer o mundo. A referida
hegemonia se dá no âmbito da ciência, mas, por extensão, no âmbito das
sociedades modernas, posto o espraiamento da técnica e da racionalidade
nos corpos de mundo ocidentais globalizados.16
O terceiro corpo -terceira margem-entre ciência e arte: território aberto,
um híbrido a desafiar cânones. Ao ultrapassar o limite que se faz entre um
e outro, poder-se-ia afirmar que há uma relativa perda de si? Ao se
apropriar da linguagem do outro, o sujeito não apenas incorpora a
linguagem e o discurso do outro, mas aperfeiçoa a que julga ser a sua
própria e exclusiva. Perde-se no outro- uma espécie de entrega e de negação
ao individualismo -, sem que se esteja perdido, para que haja perspectiva
de diálogo com ele e, além disso, cria-se a possibilidade de nele se
reconhecer. De alguma maneira, transforma-se no outro e, com isso, cria-
se a perspectiva de construção e cultivo do espaço entre. Entretanto, esse
transformar-se no outro é, também, transformar-se a partir dele, constituindo, em
si, a sua identidade agora aberta e permanentemente a se metamorfosear.
Ao se referir às práticas, métodos e processos criativos de arte e
de ciência, não há como ignorar certas manifestações como, por exemplo,
a de Gilles Deleuze (1987), para quem “[...] a ciência [como as demais
outras artes], [...] não é menos criadora”; e, aqui, ele já encaminha um
registro bastante espraiado a fortalecer as posturas nada hegemônicas que
contrariam a distância epistemológica entre os dois territórios: “eu não
vejo tanta oposição entre as ciências [e] as artes [...].” Se há oposição e,
sobretudo, se há distinção, elas poderão mais se referir às individualidades
de artistas e de cientistas. Os paradigmas hegemônicos desejam que

15 O pensamento de Milton Santos a que se refere é originalmente publicado pela Revista


Veja, Editora Abril, ano 27, n.º 46, 16 nov. 1994.
16 O conceito de corpo do mundo está brevemente trabalhado em capítulo de livro publicado

na EDUFBA (HISSA, 2009). De modo aprofundado, ele é desenvolvido em obra inédita


intitulada O corpo do mundo.
19
acreditemos na inventividade e na criatividade da arte e dos artistas, assim
como a busca da verdade e a descoberta estariam confinadas às práticas
científicas. Entretanto, pensemos juntos, com Gilles Deleuze (1987): “[o]
cientista [...] também inventa. Ele não descobre. [...] Ele [...] cria tanto
quanto um artista.”17

IV

A literatura: a paisagem do texto. O exercício criativo da escrita é o


do pensamento que vai se desenhando, insidiosamente, entreletras. Mas a
paisagem do texto existe em razão da presença do leitor. A paisagem do texto é
a paisagem vista por ele, leitor, intérprete. Há uma espécie de corpo que se
faz entre os olhos do sujeito que lê - olhos feitos do corpo-mente-vivência do
sujeito - e a paisagem do texto que vai se transformando ou se reescrevendo,
conforme e a partir da presença ativa do leitor.18 A partir do instante que
a existência da paisagem do texto se dá através da existência compreensiva

17
A sala de aula, também, na consideração de como ela se dá, poderá ser pensada a partir
do conhecimento que ali se produz. Compreendo o espaço da aula como o da
representação e o da pesquisa, da reflexão sobre o que se lê e o que se cria. É espaço de
criação. O espaço da aula é também o da troca, da exposição que se dá no corpo difuso de
diálogo entre vários. É espaço entre. Diz Gilles Deleuze (1987) sobre a aula, devendo isso ser
pertinente tanto para as artes quanto para a ciência: “para mim, uma aula não é destinada
à sua compreensão em sua totalidade. A aula é uma espécie de matéria verdadeiramente
em movimento; e, por isso, ela é musical. Em uma aula, cada um, cada grupo ou cada
estudante absorve o que lhe convém. Uma aula ruim é aquela que não convém a ninguém.
Mas não se pode dizer que tudo convém a todos, não importando quem sejam eles. [...]
É evidente que haverá alguém adormecido. [Será um mistério] que ele acorde no
momento que lhe concerne? [...] Uma aula é emoção. É tanto emoção quanto inteligência.
Caso não haja emoção, não há mais nada, não há interesse algum. [Portanto], não é uma
questão de tudo seguir e de tudo escutar, mas se trata de acordar a tempo de [escutar] o
que, pessoalmente, lhe convém. Por tal motivo, é muitíssimo importante que haja um
público muito diversificado; pois se sente muito bem os centros de interesse que [se
deslocam de um ao outro, de um lugar a outro]. Isso constitui uma espécie de esplêndido
tecido, uma espécie de textura.”
18 Diante da paisagem, com a sua capacidade de compreensão, o sujeito se desloca na

direção desse espaço entre: ele vê através de uma espécie de entre construído a partir dele
mesmo e da paisagem.
20
do sujeito, ela, a paisagem, adquire um estatuto ontológico que, por sua
vez, mobiliza a existência do sujeito que lê; ela adquire presença.19
Há, portanto, um espaço intermediário, uma espécie de entre lugar, tal
como sugerido por Silviano Santiago.20 Emanuele Coccia (2010, p. 19-20),
aparentemente com os mesmos olhos de Silviano Santiago, enfatiza a
existência desse espaço intermediário em que “[...] as coisas se tornam
sensíveis” e, portanto, “[...] é desse mesmo espaço que os viventes colhem
o sensível com o qual, dia e noite, nutrem suas próprias almas.” Emanuele
Coccia (2010, p. 19-20) ainda fortalece o argumento que aqui se
desenvolve: “[...] é sempre fora de si que algo se torna passível de
experiência: algo se torna sensível apenas no corpo intermediário que está
entre o objeto e o sujeito.” Sobre a natureza desse espaço intermediário,
de Emanuele Coccia (2010, p. 20) são extraídas passagens que dialogam
com o pensamento que aqui procuro trabalhar: “[...] esse espaço não é um
vazio. Sempre é um corpo, sem nome específico e diferente em relação
aos diversos sensíveis, mas com uma capacidade comum: aquela de poder
gerar imagens.”
Ciência e literatura são mundos que se querem distintos, mas que,
com o uso da palavra, podem experimentar perspectivas de construção de
um terceiro corpo entre ambos e, sobretudo, de se transformarem a partir dele.
Nessas circunstâncias, pode haver traços de certa ciência na literatura, assim
como traços de literatura na ciência-saber; ou mesmo poderão ser indistintos

19 Talvez, em determinadas circunstâncias, menos do que a paisagem da sala de aula, talvez


mais: o ato constitutivo da presença da paisagem do texto tem a mesma natureza do ato
constitutivo da paisagem da cena no teatro e no cinema. Sem o espectador ‒ essa presença
ativa ‒, a paisagem da cena é destituída de sentido ou, simplesmente, deixa de existir, tal
como nos diz Jean-Louis Comolli (2011).
20 Silviano Santiago: “foi a partir daí que criei o conceito de ‘entre’, ‘entre-lugar’, o lugar

de observação, de análise, de interpretação não é nem cá, nem lá, é um determinado


‘entre’ que tem que ser inventado pelo leitor.” A referida passagem é extraída do Dossiê
Trópico, em texto de entrevista com Silviano Santiago ‒ intitulada “Silviano Santiago:
literatura é paradoxo”, por Carlos E. O. Miranda, em que o escritor comenta o seu
romance O falso mentiroso. Disponível em:
http://p.php.uol.com.br/tropico/html/print/2375.htm. Acesso em: 12 de dezembro de
2015.
21
os referidos mundos: sendo o que sempre deveriam ser como arte, ciência-
saber e saber literário.21
Poderiam ser aqui encaminhadas várias explicitações da presença
da literatura no mundo da ciência; e, do mesmo modo, da presença da
ciência, da teoria científica e mesmo da filosofia da ciência, no mundo da
literatura. Poderíamos pensar textos de João Guimarães Rosa (1995
[1957], p. 1159) e, por exemplo, aquele no qual ele diz Minas Gerais: “Minas
é a montanha, montanhas, o espaço erguido, a verticalidade esconsa, o
esforço estático; a suspensa região ‒ que se escala. [...] Seu orbe é uma
pequena síntese, uma encruzilhada; pois Minas Gerais é muitas. São, pelo
menos, várias Minas.” Imagina-se que Guimarães Rosa, nessa passagem,
não teve a intenção de pensar esse espaço entre, nos termos aqui discutidos.
Entretanto, quando ele diz Minas é muitas, é proveitoso que se reflita sobre
esta presença, essa paisagem feita de entre, tal como em Primeiras Estórias ele
criou a terceira margem do rio.
De outra parte, poderíamos, também, encaminhar vários trechos
da vasta obra de Italo Calvino. Em diversas passagens, ele, escritor-
pensador, estimula a reflexão sobre a vida, a existência, o mundo, as
cidades e até mesmo a sua literatura tida como ficcional é carregada de
filosofia e de traços de ciência. Dentre tantos, segue apenas um trecho de
Italo Calvino (1990, p. 90):
Não serei tão drástico: penso que estamos sempre
no encalço de alguma coisa oculta ou pelo menos
potencial ou hipotética, de que seguimos os
traços do Paleolítico em que nossos ancestrais se
davam à caça e à colheita. A palavra associa o
traço visível à coisa invisível, à coisa ausente, à

21 Procuro, em determinadas circunstâncias, diferenciar conhecimento de saber. No âmbito


da modernidade, enquanto o conhecimento é algo pertencente ao expert ou ao
conhecedor ‒ ao especialista, disciplinar por natureza ‒, o saber, incorporando
sabedorias, afasta-se do monólogo disciplinar e se movimenta na direção do diálogo,
ocupando fronteiras e fortalecendo terceiros corpos, o entre. A produção de saber é processo
que reaproxima a ciência da ética, da arte, da filosofia, das múltiplas possibilidades de
encontros e de diálogos que resultam na sua própria e permanente transformação. O
conhecimento, sempre particularizado, aproxima a ciência da técnica, menos reflexiva e
crítica e pouco comprometida com a transformação.
22
coisa desejada ou temida, como uma frágil
passarela improvisada sobre o abismo.
Por sua vez, o jurista e sociólogo Boaventura de Sousa Santos
(1989, p. 128) sugere, explicitamente, a relação entre o amadurecimento
dos cientistas e o uso da linguagem literária:
[...] se analisarmos a carreira científica de alguns
cientistas sociais preocupados com o rigor da
linguagem (Lazarsfeld, Merton, Parsons,
Bourdieu, Touraine, Boulding, Bell, Galbraith,
Hirschman etc.), verificamos que à medida que os
anos passam e eles avançam na sua investigação
os seus textos tornam-se mais literários,
metafóricos, imagéticos e analógicos.
Boaventura de Sousa Santos, entretanto, faz uso do tempo
cronológico para pensar o amadurecimento intelectual que, por sua vez,
nem sempre está subordinado ao tempo do relógio. Há um tempo que se
faz entre o do relógio e o tempo da vida experimentada que, por sua vez,
poderá ser ampliado a partir do modo como se vive e se concebe a vida.
Entretanto, o cientista social dá mostras de que a escrita literária não é
exclusivamente pertencente à literatura, assim como poderemos pensar
que a explicação científica não ultrapassa os limites da efêmera e
circunstancial ‒ e, muitas vezes, até ficcional ‒ interpretação do mundo.
Em prefácio, Boaventura de Sousa Santos (2008, p. 7) anota: “será que o
estilo da ecologia de saberes é o ensaio? Será que estamos de regresso a
Montaigne?” As questões, em tom afirmativo, adquirem a conotação aqui
enfatizada: no âmbito das ciências sociais, das humanidades, o ensaio seria
o estilo de escrita mais adequado? Poderíamos acrescentar: retomaríamos,
assim, o gosto pela escrita, pelo texto, pela leitura, pela palavra?
A palavra e o gosto pelo mundo não poderão ser exclusividade da
literatura e das artes mas, tampouco, pertenceriam à ciência; e, sobretudo,
não pertenceriam à ciência moderna, em sua busca tateante por garantias
e à procura estéril de uma incontestável verdade. Uma das consequências
do modo científico de pensar o mundo, sobretudo ao longo da história do século
XX, é uma escrita cansada, de público restrito, uma espécie de letra sem risco.
O mundo diz através da palavra que diz o mundo. Quando não se sabe,
poder-se-ia imaginar o que se produz: silêncio. O mundo diria menos e, com

23
isso, o silêncio seria a expressão do pouco que se sabe, ou do quase nada
que se sabe. Entre o não saber e a escuta que recobre o silêncio de saber,
haveria um corpo feito de ambos, um terceiro a construir rotas à procura da
sabedoria e da palavra que diz o mundo. O silêncio: manifestação basilar
do saber que nos chega. O excesso de palavras recobre o mundo de pouco
saber e, mais, de sabedoria quase ausente. Diante de tanta informação
circulante, esse paradoxal estado de pouco saber ‒ ou de quase saber
nenhum ‒, o mundo se expressaria através de parcos, titubeantes e tímidos
sussurros. A escuta e os silêncios são manifestações de saber, pois já
exteriorizam a presença de uma espécie de cartografia do desejo de mais
saber. O paradoxo: simultaneamente, mais informação ‒ mais anúncio de
conhecimento informativo distante de saber ‒ e menos capacidade de
processamento, menos sabedoria, mais palavras a dizer o pouco de mundo
proferido pela profusão de palavras que pouco ou nada dizem; e,
contraditoriamente, mais convicção e arrogância.
O gosto pelo mundo dar-se-ia através do gosto pelas palavras: é o
que nos diz Boaventura de Sousa Santos (1987), em aula magna proferida
na Universidade de Coimbra. Por sua vez, esse gosto pelas palavras se
expressaria, também, através do seu uso preciso. Mas a profusão de termos
destituídos de mundo implica o desgaste das palavras e,
consequentemente, o enfraquecimento do gosto, dos significados de
mundo e de vida sobre os quais se procura saber. Ressalta Jacques
Rancière (2014 [1992], p. 101) que “a ‘geografia’ [exigida pela] nova
história [...] é, em primeiro lugar, espaço simbólico que dá aos reis uma
boa morte e funda a condição primeira da ciência histórica: que nenhuma
palavra fique sem lugar.” Ainda: que esse lugar seja preciso em sua
imprecisão territorial — originária desse terceiro corpo, estímulo do vaguear
e do trânsito — tão criativa e desejosa de cultivo: esse espaço entre.

24
REFERÊNCIAS

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25
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27
28
Divertir o leitor é uma tarefa séria: o cômico, o
cósmico e as cosmicômicas calvinianas
Adriana Iozzi Klein

Condicionadas por uma fundamental necessidade de elaborar


modelos de referência, de seguir paradigmas e de respeitar determinada
lógica formal, a literatura e a ciência estiveram ligadas por laços intricados
e inseparáveis desde suas mais remotas origens. Assim sendo, como era de
se esperar, incontáveis são as obras de caráter científico nascidas
indiscriminadamente das mãos de estudiosos da natureza, pensadores,
poetas e escritores, empenhados, a princípio, em apresentar os fatos
descritos a partir de uma visão de mundo previamente estabelecida e,
digamos, de Galileu Galilei em diante, de uma forma “moderna”, tentando
traduzir em signos do alfabeto os sinais matemáticos do livro da natureza.
De Galileu, Italo Calvino sempre admirou a clareza e o
refinamento da linguagem, a imaginação científico-poética, o descrever
movido pela ânsia de conhecimento. Quanto mais múltiplo e complexo
torna-se o mundo ao seu redor, maior se torna a necessidade do autor de
buscar clareza, precisão e rigor ligados à força poética das imagens. E o
mundo linear e simétrico (bem diferente daquele caótico da sociedade
industrializada), onde se executam movimentos de exata elegância,
Calvino vê materializado na obra do cientista-escritor, para ele verdadeira
lição de poética.
Atento às transformações de nossa época, Calvino volta-se desde
cedo para as problemáticas da emergente cultura pós-industrial. No
universo mecanizado e artificial das grandes cidades, cujo aspecto
degradado parece impossibilitar qualquer forma de poesia, o escritor tenta
buscar novas respostas para as antigas questões ligadas ao papel do literato
e da literatura, da linguagem e da comunicação. E, ao que parece, dá um
passo à frente em relação aos escritores de sua geração, isto é, não recusa
aquele mesmo universo que parece negar todo e qualquer espaço para a
poesia, mas o absorve em sua narrativa. Ele sabe que é imprescindível
aprender a observar e a descrever tal mundo se se quer compreendê-lo e
transformá-lo.
A partir de 1959, Calvino dirige com Elio Vittorini a revista Il
menabò, cujo projeto, realmente revolucionário no quadro da literatura
29
italiana, era o de publicar artigos e romances de autores cuja produção
dirigia-se para a pesquisa de uma nova literatura e de novos métodos de
conhecimento, em resposta ao “nivelamento” ocasionado na Itália pela
cultura de massa e pelo acelerado desenvolvimento da cultura científica e
da técnica. É nessa revista que ele publica, em 1962, seu fundamental
ensaio “O desafio ao labirinto”, no qual define os termos de um projeto
cultural que busca uma literatura aberta “a todas as linguagens possíveis”.
Para representar a complexidade do mundo contemporâneo, Calvino
propõe a metáfora ‒ cara ao escritor Jorge Luis Borges ‒ do labirinto, um
emaranhado de linhas, formas e tendências aparentemente dissonantes
construído segundo regras rigorosas que somente o olhar atento é capaz
de distinguir. Aqui o autor apresenta as coordenadas de uma literatura não
mais preocupada em reproduzir de forma naturalista a aparência complexa
e confusa do labirinto, mas disposta a traçar o mapa, “o mais detalhado
possível”, do intricado mundo contemporâneo. O desenho do mapa do
labirinto, ou seja, a construção racional e combinatória de um labirinto
artificial como modelo do mundo, de uma ordem, ao invés de uma
desordem, ou de uma desordem calculada ao invés de uma desordem
contingente, constitui o primeiro passo do artista na sua tentativa de
compreender a realidade. O tipo de labirinto que Calvino tem em mente é
um labirinto do qual é sempre difícil encontrar a saída, que muitas vezes
nada mais é do que “a passagem de um labirinto a outro”. Compete então
à literatura pesquisar um método capaz de dialogar com o caos, sem por
isso iludir-se que seja possível eliminá-lo. Trata-se de um comportamento
de cética obstinação que a literatura pode aprender com a ciência moderna,
aceitando a dúvida e a incerteza como parte indissolúvel do conhecimento.
Como se pode notar, Calvino considera a literatura como um
campo de pesquisa tão válido quanto aquele representado pelas antigas
formas de saber e reivindica para as ciências humanas o emprego dos
mesmos métodos de abordagem das ciências naturais. Ainda naqueles
anos, o autor começa a dedicar-se com afinco ao estudo de várias
temáticas, entre as quais o cômico, o fantástico, a astronomia, a física, a
matemática, a semiologia, a antropologia, que assinalam um trabalho
rigoroso na busca da formulação das relações combinatórias entre funções
culturais e categorias do pensamento. Tanto a literatura como a escritura
são consideradas por ele não imagens refletidas da realidade, mas imagens

30
substitutivas, englobantes e autônomas, capazes de transformar a própria
realidade em um reflexo, em um caso possível, em um fragmento parcial
ou consequencial do modelo literário. A criação literária transforma-se
numa representação da vontade do escritor de desafiar a complexidade do
mundo.
O tema retorna com insistência em seus escritos ensaísticos e
aparece reelaborado de maneira mais orgânica anos depois, em uma das
conferências publicadas em Seis propostas para o próximo milênio:
[...] em nossa época a literatura se vem
impregnando dessa antiga ambição de
representar a multiplicidade das relações em ato e
em potencialidade.
A excessiva ambição de propósitos pode ser
reprovada em muitos campos da atividade
humana, mas não na literatura. A literatura só
pode viver se se propõe a objetivos
desmesurados, até mesmo para além de suas
possibilidades de realização. Só se poetas e
escritores se lançarem a empresas que ninguém
mais ousaria imaginar é que a literatura
continuará a ter uma função. No momento em
que a ciência desconfia das explicações gerais e
das soluções que não sejam setoriais e
especialísticas, o grande desafio para a literatura é
o de saber tecer em conjunto os diversos saberes
e os diversos códigos numa visão pluralística e
multifacetada do mundo. (CALVINO, 1991, p.
127)
A relação com a ciência estimula a literatura a questionar sua forma
de conhecimento e de expressão. E é exatamente esse o ponto de partida
de Calvino para a elaboração de um projeto narrativo que, entre
publicações, edições e reedições, ocupou-o por quase vinte anos, de 1965,
data da publicação de As cosmicômicas, passando por T=zero (1967), A
memória do mundo e outras cosmicômicas (1968) até As cosmicômicas velhas e novas
(1984). As três coletâneas fazem parte de uma série de narrativas

31
pseudocientíficas e fantásticas e são classificadas na sua totalidade como
Cosmicômicas (recolhidas posteriormente no volume Todas as cosmicômicas).
Com As cosmicômicas,Calvino propõe a investigação de uma
literatura apta a dialogar com as mais variadas formas de conhecimento.
As contaminações entre linguagem poética e linguagem científica, a
inserção de materiais da linguagem científica no tecido narrativo mostram
a necessidade do escritor de encontrar uma síntese entre método científico
e consciência literária. Essa busca de renovação formal reconhece como
matriz as maiores experiências da tradição italiana e Calvino assume, em
várias ocasiões, que a linguagem que moldava seu estilo narrativo era sem
dúvida uma linguagem cada vez mais próxima àquela científica, tanto pela
sua articulação quanto pela precisão de definições. Trata-se, é claro,
daquele ideal herdado de Galileu Galilei, que aos poucos vai tomando
corpo na obra de nosso autor na forma de experimentação de uma língua
literária precisa e sem redundâncias.
De fato, precisão da linguagem e construção de conjeturas são as palavras-
chave para definir seu trabalho narrativo e sua atividade de ensaísta a partir
dos anos sessenta. Quase duas décadas depois, Calvino elencará entre os
seis valores que gostaria que fossem transmitidos para a literatura do
século XXI também aquele da exatidão. E, como ele próprio afirma, a
exatidão na sua escrita segue sempre em duas direções, ou seja, a tentativa
de reduzir os acontecimentos contingentes a esquemas abstratos (que
permitem o cálculo e a demonstração de teoremas) e o esforço de fazer
com que as palavras deem conta, com a maior precisão possível, do
aspecto sensível das coisas:
A palavra associa o traço visível à coisa invisível,
à coisa ausente, à coisa desejada ou temida, como
uma frágil passarela improvisada sobre o abismo.
Por isso o justo emprego da linguagem é, para
mim, aquele que permite o aproximar-se das
coisas (presentes ou ausentes) com discrição,
atenção e cautela, respeitando o que as coisas
(presentes ou ausentes) comunicam sem o
recurso das palavras. (CALVINO, 1991, p. 90)22

22
Como não notar nessa afirmação de Calvino o eco das palavras do admirado poeta
Paul Valéry? “Cada palavra, cada uma das palavras que nos permitem atravessar tão
32
Importante lembrar que em 1967 Calvino muda-se para Paris,
onde viverá por um longo período. Ali entra em contato com os grandes
expoentes da vanguarda francesa, frequenta os cursos de Roland Barthes,
estreita a amizade com Raymond Queneau, conhece os escritores do
grupo Ou.li.po (Laboratório de Literatura Potencial), dentre os quais
Georges Perec. É nesse contexto que nasce seu gosto pela comicidade
paradoxal e ratificam-se seu interesse pela ciência e sua paixão por toda
forma de arte que seja ao mesmo tempo clássica e experimental.
Calvino segue com atenção os debates franceses que surgem na
época a propósito das novas relações que se instauram entre a literatura e
a ciência, sobretudo aqueles ligados às discussões que envolvem
publicações de figuras muito próximas a ele, como é o caso de Roland
Barthes e de Raymond de Queneau.
Em um conhecido artigo de 1967, “Science versus Literature”,
Barthes inicia uma polêmica ao indicar uma nítida separação entre a
linguagem literária e a linguagem científica, identificando a literatura com
o próprio ato de escrever, isto é, com uma linguagem que, por isso, nunca
se refere a algo externo ou a um conteúdo pré-existente à escritura, ao
contrário da ciência, cuja linguagem seria para o crítico francês um
instrumento puramente neutro, apto a veicular conteúdos pré-formados e
independentes dela própria. Na concepção de Barthes, a literatura seria
detentora da verdade absoluta e a ciência, para conservar-se como tal, teria
de sair do equívoco constituído pelo código referencial que lhe era próprio
por tradição e transformar-se, seguindo o exemplo da literatura, em
escritura integral.
Respondendo em aberta e acalorada polêmica ao artigo de Barthes,
Queneau, signatário do grupo Ou.li.po e de sua premissa de
experimentação e aplicação de métodos formais matemáticos à criação
literária, publica no mesmo número daquela revista um artigo intitulado
“Science and Literature”, em que sustenta, depois de especificar na história

rapidamente o espaço de um pensamento e acompanhar o impulso da ideia que constrói,


por si mesma, sua expressão; parece-me uma destas pranchas leves que jogamos sobre
uma vala ou sobre uma fenda na montanha e que suportam a passagem de um homem
em movimento rápido. Mas que ele passe sem pesar, que passe sem se deter e,
principalmente, que não se divirta dançando sobre a prancha fina para testar a
resistência!... A ponte frágil imediatamente oscila ou rompe-se, e tudo se vai nas
profundezas”. (VALÉRY, 1971, p. 203)
33
da cultura o comportamento mais difundido da literatura em relação à
ciência ‒ comportamento de suspeita e de descrença ‒, a importância que
o pensamento e os métodos matemáticos vão assumindo nas ciências
humanas e na literatura.
E é a partir dessas duas diferentes posições que Calvino vai oscilar,
sentindo atração e advertindo ao mesmo tempo os limites tanto de um
quanto de outro.Assim, o rigor das análises de Barthes e dos textos dos
escritores do grupo Tel Quel eo divertimento, a acrobacia da inteligência e
da imaginação do Ou.li.po representam os dois registros expressivos, os
dois âmbitos formais entre os quais se alterna a narrativa de Calvino
naqueles anos.23
Aprimoram-se então os experimentos calvinianos de narrativas
combinatórias, que respeitam uma espécie de desafio, ou seja, o de
construir, a partir de um número definido de elementos, uma série
potencialmente infinita de histórias. O procedimento, como
sabemos,apresenta já uma formulação definitiva em As cosmicômicas, cujo
título nasce de uma síntese combinatória, de um jogo de palavras, que
mostra a intenção do escritor de tratar de uma matéria “cósmica” de forma
“cômica”, um pouco nos moldes do que havia feito outro grande mestre
de Calvino, o poeta Giacomo Leopardi, com suas Operette morali.
Mas como, de fato, Calvino lê a ciência na sua relação com a
literatura? É interessante observar como as teorias da biologia, da
astrofísica, da cosmologia funcionam como um estímulo, como uma carga
propulsora que levam o escritor a questionar seus meios de expressão
artística e seu conhecimento do mundo, oferecendo-lhe novos, divertidos
e inusitados pontos de vista para pensar a realidade. Vejamos como isso
se torna possível na prática literária.

23 Mas é com os integrantes do Ou.li.po que Calvino, não por acaso, se sente mais à
vontade. E, numa entrevista dada a Ferdinand de Camon, em 1973, entendemos o
porquê: “Quello che mi li rendi vicini è il loro rifuito della gravità, questa gravità che la
letteratura francese impone dappertutto, anche dove sarebbe necessaria un pó di
autoironia.Questi qui no: considerano la scienza non in modo grave, ma come gioco,
secondo quello che è sempre stato lo spirito degli scienziati veri, del resto. Certo anche
in loro, in questo scherzare per partito preso, in questa meticolosità da collaboratori della
Settimana Enigmistica, c’è una dimensione eroica, un nichilismo disperato”.
(CALVINO, 1995, p. 2789)
34
As cosmicômicas de 1965, por exemplo,são compostas por doze
narrativas e têm como tema central as teorias cosmológicas e astronômicas
formuladas pela ciência moderna. Cada cosmicômica abre-se com um
enunciado científico, que pode ser sobre o distanciamento da Lua ocorrido
em relação à Terra, sobre o Big-bang que originou o universo, sobre a
evolução das primeiras espécies animais, sobre o tempo empregado pelo
Sol para fazer uma revolução completa da Galáxia, ou ainda sobre a
ausência de cores antes da formação da atmosfera terrestre. Disso o
escritor tira inspiração para criar narrações divertidas e paradoxais, nas
quais cenários cosmogônicos e interplanetários são o pano de fundo para
situações típicas do cotidiano mais banal, em que bactérias, átomos,
partículas e dinossauros dialogam como personagens de qualquer
narração. Cósmica é a ambientação que reconstrói galáxias, nebulosas e
planetas da época da origem do universo; cômico é o efeito criado pela
junção entre a enormidade da moldura e a absoluta normalidade das
situações e das formas de expressão imaginadas por Calvino.
As células primordiais que falam e se comportam como seres
humanos e as teorias sobre a origem do cosmo sugerem uma nova
perspectiva para entender os mecanismos da nossa época, na qual também
o mito se torna uma possível chave de leitura do real. E é por meio da
criação e da descrição de uma dimensão fora do tempo e da realidade que
Calvino encontra uma maneira de buscar as verdades originárias do
mundo e da vida.
O protagonista das narrativas cosmicômicas, cujo nome é um
impronunciável palíndromo (Qfwfq), é um ser indefinido, um organismo
primordial, uma criatura muito velha que existe desde a criação do
universo e do aparecimento do gênero humano. Não há acontecimento de
milhões ou bilhões de anos que não tenha presenciado como “testemunha
ocular” ou participado em primeira pessoa. Ele fala dos cataclismos
geológicos e dos dinossauros como se fossem acontecimentos ou criaturas
de sua infância e juventude.
Nada se sabe sobre o protagonista, que não pode nem mesmo ser
considerado um personagem; ele é, como esclarece Calvino no texto da
contracapa do livro, “uma voz, um ponto de vista, um olho (ou um piscar
de olhos) humano projetado sobre a realidade de um mundo que parece
sempre mais refratário à palavra e à imagem”.

35
Não se trata, portanto, de ficção científica, como muitas vezes
Calvino fez questão de enfatizar; enquanto a ficção científica projeta a
visão em direção ao futuro ainda desconhecido e normalmente representa
a materialização dos medos do presente, as narrativas cosmicômicas
voltam o olhar para um passado ancestral, para uma época em que o
homem era ainda uma entidade não distinta do mundo vegetal, animal ou
mineral, para um tempo em que ainda não havia sido formulado nenhum
código comunicativo, nenhum cânone estético ou moral. As
cosmicômicas propõem um desafio, ou seja, aplicar a imaginação artística
ao rigor objetivo dos enunciados científicos: a literatura, com uma ironia
ágil e sutil, é capaz de apropriar-se das fórmulas frias da ciência para fazê-
las funcionar como uma espécie de filtro, de lente deformadora que nos
permite ver e interpretar o mundo de uma forma jamais imaginada.
O conto “Tudo num ponto”, por exemplo, parte do tema da
origem do universo, um árduo campo de estudo que está no centro da
reflexão religiosa, científica da humanidade desde os tempos mais
remotos. Mas a hipótese científica segundo a qual a matéria cósmica, antes
de começar a expandir-se, estava toda concentrada em um único ponto
serve de premissa a partir da qual o protagonista das Cosmicômicas
desenvolve uma série de imagens fantásticas que tem por objetivo lembrar
como se desenvolvia a vida dos habitantes do mundo, espremidos naquele
ponto original. As suas considerações poderiam parecer divagações
superficiais, e, todavia, de tais divagações, emergem mensagens de
surpreendente atualidade: a denúncia da intolerância, do incômodo e do
ódio recíproco; a celebração da solidariedade, do afeto e da generosidade.
Por meio das lembranças de Qfwfq esse remoto microcosmo se
parece com o mundo atual; o ponto fora do tempo e do espaço encerra
dentro de si uma superpovoada sociedade similar àquela em que vivemos.
Aos dados da ciência sobrepõem-se as imagens típicas da vida cotidiana e
dessa contaminação resulta a força humorística do texto.
Na narrativa destaca-se a figura da Sr.a Ph(i)NKo: uma mulher
inesquecível, de gosto vagamente felliniano, capaz de um gesto tão
“extraordinário” a ponto de dar “início no mesmo momento [...] ao espaço
[...] e ao tempo”, isto é, à dilatação da vida no universo. “Preparar um
tagliatelle”: esta é a ação emblemática, com a qual a personagem, com sua
serena e generosa fisicidade, superando a mesquinhez e a “mentalidade

36
fechada” que dominam aquele primordial concentrado de humanidade,
inicia o processo de dilatação que leva à formação do universo. Calvino
propõe aqui, à luz do significado simbólico da personagem, a meditação
sobre os sentimentos de afeto pelos outros, a alegria de trabalhar para o
bem do próximo, a generosidade cheia de energia produtiva. Estas seriam
as várias manifestações do amor, a partir das quais o universo teria tomado
sua forma, e das quais a vida humana necessita para continuar a existir.
“A ciência contemporânea não nos dá mais imagens para
representar”, nos explica Calvino ainda na apresentação do livro; “o
mundo que nos abre está além de qualquer possibilidade de imagem. E,
ainda assim, ao profano que lê livros científicos uma frase, de vez em
quando, desperta uma imagem. Tentei assinalar algumas delas e
desenvolvê-las em narrativas cosmicósmicas (ou cosmicômicas)”.
(CALVINO, 1992)
No conjunto dessas narrativas, os temas dominantes são aqueles
evidentemente ligados à mitologia: o tema do nascimento (da vida, do
homem, da Lua, da Terra, do Sol, do universo), o tema da mudança (a
evolução humana, o sistema Terra-Lua), que também pode ser visto como
uma variante do primeiro, e, enfim, o tema da morte.
Não se trata obviamente de um procedimento inédito nas relações
que se estabelecem entre a ciência e a tradição literária italiana, como
lembrará Calvino em uma entrevista de 1968:
[...] também Dante buscava construir uma
imagem do universo mediante a palavra literária.
Esta é a vocação profunda da literatura italiana,
que passa de Dante a Galileu: a obra literária
como mapa do mundo e do saber, a escrita
movida por um impulso cognoscitivo que ora é
teológico ora especulativo ora bruxesco ora
enciclopédico ora de filosofia natural ora de
observação transfiguradora e visionária. É uma
vocação que existe em todas as literaturas
europeias mas que na literatura italiana foi, diria,
dominante, nas mais diversas formas, e faz dela
uma literatura tão diferente das outras, tão difícil,

37
mas também tão insubstituível. (CALVINO,
2009, p. 222-23)
Tempos depois, discorrendo sobre o conceito de visibilidade, que
iria compor outro dos seis valores a serem preservados na literatura do
nosso milênio, o tema retorna nas reflexões de Calvino:
Meu intento era demonstrar [nas Cosmicômicas]
como o discurso por imagens, característico do
mito, pode brotar de qualquer tipo de terreno, até
mesmo da linguagem mais afastada de qualquer
imagem visual, como é o caso da linguagem da
ciência hodierna. Mesmo quando lemos o livro
científico mais técnico ou o mais abstrato livro de
filosofia, podemos encontrar uma frase que
inesperadamente serve de estímulo à fantasia
figurativa. Encontramos aí um destes casos em
que a imagem é determinada por um texto escrito
preexistente (uma página ou uma simples frase
com a qual me defronto na leitura), dele se
podendo extrair um desenrolar fantástico tanto
no espírito do texto de partida quanto numa
direção completamente autônoma (CALVINO,
1991, p. 105).
Constatamos, assim, que a adoção de uma linguagem científica não
significa para Calvino somente a busca de um raciocínio exato, a
demonstração rigorosa, apta a definir um pensamento racional mas, ao
contrário, comprova a crença do escritor em relação às inesgotáveis
possibilidades da literatura.
Para melhor ilustrar e, enfim, concluir essa reflexão, citemos mais
um exemplo, o do emblemático conto “O conde de Monte Cristo”,
publicado incialmente no volume T zero, de 1967, considerado por Calvino
um de seus textos mais bem elaborados, tanto no aspecto estilístico como
no conceitual.
Trata-se, evidentemente, de um trabalho de reescritura do famoso
romance de Alexandre Dumas, cujo foco da narração concentra-se nos
personagens Edmond Dantès e Abade Faria, trancafiados dentro da
esmagadora fortaleza de If. Faria quer projetar e executar a fuga perfeita, a partir

38
da sondagem dos pontos fracos da fortaleza, e tudo o que faz é confrontar-
se com dificuldades e obstáculos cada vez mais intransponíveis, metendo-
se em becos cada vez mais sem saída. Dantès, ao invés disso, parte do
pressuposto contrário e acredita que somente haverá uma possibilidade de
fugir da fortaleza caso sejam pensadas para ela barreiras cada vez mais
intransponíveis.
Os personagens, como fica claro ao leitor desde o princípio,
apresentam-se como duas diferentes abordagens cognitivas da realidade,
ou seja, indutiva no caso de Faria e dedutiva no caso de Dantès. Trata-se
de um problema de método e o ponto de partida teórico dessa narrativa,
como já notaram alguns estudiosos da obra de Calvino, é muito
provavelmente a polêmica com a escola do noveau roman, representada aqui
por meio da negação do registro da realidade e do método indutivo, do
qual contesta-se a eficácia: a representação do mundo-prisão que circunda
o homem, prisioneiro em uma cela, é necessariamente falseada pela
perspectiva individual, deformada pelo fato do personagem encontrar-se
no interior, dentro das coisas. Ao puro registro da realidade, inútil e em
última análise impossível por ser parcial, Calvino contrapõe o exercício
lúcido da inteligência: o único modo de fugir da condição de prisioneiro é
entender como é feita a prisão.
O método empírico, com seus procedimentos analíticos, revela-se
aqui ineficaz porque aplica um raciocínio indutivo, como o de causa-efeito,
a uma realidade contraditória que não permite a demonstração de qualquer
tipo de hipótese. Quanto mais se tem conhecimento do real, mais
aumentam os problemas e, consequentemente, mais eficiente mostra-se o
método de Dantès que, passando das imagens complexas àquelas cada vez
mais simples, consegue elaborar um sistema mental abstrato a partir do
qual pode compreender a realidade.
Para Calvino, tal método torna-se, de maneira emblemática, a base
para novas estruturas e para a construção de realidades hipotéticas, que
correspondem, no campo da literatura, a uma narrativa organizada a partir
dos já apontados princípios matemático-combinatórios. Para o escritor, a
tarefa da literatura não seria, portanto, indicar a saída da prisão-labirinto,
mas sim apresentar um método que possibilitasse a construção de um
outro mundo, do qual o livro seria metaforicamente um projeto. Nessa
perspectiva, a fuga de Dantès significa, entre outras coisas, a aspiração a

39
uma renovada pesquisa literária e ao estabelecimento de novos códigos
literários. A literatura do “desafio ao labirinto” de Calvino é também uma
literatura que, ao ampliar as suas fronteiras, comprova a possibilidade de
criação de novas formas.

40
REFERÊNCIAS

BARTHES, Roland. Science versus Literature.The Times Literary


Supplement, 28 set. 1967.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Tradução de Ivo
Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
CALVINO, Italo. As cosmicômicas.Tradução de Ivo Barroso. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992.
CALVINO, Italo. Saggi. Milano: Mondadori, 1995. v. 2.
CALVINO, Italo. Todas as cosmicômicas. Tradução deIvo Barroso e Roberta
Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
CALVINO, Italo. Assunto encerrado: discursos sobre literatura e sociedade.
Tradução de Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
QUENEAU, Raymond. Science and Literature. The Times Literary
Supplement, 28 set. 1967.
VALÉRY, Paul. Poesia e Pensamento Abstrato. In: VALÉRY, Paul.
Variedades. Org. João Alexandre Barbosa. São Paulo: Iluminuras, 1971.

41
42
Literatura, Ciência, Gonçalo M. Tavares
Maria Elisa Rodrigues Moreira

Classificar é uma poesia unânime.


[Inútil, portanto, para um indivíduo.]

Gonçalo M. Tavares, Breves notas sobre a ciência

É junto a Gonçalo M. Tavares que me proponho a pensar, aqui,


sobre literatura e ciência, no que essas duas práticas, esses dois modos de
conhecer o mundo, têm de semelhanças e diferenças; em seus movimentos
de aproximação e afastamento em torno de uma fronteira móvel, cultivada
a partir do limite, movimentos estes que funcionam como aberturas em
meio ao que procura restringir (HISSA, 2006, 2011, 2013); nos saberes que
ambas podem proporcionar a nós, sujeitos do mundo, saberes que se
configuram também como atos estéticos e políticos.
Escolher Gonçalo M. Tavares como companheiro deste diálogo,
como voz que deixa seus rastros na minha, justifica-se de várias formas,
as quais confluem na relação explícita que o escritor português estabelece
entre esses dois campos em suas mais diversas produções: na concisão das
Breves notas sobre ciência (2010b), em que esta transfigura-se poeticamente
em um texto fragmentário e por vezes aforismático; nas densas narrativas
da tetralogia “O reino” –os chamados “livros negros”, constituída por Um
homem: Klaus Klump (2003), A máquina de Joseph Walser (2004), Jerusalém
(2004) e Aprender a rezar na era da técnica (2007) –, na qual a ciência apresenta
suas facetas mais cruéis de incorporação técnica e desumana; nas teorias,
fragmentos e imagens que povoam o Atlas do corpo e da imaginação (2013a),
deslocando nosso olhar por um texto em movimento contínuo; nos textos
publicados em revistas e sites de divulgação diversos, periodicamente, e
que expandem suas palavras e pensamentos para além do livro como
objeto impresso...
Começo, pois, esse diálogo, pela epígrafe com a qual dou início a
este texto, pensando nas múltiplas aberturas dessas duas frases, desses dois

43
versos, que são apresentados nas Breves notas sobre ciência24 de Tavares sob
o título “Classificação”. Afinal, não é à classificação que remetemos
quando tentamos categorizar os textos, os pensamentos, quando
propomos a identificação do que seria ciência, do que seria literatura, do
que não seria uma coisa nem outra, do que talvez seja as duas coisas? A
questão da classificação foi, e continua a ser, abordada por diversos
pensadores, que tomam como objeto de reflexão o seu lugar no processo
de produção de conhecimento (GIL, 2000) e, muitas vezes, consideram-
na essencial para este (VIGNAUX, 2000); mas vem, também, sendo
problematizada em várias frentes, que apontam suas insuficiências frente
ao mundo, ao saber e à arte (FOUCAULT, 2002; PEREC, 2001;
MACIEL, 2009).
Nessa perspectiva, talvez a mais significativa abordagem a ser aqui
retomada seja a de Michel Foucault, que em As palavras e as coisas (2002)
dedica-se a refletir sobre essa questão (entre outras) tomando como
provocação um texto de Jorge Luis Borges, “O idioma analítico de John
Wilkins” (2007), no qual a classificação é subvertida pelas vias da ficção.
No prefácio ao livro, Foucault começa por citar a enciclopédia chinesa
incluída por Borges no texto em questão, e afirma que o desconforto que
tal enciclopédia provoca advém justamente da classificação que ali se
propõe, uma vez que esta não toma como critério essencial a construção
de uma ordem baseada no mesmo, na semelhança, para constituir seus
agrupamentos. A enciclopédia chinesa narrada por Borges revelaria, assim,
uma “impossibilidade do pensamento”, ou, ao menos, do “nosso
pensamento”, daquele “que tem nossa idade e nossa geografia”
(FOUCAULT, 2002, p. IX), uma vez que a “extravagante” classificação
de Borges teria um único espaço possível para se realizar, qual seja, o “não-

24Breves notas sobre ciência (2006) é um dos volumes que compõem a série “Breves notas”,

ao lado de Breves notas sobre o medo(2007) eBreves notas sobre as ligações [Llansol, Molder e
Zambrano] (2009). No Brasil, os três volumes foram lançados em 2010, numa coedição
entre a Editora da UFSC e a Editora da Casa, reunidos em uma “caixa-estante” que
funciona sob o protocolo de leitura da rubrica com a qual o autor os tinha nomeado na
edição portuguesa: Enciclopédia. A caixa traz ainda um “caderno de apresentação” (O
impacto da impressão, as breves notas), de autoria de Julia Studart, que se encarrega de
apresentar autor e obra numa perspectiva crítica, e que pode funcionar como uma espécie
de bússola para se transitar pelos volumes dessa “enciclopédia”. Vale destacar que em
2015 Tavares lança Breves notas sobre música, ainda sem edição brasileira.
44
lugar da linguagem”. Esse deslocamento da prática classificatória que se
evidencia na linguagem é retomado por Maria Esther Maciel, em seu As
ironias da ordem, para ressaltar justamente o “uso crítico-criativo dos
sistemas de classificação do mundo e do conhecimento” que é feito por
artistas plásticos, cineastas e escritores que, desse modo, revelam “a
insuficiência e a arbitrariedade dos sistemas de organização legitimados
pela racionalidade ocidental” (MACIEL, 2009, p. 11), colocando em xeque
a classificação como um lugar pacífico no que toca ao conhecimento.
É também a esse uso crítico-criativo que recorre Gonçalo M.
Tavares, não só ao estabelecer uma aproximação direta entre ciência e
poesia – identificar a classificação com uma poesia unânime é atribuir
àquele que é considerado um elemento central da constituição do
pensamento científico, o processo de classificar, aquilo que dele escaparia,
ou mesmo que a ele se contraporia, ou seja, o poético – mas, também, ao
fazer da ciência matéria narrativa, ao propor um pensamento poético
sobre o que se pautaria, exclusivamente, pela racionalidade e pela exclusão
de qualquer pessoalidade e experiência estética.25 A epígrafe de Tavares
continua sua prática subversiva tecendo no segundo verso uma nova
aproximação, desta vez menos linear, mais enviesada: o classificar, que
seria um atributo da ciência, mostra-se como ato inútil para o indivíduo,
como o é todo ato poético.26 A ciência se vê assim esvaziada, de uma só
tacada, de duas daquelas que seriam consideradas suas características
fundamentais, a classificação e a utilidade – o texto tavariano provoca, na
rapidez e incisão de sua construção, um movimento reflexivo dos mais

25 Ressalte-se que remeto, aqui, à ciência moderna tal qual criticamente abordada por
Boaventura de Sousa Santos (2003, 2007, 2008, 2009), Edgar Morin (2002, 2007, 2008) e
Isabelle Stengers (2002), a qual ainda hoje se apresenta como o paradigma científico
dominante no cenário da produção de conhecimento – mesmo que se proponham várias
formas distintas, resistentes, para se pensar a ciência na contemporaneidade, como
aquelas que pontuam os próprios Santos e Morin, além de Humberto Maturana e
Francisco Varela (2001), Ilya Prigogine (1996), Bruno Latour (1994) e Michel Serres
(2007), para citarmos alguns exemplos.
26Cabe ressaltar que se pensa aqui a questão da utilidade da literatura tomando por

referência o que se considera como útil em relação à ciência moderna, que especula por
usos práticos diretos e por resultados quantitativos que daí possam proceder. A questão
“para que serve a literatura?” (e, poderíamos ampliá-la, “para que serve a arte?”) é uma
constante nos estudos de teoria da literatura: para uma visão contemporânea, mas que
articula um panorama histórico da questão, cf. Compagnon (2009).
45
potentes, um movimento desestabilizador, perturbador (“a literatura tem
que perturbar alguma coisa”, diz o escritor português em uma entrevista
[TAVARES, 2011]), um movimento que leva ao desequilíbrio.
É justamente esse desequilíbrio que aparece, segundo Tavares,
como o mobilizador essencial da investigação, seja ela em arte ou em
ciência (ou, como discutiremos adiante, em uma possível ciência-arte). Nas
Breves notas sobre ciência, em texto intitulado “Investigações e desequilíbrio”,
assim afirma o escritor português:
Debruçai-vos sobre o futuro: no limite só os pés
permanecem sobre o solo, a cabeça foge para a
frente.
Investigar sem desequilíbrio é avançar em cima
da lama: alguém se afunda. (TAVARES, 2010b,
p. 36)
O desequilíbrio nos tira o chão, faz com que nos debrucemos
sobre o ainda inexistente, com que nos lancemos sobre o vazio mantendo
apenas os pés no solo, mas é esse desequilíbrio que garante nosso
movimento, que impede que nosso peso nos faça afundar sobre um
terreno lamacento, do qual não é possível sair sem que a diferença do
desequilíbrio, ou o vazio do ainda não conhecido, façam com que nos
projetemos adiante. Esse posicionamento ecoa no diálogo estabelecido
entre Gonçalo M. Tavares e Cássio Hissa no livro Conversações: de artes e de
ciências (2011), quando Tavares assim se manifesta em relação à arte:
Eu diria que, na arte, é necessário um entusiasmo,
uma força que empurre para algum lado, e,
portanto, um desequilíbrio qualquer. [...] O que
penso ser importante: na arte, o ponto de partida
não poderá ser um ponto morto, um ponto neutro;
pelo contrário, ele deverá ser um ponto em
andamento. (TAVARES in TAVARES; HISSA,
2011, p. 126, grifos do autor)
Seria necessário assim, seja em ciência, seja em literatura, um
movimento produtivo pautado pela aventura no desconhecido ou rumo a
este, pelo desconforto, pela desarmonia, pela insegurança, pela diferença.
Tal movimento seria algo como a metodologia da mão esquerda, analogia
benjaminiana a que Tavares recorre para refletir sobre a relação entre

46
pesquisa e metodologia, entre sujeito e investigação. É a partir dessa
analogia que ele afirma que se deveria, “na ciência e nas artes, tentar
metodologias que não são parecidas conosco, e que nos são estranhas”
(TAVARES in TAVARES; HISSA, 2011, p. 127), que se deveria buscar
em terrenos desconhecidos resultados capazes de nos surpreender. E é
justamente por esses terrenos desconhecidos que parecemos caminhar ao
ler os textos tavarianos, pois o tempo todo esses textos nos tiram de nossas
zonas de segurança, dos espaços que dominamos, e nos impelem a traçar
outros percursos; provocam rupturas entre o que habitualmente
identificamos como a linguagem da ciência e a linguagem da arte, que são
então baralhadas, sacudidas e subvertidas como na epígrafe já discutida,
colocando em questão a própria possibilidade de uma separação absoluta
entre elas.
É o caso, por exemplo, de “Aviação e pensamento” (TAVARES,
2014b), texto publicado na revista brasileira Bahiaciência,27 o qual é
atravessado de ponta a ponta por esses deslimites da linguagem (assim
como nós, leitores, também o somos). O texto se constitui de sete notas
enumeradas, as quais são acompanhadas por duas fotografias produzidas
por Os Espacialistas, um coletivo de artistas-arquitetos portugueses que
centram seus projetos nas relações espaciais, em suas mais diversas
formas. As produções do coletivo acompanham boa parte dos textos de
Gonçalo Tavares publicados em veículos de divulgação, assim como estão
presentes no Atlas do Corpo e da Imaginação.28 Não me deterei aqui nessas

27A Bahiaciência publicou, em suas três edições de 2014, a seção “Outros olhares”, com
textos do escritor português que giram em torno da ciência. A publicação em veículos de
divulgação é prática de Gonçalo Tavares: nos sites portugueses Notícias Magazine e Revista
Pais e Filhos é possível encontrar cerca de 90 textos de sua autoria disponibilizados online;
a Revista Visão, também portuguesa, conta com diversos textos seus, aos quais
infelizmente só consegui acesso esparsamente, uma vez que não estão disponibilizados
online.
28Nesse livro, que ainda não conta com edição brasileira, as mais de 500 páginas são

ocupadas por cerca de mil imagens d’Os Espacialistas, as quais dialogam com o texto de
caráter prioritariamente ensaístico que dá “corpo” ao livro –que deriva da tese de
doutoramento de Tavares, defendida em 2005, sob o título Corporeidade, Linguagem e
Imaginação – e com os textos narrativos/poéticos, em formato de legendas, breves ou
longas, que as acompanham. Já a série “Dicionário ilustrado”, publicada no Notícias
Magazine, traz a cada verbete uma ou mais imagens do grupo dialogando com o texto
tavariano.
47
imagens, as quais suscitam questões para futuras reflexões, restringindo-
me a trazer para a cena dessa conversa que aqui traço com o escritor
português apenas o texto de sua autoria. A primeira nota remete a Ludwig
Wittgenstein, que ainda jovem estudava engenharia e desejava construir
um aeroplano, e sobre quem Bertrand Russell, responsável por recebê-lo
na Universidade de Cambridge, teria dito: “O meu alemão vacila entre a
filosofia e a aviação”. É em torno dessa aproximação entre o aeroplano e
a filosofia, entre a aviação e a ciência, que Tavares constrói seu texto,
afirmando na terceira nota:
Pensar de certa maneira é isto: planar dois metros,
cem metros, acima do que está a acontecer neste
momento; mil metros, digamos assim, acima do
presente. Pensar de forma concentrada é não ver
o que está à frente, é ver outra coisa. E ter um
projecto na cabeça é sempre construir
mentalmente, mesmo que simbolicamente, um
aeroplano. Quem não quiser construir um
aeroplano que não entre nesta sala! – eis o que a
ciência poderia exclamar. (TAVARES, 2014b, p.
3)
Ver outra coisa que não o que está à frente, construir mentalmente
“um volume que suspenda por momentos, minutos, horas – a força da
gravidade” (p. 3) deveria ser, nessa perspectiva, o método do pensamento
da ciência. Pautada essa aproximação, o texto passa a propor, no tópico 4,
uma divisão, uma classificação da espécie humana entre os “seres vivos
que um dia pensaram em construir sozinhos um aeroplano” e os “seres
vivos que nunca na vida pensaram em construir um aeroplano”, e indica
que os pertencentes à segunda classe deveriam ter sua entrada proibida
numa “escola de artistas e cientistas” (p. 3) – aproximando assim
novamente arte e ciência, alocadas aqui num mesmo espaço, a escola,
pautado por um certo “método do aeroplano”, digamos assim...
Em seguida, o escritor traça a diferença entre desenhar um
aeroplano e desenhar um carro, e chega na nota 6 à questão do peso como
um dos elementos diferenciadores entre os dois processos:
Interessante também pensar na questão do peso.
Um aeroplano, mesmo que com igual número de

48
quilogramas (kg) de um automóvel, pesa sempre
menos. Sem dúvida alguma. O que voa não pesa
o seu peso; o seu peso não vem em gramas, mas
em expectativa e algum espanto; metade espanto,
metade expectativa. (TAVARES, 2014b, p. 3)
O pensamento (científico e artístico, lembremos), assim, passa a
ser abordado pela via de uma subtração do peso, pelo que nele há de
imprevisto, pelo espanto: “o leve é aquilo que se afasta da terra, das leis
habituais, da monotonia obediente”, diz o português em Atlas do corpo e da
imaginação (2013a, p. 267). Esse movimento de afastamento do terreno
seguro em direção ao leve e ao espantoso me incita a traçar duas ligações
com passagens das Breves notas sobre ciência. Na primeira delas, Tavares
remete ao perigo como sendo o fundamento de qualquer criação em
ciência: “Claro que o Perigo é a origem dos métodos científicos mais
eficazes. Se o Homem fosse imortal não teria ainda inventado a roda
[poderias dizer]” (TAVARES, 2010b, p. 9). Na segunda, uma vez mais
aproxima a ciência do voo e da suspensão de peso a que ele remete:
A ciência parte sempre do princípio de que tem o
mapa certo. E, assim, acredita que é só procurar.
Julga que lhe basta o esforço, o suor.
[E, afinal, muitas vezes não deve escavar, mas
voar – algo que lhe é fisicamente impossível.]
(TAVARES, 2010b, p. 109).
É aí, no lugar da impossibilidade, que uma outra ciência se pode
fazer, uma ciência que não pense o mapa como um terreno já determinado
no qual basta buscar o tesouro enterrado: de que vale um mapa do solo se
o necessário é alçar voo? É nesse espaço de risco que é o pensamento que
se pode constituir uma ciência pautada tanto pelo peso quanto pela
expectativa em oposição à ciência apenas do peso e do suor; uma ciência
para quem o mapa seja uma possibilidade entre outras, ou, ainda mais, uma
ciência que desenhe o mapa enquanto perfaz percursos pelo território. É
com a abertura para essa outra ciência, dada na sétima nota e que funciona
como “uma máquina de produzir inícios”29, que Tavares encerra seu texto:

29Em Atlas do corpo e da imaginação (2013a, p. 41), Tavares reflete sobre o fragmento, o qual
trata como um “distribuidor de começos”: “O fragmento é, pela sua natureza, um ponto
onde se inicia; um fragmento nunca termina, mas é raro um fragmento não começar algo.
49
Ciência que apenas pesa o seu peso versus ciência
que tem peso e expectativa. Duas ciências.
Quem deixar de querer construir um aeroplano
deixou de ser cientista. (TAVARES, 2014b, p. 3)
Essa outra ciência é aberta às sensações, aos sentimentos, ao
poético, ao perigo, à expectativa, ao espanto, enfim, ao humano, ao
mundo; ela se pauta justamente por este lugar de desequilíbrio no qual é
possível que um aeroplano levante voo, por este lugar de suspensão que é
o pensamento. Tal ciência não poderia ser, e agora procuro me inserir na
conversação já traçada entre Gonçalo Tavares e Cássio Hissa, uma
“ciência-arte”, uma ciência que se paute pelo exercício da arte como
prática? Discutindo a questão da “improvisação” como método, Hissa
afirma que na perspectiva da ciência moderna não se admite que as
abordagens criativas do mundo sejam também poderosas ferramentas de
saber, ou sequer se aceita “o trabalho artístico criativo também como um
resultado de exercícios metodológicos” (HISSA in TAVARES; HISSA,
2011, p. 128). Com isso, uma série de “poetas e escritores, que interrogam
a ciência moderna e produzem conhecimento preciso, pleno de ricas
metáforas e de pensamentos, através de uma escrita prenhe de poesia e de
encantamentos”, é desconsiderada como produtora de saberes, como se
não fosse aceitável o que há nesses autores de uma “resistência crítica
produzida pela arte de pensar e de criar” (p. 128). O que dizer de um
escritor que, como Tavares, afirma ver a literatura “como uma
investigação que não termina” (TAVARES, 2013b) e a poesia como “um
método de investigação, de obtenção de conhecimento” (TAVARES,
2002)? Não poderíamos defender a hipótese de que ali se está a fazer uma
“ciência-arte”, uma ciência que acredita em diferentes movimentos,
percursos e métodos para o pensamento?
Cássio Hissa dá continuidade às reflexões sobre essa questão em
seu Entrenotas: compreensões de pesquisa (2013), quando na seção “Ciência-
saber: arte” (p. 17-22) ressignifica essas três palavras por meio de seu
realocamento em diferentes combinações. Nesse texto, ele se pergunta, e
pergunta a nós, leitores: a ciência é arte? Na tessitura de uma resposta para

Poderemos dizer que o fragmento é uma máquina de produzir inícios, uma máquina da
linguagem, das formas de utilizar linguagem, que produz começos – pois tal é a sua
natureza.”
50
a questão, aponta perspectivas que rivalizam entre si: de um lado aquelas
da ciência moderna, que se pauta pela “ausência do sujeito do
conhecimento e das subjetividades”, pela “razão pura”, pela “emoção
excluída”, aquela ciência “que apenas pesa o seu peso” e que afirma, com
toda a certeza que lhe é inerente, que “a ciência não é arte”; de outro,
aquelas que creem na impossibilidade de uma razão pura (ou de qualquer
tipo de pureza), de um sujeito neutro e desvinculado do mundo, de uma
ciência esvaziada da arte e da linguagem, perspectivas que se pautam pela
certeza de que “pensamento e experimentação do mundo se entrecortam:
estimulam-se e se reconstroem, ou se redesenham, simultaneamente”
(HISSA, 2013, p. 20). Essa ciência, que se quer uma ciência do aeroplano,
na qual peso, expectativa e espanto caminhem juntos, responderia que
“existem territórios de resistência em que se cultiva a arte da ciência, de
modo a disseminar a sabedoria, a paciência, o amor pelo mundo, o diálogo,
o vagar, a utopia, o prazer, o sabor, o cuidado” (HISSA, 2013, p. 22, grifo
meu).
Esta última ciência seria, ainda dizendo com Hissa, uma “ciência-
saber”, por meio da qual haveria uma forte expressão da arte; uma ciência
fronteiriça, na qual o sujeito está presente, e que se constitui pela
“mistura”, pelo “envolvimento”, pelo “compartilhamento”: “todos os
materiais são misturados”, nos diz Gonçalo M. Tavares, “por exemplo, o
que seria uma frase que pensa e o que seria uma frase que conta uma
história? Eu não sei a diferença.” (TAVARES, 2014a, p. 182-183). Nessa
ciência da partilha, a palavra predominante seria o “e” em lugar do “ou”,
não o “e” que elimina qualquer diferença, mas aquele que faz com que o
diverso conviva, de modo que por meio do atrito e do contraditório surja
uma resposta nova, provoquem-se questões outras, “multipliquem-se as
possibilidades de verdade” (TAVARES, 2013a, p. 67-68). Afinal,
Só acrescentas algo ao Mundo 1 – quer este seja
uma disciplina científica ou apenas uma ideia – se
trouxeres algo do Mundo 2.
Dito de outro modo, e sendo óbvio para avançar:
Nada que pertença ao Mundo 1 é novo para o
Mundo 1.
Queres trazer-te o novo? Sai de ti.

51
Queres trazer algo de novo a esta caixa quadrada
de 1 metro por 1 metro?
Então procura algo fora dela.
Eis o pressuposto óbvio de uma investigação.
Como entender, pois, os especialistas?
(TAVARES, 2010b, p. 37)
Aproximar, pois, o diferente, criar para esses diversos modos de pensar o
mundo que são a ciência e a arte um espaço de amizade (TAVARES,
2013a, p. 68) no qual possam conviver e potencializem as possibilidades
de saber, de compreender o mundo.
Essa ciência-saber de que nos fala Hissa encontra, ainda, outros
trajetos que podem aproximá-la da literatura, tal qual desejada e defendida
por Gonçalo M. Tavares, dos quais destaco dois para encaminhar o final
desta reflexão: um é aquele que diz do “vagar”, da “paciência”, da
“lentidão” e da “artesania” (HISSA, 2013, p. 21) a ela inerentes, de forma
que ciência e literatura teriam um “tempo” em comum, um ritmo
compartilhado; o outro, aquele no qual “o potencial estético das palavras”
é valorizado tanto pela literatura quanto pela ciência, que sabe que a
linguagem é também uma parte fundamental de seus procedimentos e
métodos (TAVARES in TAVARES; HISSA, 2011, p. 137).
No diálogo com Tavares, referindo-se à universidade
contemporânea e ao ritmo acelerado que certa visão produtivista imprimiu
às práticas que ali se realizam, Cássio Hissa pergunta ao escritor português:
“Não seria a lentidão o instrumento da precisão de quem cria e de quem
brinca com ideias, redesenha conceitos, produz saberes através de
diálogos?” (HISSA in TAVARES; HISSA, 2011, p. 134). Para sua
resposta, Tavares uma vez mais recorre a Wittgenstein, aquele “que vacila
entre a filosofia e a aviação”:
Estou perfeitamente de acordo com o tom da
pergunta, ou seja, para mim é claro que a
produção em quantidades, rapidamente, é algo
que se parece com o absurdo ou que nos faz entrar
no absurdo. Wittgenstein (1889-1951), numa
pequena passagem em um de seus livros, diz que
se dois filósofos se encontrassem na rua, o que
deveriam dizer um ao outro seria: mais devagar. É

52
o que penso. Duas universidades, caso se
cruzassem na rua, deveriam dizer uma à outra:
mais devagar. Porque as grandes obras são as que
se fazem com certo amadurecimento das coisas.
O tempo faz com que as ideias deixem cair as suas
partes mais fracas e há, com isso, um adensamento
de partes mais fortes. [...] Em determinadas
situações, sobre o cientista e o escritor, penso que
é quase o tempo que nos auxilia a fazer o nosso
trabalho. Nesse sentido, o tempo é o colaborador do
cientista, do escritor. O tempo é o nosso colaborador
mais antigo e mais sensato. É um luxo dispensá-
lo. Quando o homem dispensa o tempo como
colaborador é porque, talvez, tenha perdido o
discernimento. (TAVARES in TAVARES;
HISSA, 2011, p. 135-136, grifos originais)
Tavares retoma, assim, seu desejo de experimentar a literatura
como um lugar de paragem, estendendo-o também à ciência (TAVARES,
2011). O tempo do pensamento, o tempo do saber, cultivado com vagar.
O tempo necessário ao diálogo, à troca, à mistura, às ligações. O tempo
indispensável para que o saber seja reinventado no mundo, junto aos
sujeitos do mundo. Ciência e literatura se aproximariam, assim, como
“tempos de pensar” (HISSA, 2013), como movimentos para que se possa
compreender o mundo e frente a ele posicionar-se política, ética e
esteticamente. Pois, sim, nessa “ciência-saber”, ou no que proponho ser
possível pensar também como uma “ciência-arte”, o trabalho com a
palavra é fundamental, uma vez que a “pesquisa é escrita” (HISSA, 2013,
p. 62), que a escrita “é um acto de investigação” (TAVARES, 2010d). Uma
“ciência-arte” compreende que não deve se desvincular da linguagem, da
escrita, a qual faz parte do próprio processo de investigação e produção
de saberes. O potencial estético das palavras, nessa perspectiva, não é uma
preocupação necessária apenas à literatura, mas apresenta-se como
fundamental à essa ciência reinventada, que resiste em sua busca por
tempo, que resiste em seu trabalho artesanal com a palavra: “Eu acredito
que a ciência e a filosofia”, afirma Gonçalo Tavares, “também, podem
passar muito por esse encontro raro de palavras; ou seja, uma ideia nova,

53
criativa, pode muito ser o encontrar uma asserção rara de linguagem, porque a
linguagem está sempre entre a nossa investigação e os outros” (TAVARES in
TAVARES; HISSA, 2011, p. 138, grifos do autor).
Ciência e literatura, ciência e arte aproximadas, assim, por meio de
um movimento de linguagem, por meio de um hífen que provoca sua
união sem superposição, que provoca aberturas em uma e outra, que faz
com que ambas deslizem de seus lugares comuns para territórios outros,
contaminando-os e sendo por eles contaminadas, deixando-se misturar,
buscando mesmo esse compartilhamento. Ciência e literatura voltando-se
para o mundo, pensando-se junto ao mundo, rompendo com a ideia de
que existem frases que pensam e frases que contam histórias, objetos
poéticos e objetos científicos, e tomando-se como a ciência-arte das
ligações, tão ricamente pontuadas pelo escritor português nas suas Breves
notas sobre as ligações, e às quais recorro para encerrar este texto:
Incapacidade de desligação. Estou vivo:
impossível separar-me.
Ou: estou vivo: estou obrigado a ligar-me. [...]
As coisas aproximam-se. E mesmo: as coisas
afastam-se.
Porque o afastar é ainda um movimento de
ligação, movimento que prova a existência de
ligações com o outro; se me afasto é porque existe
algo de que me afasto.
Estou vivo porque me ligo e estou vivo porque
me afasto. (TAVARES, 2010a, p. 31-32).

54
REFERÊNCIAS

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VIGNAUX, Georges. O demónio da classificação: pensar/organizar.
Tradução de Sylvie Canape. Lisboa: Instituto Piaget, 2000.

57
58
Narrar por imagens: fricções entre cinema e
literatura
Leonardo Francisco Soares

Friccionar: atrito de corpos, produzindo contatos


vitais, corpos de enunciação dos textos. Operação que
a partir da materialidade da língua ou do objeto
remete de um signo a outro, guardando a
provisoriedade como premissa, e traça as redes
intertextuais. Corpos em fricção, textos que se tocam,
tangenciam-se, derivam, erram: outras dicções,
outras teorias.

Vera Casa Nova

A epígrafe que eu escolhi para a abertura desta reflexão traduz o


modo como compreendo o diálogo entre cinema e literatura. As palavras
de Vera Casa Nova (2008, p.111) apontam para a forma como nossas
leituras se ligam a nossas procuras, segredos e desejos; exemplificam,
enfim, a maneira como somos atravessados pelos corpos significantes,
friccionados e tangenciados por eles.
O gesto de aproximar, encontrar, dialogar ou friccionar textos e
suportes na operação de leitura intersemiótica dissemina desdobramentos
de sentidos que os enriquecem. Da ordem do que Roland Barthes irá
nomear de “terceira força da literatura”, que consiste em jogar com os
signos em lugar de sufocá-los, destruí-los, instaurando no próprio
organismo da linguagem subserviente “uma verdadeira heteronímia das
coisas.” (BARTHES, 2000, p.29). Tal movimento, “viagem do olho, a olho
nu” (cf. CASA NOVA, 1988, p.184), alimenta-se, muitas vezes, de
misteriosas semelhanças, combinações e intertextualidades. Afinal, é
preciso reconhecer que “o olhar semiótico [...] obriga a recusar o mito a
que se recorre para salvar a literatura da palavra gregária de que ela está
cercada, e que a comprime, e que é o mito da criatividade pura: o signo
deve ser pensado – ou repensado – para que melhor se decepcione.”
(BARTHES, 2000, p.36).
Em meu trabalho de pesquisa, o cinema e a literatura encontram-
se associados, apresentando traços significantes e agenciamentos comuns,
59
mas que provocam, ao mesmo tempo, a cada leitura, o trabalho sobre as
diferenças. O meu olhar pousado sobre o texto literário e sobre o texto
fílmico constrói-se, então, a partir de um processo espelhado, no qual a
profusão de vozes, imagens, sons, letras e citações, conjugados nos dois
Dispositivos, gera constantes cruzamentos, diálogos e miragens.30 Assim, se
posso falar aqui em “tradução intersemiótica”, esta é construída no interior
de cada texto escolhido para análise, a partir daquilo que singulariza o
trabalho de cineastas e/ou escritores, sendo que a teoria, para dizer com
Gilles Deleuze, não opera em abstrato, a partir de conceitos generalizantes,
mas no corpo a corpo com os textos. Nesse sentido, faz-se necessário
esclarecer como venho utilizando os termos filme e texto ao longo de
minhas pesquisas acadêmicas.
Antes de qualquer coisa, ao tratar do termo filme remeto à
definição proposta por Christian Metz, ou seja, a de um “discurso
significante localizável” (1980, p.11), possibilitando encarar o material
fílmico, contido dentro do filme,31 como um texto passível de múltiplas
leituras. Também Roland Barthes (2003; 1990; 1984), em diferentes fases
de sua reflexão, irá tomar por linguagem, discurso, fala, toda a unidade ou
toda a síntese significativa, quer seja verbal ou visual, sem, entretanto,
incorrer no reducionismo de submeter a imagem cinematográfica a uma
taxonomia com base em modelos emprestados da linguística. O signo
texto recobrindo a folha de papel e a película de celuloide é, portanto,
“lido”, barthesianamente, aqui, e sempre em meus estudos que propõem
essa fricção, em um sentido lato, como lugar no qual se aflora a dinâmica

30 A imagem especular pode se transformar em espetáculo, em encenação, enfim,


aproximar-se do que é da ordem da simulação, da representação. Segundo Umberto Eco
(1989, p. 11-37), os espelhos são próteses na medida em que permitem uma ampliação
do campo de visão. Como prótese, a imagem especular pode provocar enganos
perceptivos. Nesse caso, os espelhos são usados como canais para “mentir”, ou seja, a
imagem especular é utilizada de tal maneira que produz efeitos semiósicos. Ainda nessa
perspectiva, ver Soares (2000, p.75-76).
31 Em Linguagem e cinema, Christian Metz recupera a distinção estabelecida por Gilbert

Cohen-Séat entre fato cinematográfico e fato fílmico. O primeiro é constituído, a princípio, por
tudo que é exterior ao filme propriamente dito, o conjunto de condições exteriores do
cinema antes da realização do filme (financiamentos, legislações, tecnologias), já o
segundo abrange o próprio filme, como texto: a arquitetura das imagens, a composição
expressiva do relato, a relação entre a subjetividade do autor, o desempenho dos atores e
a interpretação dos espectadores. (METZ, 1980, p.11-12)
60
da produção, do vir a ser de sentidos e suas metamorfoses. Assim, as
imagens-sons projetadas na tela e o traço riscado na página estarão na
mesma cadeia significante: “[t]exto, tecido, teia, colcha, retalho, bordado.
Rede que produz sentidos e é produzida no tempo e no espaço”, para
dizer mais uma vez com Vera Casa Nova (1996, p.11).
Se escolhi começar pelas fricções do subtítulo, importa, agora,
tomar o mote principal deste ensaio, o narrar por imagens. Para tanto, é
preciso voltar ao cinema dos primeiros tempos.Coube aos Irmãos Lumière
o feito de realizarem a primeira projeção, com razoável perfeição técnica,
de apresentação do cinematógrafo; primeiro, em 28 de setembro de 1895,
no sudeste da França, e depois, em 28 de dezembro de 1895, no Grand
Café, em Paris. A exibição consistia de um programa de dez minutos com
10 filmes rodados pelos próprios Auguste e Louis Lumière, incluindo-se
nesse rol o famigerado L'arrivée d'un train en gare de La Ciotat (1895).32 Por
tal façanha, os irmãos franceses ganhariam a alcunha de pais do cinema.
Por sua vez, foi outro francês, Georges Méliès, quem abriu uma
nova possibilidade de agenciamento entre o real, o fictício e o imaginário,
um novo jeito de contar histórias, através das imagens-movimento.33 Depois
de assistir à exibição dos Lumière, Méliès, mágico e ilusionista, encanta-se
pela novidade e aposta em suas potencialidades, sendo o pioneiro no uso
de atores, cenários, figurinos e maquiagem na produção de um filme.
Opondo-se ao empenho “realista e documentarista” dos Irmãos Lumiére,
Méliès será o primeiro a desenvolver o potencial narrativo do Dispositivo34
fílmico, ao passar da imagem à narratividade, pois, como bem observa
Christian Metz: “[p]assar de uma imagem a duas imagens, é passar da
imagem à linguagem.” (METZ, 1977, p.63).
O episódio já foi bastante contado e recontado, chegando a ganhar
ares de “lenda”: conta-se que, certa vez, ao projetar uma cena que acabara
de rodar na Praça da Ópera, com uma câmara defeituosa, George Méliès
viu um ônibus transformar-se num carro – na verdade,a película prendeu-
se de algum modo no aparelho, sendo que este parou durante alguns
poucos segundos, sem que Méliès percebesse o problema, e voltando a
rodar o filme logo em seguida. O defeito virará efeito já em Escamotage

32 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=o2EwW_PqYIE>.


33 Sobre a noção de imagem-movimento, ver Deleuze (1985).
34 Sobre a noção de Dispositivo, ver Xavier (2008, p.175-207).

61
d’une Dame chez Robert Houdin (1896),35 quando Méliès filma uma mulher
sentada em um set de filmagem, com cenário de fundo pintado, e espera
ela sair do quadro para depois filmar a cadeira vazia: na cena projetada, a
mulher parece evaporar-se. Visando aperfeiçoar o truque, Méliès, que no
curto filme interpreta um elegante ilusionista, substitui a mulher por um
esqueleto humano, criando um jogo de aparição e desaparição, que,
seguidamente, fará a alegria do público dos seus primeiros filmes.
Começava, nesse acidente cinematográfico de percurso, um capítulo
importante na construção da imagem fílmica.
Do interesse inicial em se criar o ilusionismo – a partir de técnicas
de fotografia, maquiagem e decupagem mínima – para impressionar os
primeiros espectadores, George Méliès passa a investir no intento de
narrar histórias com as imagens projetadas pelo cinematógrafo. Para tanto,
o precursor francês buscará na literatura os modelos narrativos com os
quais dialoga e dos quais se distancia. Duas de suas adaptações de textos
literários para a tela são bastante lembradas: Cinderella (1899)36 e Le Voyage
dans la lune (1902).37 Ter-se-ia, aí, uma primeira possiblidade de contato do
cinema com a literatura. Por seu caráter de agenciamento de diferentes
signos, a narrativa literária impregna o cinema, que se torna,
majoritariamente, um meio de contar histórias através dos recursos da
imagem-movimento, sendo que, mais tarde, o fato fílmico fornecerá temas e
procedimentos específicos à literatura. Em importante estudo, César
Guimarães (1997, p.109-142) chama a atenção para o fato de que esse
“circuito de mão dupla”, aparentemente legítimo, guarda alguns
pressupostos que precisam ser problematizados. Em primeiro lugar,
haveria a dupla defasagem – temporal e técnica – que paira sobre esse
sistema de circularidade. A questão posta é a seguinte: a recorrência de
empréstimos sanaria a defasagem, fornecendo a ilusão de que a diferença
temporal – o “atraso” do cinema em relação à performance narrativa dos
textos literários – foi recuperada a partir da equivalência dos meios
técnicos – com a literatura incorporando temas e procedimentos
constitutivos das imagens-movimento.

35 Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=u3VERvzjeEs>.


36 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=0caKk_42n7A> .
37 Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=9m830jhUi3E>.

62
Tudo se passa como se literatura e cinema
disputassem uma corrida que, embora não possua
um mesmo ponto de partida, estranhamente
possui uma linha de chegada equivalente: a
narratividade, para o cinema; e o modo
“cinematográfico” de narrar, para a literatura. O
problema – para ficar com a metáfora da corrida
– é que cinema e literatura não apenas correm em
pistas distintas (embora seus tempos às vezes se
aproximem, outras vezes se distanciem), mas
também não almejam o mesmo prêmio. Há que
se esclarecer, portanto, em que ocasião e sob
quais condições um tipo particular de cinema
aproxima-se de um determinado modelo literário
e vice-versa, isto é, como e quando determinados
textos aproximam-se de um regime particular de
cinema. (GUIMARÃES, 1997, p.112).
Além disso, outras questões se apresentam: seriam essas
potencialidades narrativas inerentes ao Dispositivo fílmico? O cinema seria
um veículo para narrativa?
Ao longo da história do cinema, em especial a partir de David W.
Griffith, que marca o início da consolidação de um Modo de
Representação Institucional (M.R.I.),38 à dinâmica do mostrar sobrepõe-se
a do contar, o texto fílmico é tomado pelo logro da representação, a
imagem como uma analogia, uma semelhança, um efeito de real.
Conforme salienta César Guimarães (1997, p.119), o romance realista irá
contribuir para reforçar uma dupla tendência do Modo de Representação
Institucional: “naturalista”, ao buscar a identificação estrita da imagem
com os aspectos físicos imediatos do mundo fora da tela, e,

38 Para Noël Burch, a história da linguagem cinematográficaconfigura-se como um


constante conflito entre o Modo de Representação Institucional (M.R.I.), a técnica
narrativa (movimento da câmara, a profundidade de campo, a montagem e a construção
de cenários) do cinema mais voltado para o mercado, e as alternativas a esse modelo, o
Modo de Representação Primitivo (M.R.P.), que tem seu germe no cinema dos pioneiros.
(Cf. GUIMARÃES, 1997, p.112-120).
63
complementarmente, “naturalizante,” na medida em que a maquinaria de
construção da imagem é tornada invisível.
Em texto publicado pela primeira vez em 2001, o cineasta Peter
Greenaway busca, de forma irônica, desestabilizar os lugares comuns
instituídos em torno da relação do cinema com a literatura, ao afirmar que
o que se assistiu, desde a última década do século XIX, foram textos
ilustrados e nenhum cinema. Nas palavras do cineasta:
O cinema tem a ver com outras coisas que não a
narração. O que você lembra de um bom filme –
e vamos falar apenas de bons filmes – não é a
história, mas uma experiência especial e quem
sabe única que tem a ver com atmosfera,
ambiência, performance, estilo, uma atitude
emocional, gestos, fatos isolados, uma
experiência audiovisual específica que não
depende da história. (GREENAWAY, 2001, p.9-
10)
Além disso, tomando como referência o seu filme O livro de cabeceira
(1996),39 Peter Greenaway propõe formas alternativas de se ultrapassar
esse “estado de coisas” que submete a imagem a cumprir o papel de mero
Dispositivo ilustrativo de um modelo narrativo advindo do século XIX. O
filme em questão carrega algumas provocações, primeiramente, ao trazer
o termo “livro” em seu título e, em segundo lugar, por ser adaptado de
uma peça literária, O livro do travesseiro, escrito no final do século X, início
do XI por Sei Shônagon, uma dama da corte a serviço da Imperatriz
Teishi, consorte do Imperador Ichijô (980-1011), em Heiankyô (atual
Quioto), no Japão. O cineasta parece colocar a si próprio em um imbróglio
– um filme-livro? Uma adaptação de obra literária? –, chamando atenção
para o seu desconforto para com o cinema narrativo.
Peter Greenaway salienta que sua intenção não foi “ilustrar” ou
“interpretar” o livro escrito por Sei Shônagon, mas homenagear os mais
de trezentos textos que compõem esse “livro solto, impressionista, quase
sem coerência, como narrativa contínua.” (GREENAWAY, 2001, p.10).
Os textos de Sei Shônagon (2013) variam de várias páginas a uma única
linha, comportando duas variantes de escrita: uma, na qual a dama da corte
39 Sobre o filme O livro de cabeceira, ver Maciel (2004).
64
narra episódios curiosos do cotidiano da ala privativa do palácio; a outra,
composta das famosas “listas de preferência.” O cineasta cria – “[u]m bom
cineasta deveria ser um criador – um compositor, não um regente”
(GREENAWAY, 2001, p.11) – um filme-catálogo, no qual o sexo e o
texto encontram-se entrelaçados. Para tanto, o texto fílmico conta com
diálogos falados, cantados, salmodiados e escritos no corpo da tela em
vinte e cinco línguas, tomando como suportes o papel, a madeira, a carne
viva e morta, o neon, as telas dentro da tela, a própria projeção. O cinema
inundado de textos, porém, assim como acontece com os hieróglifos
japoneses, “o que se vê como imagem lê-se como texto. O que se lê como
texto percebe-se como imagem.” (GREENAWAY, 2001, p.12).40
Também Gilles Deleuze, em suas Conversações, ao retomar os seus
estudos sobre o cinema e as duas formas de agenciamento das imagens,
denominadas por ele como imagem-movimento e imagem-tempo, afirma o
seguinte:
O primeiro estágio do cinema, portanto, é o
automovimento da imagem. Aconteceu de isso se
realizar num cinema de narração. Mas não era
obrigatório [...]. O que levou a imagem-
movimento, isto é, o automovimento da imagem
a produzir narração, foi o esquema sensório-
motor. O cinema não é narrativo por natureza:
ele torna-se narrativo quando toma por objeto o
esquema sensório-motor. (DELEUZE,1992,
p.153)
A narração não estava compreendida no cinema desde o início. Tal
afirmação torna-se importante, pois, muitas vezes, os estudos que
aproximam o cinema e a literatura reduzem a imagem cinematográfica a
algo equivalente a um enunciado, lançando mão de bases linguísticas para

40Inevitável não se pensar aqui no estudo “O princípio cinematográfico e o ideograma”,


de Serguei Eisenstein, que, por sua vez, é um pioneiro nas reflexões que aproximam
teoricamente a literatura e o cinema. Nesse estudo, em específico, Eisenstein lança mão
de noções e conceitos tomados da cultura oriental, identificando os traços
cinematográficos da cultura japonesa (para além do cinema) e transpondo os métodos de
construção de sentido, do teatro kabuki, dos haikais, da escrita figurativa dos ideogramase
da combinação de hieróglifos na formação de conceitos, para a sua reflexão sobre as
imagens em movimento. (cf. EISENSTEIN, 1986, p.163-185)
65
se forjar uma teoria do cinema. Obviamente, conforme já salientado no
início desta reflexão, há aspectos do filme narrativo que podem ser
tomados a partir de uma estrutura conceitual compartilhada tanto pela
literatura, o teatro e o próprio cinema, aspectos esses vinculados ao que se
convencionou denominar de fábula/diegese e de trama (Cf. XAVIER,
2003, p.64-67). Contudo, há aspectos da ordem do que há de específico
(câmera, iluminação, decupagem, encenação) na construção do fato fílmico.
Acredito que os atravessamentos proporcionados pelo encontro
entre o Dispositivo técnico e essas questões ligadas aos rumos da
representação, a tensão entre aspectos narrativos do filme (da ordem da
fabulação) e aspectos que exigem a atenção para o que é específico, são o
que deveria vir à tona em qualquer tentativa de análise textual do cinema.
Como adverte Ismail Xavier:
É sempre um desafio articular a atenção ao
encadeamento e a atenção à textura de cada
imagem-plano, pois esta sempre “transborda”
face às concatenações lógicas, especialmente no
filme moderno, empenhado em repor as
discussões ligadas ao específico e em renovar a
pergunta “O que é o cinema?” (XAVIER, 2008,
p.193).
Tanto o cineasta Peter Greenaway quanto o pensador Gilles
Deleuze atrelam o valor estético à exploração do que o cinema tem de
específico. O pensamento dos dois, artista e estudioso, converge para um
exercício de leitura do fílmico que não privilegie um esquema conceitual
narratológico, mas se concentre na imagem-som como presença. Nesse
caso, os aspectos narrativos do filme seriam tomados de modo enviesado,
oblíquo, enquanto a forma, o estilo, o detalhe de construção imagética e
sonora ganhariam o primeiro plano, valorizando-se as virtudes expressivas
do Dispositivo.
Para ilustrar essa tensão entre imagem-som-presença e o
encadeamento narrativo-dramático do texto fílmico, Ismail Xavier (2008,
p.193) irá resgatar, de forma iluminada, uma das anedotas que envolvem
certas reações ocorridas durante a célebre – e já lembrada aqui nesta
reflexão – primeira exibição do cinematógrafo, no Grand Café de Paris, em
28 de dezembro de 1895. Um dos filmes dos Irmãos Lumière projetado

66
naquela ocasião foi Le Repas (de Bébé).41 A câmara é postada de modo
bastante aproximado a uma mesa localizada em um jardim de uma casa,
propiciando uma visão de conjunto de uma cena familiar, que poderia ser
sumariamente descrita da seguinte maneira: um bebê aparece sentado em
uma mesa entre seus pais alegres, no caso Auguste e Marguerite Lumière.
Enquanto o pai o alimenta com uma colher, a mãe está despejando café
em sua xícara. O pai dá ao bebê um biscoito. Apesar do incentivo dos pais,
o bebé agarra o biscoito, mas não o come. O pai retoma a alimentação do
bebê com a colher; fim do filme. Na configuração do quadro, o bebê
ocupa o centro da tela (e da mesa) cercado por seus pais. Ao fundo, é
possível ver, por trás da casa, as árvores do jardim sendo agitadas pelo
vento enquanto a sequência de 41 segundos tem andamento. Por essa
configuração da imagem, o espectador é convidado a olhar as caretas do
bebê e os mimos e sorrisos dos pais.
Reza a lenda – “quando a lenda é maior que o fato, publique-se a
lenda”42 – que um espectador presente àquela sessão não achou graça
nenhuma naquela cena típica de um gênero futuramente bastante popular,
o filme de família. Este espectador era ninguém menos que Georges
Méliès. Mèliès desviou seu olhar para um pormenor aparentemente inútil
no desenvolvimento da cena, e que para ele significava o prodígio do
cinema: as folhas das árvores se movendo ao fundo no canto da tela.
Estaria ali a novidade, a possibilidade de o cinema capturar o efêmero, o
fugidio, o que não se repete. Ainda em tom anedótico, pode-se afirmar
que, espécie de leitor de Roland Barthes, avant la lettre, Méliès visualizou
nas folhas que se movem, que insistem em marcar presença, o que Barthes
irá caracterizar como o “terceiro nível de sentido”, que ultrapassa os níveis
informativo e simbólico, um sentido “que se pode situar teoricamente,
porém não se pode descrever” (BARTHES, 1990, p.58), forma alternativa
de atenção ao fragmento, leitura oblíqua da cena que recupera o que está
lá como “excesso” na imagem. Ou ainda a noção de punctum, trazida em
A câmara clara (1984), para se referir ao que fisga o olhar do espectador
diante da fotografia.

41Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=DcKOdfpHJpM>


42Famosa frase do western O Homem Que Matou o Facínora (1962), dirigido por John
Ford.
67
Em seu fluxo temporal, o cinema é essa nova percepção do
mundo: na projeção dos Lumière, o movimento das folhas ao vento ganha
uma nova dimensão, colocando em relevo o instante, o que é específico
do cinema. E eu cito as palavras de Ismail Xavier: “O olho de Méliès,
espectador, foi atento ao todo da imagem – por isso mesmo a fez imagem
em sentido pleno – e captou o que não estava atrelado ao encadeamento
das ações, ao pequeno teatro da família à mesa.” (XAVIER, 2008, p.194).
Pode-se inferir que o cinema clássico se consolidou pelo
movimento de manter a atenção do espectador concentrada ao
encadeamento dramático, às ações e reações. Desse modo, o olhar se
subordina ao drama, orientado para as personagens, e corre o risco de não
perceber as folhas que se movem. Por outras vias, o que se convencionou
chamar de cinema moderno, mas que já estava contido no Modo de
Representação Primitivo (M.R.P.), buscou explorar a força do instante, a
educação pela imagem, vislumbrar e revelar o que nela é da ordem daquela
dimensão que é pouco ou nada explorada pelo cinema dito clássico.
Como exemplo desse outro cinema, eu me lembro (Amarcord) aqui
de Federico Fellini e de seu filme E la nave va (1983), e destaco, devido às
dimensões deste ensaio, em específico as sequências inicial e final do
filme.43 Em E la nave va, Federico Fellini narra a viagem do transatlântico
Glória N, encarregado de lançar em alto mar as cinzas de uma diva da
ópera (Edmea Tetua), no limiar da Primeira Guerra Mundial.A primeira
sequência, que pode ser tomada como uma citação, simula-se e representa-
se como a história do próprio cinema, começando como um filme antigo,
em preto e branco, que aos poucos vai ganhando fluência, movimento e
cor.44
Em um conjunto admirável de fotogramas, Federico Fellini
apresenta a evolução do discurso cinematográfico: temos, primeiramente,
o cinema primitivo — a fixidez da objetiva —, imagens “sujas” registram
a chegada dos passageiros ao cais; não há ainda a combinação dos planos,
a passagem de uma imagem a duas imagens; o primeiro ruído é o de uma

43Realizo uma leitura ampliada do filme em diálogo com o romance A força do destino, de
Nélida Piñon, em minha pesquisa de mestrado, citada anteriormente. (cf. SOARES,
2000).
44A sequência encontra-se disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=oapv4ybSfwc >.
68
velha câmara de projeção. Depois desses planos, autônomos e
autossuficientes, da multidão no cais, emerge uma espécie de
caleidoscópio do universo felliniano, com seus clowns e suas matronas,
enquanto a câmara inicia os primeiros movimentos de eixo. A seguir
surgem “ruídos realistas”, os do navio, para aparecer em seguida, como
nos filmes mudos, o uso do gráfico, os intertítulos, a primeira cartela:
“Perguntam o que está acontecendo. Quem sabe?”. Aos poucos, as
imagens vão ganhando uma certa linearidade. Finalmente, ao som do
piano, com a chegada do carro fúnebre, o espectador é informado a
respeito das cinzas de Edmea Tetua, o motivo da viagem; nesse momento,
a cor aparece lentamente, assim como as vozes, os diálogos, os amplos
movimentos de câmara e a primeira ópera: La forza del destino, de Giuseppe
Verdi.45 O navio segue sobre o mar de plástico, enquanto os passageiros
cantam: “Sigamos sobre as vagas da alegria e do pesar. A rota mais
romântica do navio que vai.”
Nas vagas do mar assumidamente de plástico, Federico Fellini opta
pelo simulacro, consciente de que a imagem encerra, na ausência do objeto
que reproduz, um certificado de presença, pois, como nos adverte Roland
Barthes, com o advento da fotografia, “[...] o passado, doravante, é, tão
seguro como o presente, o que se vê no papel é tão seguro como aquilo
que se toca.” (BARTHES, 1984, p.130). É como afirma uma passageira do
Glória N, ao ver o sol se pondo no horizonte: “Veja... que lindo... nem
parece real”. Na verdade, a intenção é justamente essa, descolar-se do
referente para apoiar-se no simulacro, pois este fabrica um “hiper-real”
mais verdadeiro e funcional que o próprio referente. Assim, o cinema de
Federico Fellini passa da era da representação para a era da simulação;
poder-se-ia dizer, provocativamente, do Modo de Representação
Institucional para o Modo de Representação Primitivo, tomado este
último como o que rompe com o modo de representação dominante.

45La forza del destino, a primeira ópera a irromper em E la nave va, irá marcar a viagem do
Glória N. O tema musical do “Destino”, toda a composição de abertura e outras
passagens da ópera de Giuseppe Verdi, com libreto de Francisco Maria Piave e Antonio
Ghislanzoni, serão ouvidos, ao longo do filme de Federico Fellini, ao lado de trechos de
outras óperas de Verdi, assim como obras de compositores como Rossini, Bellini e
Tchaikovski, citados e transcriados pelo olhar do cineasta italiano. Sobre as relações do
filme de Federico com a ópera, ver Soares (2000).
69
“Tudo que é passado recai no cristal e nele fica”, afirma Gilles
Deleuze (1990, p.109), em suas reflexões sobre a imagem-tempo; no caso do
filme de Federico Fellini, o cristal vem sob a forma do mar de plástico, a
imagem especular do simulacro, que engole as cinzas de Tetua, as cinzas
de um imaginário, e sob o qual o navio se move.
Nas sequências finais do filme, o cineasta italiano exibe o aparato
técnico utilizado na sua produção.46 Em depoimento a Charlotte Chandler,
Federico Fellini lembra: “[o] mar era feito de polietileno. O pôr-do-sol
artificial era lindíssimo e também devia parecer artificial, foi nossa
intenção. No final, mostro o estúdio e a mim mesmo atrás da câmara.
Desvendo todo o encanto mágico.” (CHANDLER, 1995, p.198). Nesse
momento, o jogo de mostras e máscaras faz-se nítido. Ao revelar-se a
câmara que foca o navio e todo o arsenal técnico utilizado na construção
do texto fílmico, o espectador tem por um instante a sensação de estar
diante de um desmascaramento total dos artifícios do espetáculo
cinematográfico. No entanto, trata-se de um logro, pois há um outro olhar:
afinal, a câmara que foca o navio está em foco. O espectador vê uma
imagem mediada por um olhar exterior que organiza a cena, estabelecendo
uma ponte mas também se interpondo entre ele e a tela. O real converte-
se em virtual e vice-versa, reiniciando-se o jogo de mostras e máscaras,
que abre a cena ao infinito.
É exatamente em torno de outros sentidos, como as folhas
capturadas pelo olhar de Méliès, as letras e corpos de Peter Greenaway,
que se movem as imagens de E la nave va. Real e espetáculo se atravessam,
se justapõem de maneira surpreendente e em níveis que criam um estado
de indiscernibilidade. Esse estado de indiscernibilidade é da ordem do que
Deleuze irá chamar de imagem-cristal, uma imagem bifacial, a um só tempo
atual e virtual: “o objeto real reflete-se numa imagem especular tal como
no objeto virtual que, por seu lado e ao mesmo tempo, envolve ou reflete
o real: há ‘coalescência’ entre os dois” (DELEUZE, 1990, p.87-88), em
um duplo movimento, uma face dupla que não se confunde ou anula, mas
tem na unidade indivisível de uma imagem atual e de sua correspondente
virtual o seu caráter distintivo. “É como se o real e o imaginário corressem
um atrás do outro, se refletissem um no outro, em torno de um ponto de

46 Essas sequências de desvelamento estão disponíveis em: <


https://www.youtube.com/watch?v=FJwWnbtUaLs>.
70
indiscernibilidade”. O material fílmico é tomado como um circuito, um
modo de composição da imagem-cristal, que fará coadunarem-se o atual e o
virtual, o límpido e o opaco, o germe e o meio.

71
REFERÊNCIAS

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CAMPOS, Haroldo (Org.). Ideograma: lógica, poesia, linguagem. Tradução
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72
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ESCAMOTAGE d'une dame chez Robert Houdin. Direção de Georges
Méliès. França, 1896. Disponível em:
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SOARES, Leonardo F. Rotas Abissais: mimese e representação em A força
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Dissertação (Mestrado em Letras-Estudos Literários) - Faculdade de
Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2000.
LE VOYAGE dans la Lune. Direção: George Méliès. França, 1902.
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Ismail. O discurso cinematográfico. 4.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. p.175-
207.

73
XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do
olhar no cinema. In: PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão.
São Paulo: Senac/Instituto Itaú Cultural, 2003. p. 61-90.

74
Ensaio sobre a tradução coletiva: Presos pelo
estômago, livres pelo filme
Augusto Rodrigues Silva Junior
Eclair Antonio Almeida Filho
Lemuel da Cruz Gandara

A gente não quer só comer


A gente quer comer
E quer fazer amor
A gente não quer só comer
A gente quer prazer
Prá aliviar a dor

“Comida”, Titãs, 1987.

Em 2001, foi criada a Agência Nacional de Cinema (ANCINE),


iniciando seus trabalhos efetivos em 2002. No compasso dessa nova
estratégia estatal, também em 2002, mais especificamente em 30 de agosto,
o filme Cidade de Deus (Fernando Meirelles, BRA), tradução coletiva do
livro homônimo de Paulo Lins, foi lançado nos cinemas. O longa-
metragem conseguiu um público de mais de 3 milhões de espectadores
apenas no Brasil e chamou a atenção internacional, recebendo mais de 30
prêmios pelo mundo e sendo lançado em todos os continentes.
No ano seguinte, o professor Ismail Xavier, no prefácio do livro
Cinema de novo: um balanço da retomada, escrito pelo crítico Luiz Zanin
Oricchio, percebeu que novos modelos eram organizados, “a produção se
adensou e coleciona um bom número de títulos de impacto [...], a
comunicação com o público, no biênio 2002-03, mostra que não é delírio
pensar em novos patamares na relação do cinema com o mercado” (2003,
p. 15). A partir dessa reflexão, começou a circular o termo Pós-Retomada
para definir o cinema realizado e lançado comercialmente no Brasil depois
de 2002.
Um dos aspectos desse novo período, além da questão
fomentadora, trata-se da enformação estética cinematográfica das diversas
camadas sociais. Para além do senso comum, no qual a representação dos
marginalizados era feita apenas por aqueles que detém o discurso baseado
na articulação econômica, o cinema brasileiro deu novo fôlego às
75
abordagens em que os estamentos se confundem, se fundem, enraízam-
se.
Como na literatura, os tipos abundam. O desafio é que esses tipos
sociais se apresentem com autonomia de pensamento, que o local
discursivo deles não seja apenas marcado pela diferença, mas pela
consciência da diferença. Até mesmo porque as classes populares sabem
que esta ânsia de ventriloquismo acadêmico não efetiva nem mesmo uma
autonomia analítica. Além disso, nesse novo ponto de vista, vemos uma
profunda investigação do homem em contato com a naturalidade da
violência urbana nas grandes capitais brasileiras. Esses personagens já não
são apenas migrantes ou vítimas sociais acompanhadas com
distanciamento, pelo contrário, eles tomam a palavra e a imagem.
Esses aspectos caminharam por inúmeras narrativas fílmicas
alterando profundamente, neste novo milênio, as artes cinêmicas brasileiras.
Entre 2002 e 2008 – com o lançamento de Estômago (Marcos Jorge, BRA),
cujo livro Pólvora, Gorgonzola & Alecrim, de Lusa Silvestre, é o mote para a
tradução coletiva – novos patamares foram alcançados numa estética da
criação cinematográfica consolidada. Ao propor a tradução coletiva, do
livro ao roteiro, do roteiro ao conjunto de fazeres que compõem um filme,
temos a consolidação do cinema literário brasileiro. O longa-metragem
amplia a biografia do personagem principal, o retirante nordestino
Raimundo Nonato/Alecrim e acrescenta nuances da literatura e da
gastronomia italiana no livro.
Esse contato cultural entre os dois países tem motivações artísticas
e políticas. Estômago marcou uma coprodução igualitária entre Brasil e
Itália, conforme o próprio diretor afirma em entrevista à Revista do
Cinema Brasileiro:
Através do trabalho intenso da produtora Cláudia
da Natividade, conseguimos utilizar os
mecanismos do Acordo Bilateral de Coprodução
de Filmes assinado pela Itália e pelo Brasil na
década de 70 e que até então nunca tinha sido
utilizado plenamente. Estômago, em função
disso, [...] apresenta a característica muito
interessante de ser ao mesmo tempo brasileiro no
Brasil e italiano na Europa (JORGE, 2007).

76
Esse aspecto foi motivado pelo processo de elaboração coletiva do
roteiro cinematográfico (em coautoria com Silvestre e Cláudia
Natividade). O diretor Marcos Jorge estudou cinema na Itália. Essa
formação, numa concepção bakhtiniana, foi refratada em Estômago; por
exemplo, o personagem italiano Giovanni já aparecia nos primeiros
tratamentos do roteiro e já havia referências a cineastas italianos como
Federico Fellini e Sergio Leone: “Sendo Estômago o meu primeiro longa-
metragem, busquei colocar nele uma série de pequenas homenagens ao
cinema que amo e que me inspira” (JORGE, 2007). Dessa forma, a
negociação com a produtora Indiana (na Itália) foi possível e, por ser um
acordo igualitário, a nacionalidade foi compartilhada.
Outro fato, e o mais importante para conectar o filme com o
cinema literário brasileiro, é o diálogo entre os movimentadores da Pós-
Retomada. Além de Cidade de Deus, em 2002, outro filme traduzido da
literatura para o cinema foi O invasor (Beto Brant, 2002). O longa-
metragem também se tornou basilar para entendermos as mudanças de
paradigmas do cinema nacional. De acordo com Jorge (2007), “a escolha
do Paulo Miklos para o personagem do Etecetera foi também uma
pequena homenagem ao cinema brasileiro da Retomada”. Assim, o diretor
trouxe para o interior do filme as referências italianas e brasileiras. Isso
reflete, esteticamente, nossa ideia de cinema literário brasileiro Pós-
Retomada e fundamenta nossa leitura pelo viés da cultura italiana.
Efetivamente, o filme estreou em 11 de abril. A obra, como já
sinalizamos, trouxe novo fôlego em questão de estética fílmica, narrativa
e possibilidades de reconfiguração do literário, além de se vincular
diretamente à linhagem de Cidade de Deus e de O invasor por meio da
apresentação de questões sociais semelhantes: a violência, a cidade, o
universo masculinizado de “homens mais com nome de cadeia mesmo”
(00:12:32), como diz Alecrim a caminho da cela. Com esse panorama,
podemos perceber várias camadas do que consideramos uma estética da
criação cinematográfica no âmbito brasileiro.
Estômago, enquanto obra de tradução coletiva, passou por
inúmeros processos de criação e recepção. Nasceu de um conto específico,
mas também retoma outros textos do livro intitulado Pólvora, gorgonzola e
alecrim (2005). O conto gerou o filme; e este, por sua vez, deu origem a
dois livros, um com o roteiro e outro com as receitas. Assim, temos um

77
filme que se insere no cinema literário brasileiro ao propor uma tradução
coletiva de uma obra nacional e expande, em celuloide e outros medias, a
biografia de seu protagonista (Raimundo Nonato/ Nonato
Canivete/Alecrim).
Dentro de uma estética da criação cinematográfica que vimos
pensando a partir dos estudos do filósofo russo Mikhail Bakhtin, Estômago,
como já ressaltamos, pode ser considerado como parte do cinema literário.
O conto “Presos pelo estômago” possibilitou o filme, que se apresenta
como resposta artística enformada na tradução coletiva. Por seu turno,
essa especificidade de tradução visa analiticamente os vários leitores que
colocam em movimento sua recepção por meio da função que exercem na
produção fílmica.
Gadamer afirma que “toda tradução já é, por isso, uma
interpretação, e inclusive pode-se dizer que é a consumação da
interpretação, a qual o tradutor deixa amadurecer na palavra o que se lhe
oferece” (1999, p. 560). Nesse sentido, seja por via dos figurinos ou da
direção, o tradutor somará sua leitura ao todo acabado do filme (SILVA
JR.; GANDARA, 2013, p. 84). Essa ideia também é partilhada por Lusa
Silvestre: “Cinema é trabalho em grupo. Os atores acrescentam vida aos
personagens. [...] O montador dá um corte que simplifica. O roteirista
refaz os offs. Enfim: esporte coletivo, todo mundo jogando pra fazer gol”
(2008, p. 8). Dessa forma, podemos pensar o filme a partir de vários
pontos de vista. No nosso caso, nos atentaremos mais ao roteiro
cinematográfico.
Duas narrativas separadas pelo tempo, mas que se fundem ao final,
contam as trajetórias do retirante nordestino, com referências ao Ceará e
à Paraíba, como é corrente no país. Recém-chegado numa Curitiba que
não se deixa definir exatamente como tal, mas como uma cidade grande e
inóspita, Raimundo Nonato passa por uma série de conflitos éticos e
sociais com os habitantes da cidade, algo que nos remete ao protagonista
de Marcovaldo, escrito por Italo Calvino (2013). O personagem convive
com donos de bar e de restaurante, com prostitutas e presos. Nas quatro
situações ele “se prende”, aprende no seu jeito naif de ser e apreende no
seu jeito trickster de ser, numa dialógica da malandragem. A obra estabelece
um diálogo com a linhagem projetada por Cidade de Deus no início do Pós-
Retomada ao mostrar os conflitos de indivíduos marginalizados no meio

78
urbano, propor uma violência masculinizada em lugares que não estão na
ordem do dia e reinterpretar ordens sociais segundo o espaço de
confinamento físico e psicológico percorridos por Nonato: preso num
quartinho de bar no dia em que chega na cidade, agregado, em relação de
amizade, com um italiano dono de um restaurante para uma classe mais
alta e na cadeia.
Ao mesmo tempo em que trata de temas indigestos como uma
dose de maria louca (bebida elaborada e tomada pelos detentos), a obra
também ganha a leveza aromática que leva o público a aproximar-se
empaticamente do protagonista Alecrim. Essa ideia nos faz recordar os
cogumelos de Marcovaldo no meio do mundo cinza e miserável
(CALVINO, 2013), circunstância emblemática da obra do italiano e que
reflete sua inclinação a “uma escrita lúdica, que visava, acima de tudo,
divertir o seu leitor” (ALMEIDA FILHO, 2011, p. 285). No filme, essa
leveza-lúdica se deve ao processo de aprendizado da gastronomia iniciado
pelo personagem, pela configuração de um homem de vocabulário
econômico, mas capaz de recontar, de forma brejeira, tudo aquilo que
aprendeu com Seu Geovanni. Sua ambição é desmedida, mas, por vezes,
confusa, pois não percebe o habitus do meretrício e do restaurante granfino.
Ao passo que o da cadeia ele assimila, e atua bem entre pares – pela ação,
pela argumentação e por perceber que o “ser humano fraqueja, amolece”
(00:38:54).
No conto, as questões gastronômicas, além de temperarem a
violência, a tornam mais digerível, como nesta passagem em que
Raimundo Nonato (cujo nome, riobaldianamente, sofre metamorfoses)
diz aos companheiros de cela que sabe cozinhar:
– Esta comida está uma merda.
– Quer que eu chame o garçom pra você
reclamar?
Dois dos detentos de beliche conversam.

– Podia trazer de volta aquele outro lá que foi pro


de Taubaté; lembra aquele de cabelo ruim que
cozinhava pra nós?

– Aquele já Elvis; foi pro saco.

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– Um filho da puta.
– Mas cozinhava.
– Sabe que se colocar um alecrim e um pouco de
queijo ralado, melhora?
Os dois se voltaram pro Nonato.
– Você sabe como faz pra cozinhar?
– Sei. Trabalhava com isso.
(SILVESTRE, 2005, p. 23)
No diálogo, ficamos sabendo que o ex-detento cozinheiro, que
fora transferido para o presídio de Taubaté, morreu (“já Elvis, foi pro
saco”), o que desperta a curiosidade e um certo instinto de sobrevivência
de Nonato, até então silenciado, ocupando a sarjeta da cela e trabalhando
como faxineiro. Ele interpela a conversa de forma quase sussurrada e dá
dicas para melhorar a comida. Essa atitude garante ao personagem uma
ascensão entre os presos e permite que ele tenha a confiança de Bujiú, o
líder da cela. Pela palavra, como Riobaldo diante de Zé Bebelo, Alecrim
torna-se uma espécie de bandido em ascensão. Se o jaguncismo e os
sertões apresentam menos presença no literário, os “bandidos” continuam
instigando novas visadas da violência brasileira: presos pelo estômago,
“invasores” e moradores de cidades de deus invadem páginas e telas.
A inserção do lado culinário e as piadas suavizam a morte brutal
do preso de “cabelo ruim” e a condição marginal dos personagens exilados
do convívio social. Nesse mesmo viés, o filme nos permite pensar sobre a
violência ressentida no cinema brasileiro, a qual não é exposta através do
sangue, mas pelas ações sutis que provocam o mesmo impacto (XAVIER,
2006). Na tradução coletiva, a comida envelhecida e as larvas no prato,
elementos criados pela diretora de arte Jussara Perussolo, são balizadas
pela reação dos detentos depois da revelação dos saberes gastronômicos:
a câmera capta em close o rosto estupefato de cada personagem, como se
ter um cozinheiro fosse uma redenção possível dentro de uma cadeia:

80
Figura 1: A reação dos detentos ao saberem que Alecrim sabe cozinhar em
Estômago (00:29:37)

No longa-metragem, por ampliar o conto, temos o acréscimo das


relações corporais, de pessoas que comem e fazem sexo, o que possibilita
uma viagem pela prática culinária em ambientes que geram uma espécie
de aproximação das classes pela boca. Isso está disseminado no livro
completo, como no conto “Para comer”:
Veja bem: vamos supor que você goste de
homem. Aí vai na casa de um rapaz bem posto na
vida, cheiroso, e tromba com um fideuá (paella a
base de macarrão em vez de arroz) na mesa. Se a
pessoa não tem equilíbrio, se não sabe o que quer
da vida, pode apostar: ela tira a roupa depois da
segunda garfada e se entrega de corpo e fluidos
para ele ali mesmo. Por cima dos caramujos e dos
camarões (SILVESTRE, 2005, p. 11, grifo
nosso).
Essa passagem nos lembra o possível triângulo amoroso entre
Nonato (João Miguel), então aprendiz de cozinheiro; Íria (Fabíula
Nascimento), a prostituta gulosa; e Giovanni (Carlo Briani), dono do
Restaurante Boccaccio. Nesse espaço, conforme o patrão, são oferecidos
“cozinha internacional, ambiente familiar” (00:34:13). Nonato, ainda
aprendiz, reduz tudo a “comida familiar” (00:52:37). Isso reflete como ele
interpreta o mundo e tenta assimilar, dialogicamente, a fala do outro à sua.
São justamente o envolvimento com os dois personagens e com o
ambiente que desencadeiam os acontecimentos que levam Nonato à

81
prisão e a se tornar Alecrim. Do livro ao roteiro, do roteiro ao filme, em
tradução coletiva:
Roteiro cinematográfico
A câmera passeia pelo flanco e pelas costas de Íria
até chegar em seu rosto. Na beira da cama, Íria
está... Comendo. [...] A câmera continua o
movimento e desce em direção ao colchão, onde
encontra uma marmita aberta, com dentro uma
boa porção de macarrão, preparado com molho
à putanesca. Íria pega um bocado de macarrão e
leva à boca (JORGE, SILVESTRE E
NATIVIDADE, 2008, p. 161/2, grifo nosso).

Figura 2: Nonato e Íria (01:03:23)

Roteiro cinematográfico
INT. SALÃO DO RESTAURANTE – NOITE
Giovanni chega na mesa com a sobremesa e Íria
ataca o prato. Giovanni senta-se ao lado dela e,
enquanto esta come, tenta dar-lhe um beijo. Íria
acaba a sobremesa, apanha um guardanapo, limpa
rapidamente a boca, e beija Giovanni na boca,

82
longa e sensualmente (JORGE, SILVESTRE E
NATIVIDADE, 2008, p. 240, grifo nosso).

Figura 3: Íria e Giovanni (01:39:18)

O texto literário carrega a hipótese de que a comida acelera a


excitação e, com isso, o gozo. Comida e sexo. Comida é sexo (para
ficarmos com uma máxima popular). Íria – a personagem que “serve” os
homens, “menos beijar na boca porcausa que num é ético” (00:54:54) –
anda entre os becos noturnos de Curitiba para ganhar a vida. O tipo físico
dela lembra as mulheres eróticas em Casanova de Fellini (Il Casanova di
Federico Fellini, ITA, 1976) e, mais ainda, a prostituta Saraghina de 8½
(1963). Giovanni e Nonato são os dois extremos sociais com quem ela
tem relações sexuais próximas a um envolvimento mais profundo. No
entanto, a comida que os dois preparam e o status social deles delimitam
os contatos e os interesses dela.
Nonato é pobre, mas é auxiliar de restaurante e cozinha bem. A
coxinha de frango é o primeiro quitute feito por ele que Íria prova: “Porra!
Tá bom pra caralho” (00:22:36), diz ela, literalmente, de boca cheia. A
partir desse acontecimento, a comida vira barganha e complemento para
o sexo entre os dois. Isso fica claro na figura 2; enquanto ele faz sexo com
ela, ela “faz sexo” com um macarrão a puttanesca. Voltando à máxima da
linguagem popular, enquanto ele a come, ela come a comida. No roteiro,
83
temos certo espanto da câmera, por isso o acréscimo das reticências antes
do termo comendo. Na imagem, temos um jogo sincrônico entre as mãos
dos personagens e os “alimentos”, frutos de prazer para cada um deles.
Ele segura o ombro dela, ela segura a borda do prato (no roteiro é marmita;
no filme há certo toque glamouroso) com o macarrão que é a “cara dela”.
Essa seria uma relação bem marcada pelos interesses de cada um (sexo e
boa comida), porém Nonato se apaixona por Íria, que, por sua vez,
trabalha e entra neste jogo de ser não só comida, mas amada.
Íria é gulosa e ambiciosa. Não queria ficar com a “marmita”, seu
desejo era ser servida no restaurante granfino, nem que seja enquanto ele
estiver fechado, longe dos olhares das pessoas que frequentavam o
estabelecimento cujo letreiro anunciava um “ambiente familiar”. Ela se
envolve com Giovanni, o patrão. A figura 3 traz a mesma sincronia das
mãos dos personagens. Ele beija e acaricia o ombro dela, que, com o garfo,
experimenta a sobremesa Anita e Garibaldi (versão do doce Romeu e
Julieta com gorgonzola no lugar do queijo minas, para ficar mais
apresentável e caro no cardápio). Novamente, temos o corpo e a comida
como elementos que conduzem ao prazer erótico. Entretanto, diferente
da relação que Íria tem com Nonato, Giovanni ganha a sobremesa da
moça, o beijo na boca, descrito no roteiro. Esse é o estopim que libera o
lado mais obscuro de Nonato, então no limiar de se tornar Alecrim.
O trecho do conto e as duas passagens do filme evidenciam que a
relação corporal e a alimentação nunca estão ausentes. Existe sempre uma
confraternização prazerosa em todos os âmbitos que envolvem o fazer e
o comer. Além da ação, o efeito é gerado pela música (composta por
Giovanni Venosta), pelo ambiente criado por Perussolo, pelo colorido dos
alimentos e até pela fumacinha que sai do prato (fotografados por Toca
Seabra), dando “água na boca” – dos personagens e do público. Essa
fumacinha, como nos desenhos animados, é uma aura de sedução e de
contemplação de cada prato. Ainda na esteira de Marcovaldo, Nonato
abriga muito de personagens de histórias em quadrinhos e desenhos
animados. Seus trejeitos corporais – tiques, tropeços, tremidas, ao longo
do filme – o aproximam de Chaplin e Sancho Pança, pensando naquilo
que Calvino aponta sobre Marcovaldo: “é a derradeira encarnação de uma
série de cândidos heróis joão-ninguém, ao estilo de Charlie Chaplin”
(2013, p. 138). Ao mesmo tempo, Nonato lembra o Pica-Pau (Woody

84
Woodpeecker) criado por Ben Hardaway, Walter Lantz e Alex Lovy em
1940. Mesmo na miséria não perde o bom humor, traz certas doses de
“maldade”, quer sempre levar vantagem, “nunca ficar por baixo” –
ressalte-se sua tatuagem de “pássaro louco” mostrada na cena do grande
banquete. Assim, temos um personagem dialógico em sua composição.
Ao mesmo tempo agregando o talento culinário, multifaces que
reverberam no ato de cozinhar para o outro e uma capacidade discursiva
de argumentar na composição das cenas. Nonato é autônomo nos modos
de fazer e nos modos de discursar.
O aspecto estético gerado pela comida e pelo ato de cozinhá-la no
filme se desdobrou em dois medias próprios da era da reprodutibilidade
técnica preconizada por Walter Benjamin (2012). O primeiro foi a versão
em DVD com as receitas em easter egg. Sempre que Nonato/Alecrim ou
Giovanni cozinham aparece um ícone que indica a receita integral da
iguaria – desde pratos requintados da ceia final à famosa coxinha do nosso
dia a dia. Esta, por sua vez, no segundo media, se tornou uma marca do
personagem e foi estampada na capa do livro de receitas do filme. O
interessante desse livro é que o Alecrim cinematográfico retorna enquanto
voz-escrita-narrativa:
Olhe, a idéia foi a seguinte: juntaram o povo desse
negócio de blog – blog de comida, né – e pediram
pra eles assistirem o filme. Eles assistiram,
gostaram, muitos elogios (vou até fazer outro
dicionário), e daí depois eles do blog inventaram
receitas inspiradas no filme, percebe? Filme de
comida dando ideia pra fazer uns pratos de
comida. Então. Daí que o povo dos blogs criou,
por exemplo, o “Filé do Etecétera”, a “Coxinha
da Íria” (devia de ser coxão, eita saudade), e um monte
de outros pratos. Os melhores, a gente pôs aqui,
nesse livro. Depois, se der certo, se as pessoas
gostarem e disserem “gostei, viu?”,daí capaz da gente
publicar em página escrita mesmo, não sabe? Mas por
enquanto, é aqui. É gostoso. Vocês vão comer de
limpar o prato. E melhor ainda: é tudo receita que
dá certo. Não é igual aquelas receitas que a gente

85
vê na televisão, que fica linda na tela, mas depois
quando a gente faz nas panelas, fica pior que dançar
com irmã em formatura. Ave Maria. (GUERRA et al,
2008, p. 5, grifos nossos)
As partes grifadas equivalem às marcas prosódicas de Alecrim, no
filme, que foram estilizadas pelo ator João Miguel. Além disso, também
temos índices da narrativa fílmica, por exemplo: “devia de ser coxão, eita
saudade”; “Ave Maria”. Dessa maneira, Alecrim surge no conto, tem sua
biografia expandida no filme e retorna à palavra já revestida de imagem,
sonoridade cinematográfica, blog. Temos um “universo paralelo” no
movimento dialógico da obra, pois o filme e as receitas são interpretação no
sentido proposto por Bakhtin: “o correlacionamento de dado texto com
outros textos. O comentário. A índole dialógica desse correlacionamento”
(BAKHTIN, 2003, p. 400). Neste caso, o cinema literário se vê expandido.
A voz do personagem, na vocalidade do ator, na captação da sonoplasta
Maricetta Lombardo, na ação dos outros atores-personagens diante desta
voz de cozinheiro o leva a outros horizontes – no âmbito de uma estética
da criação cinematográfica e/ou numa espécie de respondibilidade, para
ficarmos no plano aberto de uma estética da criação verbal.
É interessante perceber que, além de “Pra comer”, o filme
estabelece relação com outros contos de Lusa Silvestre. Trazemos a
referência ao futebol (que o próprio autor já usou ao falar da coletividade
fílmica). No conto “Areias”, o jogo se dá entre o time da cidade-título
contra o da fazenda de Zé Magalhães – em um momento de tensão social
e de campanha política. No filme, os presos formam times e a figura de
Bujiú ganha destaque numa espécie de “dono da bola”, por ser o dono da
cadeia (00:48:45). Durante os jogos, há trocas de mercadorias
contrabandeadas entre os “jogadores” e os carcereiros. O interessante é
que, diferente dos pedidos habituais, Alecrim pede ingredientes
gastronômicos para cozinhar para seus colegas de cela.
No pátio da penitenciária, Nonato e Boquenga
assistem a uma partida de futebol entre os
detentos. Bujiú lidera um dos times e reclama
muito durante o jogo. Vagnão carcereiro chega, e
aproxima-se de Nonato.

86
VAGNÃO CARCEREIRO: – Alecrim!!! Vê aí se
é isso que você queria.
Vagnão coloca um pacote no colo do Nonato.
Nonato abre e olha o conteúdo: é um pedaço de
queijo parmesão. Nonato observa com atenção,
cheira mais de uma vez o queijo, dá uma bela
risada e sentencia:
NONATO: – É isso mesmo! Maravilha!
(JORGE, SILVESTRE E NATIVIDADE, 2008,
p. 182/3)
Tanto no conto quanto no filme, o jogo de futebol é apenas um
meio para que outras relações sejam desenvolvidas. Política e cultura
popular em um, comida e política no outro. Os jogos se multiplicam.
Todos são adversários, todos querem chegar ao gol mas, ao invés da
coletividade, como no fazer do filme, tudo é individualista e
individualizado.
Na obra de Jorge, Alecrim usa seu talento culinário inicialmente
para aproximar-se dos detentos e evitar futuros atos de violência. À
medida em que ele consegue uma ascensão na cela, muito bem ilustrada
com a posição dos beliches, seus objetivos são revistos e surge um desejo
revelado somente no final antropofágico. Na sequência do banquete de
recepção a Etecetera na “cozinha principal da prisão”, Alecrim mata o
chefe Bujiú envenenado e toma a liderança da cela.
Bakhtin reflete que as imagens de banquete são “profundamente
conscientes, intencionais, filosóficas, ricas em matizes e ligações vivas com
todo o contexto que as envolve” (2002, p. 246-247). Nesse sentido, o
banquete final do filme (Fig. 4), onde estão reunidos Bujiú e Etecetera
(dois dos “bandidos” mais perigosos do lugar), marca o momento em que
são revelados o crime que levou Nonato para a prisão e o plano dele para
se tornar o novo líder da cela para ficar no beliche mais alto. Ou seja, não
é apenas uma cena onde todos compartilham a mesma refeição, é também
onde as tramas da narrativa se encontram intencional e conscientemente.
A única diferença é que no banquete renascentista, estudado por Bakhtin
na obra de François Rabelais, a filosofia é sempre plena de abundância e
votos de ressurreição. Nos banquetes brasileiros, as mortes são iminentes,

87
a violência limita uma expressão positiva da ressurreição, mas as imagens
de abundância permanecem:

Figura 4: Bujiú (à esquerda) pronto para cortar o leitão assado para o Banquete
de Etecetera (01:41:49)

Embora ressalte-se a narrativa de nascimento dos nonatos que


recebem o nome do santo porque tiveram parto dificultoso, com a morte
da mãe durante o parto, as paródias da medicina ao longo do filme revelam
mais complexidade do que a aparente e violenta relação entre personagens
presos pela miséria. Os personagens, no banquete final, se posicionam
como ideólogos enquanto comem. Alecrim ascende com os espetáculos
das comidas (tão bem articulado pelo diretor Marcos Jorge e o diretor de
fotografia Toca Seabra).Já que aludimos ao banquete, temos em vista que,
no conto, ele acontece na cela entre os presos; por sua vez, no filme, eles
ganham grandes proporções. O patrão Giovanni é dono do Boccaccio. Essa
referência literária assinala, de um lado, a parte italiana da obra, de outro,
o diálogo com a obra Decameron (1348). Esse comentário, para
continuarmos com Bakhtin, revela mais um viés do cinema literário
brasileiro no universo dialógico do filme e não fica restrito apenas ao nome
do estabelecimento, mas se amplia ao fazer convergir sexo e gastronomia,
tópicos muito discutidos na aludida obra de Giovanni Boccaccio, na qual
“o ‘baixo material e corporal renovador tem um papel especial’”
(BAKHTIN, 2002, p. 238).
88
Temporalmente, o universo de Decameron e Estômago propõe a
espera. No primeiro, temos 100 histórias contadas por dez pessoas
durante dez dias “na época em que a peste causava mortandade”
(BOCACCIO, 1996, p.13); nesse tempo, se espera a cura dos povos e do
mundo numa obra que é “esmaltada por reservas adocicadas caras a
Boccaccio” (BAKHTIN, 2002, p. 237). No segundo, temos o tempo da
digestão de uma história que rompe a ordem cronológica. Na cadeia,
Nonato digere e paga pelo erro que cometeu. Lançamos essa ideia de o
filme se passar num “estômago-metragem” devido ao fato de ele se iniciar
na boca (fig. 5) e terminar na bunda do personagem (Fig. 6),
demonstrando que “as elucidações filosófico-morais brotam de palavras e
histórias mais obscenas” (AUBERBACH, 2013, p. 243).

Figura 5: A boca de Nonato/Alecrim Figura 6: A bunda de Nonato/Alecrim


(00:01:30) (01:49:30)

Os ambientes habitados por Nonato, indicados por uma espécie


de mestre cozinheiro (Zulmiro, o primeiro patrão, indica o quartinho e a
lanchonete; Giovanni indica o restaurante e, de forma sutil, a cadeia),
fazem deste filme um tipo de cinema de formação no qual acompanhamos
o aprendiz e seus mestres. Mas, como é próprio do cinema Pós-Retomada,
qualquer índice de remissão converge, explosivamente, para situações
muito violentas – vide o episódio em que Íria revela o nome do macarrão
à puttanesca; e a farofa de formiga que leva Bujiú a dar uma surra em
89
Nonato. As fronteiras de todas as situações e ações estão sempre cercadas
por índices de requinte e beleza (índice dos banquetes e do canibalismo de
Nonato), violência e crueldade (índices do cinema da retomada – que
ganha um novo capítulo latinizado com a contraditória série da Netflix,
Narcos).
A partir das questões e dos fatos analisados, apreendemos que o
contexto de produção que possibilitou a tradução coletiva de Estômago
contribuiu para a virada de página do cinema brasileiro e para o início de
um novo período genericamente nomeado Pós-Retomada. Essa nova
etapa, apesar de intimamente ligada aos fatores políticos, ultrapassa essa
questão e revela uma forma inovadora do tratamento da linguagem fílmica
no país, emancipando nosso cinema e efetivando a liberdade criativa
dialógica e coletivamente entre seus tradutores.
No horizonte da estética da criação cinematográfica, o conto, o
filme, o livro de receita, o livro com o roteiro e o DVD (com receitas
interativas) – e até mesmo as obras literárias e cinematográficas citadas em
Estômago – confirmam o inacabamento no cinema literário brasileiro. O
diretor, os roteiristas, os atores e os outros artistas que conjugaram suas
leituras demonstram o ativismo de leitores que expandiram o universo
gastronômico proposto por Lusa Silvestre e acrescentaram novos
temperos às artes cinêmicas brasileiras da Pós-Retomada.

90
REFERÊNCIAS

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DOCUMENTOS ELETRÔNICOS

ANCINE. Observatório do Cinema e do Audiovisual – OCA. Disponível em:


http://oca.ancine.gov.br/. Acesso em: 07/04/2015.
JORGE, Marcos. Entrevista à Revista do Cinema Brasilero. Disponível
em: http://www.estomagoofilme.com.br/direcao3-3.htm. Acesso em:
05/04/2015.
GUERRA, Alessander et al. Livro de receitas do filme Estômago. São Paulo,
2008. Disponível em:
http://www.estomagoofilme.com.br/download/livro_receitas.pdf.
Acesso em: 30/04/2015.

FILMES CITADOS

ESTÔMAGO. Direção: Marcos Jorge. Brasil, 2007. 100 minutos.


CASANOVA DE FELLINI (IL CASANOVA DI FEDERICO
FELLINI). Direção: Federico Fellini. Itália, 1976. 155 minutos.
8½. Direção: Federico Fellini. Itália, 1963. 138 minutos.

92
Identidad y cultura en el occidente de México:
una aproximación metafórica a las fronteras del
sujeto desde los apodos en Tonila, Jalisco
Gloria Ignacia Vergara Mendoza
José Manuel González Freire
Lucila Gutiérrez Santana

En los límites del nombre, el apodo individual y colectivo cumple


una función básica de la oralidad en tanto muestra rasgos identitarios del
sujeto, pues en este “ser y no ser, o ser como” –parafraseando al discurso
de la construcción metafórica‒, el sujeto entreteje sus historias de vida con
el nombre que da y que recibe, en el juego centrífugo y centrípeto de la
memoria colectiva. Porque la identidad es una condición múltiple, que se
construye de elementos heterogéneos distintos y diversos, y que se activa
a partir de la memoria, en la plataforma híbrida de la cultura.
En el presente artículo, nos proponemos analizar los mecanismos
metafóricos de los apodos que inciden en la construcción de la identidad
cultural, considerando que la cultura se da en esa frontera natural para el
asidero del sujeto, como una puesta en escena que, al decir de Néstor
García Canclini, se manifiesta en la ritualidad cotidiana y no en los rasgos
fijos del sujeto o de la comunidad.47
En nuestra argumentación partimos de un corpus recopilado en
Tonila, Jalisco (México), considerando al apodo como núcleo amplificador
de sentido que se expande más allá del nombre en su plataforma
lingüística, de las alusiones contextuales que hacen evidentes y de los
estados de ánimo que provoca, como dicen Lakoff y Jhonsson (1980),
cuando hablan de la metáfora ontológica. Nosotros vivimos de metáforas;
es decir estamos en continua construcción de direcciones de sentido y de
referencias que se despliegan para nombrarnos y nombrar a los otros. En
ese nombrar cotidiano, surgen las conceptualizaciones de la metáfora que
ayudan a la comprensión del sujeto, según Lakoff. Esta visión se relaciona
con la propuesta de “metáfora viva” de Paul Ricoeur; pero mientras
Lakoff y Jhonsson afirman que la intencionalidad artística reduce el

47
Ver la discusión sobre identidad en Vergara (2004).
93
espectro de la metáfora con relación a la metáfora cotidiana, Ricoeur ‒
anclado en el terreno del arte y de la intencionalidad como concepto que
deviene del pensamiento fenomenológico‒ retoma el principio aristotélico
de que la metáfora pone las cosas ante los ojos; es decir, revela, hace ver,
a partir de su capacidad sintética y relacional.
Según Ricoeur, la metáfora conserva su raíz literal. Gracias a esto
ocurre el sentido amplificador en el arte, pues la contextualización se
convierte en detonador, al momento de hacer la relación entre lo que es y
lo que no es. Así vamos concretizando, viviendo, experimentando en el
efecto mismo de las redes metafóricas que establece la textualidad de la
comprensión, más amplia y “completa” que el texto expresado; aunque
esto ocurre no de manera definitiva, porque la textualidad de la
comprensión está en constante cambio, haciéndose y “asiéndose” al texto
base48. Es decir, el principio metafórico no se reduce en este sentido; es
más bien un patrón de relaciones que se dan a partir de una palabra núcleo
para expandirse y crear incendios de sentido.
Por otro lado, al estudiar los apodos se hace patente que la riqueza
de la metáfora oral radica no sólo en los destilados juegos verbales de la
glosalia o los trabalenguas; sino que en estos textos-palabras, llamados
apodos, en que se finca el nombre, queda una historia latente que, cuando
se hace visible en la textualidad de la comprensión, expande el campo
identitario del sujeto y de su grupo o comunidad.
Revisando la historia de la gramática, podríamos partir del origen
de los apodos y sobrenombres, como el “nombre que suele darse a una
persona, en sustitución del propio, normalmente tomado de sus
peculiaridades físicas o de alguna otra circunstancia” (REAL, 2014). Con
base en lo anterior, podemos señalar la Onomástica (rama de la Lingüística
destinada al estudio de los nombres propios) como una disciplina poco
abordada en México; existen sólo algunos trabajos acerca de los apodos,
los cuales encierran tradiciones, tabúes e historias (TIBÓN, 1986).
En este terreno, en el que apenas iniciamos nuestro estudio, es
posible ver que lo arquetípico del sujeto sobresale en un apodo, de tal
suerte que llega a suplantar al nombre y su condición para enfatizar la

48El concepto de textualidad de la comprensión que ahora acuñamos, se puede poner en


diálogo a partir de la idea de concretización que maneja Roman Ingarden y del
seguimiento que hizo de ella el teórico de la recepción Wolfgang Iser.
94
historia de vida pues, como señala Emma Sopeña (2002), los apodos
“suponen una denominación expresiva, espontánea que puede describir a
un miembro de la colectividad o a ésta en su conjunto, actualizando alguna
de sus características” a través del símil, la metáfora o la metonimia. Según
la investigadora de la Universidad de Valencia, que sigue la visión de
Lakoff, los apodos “conllevan una serie de valores afectivos, estéticos,
morales que se atribuyen al destinatario”, muchas veces degradados en la
expresión popular. Esta degradación va ligada a la intensidad de la
expresión; muestra el sarcasmo y la ironía como detonadores propios de
las relaciones metafóricas que se establecen en el discurso de la
narratividad cotidiana. Podemos decir que cuando la metáfora se activa en
esa red de relaciones que se abre a partir de la ambigüedad, en el esquema
profundo de la capacidad lingüística de los sujetos, provoca nuevas
direcciones de significación y sentido; entonces es posible hablar de
metáfora viva, en términos ricoeurianos.
Para la discusión de nuestro estudio, también es importante traer
a cuento a Stephen Ullman que, a propósito de las metáforas animales (o
animalizaciones), señala lo siguiente:
otro extenso grupo de imágenes animales se
transfiere a la esfera humana, en donde con
frecuencia adquieren connotaciones
humorísticas, irónicas, peyorativas o incluso
grotescas. Un ser humano puede ser comparado
con una inagotable variedad de animales: un
perro, un gato, un cerdo, un burro, un ratón, una rata,
un ganso, un león, un chacal, etcétera. (ULLMAN,
1986, p. 243)
En los apodos, tal y como se utilizan, se recurre con frecuencia a
la transferencia de características animales a los humanos, ya sea de forma
parcial o total. Es decir, se le puede llamar rata a un ladrón, haciendo
mención a ciertos comportamientos del roedor; puerco conlleva una carga
peyorativa, retomando más de un comportamiento de los cerdos en el
actuar humano; y, por otro lado, se le puede llamar gato a alguna persona
sólo porque tenga ojos con características felinas.

95
ORALIDAD, IDENTIDAD CULTURAL Y CULTURA
IDENTITARIA

Los apodos constituyen una práctica de la tradición oral que rebasa


estratos y condiciones sociales y que nos hace ver la existencia de una
cultura identitaria, es decir, de una práctica como búsqueda del yo frente
a los otros. Hay quienes afirman que los apodos son un fenómeno propio
de los pueblos pequeños en donde todos se conocen,pues los motes,
apodos o sobrenombres son apelativos que aparecen con frecuencia en el
mundo rural. Sin embargo, este fenómeno se da tanto en comunidades
pequeñas, como en los pueblos y ciudades; surge en todas las culturas del
mundo, con distintos grados de utilización.
En las grandes ciudades, existen sujetos reconocidos por sus
apodos en el barrio, la colonia o el espacio laboral en que se desenvuelven.
Hay incluso personajes que se vuelven mediáticos: los boxeadores,
luchadores, toreros, futbolistas o delincuentes, buscados y conocidos más
allá de sus fronteras. Adentrados en la convivencia diaria, emergen
personajes de la calle o la vecindad, que hacen ver el apodo como
articulación de un lenguaje rico y arduo, pues en la vida cotidiana de los
hablantes, los apodos resultan estrategias claras para el reconocimiento de
los miembros de esa comunidad.
Eso ocurre porque, como enuncia Carrasco (2009): “el apodo nace
en el fondo de una necesidad de comunicarnos, de contactar con el otro,
de referirnos al otro” (p. 1), pero también “el nacimiento de un apodo o
mote es fruto del ingenio en la mayoría de ocasiones y es por ello [...] que
son una buena muestra de la idiosincrasia de pueblo, de cualquier pueblo”
(p. 5). Es un arte complejo el saber utilizar con acierto estos apelativos
ingeniosos, cariñosos, divertidos, ofensivos, a veces, y con mala intención.
Los apodos se han utilizado a través de la historia por diferentes
motivos.De esta suerte, podemos decir que los apodos, por un lado,
constituyen la práctica del nombrar con la que se identifica al sujeto y, por
otro, los apodos al nombrar revelan rasgos identitarios y de la cosmovisión
del sujeto y de su comunidad. Aunque, como enunciamos antes, estos
rasgos están siempre en movimiento.
Las variantes también intervienen en la designación de los apodos,
pues dependiendo del país y la forma en que se llame a ciertos animales u

96
objetos, es posible que se nombre de manera diferente a una persona, por
un nombre desconocido o poco utilizado en otros países; tomemos el
ejemplo del tlacuache, nombre proveniente del nahúatl que se da en gran
parte de México a las zarigüeyas.

TIPOLOGÍA DE LOS APODOS

Entre los estudios revisados, encontramos el acercamiento a los


apodos desde un enfoque lingüístico-estructural, que analiza los niveles
fónico, morfosintáctico, semántico y pragmático que nos sirve para
dialogar con el corpus que hemos construido en nuestro abordaje. De
hecho combinamos este esquema de análisis con la propuesta
ingardeniana de los estratos de la obra49, en este caso, de la textualidad o
los estratos del lenguaje en los actos performativos emanados de los
apodos.
En este punto, encontramos que en los apodos recopilados el nivel
fónico no destaca, pero sí hay una materia fónica que aporta elementos
significativos. Es decir, la mayoría de los apodos recogidos tienen que ver
con oficios, nombres de objetos, animales o plantas que no sugieren juegos
de sonidos, ni se edifican sobre la onomatopeya u otras construcciones
sonoras especiales, pero destacan sonoramente, como: chilito, chundes,
pichicuate, chocutos, chirimoya, chachalaca, cucaracho, pecherudos, picha, guariche,
buchonas, chuladas, chocho, chueca. Es importante señalar que la mayoría de
éstos se constituyen como nombres a partir de verbos, adjetivos, adverbios
u otros nombres. La sonoridad de los apodos mencionados arriba, en los
cuales destaca el uso de una africada /tʃ/ chilito, chundes, buchonas, picha,
etcétera, se presenta al hacer uso de fonemas sonoros, tales como las
vocales, las nasales y algunas oclusivas.
La construcción morfosintáctica es generalmente simple. Algunos

49
Roman Ingarden afirma que la obra de arte literaria posee una estructura
esquemática y multiestratificada que contiene por lo menos 4 estratos: materia fónica,
unidades de sentido, objetos representados y aspectos esquematizados. Esta estructura
permite que la obra sea intersubjetiva, es decir que múltiples sujetos puedan acceder
a su comprehensióna través del lenguaje. En general, podríamos ampliar esta idea a
las diversas textualidades que tienen que ver con la palabra, en donde de hecho es
posible contemplar las textualidades emergentes de los apodos.
97
apodos tienen un complemento, como ocurre con: La tortilla con chile, la
changa de circo, las vacas de lidia, pico de gallina. Otros, se conforman como
construcciones nominales de artículo + nombre + adjetivo: Los ricos pobres,
el ángel dormido, el bule remendado, la campana mayor, el puerco ensebado, el gato
cursiento, el gallo cachetón o el perrito traidor. Pero la riqueza de estos apodos
emerge cuando se conoce el motivo por el que se nombra a los sujetos y
la historia de vida que se va configurando a su alrededor.
En los apodos estudiados aparece también la estructura de nombre
+ adjetivo o hipocorístico + adjetivo que guardan una analogía con la
relación nombre + apellido y que con ello acentúan la ironía o el sarcasmo
a través de la caracterización negativa del sujeto: Juana mocos o Nacho pedotes.
Otra construcción sintáctica excepcional que nos encontramos es la del
apodo Te gusta, en donde la acción acentuada en la segunda persona se
convierte en nombre como apodo. O el caso de un apodo para dos
personas inseparables: Juan de olor y Juan de amor.
Pero si vamos más allá de las estructuras y de lo fónico, podemos
encontrar una mayor riqueza en los campos semánticos que ponen de
manifiesto la comida, la flora y la fauna, que se convierten en la base
fundamental para nombrar al otro. Por ahora, en este punto, delimitamos
nuestro estudio a los apodos relacionados con la comida y los animales.
Veamos algunos aspectos de ellos en la tabla que se muestra a
continuación.

Apodos de comida Descripción Justificación

1. El chilito No se sabe.

2. La tortilla con chile Era una señora Por gritona y peleonera.


delgadita muy Se destaca la complexión y actividad, pero
trabajadora. el apodo enfatiza sobre todo el hecho de
ser escandalosa.

3. Las morisquetas Altas y descoloridas. Destaca la estatura y color.

4. La cecina Flaca. Por flaca.


Destaca la complexión.

5. Los cacahuates Blancos y larguchos. Hijos de la Cacahuata.


Además de destacar estatura y color, marca
la heredad del nombre. Se convierte en un
apodo familiar.
98
6. El juguito Bebía jugo de Porque nomás estaba tome y tome juguito
naranja con alcohol. con alcohol.
Enfatiza el vicio.

7. La cuajada Era blanca y gorda. Por blanca y gorda. La hermana del padre.
Destaca estatura y color, pero además la
Requesón hecho de condición de ser hermana del sacerdote del
los residuos de la pueblo.
leche en el suero
después de hecho
queso, generalmente
agregando algo de
leche (REAL).

En México es la
leche que se cuaja
antes de hacer el
queso, parecida a la
panela, no al
requesón.

8.El cebollo Tenía la cabeza Porque tenía la cabeza como cebolla.


blanca y larga como Destaca edad y rasgos físicos.
cebolla.

9.El repollo Era un músico gordo Era gordo y nalgón.


y nalgón. Enfatiza la complexión.

10. Los muéganos Son unos dulces. Manejaba el cine uno de los hermanos y allí
estaban diario vendiendo dulces que se
llaman muéganos.
Enfatizan acción y oficio.

Tabla 1 - Apodos relacionados con la comida

En los 10 apodos relacionados con la comida encontramos


múltiples sinestesias que se mezclan con la metonimia en las redes
metafóricas. Aparecen individuos que pueden ser “saboreados” por sus
rasgos físicos, proyectados muchas veces como defectos. Esto hace más
notoria la traslación del sentido a partir de una estructura simple y la
relación con lo que se nombra del sujeto; por ejemplo, la cecina. Cuando
reparamos en que se identifica a una mujer como la carne de cecina (carne
seca) por flaca, entonces se produce una reconversión del sentido de las
99
dos partes implicadas. Es decir, confirmamos que sí, efectivamente la
cecina es trasladada como característica de “delgadez”; entonces la imagen
de flacura colorea de sentido a la carne, cuando pensamos en lo comestible
y lo sabrosa que puede estar. Pero esta cualidad de sabrosura no se regresa
a la mujer identificada, por lo menos no en los patrones culturales de lo
que pueda ser una mujer “sabrosa” para los mexicanos. Al contrario,
digamos que la cualidad positiva de la cecina no se transmite, sino que se
convierte en un rasgo negativo: la mujer es tan flaca y seca como la cecina
y su imagen se vuelve más bien raquítica. Igual ocurre con el juguito que
manifiesta una carga especial del gusto, pero que termina dejando ver la
adicción al juguito con alcohol, por parte del sujeto que se nombra, o la
morisqueta que traslada la falta de sabor al color de las mujeres que
identifica. Así, en algunos casos encontramos metáforas de imagen, como
en la cecina y distintos tipos de metonimias al mencionar al sujeto por la
característica específica de alguno de sus vicios o defectos.
En estos apodos podemos ver que los elementos básicos de la
dieta mexicana (tortilla, chile, arroz, frijol, carne, repollo, cebolla) emergen
de la narratividad, del nombrarse, como parte del imaginario, para
manifestar actitudes y rasgos físicos de los sujetos representados: gordos,
flacos, blancos, morenos y gritones, escandalosos, con adicciones.
Encontramos también metáforas de imagen, pues la relación que se da
entre la delgadez y una tortilla enrollada (con chile, para destacar su
carácter) y la gordura con un repollo, es justamente una vinculación
semántica entre una imagen y otra, tenemos una imagen en el dominio
origen que se proyecta al dominio meta. Otros apodos de Tonila que
nombran defectos físicos o de actitud establecen una relación en su
mayoría con animales, en segundo lugar con plantas y por último con
objetos o incluso, con cuestiones escatológicas.

Apodos de animales Descripción Justificación


1. La zorra Era un zapatero.Alto prieto, con Porque tenía la
la cabeza media azorrillada. cabeza como la cola
de la zorra.
Este apodo enfatiza
sobre todo la edad a
partir de la
apariencia física.

100
2. El tecolote Tiene los ojos oscuros y está Por feo y ojos de
cejudo. tecolote.
Destaca la fealdad a
partir de los rasgos
físicos.
3.Elapalcuate Nomás los ojos le abultaban. El Por prieto.
apalcuate es bien prieto, hasta Describe el color
azulea de tan prieto. como un defecto.

4.La gallina Era un hombre alto, flaco, Hermano de las


moreno. No sé por qué le chocutas. Unos que
pusieron la gallina. tienen los ojos
verdosos.
Las chocutas son
unas aves (pájaros).
Aunque la
informante describió
los rasgos físicos no
se enunció la
relación con el
apodo.

5. Las calandrias Una mujer que vivía allá donde Por gritona y
ponen el tianguis. corajuda, porque las
calandrias hasta se
mueren de coraje
cuando las agarran.
Enfatiza el carácter.

6. El zopilote Está prieto, prieto. Por prieto.


Enfatiza el color y lo
relaciona con ave de
rapiña.

7.El tejón Estaba chaparro, cachetón. Era Parecía tejón.


medio güero, amarilloso. A través de los
rasgos físicos
establece la
comparación con el
animal.
8. El gallo Hijo del juguito. Diario, si no bebía No se sabe.
alcohol casi se desmayaba.

101
9. El pichacuate Un pájaro que canta de noche. Porque estaba
Mucha gente cree que avisa hablando mucho
cuando ya se murió alguien. como cantan los
pichacuates.
No está en el diccionario de Destaca la acción.
mexicanismos, sí en
Colimotismos(p.140)
Serpiente en Sonora.
10.La changa de circo Andaba vestida como payasa. Porque traía los
pantalones de
colores y
acampanados.
Enfatiza el vestido
inadecuado para los
parámetros del
pueblo. Juzga la
apariencia.

11. La pichurria Pájaros muy bravos. Por brava.


Pone de manifiesto
No está en el diccionario de la actitud.
mexicanismos.
En Colombia: despreciable,
pequeño, de poco valor.

12. La aguililla La aguililla para buscar de comer Por brava.


anda chifle y chifle. Tiene más Pone de manifiesto
plumas blancas en las alas que los la actitud.
zopilotes.
13. Los puercos Eran feos, trompudos. Por trompudos.
Destaca los rasgos
físicos como un
defecto.

14. La ardilla Parecía ardilla perrucha. Por brava. Nadie la


aguantaba por
perrucha.
Pone de manifiesto
la actitud.
15. Las vacas de lidia. Llegó el ganado de unas vaquillas Por bravas.
chiquitas pero bien bravas. Llegó Destaca la historia,
Capetillo y allí se estaba todo el el momento y la
actitud de las

102
día en La Esperanza. Ese fue el personas
gran torero. nombradas.

16. Los burros Los leñeros. Trabajaban llevando


leña en sus burros.
Enfatiza la acción.

17. Los esquilines Clase de hormigas diminutas. Por bravos.


Negras y rojas. Los esquilines Ellos apoyaban a los
rojos son bravos (muerden). presidentes. Por
Se meten en la comida dulce, en ellos quedaba a
el agua. fuerzas. Están en
No aparece en el diccionario de Caucentla.
mexicanismos, sí en Destacan la actitud y
Colimotismos (p. 80). las acciones
políticas.
18. El gallo cachetón Era cachetón. De dejaba las Por cachetón y
patillas y el bigote. patilludo.
Enfatiza la
apariencia física.

19. Los perritos Había dos familias que les decían Por peleoneros.
los perritos. Destaca la actitud.

20. Las gavilanas Viven en la quinta. Se fueron al Por aguerridos.


norte. El papá era el gavilán. Pone de manifiesto
la actitud.
21.Los chocutos Pájaros en peligro de extinción‒ Las pájara chocutas
Colima ‒chucuto, ta.— cuando van a ser su
1. adj. Ven. rabón.2. adj. coloq. V nido se llevan la tela
en. Dicho de una prenda de vestir: de los
Que queda corta o espantapájaros para
pequeña.3. adj. coloq. Ven. Dicho hacer su nido.
de una cosa: Que resulta También les dicen
incompleta o deficiente. (REAL). los mieleros. Tienen
un hijo que le dicen
la gallina.
Destacan la acción.

22. La chachalaca La chachalaca es gritona. Porque habla


mucho. Tarraca,
tataca.
Destaca la acción.

103
23. Las tarascas Hormiga brava tarasca. (De or. Por prietas y bravas.
inc.).
1. f. Figura de sierpe monstruosa, Enfatiza el color y la
con una boca muy grande, que en actitud.
algunas partes se saca durante la
procesión del Corpus.
2. f. Persona o cosa temible por
causar grandes daños y gastos o
por su voracidad.
3. f. coloq. Mujer temible o
denigrada por su agresividad,
fealdad, desaseo o excesiva
desvergüenza.

24. Pico de gallina Estaba chueca. La mujer de los


mieleros tenía la
nariz como pico de
gallina.
Destaca la apariencia
física.

25. El puerco ensebado En las fiestas de diciembre Por prieto, prieto y


sueltan un puerco ensebado y el andaba diario de
que lo atrapa lo gana. mecánico.
Destaca el oficio y la
condición física que
deviene del oficio,
además del color.

26. La picha Guajolote. Por chaparro, prieto


y bravo. Diario
andaba jodiendo a la
gente con el dinero.
Estaba en la
presidencia de
lambiscón. Era
danzante el papá y el
hermano.
Destaca el color y la
actitud.

27. El cucaracho Estaba cacarizo de la cara. Por cucaracho.

104
Hijo de doña
Herculana.
Destaca la apariencia
física.

28. El gato cursiento Gato enfermo Porque todo el


tiempo decía que
Salinas era su
padrino. Cuando
perdieron los del
PRI, le dio un
chorrerón. Se lo
trajeron al seguro.
Destaca la reacción a
partir de la situación
política.

29. Los monos Eran prietos, chaparros. Al papá le pusieron


el mono por prieto
panzón.
Destacan rasgos
físicos y la heredad
del apodo.

30. El guariche Es un panal de abejas chiquitas, Era un hombre


prietas que crece hacia abajo. grandote y asina,
No está en el diccionario. tamaludote.
Destaca la apariencia
física.

31. La iguana Era prieto y alto como una Por prieto y


iguana. largucho. Era un
músico.
Destaca la estatura y
color, así como el
oficio.

32. Las pájaras Eran bravas. Por bravas.


Maltrataban a la
abuela.
Destacan el carácter.

33. Las jilguerillas Les gustaba cantar. Por cantoras.

105
Destacan la actitud.

34. El alicante Es una víbora venenosa. Por güero chapeado,


largo, largo.
La relación se
establece por el
color y la estatura.

35. El perrito traidor Cobarde, argüendero. Porque denunció a


la policía al padre
Onofre.
Enfatiza la acción
negativa.

36. El coyotón No hay descripción. Tío de los


camioneros. Hijo del
birriero.

37.La ponzoña Dicen que durmió con Juárez No hay justificación


cuando Juárez pasó por Tonila. relacionada con el
apodo.

Tabla 2 - Apodos de animales

En los 37 apodos en donde se hace referencia a los animales,


animalizando a las personas, se marcan rasgos identitarios de los sujetos:
16 aves, 13 mamíferos, 4 insectos, 3 reptiles, 1 ponzoña. Entre los pájaros
destacan los “bravos”; hay de mal agüero y de rapiña. Se repiten los gallos
y gallinas como aves de corral. De los mamíferos sobresalen los
domésticos (puercos y perros, aunque hay vacas, gatos y burros). Aparecen
la zorra, el coyote y el tejón. Entre los insectos destacan dos tipos de
hormigas: esquilines y tarascas, aunque también hay abejas y cucarachas.
Y de los reptiles aparecen 2 víboras (apalcuate y alicante) y la iguana.
Resulta significativo ver cómo el imaginario que se construye a
partir de los objetos representados coloca en primer lugar las aves:
calandria, pichacuate, pichurria, chocuta, jilguerillas, chachalaca, gavilán,
aguililla, zopilote, tecolote, gallo, gallina, picha. A partir de los rasgos que
los sujetos ganan de estos animales, pelean, provocan, se defienden. Con
esto, los sobrenombres trascienden las relaciones interpersonales y se

106
convierten en rasgos identitarios que emergen de la significación
centrífuga de la palabra.
Es importante destacar que la mayoría de estos apodos
animalizadores son metonimias de la parte por el todo. En ellos se les
otorga a los seres humanos una o varias de las características de los
animales, ya sea el color, el tipo de ojos, el carácter, la forma de
comportarse, lo cual puede comprobarse en la explicación dada para varios
de los apodos analizados: al Zopilote le dicen así por ser de piel muy morena
y a la Chachalaca por ser escandalosa, en un caso se trata de una
característica física y en el otro de comportamiento; aunque también se
encuentran metáforas de imagen, como se ha señalado anteriormente.
A pesar de que normalmente nos encontramos con la visión
sintética del nombrar en este tipo de expresiones, no siempre y no sólo los
apodos son muestra de economía del lenguaje o de la ley del menor
esfuerzo, como se cree. Los apodos revisados son palabras o expresiones
que como un iceberg muestran sólo la pequeña parte del contexto que
definen y ponen en juego al sujeto, pues quien es nombrado lleva en el
apodo una carga semántica que indica habilidades, rasgos, características,
origen, costumbres, creencias, etcétera, que no alcanzarían a verse en un
nombre propio como Juan, Ramiro o Nicanor. En este sentido, estamos
de acuerdo con Ramírez (2011), cuando afirma que los apodos “sintetizan
una gran cantidad de información, de intenciones comunicativas y de
actitudes convivenciales” (p. 52). El sobrenombre, apodo o mote
“constituye otra forma de identificar, nombrar, renombrar o renombrarse
que aporta valores, positivos o negativos, a quienes sobrenombra” (p. 54).
Pero su verdadero valor, como dice Moreu Rey, radica en su sentido
figurado. Así, podemos ver que lo que funciona en los apodos es su
metaforicidad, pues ponen ante nuestros ojos el imaginario individual y
colectivo, evidencian prejuicios, refieren relaciones personales y
manifiestan la organización política y social de una comunidad. En el
apodo, las características de un tema determinado (dominio origen) se
mapea hacia otro (dominio meta), y al concretarse este intercambio de
significados, es posible hablar de uno, utilizando los términos propios del
otro; así, la vida puede verse como un camino, una meta, un viaje, una
oportunidad, dependiendo de las categorías que se exporten de un
dominio determinado.

107
El nombre propio es suplantado, desplazado, olvidado muchas
veces; el apodo se convierte en un vertedero de aspectos sociales,
religiosos, culturales de los nombrados y los que nombran. El mismo
fenómeno se da al interior de la familia como en la comunidad y se
convierte en un juego que pone en evidencia al sujeto, quien se construye
en el vaivén retórico de la comparación, definición, hipérbole, ironía,
sinécdoque, antítesis y muchas figuras del lenguaje más que conforman las
redes de la subjetividad. Por esto una sola palabra que conforme el apodo,
ilumina el contexto lingüístico que aflora para proyectar un momento de
vida. Con los hipocorísticos también se dan fenómenos parecidos, sin
embargo, en ellos es necesario que el nombre esté presente, ya sea de una
manera acortada, insertando algún sufijo o haciendo otros cambios, tales
como asimilaciones, metátesis, inserciones y elisiones.
Los apodos son metáforas culturales (pragmáticas, éticas y
estéticas). Se debaten en el movimiento centrífugo y centrípeto del
lenguaje, pero su metaforización está constituida con base en
conocimientos y costumbres de una colectividad que identifica a los
individuos por cuestiones paralelísticas (sinonimia y antinomia) fincadas
en aspectos de la naturaleza contextual. Lo más inmediato en esta
naturaleza contextual de Tonila, Jalisco (el pueblo referido de México) son
los animales; específicamente los pájaros bravos. En el orden de mayor a
menor cantidad, aparecen después los objetos, las plantas, las comidas, el
vestido y físico, las enfermedades y defectos.
En cuanto a los rasgos que se enfatizan en la base imaginaria de
este pueblo del occidente mexicano, destacan los cacarizos, prietos,
güeros, blancos, gordos, chaparros, flacos, feos, chuecos. Sobre todo los
feos son señalados con una especie de estigmatización. Se relacionan al
color (prietos, negros), la complexión (gordo, flaca, cachetón) y la
apariencia (chueca, patilludo, cejudo). Es importante, sin embargo, señalar
que a pesar de la carga negativa que tiene el color (prieto o colorado) que
marca los extremos, no hay un estereotipo de qué es lo bello y qué lo feo,
en lo relacionado a la apariencia física del sujeto.

108
EL APODO Y LAS FRONTERAS IDENTITARIAS DEL SUJETO

A manera de conclusión, podemos reconocer cuatro funciones


que cumplen los apodos en la configuración identitaria del sujeto:
1) Sintética. A partir de esta función, identificamos que los apodos
son contenedores de información gracias a su múltiple
referencialidad. Las expresiones, aunque breves, recrean un
contexto mucho más amplio y apuntan muchas veces una historia
de vida y una genealogía al activar su intencionalidad. Esta función
es propia de los textos paremiológicos. Y en tanto marcan una
referencia suspendida, provocan la fusión de esta función con la
estética.
2) Pragmática. Los apodos ayudan a la memoria para identificar con
mayor facilidad a los habitantes de un pueblo, miembros de un
grupo, etc. Esta función que podría verse en la carga expresiva de
las palabras, provoca el recuerdo a partir del efecto estético. Se
relaciona también con la efectividad comunicativa que se establece
a partir de la estructura lingüística de las expresiones. El nombre
que tiene como origen estructural a otro nombre o adjetivo, el que
surge de la relación hipocorísticos + nombre común o de la
estructura artículo determinado + nombre + adverbio.
3) Ética. Los apodos revelan una serie de valores y antivalores del
imaginario. Dejar ver sujetos que infringen normas (como el
costalillo que roba) o que tienen adicciones (como el juguito que toma
alcohol). Denuncian conductas indeseables como las chismosas,
argüenderas, escandalosas, los peleoneros o bravos.
4) Estética. Algunos apodos llegan a ser juegos verbales o
construcciones meramente lúdicas, aunque los encontrados en
Tonila no se insertan en este registro, como dijimos antes. Otros
enfatizan lo morfosintáctico, sobre todo los escatológicos en
donde el adjetivo se acomoda al hipocorístico como si fuera el
apellido del sujeto nombrado (Nacho Pedotes o Juana Mocos). Y otros
tienen una complejidad semántica que se marca a través de la
metáfora y la metonimia.

Estas funciones de los apodos provocan las condiciones para que

109
la identidad individual y colectiva se vaya configurando a partir de rasgos
y defectos físicos, mañas, adicciones o enfermedades que se adhieren y se
suplantan; ponen al sujeto en las fronteras de su identidad porque éste, al
ser nombrado así, deja y recobra, pierde y construye sentidos que lo borran
y lo marcan en las relaciones metonímicas del entramado metafórico. Así,
el sujeto es y no es; es como otro.

110
BIBLIOGRAFÍA

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VERGARA, Gloria.Palabra en movimiento. Principios teóricos para la
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112
Arte e política nos “anos de chumbo”: Carlos
Heitor Cony e a “contraestrutura de sentimento”
Maurício Guilherme Silva Jr.

INTRODUÇÃO

Em tempos de guerra, ao tocar a sombra do medo, o indivíduo


percebe-se protagonista e coadjuvante da realidade. Diante dos vestígios
da morte, reafirma-se nele, por vezes, um (in)tenso contraste entre o “eu”
e a “estrutura social”. Em outras palavras, pode-se dizer que, nos palcos
da instabilidade, a noção de mundo do sujeito torna-se bidimensionada:
de um lado, estão as relações afetivas, particulares, do homem em
sociedade; de outro, revelam-se regras, princípios, desvios e possibilidades
da própria estrutura coletiva. Importante ressaltar, ainda, que tal dualidade
do sujeito diante do perigo – tema recorrente da sociologia – também
serviu de “argumento”, ao longo dos séculos, a uma série de obras de arte,
das imagens rupestres aos testemunhos do cárcere.
Na verdade, pode-se dizer que a arte – ou, mais especificamente, a
literatura –, costuma antever a tenebrosa face do conflito. Neste sentido,
compreende-se que o uso político da escrita pode funcionar como uma
espécie de tentativa de o “sujeito atuar na compreensão do trauma
individual de forma social” (SILVA, 2008, p. 25). A expressão artística,
neste sentido, diz respeito à liberdade do estranhamento, processo através
do qual o indivíduo (sujeito social) torna-se capaz de questionar os rumos
– extremados – de sua própria sociedade. “Não à-toa, o testemunho
literário está associado a uma estética do Pós-Guerra; [que], depois, estaria
ligado às produções das nações periféricas, pós-ditaduras” (SILVA, 2008,
p. 25).
Ao analisar a relação das obras latino-americanas Glosa, de Juan
José Saer, e Mascaró, o caçador americano, de Haroldo Conti, com a realidade
dos tempos de guerrilha e opressão ao sul do continente, ao longo dos
anos 1960 e 1970, Graciela Ravetti também alude à questão da dicotomia
vivenciada pelo indivíduo – “tanto na arena social quanto no espaço
literário” (RAVETTI, 2010, p. 248) – entre o “eu” e a “estrutura social”.
Com vistas à compreensão da referida dualidade, a autora recorre a dois
113
conceitos de Gilberto Velho. Trata-se das noções de projeto, termo
referente ao “desempenho individual e às opções efetivas” do sujeito, e de
campo de possibilidades, alusão direta ao ambiente “coletivo”.
Por fim, Ravetti ressalta que a memória não se revela histórica em
função de seu conteúdo, mas por tratar-se de “faculdade que distingue a
existência singular, e que essa faculdade procura, efetivamente, uma via de
acesso à historicidade da experiência, de qualquer experiência, da
experiência de um modo geral” (RAVETTI, 2010, p. 250). Em A literatura
e a vida social, ao abordar três dos elementos centrais para a discussão da
comunicação artística – autor, obra e público –, Antonio Candido ressalta que
os fatores sociais variam “conforme a arte considerada e a orientação geral
a que obedecem as obras” (CANDIDO, 2006, p. 32). Tais obras, por
conseguinte, obedecem, na visão do crítico, a duas categorias básicas: arte
de agregação e arte de segregação:
A primeira se inspira principalmente na
experiência coletiva e vista a meios
comunicativos acessíveis. Procura, neste sentido,
incorporar-se a um sistema simbólico vigente,
utilizando o que já está estabelecido como forma
de expressão de determinada sociedade. A
segunda se preocupa em renovar o sistema
simbólico, criar novos recursos expressivos e,
para isto, dirige-se a um número ao menos
inicialmente reduzido de receptores, que se
destacam, enquanto tais, da sociedade
(CANDIDO, 2006, p. 33).
Candido afirma, contudo, que ambas as categorias podem
aparecer, simultaneamente, numa mesma obra. Apesar disso, a divisão
revela-se interessante por realçar que o objeto artístico – no caso, literário
– foi realizado a partir da presença de dois fenômenos sociais: a integração
e a diferenciação. Trata-se, justa e respectivamente – aqui o objetivo é
aproximar tais conceitos das referidas noções de campo de possibilidades e de
projeto –, do “conjunto de fatores que tendem a acentuar no indivíduo ou
no grupo a participação nos valores comuns da sociedade” e “conjunto
dos que tendem a acentuar as peculiaridades, as diferenças existentes em
uns e outros” (CANDIDO, 2006, p. 33).

114
Analogamente, ao tratar aqui da literatura produzida no Brasil dos
chamados “anos de chumbo”, afirma-se que os cidadãos se perceberam
no centro de tais paradoxos: de um lado, a história e suas perversidades e
razões coletivas [campo de possibilidades; integração]; de outro, a inevitável
experiência afetiva – e também estética, no caso dos artistas – em relação
à soturna sombra do medo [projeto; diferenciação].
No artigo “A prosa reinventada – a narrativa de ficção e a crônica
após 1960”, ao tratar das permanentes mudanças sociais, fruto do
desenvolvimento tecnológico, Fischer (2005) lembra, justamente, que a
arte, e mais especificamente, a literatura, jamais se apresenta imune ao
“ritmo do mundo”. De 1850 à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), por
exemplo, o gênero romance, de Balzac a Guimarães Rosa, assume o papel
de “desenhar”, e tornar compreensíveis, algumas das mais significativas
experiências políticas e históricas da humanidade.
A partir da década de 1960, uma série de ferramentas da indústria
cultural passa a substituir o papel até então desempenhado pela literatura.
Mesmo que não tenha morrido, o romance precisou redefinir suas funções
(FISCHER, 2005, p. 160). Além disso, percebe-se à época, em todo o
mundo, vertiginosa ampliação da produção de contos, gênero que assume
a função de discutir as “labirínticas” relações sociais pós-Segunda Guerra.
Soma-se a tal realidade a substituição do “antigo jornalismo” – lento,
descritivo, apaixonado – por uma observação do mundo baseada na
permanente busca por objetividade. Em tal cenário, a inserção de técnicas
como o lead1, no dia a dia dos repórteres, fará com que a representação –
principalmente, escrita – dos acontecimentos revele-se mais ágil e
dinâmica, mas bem menos aprofundada.
No Ocidente, e particularmente no Brasil, além da perda de
prestígio do romance e do fortalecimento dos gêneros conto e crônica,
revela-se como tendência, nos anos 1960, a disseminação e o crescimento
da venda de relatos biográficos e memorialistas, fato que, segundo Fischer
(2005), alterará o próprio padrão narrativo da prosa então produzida.
Neste sentido, outro importante elemento de discussão diz respeito à
valorização dos relatos ditos “verdadeiros”, estimulados, em grande

1
Trata-se do primeiro parágrafo do texto noticioso moderno, que deve responder, sem
retórica ou contornos desnecessários, às seguintes questões: “O que?”, “Quem?”,
“Quando?”, “Onde?”, “Como?” e “Por que?”.
115
medida, pelo turbilhão de acontecimentos sociais, políticos e
comportamentais do período.
Devido ao desenvolvimento da televisão e de outros meios
tecnológicos de transmissão de informações no Brasil, o romance acaba
por perder força entre os leitores. Neste cenário, os escritores lançam-se
em novas experimentações, como forma de reinventar a prática das
grandes narrativas. Se a geração que estreia nos anos 1930 – formada por
nomes como Graciliano Ramos, Jorge Amado, Érico Veríssimo, José Lins
do Rego, Rachel de Queirós, Cyro dos Anjos, Dyonélio Machado, Cyro
Martins ou Guimarães Rosa – redefine linguagens e assume visão crítica
em relação à sociedade, os autores dos anos 1950 e 1960 encontram
dificuldade em dar novos rumos à prosa que desenvolvem.
Da década de 1950, Fischer (2005) destaca, como experiências
literárias de peso, a “clareza e a dicção feminina” de Clarice Lispector e
Lygia Fagundes Telles. Dos anos 1960, chama a atenção para o “caso” de
Carlos Heitor Cony, autor que, no período, “radicalizou seu
questionamento sobre os temas daquele momento, com a Ditadura Militar
escurecendo o horizonte” (FISCHER, 2005, p. 163). Nos termos do autor:
Espécie de existencialista, certamente
influenciado pelo clima sartreano que nos pós-
guerra tomou conta da intelectualidade ocidental,
Cony demonstrou um destemor admirável,
colocando em cena o problema do engajamento
dos intelectuais e artistas, expondo uma visão
cética de grande humanismo [...] (FISCHER,
2005, p. 163).
Além do Cony de Pessach, a travessia (1967), Fischer ressalta o
engajamento de Antônio Callado, outro importante nome da literatura
brasileira à época, que, principalmente em Quarup (1967), “colocou na
pauta do romance um tema candente, o das opções que os cidadãos
precisavam fazer frente aos dilemas mais urgentes, impostos pelas
mudanças históricas do tempo” (FISCHER, 2005, p.163). Por fim, ao
longo dos anos 1970, autores como Moacyr Scliar, Assis Brasil, Tabajara
Ruas e Márcio Souza buscam, através da escrita, passar a limpo a história
do País. Também neste período, o “realismo fantástico” de escritores
latino-americanos como Gabriel García Márquez e Mário Vargas Llosa

116
ganha força entre os brasileiros, de modo a influenciar a obra de nomes
como José J. Veiga e José Cândido de Carvalho.

CONY E A “CONTRAESTRUTURA DO SENTIMENTO”

A expressão que dá título a este tópico – contraestrutura do sentimento


– foi especialmente cunhada como forma de condensar, em linhas gerais,
o que aqui se convencionou chamar de “o não-lugar” ocupado por Carlos
Heitor Cony no palco das discussões culturais brasileiras, com ênfase nos
anos 1960 e 1970. Trata-se do escritor que, conscientemente, insiste em
desdenhar dos dogmas, como que, paradoxalmente, para dizer: “Minha
única regra é não ter regras”.
Até o advento do golpe de 19642, Cony realmente parecia
reafirmar, em prosa e conduta, tais princípios pessoais e profissionais.
Afinal, já na década de 1950, período de sua estreia literária, o autor
escandaliza a muitos com a linguagem rascante de O ventre, romance que
nega e renega princípios fundamentais da família e do convívio entre os
indivíduos, justamente no momento em que o Brasil se acreditava forte e
altaneiro, das curvas majestosas das construções de Oscar Niemeyer à
sofisticação do samba na Bossa Nova; do surgimento da TV brasileira à
exaltação dos heróis da seleção de 1958; da quase Miss Universo Martha
Rocha à nação que se abre, como jamais, ao capital internacional.
Se, na década de 1950, as bases da estrutura de sentimento – conjunto
de práticas sociais e hábitos mentais articulados a meios de produção e de
organização socioeconômica, de maneira a definir, em determinados
períodos, experiências coletivas de apreensão da realidade3 – apontavam

2 A partir de 1964, com a instauração do regime militar, o Brasil passa a enfrentar um dos
maiores desafios sociopolíticos de sua história. Por obra do rigoroso regime ditatorial, as
liberdades cidadãs permaneceriam vigiadas e reprimidas por exatos 21 anos.
3Trata-se de estruturas definidas, por Raymond Williams (1979, p.133), como “qualidade
particular da experiência social e das relações sociais, historicamente diferentes de outras
qualidades particulares, que dá o senso de uma geração ou de um período”. O termo
“sentimento” é escolhido pelo autor como forma de ressaltar a distinção entre conceitos
formais de “visão de mundo” e “ideologia”. “Não que tenhamos apenas de ultrapassar
crenças mantidas de maneira formal e sistemática, embora tenhamos sempre de levá-las
em conta, mas que estamos interessados em significados e valores tal como são vividos
117
para o ideal de um Brasil como “potência do futuro”, Cony já se revelava,
como escritor, uma voz antípoda à euforia generalizada. Como ressalta a
crítica acerca do jubileu de ouro do lançamento de O ventre, publicada no
Jornal Rascunho, em 2008, o livro faz com que o leitor entre em contato
com uma personagem,
o misantropo José Severo, que narra as suas
primeiras desventuras sem afetação, com
realismo absolutamente verossímil, a ponto de
mostrar sua condição de rejeitado, ao mesmo
tempo em que o outro, o irmão, era sobremaneira
incluído e incensado na sua família. Como se lê
na história, o afeto se encerrara havia muito para
a vida de José Severo. E antes de ser um conto
cheio de som e fúria, a vida, na perspectiva deste
protagonista da obra de Cony, era uma porcaria.
A jornada de José Severo é propositadamente
dura, cheia de percalços, sem espaço para crer em
um futuro redentor. Representava o outro lado
de um País que poderia dar certo. Aliás, se é
verdade que a década de 1950, em especial o ano
de 1958, foi um período, na visão de alguns
cronistas, que não deveria acabar, em O ventre
estão as fissuras não-visíveis desse suposto
paraíso. Nesse caso em especial, havia como que
uma espécie de predestinação para que José
Severo fosse um autêntico perdedor, à margem
do triunfo burguês, mas inserido na tortura
existencial de seu tempo. É o próprio romancista

e sentidos ativamente” (p. 134). A ideia de “estrutura de sentimento” pode ser


compreendida como hipótese cultural, derivada de tentativas de compreensão de
elementos específicos de um tempo ou geração. O conceito, em grande medida, pode ser
bem aplicado à arte e, mais especificamente, à literatura. A arte e a literatura, na visão de
Williams, são responsáveis pelos primeiros indícios de caracterização da estrutura de
sentimento relativa a determinada sociedade e/ou período. Afinal, os elementos
constitutivos de tal estrutura relacionam-se à evidência de “formas e convenções – figuras
semânticas” estilizadas pelas expressões artísticas.
118
quem acusa a influência oriunda de pensadores
dessa linhagem filosófica, como Jean Paul Sartre4.
Tal crítica capta, de modo conciso, não só os elementos centrais
da obra inicial do romancista Cony, como também algumas das
características que farão do autor o que aqui chamar-se-á de modelo da
contraestrutura de sentimento. Trata-se, afinal, do jornalista e escritor que, ao
longo das décadas de 1960 e 1970, permanecerá fiel ao objetivo de revelar,
justamente, as tais “fissuras não-visíveis desse suposto paraíso”, ou, em
outros termos, desse Brasil “que poderia dar certo”. Após o golpe militar
de 1964, o cronista dos textos de resistência não medirá palavras para se
contrapor à barbárie instaurada no País. Apesar disso, jamais irá se
conformar aos princípios dogmáticos dos grupos artísticos que, como ele,
revelam-se resistentes aos militares e seu projeto repressor.
Ao longo de toda a “temporada” de exceção política vivida no
Brasil, Carlos Heitor Cony não coaduna com os princípios de nenhum dos
dois principais “grupos” de elaboração estética surgidos com o pós-golpe
(a vertente formalista ou vanguardista e a linha nacional e popular). Após a
instauração do regime militar no Brasil, o compromisso do autor carioca,
como cronista diário do Correio da Manhã, passa a ser o desnudamento dos
absurdos cometidos pela ordem governamental, assim como o debate
sobre os rumos da nau política, econômica, cultural e social brasileira. Nas
crônicas escritas por Cony a partir do dia 2 de abril de 1964, não haverá
espaço para nada além da análise, por vezes ferina e irônica, da
mediocridade da vida humana numa nação periférica regida pela repressão.
Tal visão do escritor acerca dos homens, aliás, não se modificou com o
tempo. Em entrevista a Luis Henrique Pellanda, publicada no jornal
Rascunho, em setembro de 2009, Cony ressalta:
Considero o ser humano um projeto falido. O ser
humano não me parece digno de respeito. Lá, no
relato bíblico, você lê o seguinte: Deus criou o
céu e viu que era bom; criou as estrelas e viu que
eram boas; separou a terra e a água e viu que
aquilo estava bom. Enfim, tudo que Ele criava

4 Disponível em:
http://www.carlosheitorcony.com.br/imprensa.aspx?nNOT_Codigo=37. Acesso em
22 maio 2016.
119
estava bom. O homem, Ele não viu que estava
bom. E tanto é assim que tentou exterminá-lo
diversas vezes e de várias maneiras. E não
conseguiu. O homem sobreviveu. Sobrepujou a
Deus, sobrepujou ao dilúvio, sobrepujou a todas
as catástrofes. Nínive, Sodoma e Gomorra foram
destroçadas, mas sempre sobrou alguém. Então,
o homem, realmente resiste. É impávido. Resiste,
e resiste contra quem? Resiste geralmente contra
o ser supremo que o criou. Então, o homem, já
por natureza, já na sua essência ontológica, é mau.
Agora, se a gente for olhar a história da
humanidade – não vou dizer a história de nós
todos, que somos pobres seres humanos, feitos
de barro, e todos sabemos perfeitamente que não
valemos nada, que vamos terminar no pó, e...
Enfim, não quero me prolongar nisso. Já basta o
que falei aqui de bobagem. Mas, para mim, é o
seguinte: o ser humano não me inspira respeito.
Eu respeito o ser humano, a mim e aos outros, só
por causa da polícia.5
Neste sarcástico depoimento, eis alguns dos elementos centrais à
obra e ao pensamento político-ideológico do autor carioca. Tal
posicionamento “declaradamente anti-tudo” tornará sua escrita, literária e
jornalística, bastante peculiar em períodos específicos da vida cultural
brasileira, particularmente ao longo da década compreendida entre os anos
de 1964 e 1974. No período, como não poderia deixar de ser, a “ironia”
permanecerá a demonstrar propriedades alquímicas na escrita de Cony.
Ao dizer do mundo “ao contrário”, o escritor “esfola” a realidade,
até que, assombradoe exausto, o leitor questione seu próprio – e,
obviamente, insignificante – “estar no mundo”. Em sua escrita, o autor
estimula, categoricamente, as tais arestas previstas por Linda Hutcheon
(2000), de modo a que suas “vítimas” – sejam os leitores dos romances,

5 Disponível em:
http://www.carlosheitorcony.com.br/noticia.aspx?nNOT_Codigo=84. Acesso em 22
maio 2016.
120
sejam os consumidores do “cronismo” diário e da realidade construída
pelos jornais – não encontrem mais do que duas saídas: responder
emocionalmente às provocações ou correr sem noção de destino. A “carga
emocional” estimulada por Cony nos leitores diz respeito à sua própria
memória íntima – e crítica – acerca da influência exercida pela máquina
capitalista – e repressiva, no caso específico do golpe militar de 1964 –
sobre o “ser” e o “fazer” dos cidadãos ocidentais.
Interessante ressaltar, neste sentido, a permanente autoironia de
Cony, principalmente ao tratar de seu posicionamento político. Em
crônica escrita em resposta ao questionamento de uma leitora – “Você é
de esquerda ou de direita?” –, o escritor, mais uma vez como mentor do
que aqui se convencionou como contraestrutura do sentimento, recorre à ironia
para, com divertida argumentação, tangenciar a resposta à questão central:
Até aqui não respondi se sou da direita ou da
esquerda. Pois lá vai a resposta. Sou que nem
aquele relógio do português que às vezes era de
ouro e às vezes não era. Uma coisa nunca fui nem
serei: do centro. Detesto os centros, tantos os
centros espíritas como os cívicos. De uma forma
geral, pendo às vezes para a esquerda, mas isso
não significa que seja realmente um esquerdista.
Considero a esquerda, principalmente a esquerda
brasileira, um aglomerado de imbecis que se
escoram uns aos outros em defesa de teses –
essas, sim – certas e necessárias. Quando um
camarada não consegue ter um pensamento
sequer, um juízo a respeito de si mesmo e do
mundo, procura o seio acolhedor das esquerdas.
E ali, no calor de um ideal, de uma pujança, de
um laboratório de idas e vindas que sempre levam
a um rumo certo, sentem-se compensados, firmes
e [...] sólidos (CONY, 2010, p. 203).
O jornalista/escritor, pois, encarrega-se de exprimir, dissecar,
divulgar e/ou ultrapassar os limites das “novas percepções” do cidadão
diante dos movimentos da política convencional: Cony não é de centro,
nem de esquerda, nem de direita. Ao mesmo tempo, parece partidário de

121
toda a tríade de possibilidades. Ao explicitar, nos próprios textos, tal
aparente onisciência com relação às questões do mundo, o cronista busca,
na verdade, decifrar os contornos do homem moderno numa nação
periférica como o Brasil do pós-golpe.
Trata-se, analogamente, do escritor que, no romance Pilatos (1974),
escrito dez anos após a instauração do regime militar no País, constrói uma
das personagens literárias mais controversas, e socialmente melancólicas,
da literatura brasileira: em um acidente, o protagonista perde seu pênis –
parte do corpo que será ironicamente chamada, pelo próprio dono
amputado, de “Herodes” –, e, a partir daí, revelar-se-á por demais cético,
vazio de sentimentos, alvejado pelo tédio e pela náusea6. O protagonista
de Pilatos irá redefinir os modos de viver em sociedade a partir de sua nova
condição, “cotidiana e histórica”, caracterizada pela ausência.
Em Pilatos, particularmente, tal ausência pode ser vista, como bem
acentuou Prata, para quem o livro revela a “escatologia do poder”, como
significativa da “cara do Brasil. Um Brasil de 74, dos anos 80 e de hoje.
Um Brasil sem tesão, um Brasil explorado. Pilatos é a energia arrancada do
corpo do brasileiro por militares, bispos e ociólogos, como diria o Millôr”7.
Sobre o processo de escrita de Pilatos, comenta Cony:
Eu estava enfarado da literatura e da máquina de
escrever. Então, fiz um livro, Pilatos, que ia
terrivelmente contra a literatura, contra a arte e o
ser humano. Inclusive o Ênio (Silveira), que era o
meu editor, passou quase dois anos sem publicá-
lo, achando que o livro era muito radical. Ele não
chega a ser pornográfico. Muito menos erótico.
Quem o lê passa dois anos sem pensar em transar.
Ele é antierótico de uma forma brutal, é bastante
escatológico. É a história de um homem que
perde o pênis num desastre de ônibus, o coloca
dentro de um vidro de compota, desses para

6 O termo aqui empregado é referência direta à obra A náusea, de Jean Paul Sartre, cujo

protagonista, Antoine Roquentin, influenciou significativamente, nas décadas de 1950,


1960 e 1970, o olhar de Carlos Heitor Cony sobre a literatura e a sociedade.
7 Depoimento de Mario Prata impresso na orelha da 5ª edição do romance Pilatos,

publicado pela Companhia das Letras.


122
compotas de pêssego, e vive uma porção de
coisas no período da ditadura, 1970, 1973, por aí.
Eu achava que esse livro era uma espécie de “fala
do trono”. Na monarquia, se diz “fala do trono”,
quando, no início de um ano, o rei ou o monarca
se pronuncia. E eu achei que Pilatos era a minha
“fala do trono”. Depois daquilo, eu não teria mais
nada para escrever8.
Em outra medida, nas crônicas do pós-golpe, Carlos Heitor Cony
mostra-se juiz da percepção “extrapolada”, por parte de setores diversos
da sociedade, com relação ao mundo. Tal extrapolação acentua-se,
justamente, no que diz respeito aos primeiros momentos do golpe militar
de 1964. No texto “O sangue e a palhaçada”, presente em O ato e o fato,
Cony revela que os que leem suas crônicas devem ser lembrados
do que sempre pensei do sr. João Goulart e de
seu governo. Em crônica publicada no ano
passado [1963], às vésperas do plebiscito, crônica
mais tarde incluída em livro editado pela
Civilização Brasileira, deixei bem claro o meu
pensamento a respeito de certa esquerda
oportunista e desonesta que cercava o sr. João
Goulart. À página 25 do livro Da arte de falar mal,
lá está: “Considero esta esquerda um aglomerado
de imbecis que se escoram uns aos outros em
defesa de teses – essas, sim – necessárias”. E
lembro de um personagem de A idade da razão:
“Lembram aquele Gómez do romance de Sartre?
Pois o camarada era comunista só porque era
muito difícil ser Gómez” (CONY, 2004, p. 42).
Neste pequeno trecho de uma de suas crônicas, Cony demonstra
algo importante para a compreensão de seu posicionamento político
pouco convencional: se, anteriormente ao golpe, o cronista declarava-se
anti-Jango – pois que o Presidente da República também parecia escorar-

8 Disponível em:
http://www.carlosheitorcony.com.br/noticia.aspx?nNOT_Codigo=84. Acesso em 22
maio 2016.
123
se “aos outros em defesa de teses – essas, sim – necessárias”, logo após a
“revolução dos caranguejos”, o autor carioca não economiza em petardos
contra o outro lado da moeda: os militares e a direita católica brasileira.
Em depoimento ao Instituto Moreira Salles, como participante da
série O escritor por ele mesmo, Carlos Heitor Cony recorda-se, justamente, da
forma como sua posição de “maldito” – fruto do nãoengajamento político
–, é alterada com a eclosão do golpe militar de 1964, pois que, dois dias
após a “quartelada”, o escritor passaria a condensar, em suas crônicas no
Correio da Manhã, boa parte das indignações sociais mobilizadas, no
período, pela estrutura de sentimento então vigente, principalmente, nos
meios artísticos e intelectuais.
Tomado como escritor ao mesmo tempo coadjuvante e
protagonista da realidade brasileira após o golpe militar de 1964, reafirma-
se que o projeto literário e jornalístico de Cony realmente se aproximou, no
referido período, do universo político e social do País. Tal aproximação
entre ética e estética, contudo, dá-se de modo “caleidoscópico”9: nos anos
1960 e 1970, a obra de Cony – das crônicas aos romances – marca-se,
principalmente, pela variação de forma(s) e, em menor grau, de
conteúdo(s). Em seus livros e, também, nos textos para jornal, não há
fórmula unitária, nem assunto primordial, mesmo em se tratando dos
declarados embates com “atores” e acontecimentos ligados, direta ou
indiretamente, à “revolução dos caranguejos”.
A obra de Cony no período caracteriza-se – usando-se, neste
ponto, o conceito de Candido (2006) –, pela diferenciação: além da
permanente recorrência à ironia, o escritor carioca – como cronista ou
romancista – buscará realçar as tais peculiaridades e diferenças entre “uns
e outros”. Tal projeto calcado na diversificação, no que tange ao modo de
abordar literariamente o complexo campo de possibilidades da sociedade
brasileira pós-golpe, revela-se, de modo curioso, nas conclusões de Protesto
e o novo romance brasileiro, obra na qual o “brasilianista” Malcolm Silverman
(2000) investiga romances publicados no País entre os anos 1960 e 1990.
Nos livros, o pesquisador busca compreender o método usado por uma
série de escritores para “captar” a realidade vigente.

9Tal termo busca realçar a vitalidade dos atributos linguísticos e temáticos usados por
Cony em seu “cronismo”.
124
Como forma de facilitar sua investigação, Silverman divide as
centenas de obras por ele estudadas em dez distintas categorias de
romance (publicados), quais sejam: jornalístico; memorial; da massificação; de
costumes urbanos; intimista; regionalista-histórico; realista-político; da sátira política
absurda e da sátira política surrealista. Autor citado em mais de 20 ocasiões ao
longo das 429 páginas da obra de Silverman, Carlos Heitor Cony aparece
como representante de nada menos do que cinco das dez referidas
categorias de romance: jornalístico (com destaque para O caso Lou);
memorial (Informação ao crucificado); da massificação (obras diversas);
realista-político (Pessach: a travessia) e da sátira política absurda(Pilatos).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No interior do riquíssimo cenário do Brasil pós-golpe, o escritor


profissional – e categoricamente urbano – Carlos Heitor Cony navegará,
como cronista e/ou romancista, por mares os mais diversos. Há de se
considerar que o estilo e as temáticas do autor carioca transitarão, nas
crônicas de jornal ou nos romances de resistência, reafirmando-se, em
linhas gerais, como representante da pluralidade do que se convencionou
chamar de escrita de resistência estético-política. Apesar disso, a escrita de
resistência de Cony define-se a partir de seu olhar ferino sobre a burguesia
brasileira. Nas palavras de Silverman:
Para Cony, o Homo brasiliensis é, invariavelmente,
uma fera solitária, confusa e em fuga, quer vista
em isolamento ou imersa na massa urbana. Pela
sua própria natureza, o homem se encontra
psicologicamente dividido entre o desejo de
tornar-se independente e a necessidade de
conformar-se às restrições sociais. É um
panorama fatalista, degradante e irônico do nosso
lado negro, onde prevalece a insensibilidade.
Aqui, o sexo ganha do amor; a hipocrisia, da
sinceridade; a emoção, da razão; e a mente
humana permanece num estado continuado de
deterioração. O pequeno humor que existe tende
a ser cáustico, isto é, cínico, sarcástico, mórbido

125
e satírico. Em outras palavras, as raras
personagens cômicas de Carlos Heitor Cony
sempre terminam se degradando, extraindo
humor do pathos numa alquimia comum aos
escritores que mais o influenciaram, sobretudo
Machado de Assis e Eça de Queirós [...]. Todos
os nove romances de Cony, publicados entre
1958 e 1974, refletem essa visão desmoralizante,
diferenciando-se somente em três aspectos: a
trama varia, o tom oscila entre o frívolo e o
patético, e os personagens nunca reaparecem
com o mesmo nome (SILVERMAN, 2000, p.
130-131).
Se tal é o ambiente dos romances de Cony, importante ressaltar,
de modo específico, que, nas crônicas sobre o golpe militar de 1964, o
autor aproxima-se, simultaneamente, das duas tendências apontadas como
majoritárias no período, segundo Flora Süssekind: o jornalístico e o
alegóricoe/ou mágico. Em O ato e o fato, as técnicas de reportagem jornalística,
aliadas a forte carga de ironia, procuram influir, com contundência, no
processo de “desvelamento do real”. Em seu “cronismo”, por vezes, um
Cony “dramático”, metafórico, reveste de “realismo mágico” o universo
de personagens (homens, mulheres, casas, cidades etc.) do cotidiano –
amiúde, oprimidas e céticas, principalmente no período do golpe militar –
, mas em permanente “lógica onírica”.
Tal realidade, contudo, não se restringe às crônicas. Por isso,
revela-se importante, ao longo da análise da produção do cronista, a busca
de elementos do autor em seus romances, principalmente aqueles
publicados entre 1964 e 1974. Que o diga a passagem em que, levado pelo
recém-conquistado amigo Dos Passos – fascista e sonhador –, o
protagonista de Pilatos – dono de Herodes, o pênis arrancado que, a partir
do “corte”, viverá em um vidro de compota cheio de álcool – arranca os
próprios “pentelhos” para que possam produzir, em substituição às cordas
de um violino, “música afrodisíaca”. A melodia do inusitado instrumento
produz, a exemplo do aroma apoteótico de O perfume, do alemão Patrick
Süskind, cenas orgiásticas, repletas de nonsense:

126
Dos Passos entrou em transe. Do violino saía um
som hediondo, a depravação era geral. Agora,
todos estavam no chão, pelas cadeiras, em cima
da mesa, até mesmo em cima de um armário.
Excitado como um demônio diante de um
querubim pervertido, Dos Passos passou-me o
violino:
– Toque esta joça que eu vou ali.
O “ali” de Dos Passos era justamente em cima da
mulata do dono da casa (CONY, 2001, p. 117).
Na sequência deste trecho de Pilatos, os dois amigos, presos em
função da “noite de orgias” estimulada pelo afrodisíaco violino
improvisado, Cony revela, no livro, por meio da narração do protagonista,
o autoritarismo dos cárceres da época, e, por meio do discurso de Dos
Passos – pertencente a grupo fascista, liderado por um certo “coronel” –,
a lógica do regime opressor e do combate ao “perigo vermelho”, o
comunismo:
A prisão estava cheia. Sempre imaginara que as
celas eram desertas, silenciosas, frias. Aquela era
uma zorra. Mais experiente do que eu, Dos
Passos conhecera situações iguais e piores.
Explicou-me a razão de tantos presos:
– É uma medida profilática. Tem muito
subversivo solto por aí. O governo limita-se a
prender os mais ostensivos, dá sumiço em
poucos. Deveria acabar com todos de forma
sumária, imediata. Se eles tomassem o poder
seriam bem mais eficientes. Daí que as prisões
ficam repletas, cedo ou tarde a maioria será solta.
Se dependesse do meu coronel, de nosso grupo,
essa gente seria logo fuzilada. A condescendência
do governo será fatal. É uma pena que você não
entenda nada de política.
– Todo mundo aqui é comunista?
– Não. Há de tudo, subversivos de diversas
origens, os comunistas são mais espertos, sabem

127
se escafeder, são organizados, têm protetores em
toda a parte. Há também maconheiros, conheço
o tipo. Há ladrões ordinários, gente da pior
espécie. Nós somos uma exceção. Breve nos
virão soltar e nos pedirão desculpas. [...] Veja
agora: tratam os adversários do regime como
príncipes, com direitos humanos e o escambau.
Daí que me decepcionei com os militares que
estão no poder. Deviam ter fuzilado todos os
maus elementos, sem misericórdia. O sangue é o
esterco que limpa uma nação – esta frase é de um
liberal. O mais doloroso é que meus camaradas
de juventude estão todos aí, em postos
importantes, e eu aqui na prisão. São coisas da
vida. Mas fique descansado. Logo nos virão soltar
(CONY, 2001, p. 118-119).
Na referida cena, além do discurso de Dos Passos – em que o tom
exacerbadamente irônico de Cony encarrega-se de descrever o pensar
persecutório dos anticomunistas –, destacam-se elementos outros,
característicos da prosa do escritor carioca, também bastante presentes em
suas crônicas, de O ato e o fato à produção mais recente. Trata-se de
elementos que, a partir da temática da repressão militar, farão com que o
autor supervalorize, em sua escrita, o que o crítico Silverman identifica,
em Cony e outros escritores do período, já ressaltada tendência a tratar o
homem da burguesia urbana – principalmente o carioca, no caso do autor
aqui estudado – como “espécie intermediária entre os marginais e a elite”
(SILVERMAN, 2000, p. 130).
É justamente tal “visão desmoralizante”, detectada por Silverman
nos nove romances escritos por Cony entre 1958 e 1974, o elemento a ser
supervalorizado – em associação à ironia, ao cinismo e ao sarcasmo.
Também em O ato e o fato, o jornalista/escritor buscará revelar, ao então
leitor do Correio da Manhã, o que há de mais irracional na razão da ordem
estabelecida. Para tal, diferentemente dos recursos da “literatura
fantástica” – mas para além do mero naturalismo –, Carlos Heitor Cony
utiliza, como matéria-prima, a realidade imediata. Neste ponto, pretende,
em seu exercício de cronista, mostrar o quanto há de ridículo e de nonsense

128
no pathos positivista do governo militar, assim como de cruel na miséria –
material e, por vezes, existencial – do cidadão brasileiro em meio ao caos
de um Brasil que se moderniza à força. Neste sentido, contudo, o autor
carioca consegue encontrar, em seus textos, o complexo equilíbrio,
ressaltado por Walter Benjamin (1994), entre a tendência ao político e a
tendência ao literário.
Com relação ao golpe militar de 1964, interessante perceber, nas
crônicas de Cony – território por excelência da “contraestrutura do
sentimento” –, o modo como o escritor supervaloriza, justamente, para
contrapô-la diante do leitor, a ilógica, ridícula e melancólica ausência de
liberdades (políticas, civis e sociais), então imposta aos brasileiros. Tratar
de tal questão, em síntese – e nas palavras do próprio escritor carioca, em
crônica10 sobre o modo como milhares de vítimas da luta ideológica
“foram mortas, física e moralmente, pelos próprios companheiros” – é
falar de política, criação do homem que, “como ‘la donna’ da ópera de
Verdi, é ‘mobile’. Por meio dela, o Diabo não se dá por vencido, aliás,
nunca se deu, desde que foi expulso do céu, na primeira rebelião que para
sempre infernizaria, literalmente, demônios e homens” (CONY, 2011, p.
E12).

10 Publicada na Folha de S.Paulo de 27 de maio de 2001.


129
REFERÊNCIAS

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WILLIAMS, Raymond. Palavras-chave: um vocabulário de cultura e
sociedade. São Paulo: Boitempo, 2007.

132
La frontera de la literatura: utopía, resistencia y
Dictadura
Mónica Bueno

¿Por qué me fascina la astucia literaria de la


inscripción y toda la paradojicidad inexpugnable de
una huella que no consigue sino arrebatarse, borrarse
ella misma en la consideración de sí, ella misma y su
propio idioma, el cual para alcanzar su realización
debe borrarse y se produce a costa de borrarse?
Jacques Derrida

Hago la prueba del dolor. Como el médico que


pincha una extremidad para verificar si se ha
atrofiado, así pincho mi memoria. Quizá el dolor
muera antes que nosotros. Si así fuera, habría que
contarlo...

Casandrade Christa Wolf

INTRODUCCIÓN

Escribir en la Dictadura argentina y sobre la Dictadura fue para los


escritores de aquel momento un desafío no solamente político sino
también estético. ¿Cómo representar el horror? Esta parece ser la pregunta
que está implícita en los textos de ese momento. La frase de Adorno
“Toda reificación es un olvido” condensa la resistencia que implica a los
hombres de una época violenta como aquella en la Argentina y despliega
en los que escriben una suerte de redefinición de su concepto de literatura
que debe exhibir esa marca de la frontera con el lenguaje que postula un
Estado represivo. La reificación es peligrosa porque indica, como ya lo
señalara Lukács, una clase de pensamiento petrificado, incapaz de pasiones
y acciones. Según Axel Honneth (2007, p. 11), “fue Georg Lukács quien,
en la colección de ensayos Historia y conciencia de clase, publicada en 1925,
logró forjar este concepto clave mediante una audaz recopilación de
motivos provenientes de la obra de Karl Marx, Max Weber y Georg
Simmel”. La particularidad del concepto que Honneth analiza con

133
absoluta claridad es la matriz interpretativa que encierray que define las
épocas y las sociedades.11
Héctor Tizón, Antonio Marimón y Daniel Moyano eran escritores
reconocidos en los años de la Dictadura (1976-1983). Sus figuras son
emblemáticas porque son indicativas de un conflicto que se abrió entre los
intelectuales una vez finalizada la Dictadura. El exilio fue en ese momento
una matriz interpretativa y que generó debates académicos y polémicas
colocaciones. Tal vez, un poco antes de ese momento histórico, otro
escritor daba una lección definitiva sobre la conducta ética de quedarse o
irse. Leopoldo Marechal, un escritor de la vanguardia martinfierrista, de
filiación peronista, luego de la Revolución Libertadora, decide su exilio
peculiar en su departamento de la calle Rivadavia. Durante diez años, casi
no existirá a no ser por su mujer y tres o cuatro amigos que lo frecuentan.
Pero la certeza de su existencia se funda en dos confirmaciones: la escritura
y la patria. (“Para un hombre que ha dejado de tener una patria, el escribir
se convierte en un lugar para vivir”, señala Adorno [1999, p. 68).12
La Dictadura Militar es sin duda uno de los acontecimientos más
aciagos de nuestra historia reciente. Una herida social que no pudo cerrarse
hasta que la ley no reparó el crimen. La sombra del Juez que dirime y

11
Completamos la cita: “En el centro de ese volumen, impulsado por la esperanza de una
revolución inminente, se encuentra el largo ensayo en tres partes titulado ‘La reificación
y la conciencia del proletariado’, que alentó a filósofos y a sociólogos de toda una
generación a analizar las formas de vida imperantes en ese entonces como consecuencias
de la reificación social.” (HONNETH, 2007, p. 12). La lectura de Honneth, decíamos,
resulta sumamente lúcida ya que propone la reificación como matriz interpretativa de
nuestra época. Uno de los indicios que Honneth reconoce de esa vuelta al concepto está
enciertas producciones literarias. Dice Honneth: “retorna la categoría de la ‘reificación’
desde el abismo insondable de la República de Weimar y se incorpora nuevamente a la
escena del discurso intelectual. Son tres, si no cuatro, los indicios que permiten sustentar
la conjetura de que hay un cambio de tendencia en el diagnóstico de la época. En primer
lugar ‒ y de forma aún no muy llamativa ‒ puede señalarse la existencia de una cantidad
de novelas y relatos recientes que diseminan un aura estética de la economización furtiva
de nuestra vida cotidiana” (HONNETH, 2007, p. 13).
12Dirá en una entrevista de 1968: “Yo trabajé en muchas cosas a la vez, libremente, sin

urgencias de tiempo ni reclamos de editoriales y revistas, que para mí estaban cerradas.


Tomé, abandoné y retomé no pocas veces El Banquete de Severo Arcángelo: era el arte por
el arte, ¡nadie me lo publicaría!”.

134
castiga el delito, muestra que el asesinato deja huellas indelebles que exige
que se restañen las heridas. Cuando el crimen es del Estado, la falta es
inconmensurable y las consecuencias de la falta, insospechadas. Si no hay
juicio, no hay castigo, no hay reparación; si no hay reparación, la muerte
circunda indefectiblemente el futuro. Como Sarmiento en la célebre
evocación, tal vez, la estrategia sea cederle la voz a otro para poder hacer
el diagnóstico correcto. La literatura tempranamente exhibió la herida
social.
El vuelo del tigre de Daniel Moyano, La casa y el viento de Héctor
Tizón y El antiguo alimento de los héroes de Antonio Marimón son claros
ejemplos de una literatura que narra y ficcionaliza el horror y la muerte en
el pasado. Este trabajo es un homenaje a sus autores, que creyeron en la
fuerza de la escritura, que lucharon contra la agonía del exilio. Moyano y
Marimón murieron en tierra ajena, Tizón volvió a Yala, volvió a Jujuy, fue
constituyente, juez y siguió contando los relatos que escuchaba en la calle,
en el Juzgado hasta el final de su vida. (“Ex embajador, vagabundo,
exiliado y regresado” dice la solapa de uno de sus libros.)

NARRAR LA HERIDA DEL CUERPO

En El antiguo alimento de los héroes, Beatriz Sarlo a la manera de un


póslogo de la novela escribe: “La primera vez que la leí; pude leer sólo una
historia política; ella me incluía hasta devorar la escritura misma que la
hacía posible” (SARLO, 1988, p. 224). Sin embargo, en el relato del
exiliado que cuenta el horror hay trazos más amplios que muestran la
violencia en los cuerpos, la resistencia, la invención de un código secreto
de solidaridad, el agón de la vida en el espacio del crimen. La novela
termina con el narrador saliendo del país. Desde el avión se ve por última
vez la tierra que se abandona: una perspectiva aérea describe el panorama
total de la patria. Antonio Marimón murió en el exilio, en México.13

13
Antonio Marimón nació en Argentina en 1944. Desde 1955 vivió en Córdoba, donde
estudió la carrera de Letras y participó activamente de las circunstancias políticas de la
época. Luego de las torturas recibidas por la Dictadura argentina, se exilió en México en
1977, donde murió en 1998. Escribió: La escritura blanca (poesía, 1981); El antiguo alimento
de los héroes (novela, 1988); La línea es la orgía (poesía, 1992); Último tango en Buenos Aires,
Diego y Mis voces cantando (1999).
135
Esa imagen final de la novela marca la perspectiva desde el aire
para reconocer los errores, los excesos, pero también el enigma y la utopía
de un relato de nación que se escamotea. No es sólo una geografía que se
aleja, si no la marca de la pérdida definitiva.
Primo Levi escribe Si esto es un hombre para exorcizar no sólo el
relato del horror en Auschwitz si no para conjurar a los muertos del olvido
definitivo: “El dolor del recuerdo, la vieja y feroz desazón de sentirme
hombre, que me asalta como un perro en el instante en que la conciencia
emerge de la oscuridad. Entonces tomo el lápiz y el cuaderno y escribo
aquello que no podría decirle a nadie” dice Levi (2000, p. 149). El
sobreviviente define en la escritura el acto ético que hace oír la voz acallada
del muerto. Como Antígona, que reclama para el hermano el ritual que
indica su lugar en la muerte frente a la arbitraria ley de Creonte y supera
así su propia imposibilidad individual. Aquél que logra poner en palabras
lo indecible deja su propia voz en la voz del otro.
En El antiguo alimento de los héroes, ésa es la empresa de Marimón. La
Advertencia lo expresa claramente: el texto reúne “una crónica que asoma
irregular desde sus caras”, “un haz oscuro de relatos”,“Una morosa y
quizás inescribible torre del lenguaje”.
Marimón cuenta la tortura de los presos políticos en la cárcel y,
como Primo Levi, describe la tensión brutal, descarnada entre la vida y la
muerte. Resistir es inventar maneras de hacer vida donde las condiciones
son de muerte. La cárcel permite la tecnología de poder sobre los cuerpos,
dice Foucault, una sintaxis que se escribe definitivamente y que puede
reconocerse aún mucho tiempo después:
Aquel individuo entró a la sala, saludó a alguno
de los presentes y, en un lapso indescifrable, al
cambiar el foco de su campo visual noté que se
distraía, se desunía de todos y aun de las cosas
íntimas, que miraba con el matiz lejano de un
ausente. Para mí esa era su marca de la prisión.
(MARIMÓN, 1988, p. 34)
La crónica de la prisión define el relato de la vida de un hombre
que busca, en otras imágenes perdidas, los componentes secretos de la
desolación. Un recuerdo de infancia se susbsume en la concatenación de
imágenes dolorosas o celebratorias pero vivas. En el recuerdo: la militancia

136
y la revolución, el cordobazo, la figura de su madre, la maestra de inglés.
Como una suerte de cajas chinas el relato se resuelve en la escena arcaica:
su madre suelta la mano del chico en la plaza del pueblo: la memoria trae
la imagen de la infancia y la imagen condensa el dolor, la soledad y el
abandono.
Como en El ausente (1987), el film que dirige Rafael Filipelli sobre
un guión que escriben Filipelli y Carlos Dámaso Martínez en base al relato
de Marimón, esa soledad que se representa en la novela es parte de su
posición ética frente al “hinchado coro de historias sin una escritura”. Y si
“Lorera” es el título del capítulo de la novela que cuenta el horror en la
prisión, “Cencerro” es el relato de la autocrítica de una generación que se
definía heroica. “Teníamos una visión de dioses” dice el narrador y admite
no sólo la derrota de la guerra sino el fracaso de su empresa. Esa es la
postulación ética de su escritura: “Me preocupa que el relato con su
rapidez e ignorancia, olvide el sufrimiento”. Un poema suyo,
“Diferencias”, escrito en México, muestra la polifonía que antes reconoce
no haber escuchado:
Se propagan las diferencias/ Y como más de ellas,
insensatas y crueles, llueven simulando agujas/
Por los bordes, los aleros, los canales de los
tejados/ Y horadan el núcleo, las raíces y la silueta
invisible de todas las cosas/ Y todas las criaturas
creadas, coral, vulvas, sanguijuela, rubíes/ Y de
las magnitudes numéricas sin medida originadas
en derredor del vacío/ También da vueltas el
folio de esta página/ Como relieve en el aire de
una Vía Láctea. (MARIMÓN, 1988, p. 45)
Marimón elige la primera persona y elabora así la forma del
testimonio que nos implica. Benveniste describió la primera persona como
una evidencia de la experiencia de lenguaje: “No bien el pronombre yo
aparece en un enunciado donde evoca explícitamente o no – el pronombre
tú para oponerse en conjunto a él, se instaura una vez más una experiencia
humana y revela el instrumento lingüístico que la funda” (BENVENISTE,
1979, p. 70).14

14Benveniste interpreta en esa emergencia pronominal el fundamento de la experiencia


humana: “El lenguaje sería imposible sin la experiencia cada vez nueva debiera inventarse,
137
La experiencia humana que narra Marimónimplica la violencia, la
tortura de los cuerpos, la memoria y la autocrítica. En la ficción que define
el género, Marimón funda su testimonio. En este sentido, nos interesa el
giro que Ricoeur da al concepto cuando en su libro La memoria, la historia,
el olvido (2004) deja de lado el sentido tradicional de testimonio, entendido
como una declaración enmarcada en un debate, para centrarse en lo que
él llama “situación dialogal” que implica al espectador.15 Diálogo con el
tiempo, diálogo con toda hermenéutica, diálogo con el otro. El título de la
novela, “El antiguo alimento de los héroes” es un verso de un poema de
Borges, “Mateo XXV, 30”, que forma parte de la larga enumeración de
“los dones” donde el poeta resignifica la parábola bíblica.16

LA MÚSICA Y EL SILENCIO: LAS FORMAS DE LA


RESISTENCIA

Daniel Moyano fue escritor y violinista del Cuarteto de Cuerdas y


Orquesta de Cámara y profesor en el Conservatorio Provincial de Música.
A fines de marzo de 1976 fue detenido en su casa de La Rioja por las
Fuerzas Armadas y luego de quedar en libertad se exilió definitivamente
en España. Allí fue obrero en una fábrica de maquetas para poder subsistir.
Allí murió el 1 de julio de 1992.
En 1981 la Editorial Legasa, con sede en Madrid, publicó su novela
El vuelo del Tigrey dos años más tarde Libro de navíos y borrascas.
El vuelo del tigre tiene dos versiones. La primera escrita en La Rioja
es guardada por unos curas amigos que entierran el manuscrito en la huerta

en boca de cada quien, una expresión cada vez distinta, esta experiencia no es descrita,
está ahí, inherente a la forma que la trasmite, constituyendo la persona en el discurso y
por consiguiente toda persona cuanto habla”. (BENVENISTE, 1979, p. 71)
15 Para Ricoeur (2004), todo testimonio es una forma de evidencia, y por lo tanto, limitada

a un contexto en particular, a saber: una disputa irresoluta. La disputa prima por sobre el
testimonio (Nota 29, p. 215). Esto significa que aquello que se declare sólo será
considerado testimonio si es relevante a la resolución de la disputa entre dos posiciones
antagónicas. En la medida en que toda aquella declaración que no pueda ser encuadrada
en la disputa acabe siendo descartada, el auditorio termina primando por sobre el testigo.
16“El antiguo alimento de los héroes: / La falsía, la derrota, la humillación./En vano te

hemos prodigado el océano,/En vano el sol, que vieron los maravillados ojos de
Whitman;/Has gastado los años y te han gastado,/ Y todavía no has escrito el poema”
(BORGES, 1974, p. 874).
138
de su casa mientras Moyano está en la cárcel. Cuando se exilia en Madrid,
piensa en terminar la novela y manda a buscar el texto oculto. Excavan
inútilmente, el manuscrito ha desaparecido. Moyano reescribe la novela,
entonces y hace notar el episodio: al finalizar anota las dos fechas y los dos
lugares: La Rioja 1975, Madrid 1980.
Hualacato es un pueblo de músicos que quiebra su pequeña
armonía social cuando llegan los percusionistas que se instalan en cada una
de las casas y diseñan la vida de las familias. “Todo prohibido en
Hualacato”, declaran esos extraños seres que aparecen montados en sus
tigres. El Estado (el gobierno) ha decidido que se debe restablecer el orden
(un orden que desecha otras organizaciones posibles por subversivas). Los
Aballay, una de las familias de Hualacato, debe acostumbrarse a las
órdenes de Nabu el percusionista; todos deben aceptar la arbitrariedad de
las reglas, deben compartir el silencio: “Vengo a organizar las cosas, a
enseñarles a vivir en la realidad y sacarles los pajaritos de la cabeza, que ya
la han causado muchos sufrimientos si lo piensan bien” (MOYANO,
1981, p. 9).
El silencio en un pueblo de músicos. Sólo los ruidos de los
percusionistas y el robo de la identidad. Obligados a ser quienes no son y
a aceptar la definición de ese nuevo orden social. Los ruidos son las
palabras de un discurso homogéneo, que se autoabastece y define la
arquitectura de lo real. Moyano condensa la significación alegórica en la
cotidianeidad de una familia y muestra cómo las políticas del Estado
interfieren en la vida “pequeña” en un pueblo de provincia. Nos muestra
Moyano cuánto de perverso puede ser el abstracto orden del Estado.
Nabu, como un Hobbes provinciano, dice ‒ nos dice ‒ que su interés
principal está en lograr la paz y el orden: “Así que en primer lugar yo pongo
como una inclinación general de toda la humanidad un deseo perpetuo y
sin reposo del poder tras el poder, que sólo cesa con la muerte”
(HOBBES, 2003, p. 23). De esta manera, Thomas Hobbes justifica y
establece la racionalidad primera de la creación del Estado como un
contrato para proteger al hombre de los demás hombres. Leviatán define
el artificio de un hombre artificial. Sin embargo, como explicó Edgar Allan
Poe con respecto al célebre jugador de ajedrez, un niño o un enano pueden
esconderse adentro del artificio. Esta máquina, esta persona artificial
protege al hombre de su estado natural, el estado de guerra. Sin embargo,

139
no basta con que los hombres tengan la voluntad de renunciar a sus
derechos naturales, como nos dice Hobbes, debe de haber un pacto
obligado que se cumpla. La Máquina del Estado represor hace funcionar
el discurso de Nabu en la pequeña casa de los Aballay donde instaura una
nueva geografía con fronteras imaginarias que separan lo prohibido:
paredes que no existen pero que no pueden franquearse, pasillos y carteles
que deciden cuál es el camino que la familia debe recorrer. Sin embargo,
las fisuras de este orden artificial empiezan pronto a verse, el mundo
natural se rebela: todos los gatos del pueblo durante la noche enloquecen
con sus lamentos a los Percusionistas. Un grito de dolor: la voz natural del
que reclama. (La voz de las madres que piden justicia en un viejo
noticiero). En la novela, el grito desata la guerra: Nabu dispara su arma,
acalla el grito y refuerza la ofensiva con un monstruoso perro atento a las
directivas de su amo. Comienza el viejo juego de la guerra: ataque y
defensa, avances y retrocesos. Enroques ocultos.
Según Nabu, hay una sola realidad, compacta y homogénea. Es un
discurso que se autoabastece, que no permite la entrada de otras
posibilidades de representación del mundo. Por ello es que, frente a esta
manifestación autoritaria, los Aballay deberán buscar diferentes formas de
resistencia y ensayar nuevas estrategias para agrietar ese universo unívoco
en el que se encuentran entrampados.
La novela de Moyano nos enseña que la resistencia al poder
omnímodo debe ser comunitaria. Esta pequeña comunidad familiar, como
todas, impele una nueva forma identitaria que se subsume en el prefijo
“com”. La comunidad requiere que el individuo se transforme en
integrante y construya para sí un nuevo sujeto. Espósito llama a esta
construcción “Nuestro ser distinto de nosotros”.17
El grito silenciado deviene silencio organizado. Los Aballay
deciden resistir en el recuerdo de su historia familiar, saben que su
identidad está resguardada en la fuerza de la memoria colectiva. Las
imágenes del pasado se restablecen en lareconstrucción ‒ fragmentaria y
dinámica ‒ del álbum familiar que Nabu ha requisado. Los Aballay han

17
Espósito, al analizar la insoslayable reflexión de Bataille sobre la comunidad, concluye:
“Hace falta, en cambio, que el desbordamiento del yo se determine al mismo tiempo
también en el otro mediante un contagio metonímico que se comunica a todos los
miembros de la comunidad y a la comunidad en su conjunto” (ESPÓSITO, 2007, p. 198).
140
perdido las fotos y deben recordarlas. El relato, sin embargo, no tiene
lenguaje. Es necesario inventar uno: “Los idiomas nacen solos, por
necesidades extremas. Cuando algo necesita ser nombrado, el primer
sonido que surja ya le corresponde, ya está la palabra. Las cosas entran en
lo real buscando la palabra” (MOYANO, 1981, p. 48).
Entonces los Aballay van creando lentamente un complejo sistema
cuyos signos son los sonidos de las cucharas y los tenedores. El abuelo
registrará cada nueva palabra y construirá el diccionario y la gramática. Las
derrotas del viejo lenguaje son efectuaciones del lenguaje inventado: las
palabras se vacían, se pierden, mueren y, casi al mismo tiempo, renacen en
gestos y sonidos. En el nuevo nombre reaparecen las formas de la vida del
pasado, se recupera la propia identidad. El sentido de libertad ‒ que
implica decidir la manera de representar el mundo, de construir una
imagen propia en un lenguaje propio ‒ inserta la utopía. (Sabemos que una
de las condiciones de la utopía para desplegar su condición crítica de
“mundo al revés” es la construcción de una lengua hecha con restos de la
lengua del lugar que se ataca).
Es por eso que el silencio de los Aballay que Nabu traduce como
aceptación es un grito de lucha que se articula en los gestos de los cuerpos,
en los golpes diminutos de las cucharas. La quema de los libros, la orden
de aprender a hacer papirolas, los discursos ejemplarizadores de las
conductas son las estrategias de Nabu para clausurar el mundo de los
Aballay. Moyano diseña una alegoría sobre el poder y la dictadura
mediante la relación de los sonidos, los ruidos y el silencio. Como John
Cage, Moyano piensa el silencio como productor de sentidos. Se trata de
“La anarquía del silencio” para decirlo en términos de Cage. En la tensión
entre dos lenguajes se define la propuesta utópica de la novela, pero el
lenguaje nuevo tiene formas inventadas.
En la actual etapa de revolución, está justificada
una saludable anarquía. Es necesario llevar a cabo
experimentos golpeando cualquier cosa ‒
cazuelas de latón, cuencos, tuberías de hierro ‒,
cualquier cosa que caiga en nuestras manos. No
solo golpear, sino frotar, hacer sonidos de
cualquier forma posible (CAGE, 2002, p. 220-
222).
141
La cita de Cage parece la condensación del experimento narrativo de
Moyano.
El vuelo del tigre muestra con eficacia cómo el programa de la
resistencia comunitaria insiste en la fuerza de la utopía, nos enseña una de
las caras del Estado e instala el debate.
La muerte y el exilio precipitan el desenlace del relato. El asesinato
del Cholo y la confinación del abueloen el patio de la casa conjugan una
fractura que parece marcar el final de la familia. Sin embargo, el viejo
logrará la forma perfecta de la liberación. El mundo natural ofrece
significaciones que el anciano reconoce y sobre ellas adquirirá un saber y
una técnica que finalmente llevará al tigre por los aires, lejos de la casa,
lejos del pueblo. El happy end de la novela tiene, sin embargo, una vuelta
de tuerca en la construcción del futuro: “Tenemos que hacer un cerco que
no sea cerco, de modo que el tiempo no se quede ahí encerrado, porque
el tiempo es muy largo y contiene todas las migraciones. El tiempo tiene
que poder ir y volver como los pájaros” (MOYANO, 1981, p. 118).
Sabemos que la cita dice verdad. Sabemos que si el cerco que no
es cerco no se construye y no se mantiene con la memoria, con la ley
reparadora y con la fuerza de la justicia y de la equidad, el tiempo vuelve y
regresan las zonas más terribles y perversas de ese pasado. La historia de
la novela es comunitaria pero también lo es la definición de literatura que
Daniel Moyano tiene porque nos implica. Siguiendo a Jean-Luc Nancy,
piensa en la literatura como el lugar posible de la comunidad y acuña su
concepto de “comunismo literario” como una experiencia del “estar con”.
Cada escritor, cada obra, inaugura una
comunidad. De ese modo hay un irrecusablee
irreprimible comunismo literario, al cual
pertenece malquiera que escriba (o lea), o intente
escribir (o leer) exponiéndose – no imponiéndose
(y quien se impone sin exponerse en absoluto, ya
no escribe, ya no lee, ya no piensa, ya no
comunica). (NANCY, 2007, p. 89)18

18
Para fundamentar este concepto Nancy revisa la noción de comunidad en Marx así
como los atributos de las primitivas comunidades cristianas: “La comunidad significa aquí
la particularidad socialmente expuesta, y se opone a la generalidad socialmente
implosionada propia del capitalismo. Si hubo un acontecimiento del pensamiento
142
LA MEMORIA Y EL EXILIO

Héctor Tizón nació el 21 de octubre de 1929 en Yala, provincia de


Jujuy. Es abogado, periodista, diplomático, exiliado y “regresado”, como
a él le gusta decir. En La casa y el viento, novela del exilio, Tizón nos propone
la crónica de los últimos días de un hombre que decide irse “Desde que
me negué a dormir entre violentos y asesinos”, segúnnos dice al principio
del relato (una representación literaria de su propio exilio, de las causas y
las consecuencias). El viajero se demora en el tránsito hacia la frontera
porque tiene el propósito de poner a salvo su identidad mediante la fuerza
de la memoria. El conjuro se puede llevar a cabo si se observa con cuidado
las imágenes que se abandonan, si se escucha el relato de los que se quedan.
El retazo de la biografía de un hombre que se va y que decide su identidad
en la memoria de la identidad colectiva. Desde el exilio escribirá ese
registro minucioso. El viajero de Tizón amplifica y completa la escena
primera y fundante del que debe irse de esta tierra: la escena del Facundo
de Sarmiento. Cuerpo y letra se conjugan en una representación de la
tragedia de la partida. El exiliado se aleja herido y golpeado en el Facundo.
La marca en el cuerpo muestra las formas de la barbarie; la cita en francés
pone en evidencia al provinciano culto y la ignorancia del tirano. En La
casa y el viento, el narrador también debe alejarse pero en ese recorrido
descubre la forma de la resistencia. En uno y en otro, la escritura tiene la
fuerza del combate. En los dos textos, el enlace entre las heridas en los
cuerpos y las huellas de la escritura dibuja el borde del exilio. Mientras la
cita en francés de Sarmiento es la evidencia de una paradoja del siglo
pasado que la mala traducción confirma: la lengua extranjera es la lengua
del letrado que debe construir la literatura nacional; en el relato de Tizón,
la lengua propia del relato colectivo se hará escritura en el tiempo del
destierro.19

marxista, y si no lo hemos finiquitado, éste tiene lugar en la apertura de este pensamiento”


(NANCY, 2007, p. 89).
19 El Facundo de Sarmiento tiene en el comienzo tres escenas fundantes. La segunda

escena comienza con un epígrafe que funda un sistema de traducciones “equivocadas”.


La traducción del autor “nacionaliza la cita”, dice Ricardo Piglia. Sarmiento “traduce” la
frase “O ne tue point les idées” por “Los hombres se degüellan, las ideas no”. No hay
143
En Las armas y las razones, un libro escrito en el exilio mexicano,
Noé Jitrik muestra desde el principio su condición de exiliado que se hace
condición de la escritura. En esa figura se dibuja una línea de fuga entre el
cuerpo lejos de su lugar, forzosamente alejado, y la palabra que se acerca,
que busca la forma del enigma. Jitrik (1984, p. 16) señala al principio del
libro que “el exilio es una cuerda que se estira y se estira y el cuerpo, que
lo soporta, da siempre un poco más”, y agrega: “gracias a que salí de la
Argentina [...] pude tomar distancia y pensar ciertas circunstancias de mi
país que allí, por mis propias limitaciones y pasiones, no había logrado
siquiera encarar”. Entonces, la resistencia: “sentir que un país es nuestro,
porque es nuestro su sentido, sentir que un continente nos importa porque
sus imágenes no se nos pueden expropiar, aunque nos pongan en las orillas
del goce efectivo de la propiedad de los bienes terrenales”.
El narrador de la novela de Tizón también lo sabe:
Este será, al menos en mis apuntes, el testimonio
balbuceante de mi exilio; pero quisiera que lo
fuese también de mi amor a esta tierra y a los
hombres, a mis vecinos en los días en que se
acobarda, aterroriza y mata [...] el testimonio de
alguien que en un momento se había puesto al
servicio de la desdicha, que ahora huye pero anota
y sabe que un pequeño papel escrito, una palabra
malogra el sueño del verdugo. (TIZÓN, 1984, p.
120)
La experiencia del exilio es intransferible; sin embargo, la figura del
que se va es un fantasma que asalta el presente no sólo para aquellos que
son arrojados fuera de las fronteras geográficas sino para quienes viven un
exilio más sutil y degradado, que vacía la memoria, que destruye la
narrativa de una nación, que nos deja a la intemperie, excluidos de las
formas epifánicas de la patria.
Volver es entonces dibujar otra vez el mapa propio, reconocer las
borraduras y saber que se regresa a una tierra arrasada, pobre y mínima y,
como el viajero de Tizón, entonces, tomar la decisión de contar otra vez
la historia.

degüello en francés; la cita en español es una apropiación que se legitima porque en el


matiz de la lengua está la denuncia.(Cf. BUENO, 2000).
144
En el diseño de estas escenas literarias encontramos zonas de
legibilidad de la utopía, entendida como “función” que se despliega en el
concepto de lo todavía-no, de lo aún no acontecido, como lo desarrollara
Ernst Bloch en el Principio Esperanza (1980). La utopía entonces se
convierte en dimensión antropológica esencial que está siempre en trance
de realización. De lo que se trata es de categorizar ese gigantesco ámbito
de lo que todavía-no-ha-llegado-a-ser. Es ahora, en la situación presente,
dice Bloch, cuando nos encontramos con los presupuestos económico-
sociales necesarios para una teoría de lo todavía-no-consciente. La función
utópica, prosigue Bloch, es la actividad del presentimiento de la esperanza.
El contenido histórico de la esperanza, representado primeramente en
imágenes, indagado enciclopédicamente en juicios reales, es la cultura
humana referida a un horizonte utópico concreto. La literatura, como
señala Eduardo Grünner (1992), en “su estructura de ficción articula una
verdad que se puede leer entre líneas”. Es en este sentido que participa de
esa suerte de anticipación cultural que reclamaba Bloch, que excede la
ideología en la situación concreta, es decir, les da nada menos que el
“substrato de la herencia cultural”. En toda gran expresión de la cultura
humana, según Bloch, existe un “espíritu de la utopía” e incluso en el seno
mismo de las ideologías existe un “excedente susceptible de ser recogido”.
“La función utópica arranca los usos de la cultura humana de este lecho
corrompido de la mera contemplación; y abre así, desde cumbres
verdaderamente escaladas, la visión no falseada ideológicamente del
contenido de la esperanza humana” (BLOCH,1980, p. 234). La literatura,
un reducto privilegiado de esa dimensión utópica, como tal, reclama de
sus lectores el ropaje de Rafael Hithloday, el portugués viajero de Tomás
Moro, por lo menos, lo que la etimología de su nombre significa “expertos
en sinsentidos”, es decir, buscadores de sentido futuro.
El narrador de la novela de Tizón busca el registro de la memoria
colectiva para escribir en el exilio los relatos de la comunidad que
abandona. Cada recuerdo personal se enlaza con un fragmento de la
historia de esos pueblos. Se establece entonces un juego de oposiciones
entre los saberes. Por un lado, el saber del viajero que proviene de sus
experiencias y sus lecturas; por otro, el saber de los habitantes fundado en
la tradición y las creencias pero también en la supervivencia cotidiana. El

145
cruce de estos saberes marcará el cambio del narrador que aprenderá a
escuchar.
Pero antes de huir quería ver lo que dejaba, cargar
mi corazón de imágenes para no contar y a mi
vida en años si no en montañas, en gestos, en
infinitos rostros; nunca en cifras si no en ternuras,
en furores, en penas y alegrías. La áspera historia
de mi pueblo. (TIZÓN, 1984, p. 10)
Es en este sentido que La casa y el viento define ese doble sentido
del concepto de comunidad que señalábamos anteriormente. Si bien la
perspectiva del narrador en primera persona pareciera centrar el relato en
la experiencia individual, su “comunismo literario” funda un “nosotros”
en esa doble figura: relato y escritura. En La comunidad inconfesable (1999),
Blanchot – leyendo a Bataille ‒ piensa la comunidad desde dos modos
principales: encuentro en la escritura ylugar de los amantes. Para Blanchot,
estos modos definen y complementan el sentido de la experiencia interior.
La “pluralidad de otros” es condición del principio de incompletud que
constituye al hombre. Tizón subsume estos dos sentidos en la posibilidad
de la comunidad literaria, entendida como el lugar donde expongo mi
escritura y la hago comunicable para otro.
La historia de Belindo, el coplero, es el eje de los relatos de los
habitantes de la región. El que se va rescata la biografía del cantor a través
del relato de los otros y de sus propios recuerdos de infancia:
Cuentan que en el arte de parear versos nadie
igualó a Belindo de Casira. Mi abuelo, con las
imágenes mezcladas por la edad, acostumbraba a
citarlo como un testimonnio prestigioso al
recordar su propia niñez, pero también en la mía
su historia aúnera viva. Por ello es que elcantor
llegó a una edadinalcanzahle hasta entonces, o
enrealidad fuerondos o más los llamados con
igual nombre (TIZÓN, 1984, p.38).
El mito del coplero se diseña en una polifonía fragmentaria que
tiene dos notas fundamentales: la búsqueda del verso perdido de la copla
y la muerte en un duelo con un extranjero. Solo en el momento de su
muerte, el cantor tuvo acceso a la revelación de su búsqueda. Por lo tanto,

146
la comunidad no conoce el verso perdido de la copla. En ese verso parece
residir el conjuro contra el olvido. El viajero perseguirá, como antes lo
hiciera Belindo, esa clave remota y transformará el canto del coplero en
escritura. La experiencia individual del que huye se transmuta en Erfahrung
comunitaria porque el narrador puede escuchar las voces de los otros
donde están las resonancias del canto del coplero. Jean-Luc Nancyutiliza
el doble significado de la palabra entendre en francés (escuchar y entender)
para reflexionar sobre la forma en la que el sujeto experimenta el mundo.
“Estar a la escucha” es para Nancyuna suerte de revelación de una
resonancia secreta que permite al sujeto una percepción atenta de aquello
que casi no se distingue; es “ingresar a la tensión y el acecho de una
relación con uno mismo” (NANCY, 2007, p. 29).20 El narrador de Tizón
tiene esa doble capacidad para interpretar el mundo: escucha y entiende y
lleva en la memoria aquello que hará escritura. Transforma el mito en
literatura.
Foucault define el pensamiento del afuera como “El pensamiento
que se mantiene fuera de toda subjetividad para hacer surgir como del
exterior sus límites, enunciar su fin, hacer brillar su dispersión y no obtener
más que su irrefutable ausencia, y que, al mismo tiempo, se mantiene en el
umbral de toda positividad” (FOUCAULT, 1997, p. 17-18). Nos parece
que las novelas que presentamos están construidas desde ese pensamiento
que se mantiene en el exterior de sus límites y que, como señalábamos al
principio del artículo, lucha contra la reificación. Se trata de una literatura
que quiebra las fronteras para encontrar el vacío que le sirve de lugar de
enunciación y de experiencia. La ficción es una estrategia, un artefacto de
este pensamiento que busca crear pensamiento.21 De ahí la noción de
comunismo literario que citábamos anteriormente.

20 Completamos la reflexión de Nancy: “No, es preciso subrayarlo, una relación ‘conmigo’


(sujeto supuestamente dado), ni tampoco con el ‘sí mismo’ del otro (el hablador, el
músico, el supuestamente dado con su subjetividad), sino la relación en sí, para decirlo de
alguna manera, según forma un ‘sí mismo’ o un ‘consigo’ en general, y si algo
semejantesucede al final de su formación.” (NANCY, 2007, p. 29).
21 Completamos la cita de Foucault: “La ficción en tanto que universo representativo de

tiempo, espacio y causalidad significados en un sujeto libera a la ficción de las lógicas


tradicionales y postula la apertura de todas las posibles lógicas de tiempo, espacio y
causalidad. Al explorar estas posibles lógicas, la ficción se aleja del régimen de lo verosímil
147
Toni Negri decide su vuelta desde el exilio a Italia en 1997 para ser
encarcelado: así explica su decisión. “Volver a Italia, volver a la cárcel: ¿por
qué? Para imponer a través de la fuerza de un acto de testimonio que, aun
siendo personal, era también colectivo ‒ la necesidad ahora ineludible ‒
de una solución política al drama que desde hace veinte años se anuda en
torno a las políticas de los años 70” (NEGRI, 1998, p. 17). Héctor Tizón
también vuelve al país luego de la Dictadura pero su testimonio fue
literatura.
“Nunca miramos sólo una cosa; siempre miramos la relación entre
las cosas y nosotros mismos”, dice John Berger (2000, p. 14).22 Las tres
novelas son representaciones de esa relación compleja con las cosas de un
período histórico nefasto de la Argentina. Sus autores deciden construirun
caleidoscopio donde el abuso del poder, la marca de los cuerpos, la tortura,
el exilio, la resistencia comunitaria y la utopía son dispositivos de los
relatos que analizamos.
Juan Duchesne Winter (2009, p. 22) siguiendo a Jean-Luc
Nancysostiene que “el comunismo literario podría constituir, en fin, en
una de las prácticas que persiguen contribuir a crear un nuevo horizonte
de transformación de la vida contemporánea desde la trinchera de la
cultura y la literatura”. A partir de esta premisa Winter construye una
genealogía latinoamericana fundada en el concepto de “comunismo
literario”. Estas tres novelas bien podrían formar parte de esa genealogía.

y profundiza en las leyes de su propia constitución, en su productividad” (FOUCAULT,


1997, p. 17).
22“Lo que sabemos o lo que creemos afecta el modo en que vemos las cosas”, agrega

Berger (2000, p. 45). Es evidente que la experiencia da con respecto a la cosa en sí una
definición que el ojo reconoce. La experiencia estética trabaja de la misma manera, el
objeto (el artefacto) se define como objeto artístico y el ojo recupera esa definición.
148
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150
Regionalismos e construções enunciativas:
espaços, vozes e memórias na narrativa andina
peruana23
Rosane Cardoso

Este artigo apresenta uma leitura sobre o espaço, a memória e o


discurso na narrativa peruana contemporânea, especialmente a andina.
Pensando-se a partir desta narrativa, discutem-se as conceituações de
“regionalismo”, “indigenismo”, “neoindigenismo” e “criollismo”, além do
eterno embate entre a costa e a serra. Percebendo que “lo andino”
extrapola determinado espaço e se amplia para “um discurso sobre” e para
um enunciador, reflete-se, neste estudo, sobre como esta enunciação se
vincula com a memória a respeito dos conflitos políticos, étnicos e sociais
que marcaram a história do Peru desde suas origens e que, recentemente,
têm fomentado um número significativo de obras que tanto revisitam a
tradição quanto a reatualizam mediante um olhar para além da localidade
em determinado espaço e cultura. Com isso, a narrativa andina se constitui,
sobretudo, por um discurso múltiplo, migrante, questionador, como
espera-se demonstrar nas linhas que seguem.
Na primeira metade do século XX, a América Hispânica focaliza
um escopo narrativo de enfoque fortemente rural, apresentando zonas
geográficas particulares. As obras tanto podem ser o reconhecimento
geográfico de determinada região quanto um agudo chamamento crítico à
situação local. A América se desvela, pois, nas nuances da serra, da costa,
do pampa, da selva, apresentando, na mesma medida, o gaúcho, o índio,
o negro e o mestiço do mundo não urbano. Aliás, logo se estabelece a
franca oposição entre campo e cidade. Essas variações foram tratadas, na
literatura, como criollismo, nativismo, regionalismo, indigenismo. Os
termos se confundem frequentemente, embora cada vez mais se busque

23
Este artigo foi publicado, com modificações, no periódico Cadernos do IL, 2016, sob o
título “Regionalismo e construções enunciativas na narrativa andina peruana”. No
referido artigo, são debatidos os escritores peruanos que formam o principal eixo da
discussão sobre indigenismo, bem como são ampliados os conceitos de transculturação,
heterogeneidade e hibridismo, à luz das reflexões de Ángel Rama e de Antonio Cornejo
Polar.
151
diferenciar o regionalismo do indigenismo. Em culturas nas quais o índio
tem um destaque tão acentuado, é natural que se faça essa distinção. Mais
do que natural, a diferenciação faz parte de uma longa trajetória de
reivindicações. Aldrich, em idos dos anos de 1980, propõe a seguinte
diferenciação entre um e outro:
A veces ambos términos se emplean como
equivalentes, pero conviene hacer una distinción:
el indigenismo comprende la literatura publicada
en países donde el indio es el tipo racial
preponderante – en especial región andina – en
la cual hay una clara preocupación en exponer y
denunciar la injusta situación del mismo. El
regionalismo se reserva para la narrativa no
andina en que tienen mayor importancia otros
tipos, el gaucho o el negro, por ejemplo, y otro
ambiente físico, la pampa o la selva. (ALDRICH,
1980, p. 3)
Estudos posteriores vão questionar imensamente a simplicidade
com que Aldrich observa a situação. O indigenismo é uma corrente
literária ligada ao regionalismo e de grande repercussão nos anos de 1940.
José Carlos Mariátegui (2009), reconhecido intelectual peruano, via no
indigenismo uma forma de tradução do estado de consciência de um novo
Peru. Buscando trazer à tona todas as reivindicações da cultura indígena,
obviamente extrapolou o âmbito da literatura, estabelecendo-se como um
ato social e político. Dentre os representantes literários, destacam-se José
María Arguedas e Ciro Alegría. São textos que sublinham o conflito entre
o mundo andino e o mundo ocidental. Nas obras, é possível perceber
tanto a opressão sofrida pelos indígenas como a permanência das
instituições coloniais, do ponto de vista do tratamento dado aos nativos,
assim como a legitimidade permitida a uma ordem social injusta. A nova
narrativa problematiza a chamada “novela de la tierra”, pois a fórmula
empregada pela narrativa criolla começa a esmaecer diante do vigor
indigenista (SHAW, 2005).
O indigenismo exige, de certo modo, que se fale do indianismo
que também esteve atrelado à literatura peruana, assim como à de vários
países colonizados. A imagem do índio, vinculada a uma ideia de nação,

152
compunha um tremendo paradoxo entre o homem ideal e o preconceito
mais explícito. Fosse ao longo do Romantismo, do Realismo ou do
Modernismo, sempre se mostrou como uma representação que não
contemplava o homem índio real, nem suas necessidades, ademais de sua
voz estar sempre sujeitada ao discurso de outrem. Esta é a principal
diferença entre o indianismo e o indigenismo, pois este consiste na
reivindicação dos direitos indígenas (CORNEJO POLAR, 1979), ainda
que recorra, como no indianismo, à idealização, mas aqui com base em um
passado de harmonia antes da chegada dos conquistadores:
En determinadas circunstancias aquel pasado se
retrotrae hasta la época prehispánica, lo que en
algún momento generó la utopía de una
restauración del Incanato, pero en otras
ocasiones, mucho más numerosas y significativas,
basta con fijar un tiempo anterior a la explotación
que se narra y denuncia. (CORNEJO POLAR,
1979, p. 63)
Segundo Franco (1983) e Cornejo Polar (1979), Aves sin nido,de
Clorinda Matto de Turner, escrita em 1889, é a precursora da literatura
indigenista, embora outros críticos nem sempre apoiem esta teoria, tendo
em vista que, apesar de tratar de problemas indígenas, é escrita da
perspectiva não indígena. Essa vem sendo, aliás, a discussão que permeia
os conceitos de indigenismo, de neoindigenismo ou mesmo de andino.
Mariátegui expõe sua preocupação com os limites tênues entre o
indianismo e o indigenismo no que tange à escritura literária: o exotismo
do primeiro substituído por uma fala não indígena sobre aquilo que seria
o compromisso reivindicatório que pressupõe o segundo. Em Aves sin nido,
a autora expõe os abusos sofridos por indígenas, as contínuas violações
perpetradas às mulheres e a impunidade dada aos agressores. Turner, no
entanto, está claramente alicerçada por uma obra anterior, de 1848, de
Narciso Ariéstegui, El padre Horán, em que as mesmas atrocidades fazem
parte do cotidiano dos índios. É claro o discurso reformista do autor e a
narrativa estabelece um dos motivos literários mais recorrentes da
literatura peruana até os dias de hoje, o de marginalidade indígena. À
diferença de Ariéstegui, Turner denuncia e cobra que o feudalismo

153
remanescente na estrutura social peruana dê lugar a uma sociedade liberal
baseada no progresso industrial (KRISTAL, 2004, p. 338).
O neoindigenismo, como tendência literária, nasce de um
argumento de Tomás Escajadillo (2015), defendido em 1971. Para ele, é
uma corrente que coincide com o boom e se iniciou em meados dos anos
de 1950. Portanto, compreende o realismo mágico, o real maravilhoso, é
urbanista andino e cosmopolita; constrói-se a partir de uma perspectiva
poética e pessoal sobre os Andes. Porém, logo essas concepções serão
derrubadas principalmente por Juan Zevallos, já que não se aplicam a
produções de referente andino, pois tanto Escajadillo quanto Miguel
Ángel Huamán – outro defensor da ideia – partem de um discurso
acadêmico limenho e, deste lugar “enuncian discursos con varias
mistificaciones concernientes a la producción literaria del indigenismo y
del neoindigenismo” (OROZCO, 2011, p.33). Essa tendência literária
rompe, em larga medida, com o realismo atinente ao indigenismo, pois
envolve um intenso misticismo, o que levou parte da crítica a situar
Arguedas no gênero.
Neste estudo, aborda-se a narrativa andina que, a partir dos
estudos de Huamán (OROZCO, 2011), possui destacada diferença do
regionalismo/indigenismo e do neoindigenismo. Nela se apresenta outra
problemática de ordem política, pois são os narradores considerados nas
categorias citadas que não aceitam tais denominações, preferindo o
reconhecimento como escritores andinos, como contraponto à crítica
miraflorina24, designação contumaz de Luis Degregori para referir a crítica
limenha. De acordo com Orozco (2011), o reconhecimento do aporte
andino não se reduz ao campesino, ao rural, ao racial e menos ainda ao
espaço geográfico. Ele se articula em termos culturais e políticos, como
proposta simbólica e estética capaz de construir sua própria escritura
literária. As especificidades da narrativa andina seriam, então: a) a
referência à tensão simbólica da cultura peruana: migrações, reforma
agrária, violência política; b) a adaptação da expressão indígena (o
castelhano andino); c) a utilização de técnicas da narrativa urbana de
vanguarda; d) a posição entre o indigenismo e a nova narrativa; e e) o

24Referência a Miraflores, bairro de classe alta de Lima/Peru, aqui como metáfora da


crítica limenha.
154
enfrentamento da tradição com a modernidade (o andino e o ocidental),
além da síntese de tal dicotomia. (OROZCO, 2011, p. 41).
Para Juan Alberto Osorio, segundo os apontamentos de Mark Cox
(2002), a narrativa andina é a superação do indigenismo e do
neoindigenismo. Produzida por intelectuais de classe alta ou média
provincianas, frequentemente professores universitários influenciados por
elementos culturais de origem indígena, permite que se perceba a fundo
questões relacionadas ao sincretismo cultural. Também, ao tornar o
referente mais abrangente no universo representado, amplia os elementos
espaciais e sociais, fazendo convergir, por exemplo, o mestiço e a
perspectiva urbana. Lima se torna o centro das discussões, já que é um
foco de atração de migrantes de diversos estratos sociais provincianos.
Híbrida, a narrativa andina peruana se permite unir o realismo tradicional
ao realismo mágico, expressões culturais indígenas e ocidentais, ficção e
história. A esta perspectiva, Cox acrescenta:
Surge de la tradición indigenista y neoindigenista,
pero es más amplia, reflejando los cambios en la
sierra peruana en las últimas décadas. Ya para
1980 comienza a formarse una infraestructura
que puede ayudar a promover a una nueva
generación de escritores. Estos escritores han
nacido mayormente después de la segunda guerra
mundial hasta los comienzos de los años sesenta.
La violencia política es un tema importante
dentro de la narrativa andina, la cual está en una
posición subordinada en relación con la narrativa
criolla. Y, finalmente, la narrativa andina presenta
otra perspectiva de la modernidad. (COX, 2002)
Para Dorian Espezúa, “lo andino es lo híbrido, lo transcultural, lo
sincrético o lo disglósico” (ESPEÚZA apud OROZCO, 2011, p. 43).
Desse modo, todos os olhares são válidos, tanto o do “outro” que traduz
ou interpreta, quanto o do “eu” que inclui, assimila e compreende o que
lhe é culturalmente distinto. Então, Espeúza propõe cinco características
para a narrativa andina: a) é produzida por escritores provincianos, da
serra, e por outros que vivem em Lima, todos considerados mestiços,
sincréticos ou transculturados; b) o leitor da narrativa andina é o público

155
migrante provinciano em Lima, seus filhos ou as classes sociais letradas
das cidades e do interior do país; c) ocorre a ampliação do referente
andino, especialmente do sujeito e da cultura. O mundo representado é o
urbano serrano ou o costeiro andino, não o rural; d) a ampliação de
horizontes do escritor que tem inserção em qualquer espaço do mundo,
seja no modo de construir a narrativa, seja na recepção da obra; e e)
abordam a violência política no Peru, “depósito de nuestra memoria,
nuestra historia, y nuestro pasado.”(ESPEZÚA apud OROZCO, 2011, p.
45).
Porém, é necessário considerar, ainda, as diferenças entre a
narrativa andina e a narrativa criolla. Degregori (2007) destaca que tais
diferenças não são de caráter geográfico, como muitos postulam, mas
sociocultural. A narrativa andina, desde seu surgimento, sofre uma
situação de subalternidade por seu interesse por temas rurais e pelos pueblos
da serra, o que significa representar as vozes periféricas da realidade
peruana. Somente nos anos de 1990, o termo “narrativa andina” passa a
referir um tipo de produção literária diferente da criolla, com autores
unidos no esforço de oferecer uma imagem ampla do Peru, com variados
setores sociais e com temas pertencentes ao imaginário andino, à
revalorização da tradição e à violência política (LEIRIA, 2014).
Na mesma época, os autores criollos, até então voltados para temas
urbanos, também começam a escrever sobre o conflito armado entre o
Sendero Luminoso e o Estado e as consequências de “La Guerra
Sucia”.De acordo com Mark Cox, no ano de 2003, já existia um corpus
com 192 contos e 46 novelas publicados por 104 escritores, sem contar as
várias obras inéditas (COX, 2002).Destacam-se algumas obras dentro do
corpus de escritores andinos e criollos que refletem sobre a violência social
e política no Peru, segundo levantamento de Leiria (2014).
Em Adiós Ayacucho (1986), Julio Ortega resgata do esquecimento
os mortos da guerra através da luta do povo andino para que o Estado se
mobilize contra os abusos cometidos pelos militares. Luis Nieto Degregori
se dedica ao conto de cunho social, publicando, em 1990, Con los ojos para
siempre abiertos e Señores de estos reinos (1995). Em Las mellizas de Huaguil, de
Zeín Zorrilla, são representados os dramas gerados pela transformação
das sociedades andinas devido ao processo de migração urbana. La violencia
del tiempo (1991), de Miguel Gutiérrez, assinala o achatamento das classes

156
sociais baixas pela opressão dos abastados em uma sociedade fortemente
marcada pela diferença social.
Destaca-se também o romance histórico através de Luis Enrique
Thord, com Sol de soles (1998), Fieta Jarque, com Yo me perdono (1998),
Francisco Carrilo, com Diario del Inca Garcilaso (1996) e Óscar Colchado
Lucio, com ¡Viva Luiz Pardo! (1996). Entre os romances sobre a violência
política, relacionados ao Sendero Luminoso, estão Abril rojo (2006), de
Santiago Roncagliolo, narrativa sobre um período posterior aos
enfrentamentos internos e suas sequelas, e Alonso Cueto, cujo
reconhecimento crítico ocorre com Deseo de noche (1995), Amores de invierno
(1994), El vuelo de la ceniza (1995),Cinco para las nueve y otros cuentos (1996),
Grandes miradas (2003) e La hora azul (2005).
Embora este levantamento seja exaustivo, ele é essencial para
captar-se a complexidade da literatura peruana e andina peruana que,
conforme se viu, supera o espaço – literatura sobre os Andes e sobre o
homem andino – para passar a discurso, o que em nada a simplifica, como
alerta Degregori: “Si se olvida que la sociedad peruana es pluricultural y
profundamente fragmentada, se puede caer muy fácilmente, al emprender
el estudio de sus literaturas, en la banalización de sus diferencias.”
(DEGREGORI, 2007, p. 56)
Contudo, não se pode negar que há o desejo de chamar a atenção
e em manter a identidade cultural dos Andes, como claramente acenam as
obras de Enrique Rosas Paravicino, que pauta seus textos justamente no
choque entre o tradicional e o contemporâneo. Uma de suas principais
obras, El Gran Señor, toma por objeto a peregrinação de El Señor de
Qoyllurit´i, festa que celebra os costumes do sul andino. Dela participam
peregrinos, aventureiros, curiosos e grupos musicais e de dança. O evento
é anual, acontecendo em meados de junho. Paravicino apresenta ao leitor
as tradições que sobrevivem ao tempo, a despeito das radicais mudanças
e “aborda un simbolismo donde la fe define un sincretismo religioso entre
lo pagano y la cristiandad” (AGUIRRE, 1996, p. 530):
Rosas Paravicino recrea el paisaje social y cultural
de las estribaciones de la Cordillera Oriental, con
un estilo introspectivo para describir las
características psicológicas de los personajes que
construye. El resultado motiva la reflexión

157
necesaria sobre el viajero arquetípico, y su
condición metafísica entre lo transitorio y lo
inmutable, entre la destrucción y la salvación.
(AGUIRRE, 1996, p. 531)
As palavras de Aguirre apontam para as questões sobre as novas
perspectivas regionalistas referentemente à tensão. Veja-se que o espaço e
os costumes construídos pelo autor ultrapassam a si mesmos, pois, de fato,
validam o homem na sua interioridade e no impacto que a cultura causa
nele. O retorno a um conhecimento ancestral se apresenta como
necessidade a ser vivenciada, tanto pelo indígena quanto pelo citadino. O
romance de Paravicino, porém, não se esquiva ao problema da violência.
Entremeados à retomada do folclore andino, bem como a várias histórias
que vão construindo o texto, aparecem grupos armados e se estabelece um
conflito violento entre os fiéis e os invasores. Com isso, a vilania se amplia
ao profanar o sagrado:
La guerra interna ha marcado a fuego vivo
nuestra cultura en las últimas décadas. Y como
parte de ello, la creación literaria, más
específicamente la novelística, por su condición
de género totalizador refleja y procesa de varias
maneras el ciclo violento que la sociedad peruana
vivió a fines del siglo XX. Siempre un novelista
aspira a comprender e interpretar su época. En
ese afán, extrae la savia de su creación de la mata
misma de los sucesos de su tiempo. Si la psiquis
colectiva está tatuada de tragedia y dolor, es
lógico que la novela peruana esté al nivel de ese
estado de ánimo. Rosa Cuchillo, Abril rojo, La hora
azul, Retablo, La niña de nuestros ojos, entre otras,
son evidencias de que hay una nueva ruta
avanzada en el
género.(PARAVICINO/VELITA, 2010)
Nesse contexto, também se destaca Óscar Colchado Lucio que,
segundo Galgo (2000), em seu referente geográfico, é regionalista. No
entanto, está distanciado do regionalismo da primeira metade do século
XX e mais próximo das obras dos anos de 1960 e 1970, pelo

158
experimentalismo, realismo mágico, crítica social e pela linguagem híbrida
que mistura quéchua e andino. Porém, uma leitura atenta da obra
demonstra que denominar o romance de regionalista ou juntar todas as
características supracitadas não é o suficiente, pois cada uma das premissas
de Galgo pode ser rebatida, conforme aponta Orozco (2011): “el texto no
solo efectúa una denuncia social, sino que esboza a su vez un proyecto
político; amén que el lenguaje híbrido es el castellano quechua o
andino.”(OROZCO, 2011, p. 32)
A par dessas considerações de Orozco, e contemplando-se outras
obras atuais, pode-se perceber que o projeto político da narrativa andina
contemporânea promove uma intensa vinculação com a memória. O
texto literário assume o papel de revigorar uma voz, um idioma ancestral,
seja por manter a denúncia sobre a violência, em sentido amplo, na pauta
do dia, seja por rememorar o que a história oficial não consegue, ou não
pode, ou não quer dizer.
Considera-se pertinente relacionar memória e região, ao discutir a
narrativa peruana contemporânea, justamente por esta vinculação com o
periférico, sejam as vozes que atualmente são ouvidas imiscuindo-se à
história oficial, seja pela grande variedade de textos literários que têm
como referente o mundo chamado andino. Como assinala Galgo (2000),
é uma produção de posição marginal e limitada, majoritariamente, ao
âmbito cultural peruano. Para o crítico, o regionalismo é uma manifestação
em constante movimento que deve ser entendida para além de uma
fórmula estética restrita, ou, conforme ensinou Ángel Rama, uma força
criadora que segue atuante no sistema literário latino-americano (RAMA,
1987). Nesse sentido, Galgo prefere o termo “literaturas regionais”.
O regionalismo – destacando o que entendemos por regionalismo,
isto é, a tensão entre o campo e a cidade, os movimentos migrantes, “lo
andino” como discurso – permite “un sentimiento de pertenencia a una
comunidad propicia a la solidaridad social necesaria para poder resistir a la
homogenización cultural que supone la globalización de la economía”
(GAGNON, 2005, p. 116). Os romances sobre os conflitos políticos,
étnicos, sociais, ressignificados pela memória, promovem a atualização da
diversidade cultural, os múltiplos sentidos dados à tradição, o hibridismo
estético, situações que remetem, em certa instância, à heterogeneidade
como expressão artística e cultural. A narrativa contemporânea em

159
questão regionaliza sem ser um gênero e sem opor-se à abertura global.
Ela acentua que o entre mundos pode criar realidades e identidades
importantes para os sujeitos. Representar determinada cultura, assim, é
estar possibilitado de posicionar-se frente ao global. Fala-se a partir de um
lugar, de uma tradição e de uma identidade que se ampliam para uma rede
de relações no mundo.
A narrativa andina se manifesta pela expansão permanente de
vários aspectos do mundo andino, sejam questões pessoais ou da vida
cotidiana que se mesclam com os conflitos sociais. Com isso, a percepção
pautada pela ideia de regionalizar a literatura andina, categorizando-a,
pouco a pouco vai se tornando um problema de enunciação, da
perspectiva do homem que observa o mundo andino a partir de si e do
seu entorno.
É essencial deixar claro que não se entende identidade regional
como algo estático, em oposição à constante mobilidade do mundo atual.
As narrativas sobre os conflitos comprovam isso ao romperem com
paradigmas de escritura, ao coadunarem testemunhos biográficos e
ficcionais, ao abandonarem a aparente dicotomia autor/narrador, ao
estabelecerem uma narrativa centrada no “eu” que precisa narrar e buscar
no “outro” um modo de compreensão para o passado que efetivamente é
necessário para a elaboração do presente. Dado que o entendimento é um
processo, compreende-se que a aproximação à história, aos costumes e
aos espaços do país é um modo legítimo de conhecer as variadas
identidades de um país de grandes contrastes culturais como é o caso do
Peru. A narrativa andina se constrói na heterogeneidade, mantém
proximidade tanto com o neo quanto com o indigenismo:
Lo andino no está dado por el lugar de
nacimiento o residencia de los autores sino en la
manifestación de una perspectiva andina, una
forma de sentir y pensar muy particulares, además
de los deícticos que representan el contexto
andino de las historias […] esta narrativa,
actualmente, expresa una nueva forma de ser de
la cultura andina que es una cultura mestiza.
(TICONA, 2003, p. 158).

160
Pode-se perceber que, ao longo dos tempos, excetuando o
indianismo, as demais manifestações de base regionalista sempre se
pautaram por dar voz a determinado grupo e não por enaltecer a cor local,
ou o tipo humano e seus costumes. Depois, no que diz respeito ao
discurso andino e criollo, estabeleceu-se outro viés: de onde se fala, de onde
provém a narrativa literária. Contemporaneamente, “lo andino” toma
outro espaço. Na extensa narrativa que denuncia os conflitos vividos no
final do século XX, ainda que se mantenha, como se viu, um lugar de onde
provém essas vozes, o andino se multifaceta e não se deixa prender pela
restrição espacial, temporal ou cultural. É migrante como são os
campesinos que deixam a serra, pessoas em trânsito, aculturando-se e
fomentando a cultura do outro.
A narrativa sobre a violência permite (re)elaborações da memória
traumática, favorecendo aos sujeitos possibilidades de regeneração
pessoal. Assim, as representações simbólicas como a literatura podem se
constituir uma memória emblemática mais significativa do que
monumentos que visem a congelar determinada memória de eventos
dolorosos. Nesse contexto, a narrativa peruana andina merece destaque
justamente porque é uma voz que se ergue depois de muito tempo de
ocultamento, depois de ser ela própria uma memória presa às dobras do
esquecimento.

161
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164
Antonio Carlos Viana: um “outro” que sempre
sou
Maria Ivonete Santos Silva

A memória é um elemento essencial do que se


costuma chamar identidade, individual ou coletiva,
cuja busca é uma das atividades fundamentais do
indivíduo e das sociedades de hoje, na febre e na
angústia.

Jacques Le Goff, “Memória”

A produção contística de Antonio Carlos Viana, entre outras


possibilidades de definição, pode ser compreendida como um tecido de
Tempo e Memória. Desde sua primeira publicação, o livro de contos Brincar
de Manja (1974), até a última, Jeito de Matar Lagartas (2015), um “outro”,
incarnando personagens protagonistas de grande intensidade, e que às
vezes também desempenha as funções de um narrador onisciente, revela
traços definidores do lastro que perpassa a trama narrativa de seus contos.
Histórias mínimas, quase banais, adquirem níveis de complexidade
surpreendentes diante de acontecimentos cuja tragicidade remonta à
existência precária daqueles que vivem à margem da sociedade.
Atormentadas pelas lembranças de uma infância (ou quase
adolescência) infeliz, as personagens de Viana que caracterizam a primeira
fase da sua produção, apesar da violência e da pobreza que circundam o
submundo no qual se encontram irremediavelmente inseridas,
demonstram boa índole. São ingênuas e, ao mesmo tempo, curiosas, cheias
de sonhos e de expectativas diante do amanhã que está por vir. Nos contos
de Brincar de Manja (1974), Em Pleno Castigo (1981) e O Meio do Mundo
(1999), em face de um cotidiano marcado pela dor e pelo sofrimento de
muitas perdas, prevalecem os bons sentimentos e a visão de mundo
infantil. Muito mais próximas do ambiente rural, em um e outro conto elas
também se movem na periferia das pequenas e grandes cidades exibindo
comportamentos típicos de sujeitos suburbanos. No entanto, os maus
pensamentos, as más ações e até mesmo os desejos sexuais, estes
submetidos às interdições impostas por uma moral social e por uma
religiosidade sempredestoante do universo psicológico dessas
165
personagens, nem de longe se assemelham às perversões e crueldades das
personagens adultas que,nos contos de Aberto Está o Inferno (2004) e Cine
Privê (2009), figuram como indicadores de uma segunda fase da sua
produção.
Tanto nos contos do primeiro como nos do segundo livro, o que
muda é o tom; as palavras agora são proferidas para confranger ou para
criar nos leitores inquietações, sentimentos ambíguos, de pena e de
indignação diante de uma realidade que naturaliza todas as baixezas e
atrocidades cometidas. As histórias narradas privilegiam os espaços
urbanos e apresentam como característica marcante a exacerbação dos
conflitos na abordagem de temas como o amor, o sexo, a amizade, a
solidão, a morte, bem como a decadência das relações familiares e do
casamento. O erotismo, fio condutor da maioria das narrativas a partir
dessa segunda fase, se confunde com a vulgaridade de personagens que
têm suas intimidades expostas de forma escancarada. O objetivo é
denunciar pequenas e grandes malfeitorias reiteradamente praticadas sem
escrúpulos e sem preocupação com o mal-estar que elas provocam.
Em Jeito de Matar Lagartas, a ênfase dada às personagens adultas,
somada à intensificação de reflexões sobre a velhice e a morte, reacende o
poder do Tempo e da Memória, assinalando o início de uma nova fase. Os
elementos composicionais articuladores de histórias aparentemente
desimportantes apontam na direção de uma espécie de síntese de um tema
maior que engloba todos os anteriores: o homem e sua condição de existente em
um mundo às avessas.
Para abordar tema tão amplo e tão caro às grandes elucubrações
filosóficas, Viana recorre a um trabalho milimetricamente planejado com
a linguagem, melhor dizendo, a um trabalho urdido a partir de muitas
experiências: aquelas que ele mesmo atribui à infância pobre, cheia de
limitações devido às condições precárias nas quais vivia com sua família,
bem como à sua qualidade de “bom observador”25, além de outras mais
voltadas às atividades do contista, tradutor e professor de literatura que foi
durante vinte anos. E o resultado desse exercício com a escrita é uma
linguagem enxuta, direta, pronta para impactar o leitor, na medida em que

25É o próprio Viana que, ao falar de seu processo de criação, atribui à sua característica
de “bom observador” um primeiro impulso que o levou a escrever sobre o mudo dos
desafortunados (VIANA, 2010b).
166
os fatos narrados se reportam a acontecimentos vividos no limite do
incomum ou do subumano; por isso mesmo, ressurgem na memória do
narrador e das personagens protagonistas como fatos extraordinários,
merecedores de registro. E para quê? E para quem, se ao constatar a
inutilidade das ações humanas, os pensamentos e os sentimentos
conduzem os indivíduos a uma atitude de pessimismo e de negligência
perante a vida?
Responder a estas perguntas significa compreender a dimensão e
a profundidade da produção contística de Viana que, apesar de se assumir
como “(...) um pessimista até o último grau”26, tem manifestado ao longo
da sua vida e do seu processo de criação uma postura coerente com tudo
aquilo que diz respeito não somente às questões políticas e sociais, mas, e
principalmente, às questões existenciais que se situam na ordem de uma
ética e de uma moral comprometidas com valores humanos. Em entrevista
concedida a Rinaldo Fernandes e publicada no Blog da Beleza, no dia 16 de
janeiro de 2011, ele expressa sua opinião sobre o papel do intelectual e
explica seu posicionamento em relação à importância da literatura
enquanto veículo “desalienante”, formador de uma consciência crítica
capaz de desvelar “novos horizontes”27.
... O papel do escritor é, em primeiro lugar, falar
daquilo que lhe é mais verdadeiro. Se ele fala de
algo que não lhe diz respeito profundamente, o
leitor percebe, sua voz fica débil, não funciona.
Eu mesmo, que tive uma infância pobre, sei falar
da pobreza, mas me coloque para falar da vida
dos milionários que eu vou ser falso, não sei
como é ser rico, imagino, mas não está dentro de
mim. Então a gente tem de procurar suas

26Em entrevista concedida a Rafael Rodrigues, Viana é questionado se seus contos


revelam alguma forma de otimismo e se ele próprio se considera um “otimista”. A sua
resposta é imediata: “... sou um pessimista”.Em seguida, o escritor esclarece pontos
importantes relacionados à sua produção (VIANA, 2010b).
27 Na mesma entrevista ao Blog da Beleza, quando interrogado por Rinaldo Fernandes

sobre o que é o conto, Viana faz referência a Mario de Andrade dizendo:“Como dizia
Mário de Andrade, o bomconto nosdeixa com o olhar perdido no horizonte”. O “olhar
perdido no horizonte”, por sua vez, suscita abertura para que se possa alcançar “novos
horizontes”.
167
verdades mais profundas e falar delas. O nosso
papel é fazer a sociedade pensar sobre fatos que
muitas vezes passam despercebidos, personagens
para as quais ninguém olha, mas tudo isso sem
doutrinação alguma, sem panfletagem. Na hora
em que fazemos um determinado recorte do real,
chamamos a atenção para ele, lhe damos uma
dimensão diferente da que um outro meio de
comunicação lhe daria. A obrigação maior do
escritor é escrever bem, levar o leitor a sentir
prazer em lê-lo. Não sei muito o que adianta você
escrever para um ou dois leitores especializados.
Não estou querendo dizer com isso que devemos
cair no fácil. De forma alguma. Devemos
escrever para que o leitor se sinta inteligente.
Nas palavras de Viana identifica-se uma espécie de compromisso
com a busca de “verdades profundas” e com um tipo de produção literária
que não se limita ao puro entretenimento ou ao deleite de alguns “leitores
especializados”. Por estas e por outras colocações, é indiscutível a sua
posição a favor do trabalho de formação de um público leitor
“inteligente”, trabalho este que passa, obrigatoriamente, por uma
educação de boa qualidade e pela leitura de obras literárias mais alinhadas
aos tempos atuais, capazes, portanto, de suscitar a reflexão crítica e o
questionamento acerca dos distintos saberes e das distintas realidades. Em
outra declaração a respeito do ofício do escritor, ele afirma: “Escrever é
uma forma que temos de dominar o tempo, é quando temos a certeza de
que não o deixamos passar em vão”.28
A busca de Viana por uma verdade “verdadeira”, possível de ser
veiculada através da sua produção ficcional, remonta a inúmeras
discussões no campo da teoria e da crítica literárias, as quais há algum
tempo vêm se desenvolvendo a partir do entrecruzamento dos eixos
Tempo/Memória, Memória/História ou, ainda,
História/Memória/Esquecimento, também investigados por outras áreas

28Declaraçãodisponível no Livro Clip da obra Cine Privê, de Antonio Carlos Viana.


Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=o4wBWf3xfMU. Acesso em 06
fev. 2016.
168
do conhecimento muito próximas ou correlatas à literatura, dentre as quais
se destacam a história e a filosofia. Em seus contos, a dimensão temporal
que abarca situações extremas revelando procedimentos ou estratégias
discursivas sutilmente elaboradas visa, em primeira e última instância,
persuadir o leitor a enxergar o que há por trás das histórias narradas. Em
entrevista concedida a Rafael Rodrigues, da Revista Literatura, Viana assim
se posiciona:
A gente escreve com mais verdade sobre mundos
que conhece... Claro que a imaginação também
tem a sua parte. Aproveito o que a memória me
traz, mas, para chegar a ser literatura, esse
material precisa ser retrabalhado. Não existe
nenhum conto meu que seja autobiográfico, mas
há personagens que nasceram de pessoas que
conheci, com as quais convivi. Aproveito
pedaços de um, de outro, e monto a personagem,
que passa a ter vida ficcional, independente
daquela que lhe deu origem. Algumas situações
também aconteceram, mas não daquele jeito,
como conto. (VIANA, 2010b)
Nesse sentido, o fundamento ou o princípio da “verdade” que
Viana quer alcançar depende substancialmente da linguagem e da
construção de personagens que, a partir do relato de experiências cruciais,
algumas delas traumáticas, conseguem envolver o leitor, sensível e
afetivamente, em seus dramas individuais (ou coletivos) estabelecendo,
desse modo, um elo indissociável entre ficção e realidade. Entretanto,
convém ressaltar que, quando ele diz: “A gente escreve com mais verdade
sobre mundos que conhece” e, em seguida, complementa “Aproveito o
que a memória me traz, mas, para chegar a ser literatura, esse material
precisa ser retrabalhado”, afasta qualquer possibilidade de uma estreita
relação da sua produção narrativa com a chamada “literatura de
testemunho”29. Ao “retrabalhar” suas memórias ele atribui às histórias

29Nos estudos sobre a memória e sua apropriação pela literatura de testemunho, a crítica
é praticamente unânime ao admitir a existência de dois tipos de narradores: superstes e
testis. O primeiro é aquele que viveu uma experiência traumática de muita violência e de
grandes rupturas e, por esta razão, em sua memória, as vozes são confusas; algumas são
169
narradas uma dimensão estética que ultrapassa a inócua discussão acerca
da dicotomia falso x verdadeiro.
Assim, ao mesmo tempo em que se apresenta comprometida com
uma realidade factual, portanto muito mais próxima da realidade à qual o
leitor tem acesso, sua produção contística, ao exibir uma galeria de temas
e personagens “retrabalhados” a partir de experiências “vividas” ou
“imaginadas”, se insere em uma das vertentes da produção
contemporânea de maior destaque nos meios literários e que se intitula
“novo realismo”.
Karl Erik Schøllhammer, em seu livro Ficção brasileira
contemporânea(2009), ao problematizar o conceito de “novo realismo”30,
afirma que o desejo de retratar experiências do mundo real se constitui no
maior desafio das atuais produções devido ao hibridismo de muitas formas
que se entrecruzam e se superpõem para “provocar efeitos de realidade
por outros meios” (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 53-54). Nos contos de
Viana, esses “outros meios” aos quais o crítico se refere se vinculam aos
mecanismos da memória (lembranças, reminiscências, rastros, indícios,
entre outros) que, uma vez articulados à trama narrativa das histórias
narradas, produzem um efeito capaz de “nocautear o leitor” 31, como se
verá na análise de “Três Lembranças”, um dos 28 contos que compõe seu
último livro, Jeito de Matar Lagartas. Antes, porém, algumas considerações
teóricas sobre memória, história e esquecimento tornam-se pertinentes,
haja vista que a não univocidade de conceitos acerca de tais temas, no

caladas pela dificuldade de narrar, outras encontram formas de expressão nem sempre
confiáveis. Assim, através do relato dos tais acontecimentos o indivíduo dá o seu
testemunho. Já o segundo narra experiências vividas por um “outro”, colaborando para
que as vozes caladas sejam verbalizadas, liberando aquele que foi alvo do acontecimento
traumático das angústias causadas pelas lembranças. Entretanto, a problemática da
narrativa testemunhal e de ficção vai muito além da discussão acerca da veracidade ou
não do testemunho, tendo em vista que as questões estéticas inerentes à arte literária
ultrapassam a simples confrontação do falso com o verdadeiro.
30 Segundo Schøllhammer, o “novo realismo” se expressa pela vontade de relacionar a

literatura e a arte com a realidade social e cultural da qual emerge, incorporando essa
realidade esteticamente dentro da obra e situando a própria produção artística como força
transformadora. (SCHØLLHAMMER, 2009, p. 54).
31 Em uma referência a Julio Cortázar, escritor e crítico argentino que escreveu muitos

ensaios sobre a teoria do conto, Viana retoma sua afirmação a respeito de um dos
principais objetivos do conto: “nocautear o leitor”.
170
conto, é mantida como ponto de reflexão e de cotejamento entre alguns
argumentos e pressupostos defendidos por determinadas áreas do
conhecimento acerca dos referidos conceitos.

MEMÓRIA, HISTÓRIA E ESQUECIMENTO: ALGUMAS


CONSIDERAÇÕES

Jacques Le Goff, em História e Memória (2003), mais


especificamente no capítulo que se intitula “Memória”, além de refazer o
percurso de importantes estudos sobre a relação história/memória,
desencadeia reflexões sobre alguns conceitos que hoje se apresentam
intrinsecamente relacionados ao tema objeto do seu livro e conclui suas
proposições dizendo: “A memória, onde cresce a história, que por sua vez
a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro.
Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a
libertação e não servidão dos homens” (LE GOFF, 2003, p. 477). Nesse
sentido, Le Goff coloca-se contrário ao esquecimento, em alguns casos,
apontado pelo senso comum como único caminho capaz de levar o
indivíduo à superação de experiências marcadas pela desumanidade de
ações praticadas de maneira impiedosa, sobretudo contra os indefesos, os
mais frágeis.
Convém ressaltar que esta seria uma forma de encarar o
esquecimento enquanto uma atividade “passiva” e, segundo Nietzsche,
equivocada, haja vista que ela restringe ou anula completamente a
capacidade de o homem reagir diante de situações extremas de opressão e
violência. O efeito do apagamento das lembranças, que por sua vez resulta
no esquecimento, enfraquece ou desqualifica as ações violentas, fazendo
com que a vítima não tenha nenhuma reação diante de seu agressor.
Em Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, o filósofo alemão
apresenta o esquecimento como a faculdade que permite o
reconhecimento da verdade a partir de um viés completamente
desconcertante para o homem médio-comum. É o próprio Nietzsche
quem adverte: “somente por esquecimento, pode o homem alguma vez
chegar a supor que possui alguma verdade” (NIETZSCHE, 1999a, p. 55).
De acordo com suas proposições, principalmente nesse momento de sua
obra, as verdades corresponderiam a ilusões, a metáforas que, com o

171
tempo, se desgastam “sem força sensível”, tal como ocorre com “moedas
que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal”
(NIETZSCHE, 1999a, p. 57).
Em Da utilidade e inconveniente da história para a vida (NIETZSCHE,
1999b, p. 273), o filósofo suscita uma reflexão acerca da hipótese: e se não
fosse dada ao homem “a força de esquecer”? A resposta, por mais
paradoxal que possa parecer, reforça o seu argumento em defesa do
esquecimento “ativo”, aquele que se insere em uma ordem dialética de
infinitas negações e contradições para, ao final, propiciar uma visão lúcida
do que é a verdade. É ele quem afirma: “é possível viver quase sem
lembranças (...), mas é inteiramente impossível, sem esquecimento,
simplesmente viver” (NIETZSCHE, 1999b, p. 273-274). Portanto, e
seguindo esta linha de raciocínio, lembrança e esquecimento, bem como
história e vida em seu incontinenti devir, são forças interdependentes e
imprescindíveis ao equilíbrio físico e psicológico dos indivíduos e da
sociedade.
Já na Segunda Dissertaçãode sua Genealogia da Moral (2009),
Nietzsche considera o esquecimento como uma condição que antecederia,
e de certa forma inibiria, a constituição de toda e qualquer memória. Para
o filósofo, a constituição da memória depende de estratégias que exigem
extremo esforço e imprimem ao homem dor e sofrimento; entretanto,
somente por meio dessas estratégias os homens serão capazes de “chegar
à vitória sobre o esquecimento” (NIETZSCHE, 2009, p. 348).
Sendo assim, e buscando nas proposições de Le Goff pontos de
contato com o pensamento de Nietzsche, pode-se afirmar que os eventos
traumáticos, mesmo quando vividos individualmente, ao serem
verbalizados contribuem para que a coletividade se posicione quanto à
gravidade de toda forma de violação cometida contra os sujeitos. Portanto,
não basta pensar isoladamente a violência ou a brutalidade de muitas
agressões, sejam elas físicas ou psicológicas, a partir da vítima. O problema
está nos desdobramentos, na desconstituição da sua integridade física,
moral e psicológica que, em razão da violência ou da agressão, sucumbe
diante de qualquer ação mais ostensiva de seu agressor. Além disso, há que
se considerar o contexto sociocultural e histórico no qual a vítima se
encontra inserida ‒ afinal, todo contexto apresenta-se comprometido com

172
estruturas macro ou micro de poder, haja vista que é nele e a partir dele que
a violência se reproduz.
Segundo Le Goff, a lembrança contribui para a não reincidência
nos erros do passado e essa atitude é que pode levar o homem a um
presente e a um futuro nos quais a liberdade deixa de ser uma utopia para
se tornar uma conquista real. Essa ideia já era cultivada por Nietzsche em
vários de seus escritos sobre o papel da memória na conturbada “era
moderna”.

“TRÊS LEMBRANÇAS”

O que mais ela queria na vida era esquecer. Esquecer tudo.

Antonio Carlos Viana, Jeito de matar lagartas

No conto, uma primeira leitura sugere que os temas “lembrança”


e “esquecimento” são abordados de uma perspectiva que remonta ao
senso-comum, afinal, Moara, personagem protagonista de uma história
aparentemente desprovida de artifícios retóricos que possa interessar o
leitor mais exigente, é uma pessoa comum, sem estudos e sem muita
capacidade para pensar estratégias capazes de solucionar seu maior
problema: as lembranças. Por isso, seu desejo mais caro e mais urgente era
esquecer, esquecer tudo!
O leitor, instigado a descobrir na sequência dos fatos narrados os
motivos que levaram Moara a fazer “exercícios de esquecimento”, se
depara com situações nas quais constrangimentos e humilhações são
apontados como as causas que a transformaram na pessoa que ela é: uma
solteirona, provavelmente de meia idade, dependente da família e frustrada
por nunca ter se casado. Ela levava a vida contando suas histórias para os
sobrinhos que se divertiam, achando que se tratasse de histórias
inventadas, mas, “dona Moara nunca mente” (VIANA, 2015, p. 120).
Apesar de ter conseguido esquecer praticamente tudo, três
lembranças persistiam e a incomodavam profundamente. A primeira,
diretamente relacionada à infância e à escola, remonta à figura do
professor opressor que zombava da sua incapacidade para assimilar as
atividades e os conteúdos propostos em sala de aula: “Ela ia para o quadro,
errava tudo e depois o professor zombava dela, a turma inteira ria. Pior
173
quando ele pedia para pronunciar ‘man-di-oca’. Essa lembrança era difícil
de tirar de sua cabecinha” (VIANA, 2015, p. 120).
Moara perdeu o ano na escola e o interesse pelos estudos. O
narrador deixa entrever que ela se recolhe ao marasmo do ambiente
doméstico, familiar, e não mais se interessa por outros aspectos da vida
prática, que envolvem a necessidade de adquirir conhecimentos e
habilidades.
A segunda lembrança, talvez a mais grave e a mais decisiva no que
diz respeito à mudança de comportamento de Moara em relação aos pais
e, sobretudo, à figura masculina, também aparece vinculada à infância.
Essa lembrança traz à tona a surpresa e a incompreensão diante da cena
de sexo entre a mãe e o pai, por ela presenciada: “Quando menina, pegou
um dia o pai em cima da mãe, e a mãe gritava, esperneando, ela não sabia
que seu pai era tão mau. Quando cresceu mais um pouco, entendeu que
os dois não estavam brigando, faziam apenas uma coisa normal que
acontece entre homem e mulher” (VIANA, 2015, p. 120-121).
Muito embora ao afirmar que os dois “faziam apenas uma coisa
normal” Moara quisesse demonstrar entendimento do fato presenciado, o
seu comportamento dizia exatamente o contrário, haja vista que,
Desde então, ela deu para olhar a cara da mãe
demoradamente e não entendia como ela deixava
aquele homem pesado se deitar em cima dela e
ainda dizia que o amava, como contava para todo
mundo depois que ele morreu de uma febre sem
nome. Essa lembrança doía muito, dona Moara
nunca conseguiu perdoar os dois (VIANA, 2015,
p. 121).
A razão de Moara nunca ter se casado é justificada a partir desse
acontecimento. Pretendentes não faltavam, como ela mesma contava para
os sobrinhos: “José de tia Dedé queria compromisso comigo, pensa que
eu quis?” (VIANA, 2015, p. 121). Depois de muitas tentativas frustradas,
José, o primo desiludido, vai embora para o Rio e ela segue a sua rotina
insípida sem emoções ou encantamentos. Sua mãe lhe aconselhava a se
casar, mas, “Casar como, se ela tinha medo de um homem em cima dela?”
(VIANA, 2015, p. 121).

174
A terceira e última lembrança que, segundo o narrador, decorre da
segunda má lembrança, se refere ao pedido de casamento do primo Toddy.
Quando ele apareceu todo de branco, até os
sapatos brancos, e pediu sua mão para casar o
mais rápido possível, dona Moara teve uma tal
crise dos nervos que precisou ser levada para
tomar uma injeção no pronto-socorro. O primo
sumiu e ela nunca mais falou nele nem em mais
nenhum outro que usasse perna de calça, como
dizia (VIANA, 2015, p. 121).
Quando a narrativa se encaminha para um final nada
surpreendente o narrador, mais uma vez, toma a palavra para justificar as
escolhas de “dona” Moara. Afinal,
Era muito mais confortável ver sapos indo em
direção ao brejo do que um cavaleiro para a cama
de uma princesa. Que a adormecida dormisse
para sempre, sem príncipe nenhum para acordá-
la, sobretudo, se ele viesse de branco, como o
primo Toddy em sua memória (VIANA, 2015, p.
122).
Apesar de construída à imagem e semelhança de uma pessoa
alienada, ao contar histórias nas quais os príncipes encantados se
transformam em sapos, a protagonista deixa transparecer uma “lógica”
insensata que lhe auxilia na manutenção de alguns princípios ou
“verdades” criadas por ela própria e que têm como finalidade minimizar
os efeitos dos traumas vividos na infância. As lembranças que ela nunca
conseguiu esquecer, de certa forma, criaram mecanismos de defesa
fazendo com que ela reagisse de maneira plausível às agressões e à
violência que continua a sofrer, devido ao seu comportamento desajustado
em relação à logica das normas sociais. Contar histórias de príncipes que
viram sapos é o seu modo de negar o efeito devastador das agressões e da
violência que restaram como herança dos traumas da infância, muito
embora ele afirme que gostaria de esquecer tudo.

175
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em todos os contos de Jeito de Matar Lagartas, quer através de


lembranças, rastros ou reminiscências, a passagem do tempo é inexorável
e traz consigo a ruína, a decadência e a morte. Em “Três Lembranças”,
essas marcas aparecem em vários momentos da narrativa, sobretudo
naqueles no quais “dona” Moara, agora uma solteirona atormentada pelos
traumas da infância, constata que a vida passou e nada mais ela pode fazer
para recuperar o tempo perdido, senão contar histórias para os sobrinhos.
A ideia de um tempo que passou, de uma vida que se perdeu, traz
implícita a nostalgiadaquilo que nunca foi vivido por Moara devido aos
seus traumas. O narrador, esse “outro” que dá detalhes do seu
comportamento, ao longo da narrativa deixa entrever o dano que tais
acontecimentos lhe causaram na sua fase adulta, tendo em vista que foram
mal compreendidos e mal assimilados desde a infância. Muito embora
procure demonstrar imparcialidade, alguns indícios suscitam um
posicionamento por parte do narrador que remete o leitor mais atento à
reflexão acerca da desumanidade de situações idênticas àquelas vividas por
Moara e que, frequentemente, aparecem nos contos de Viana,
denunciando a violação de direitos que asseguram dignidade e integridade
à pessoa humana.

176
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VIANA, Antonio Carlos. Como me tornei contista. Revista Interdisciplinar,
ano IV, n. 3, mar. 2010a.
VIANA, Antonio Carlos. Entrevista a Rafael Rodrigues. Revista Literatura,
São Paulo, n. 28, 2010b. Disponível em:
http://literatura.uol.com.br/literatura/figuras-
linguagem/28/artigo161131-1.asp. Acesso em 10 fev. 2016.
VIANA, Antonio Carlos. Jeito de matar lagartas. São Paulo: Companhia das
Letras, 2015.
SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Ficção brasileira contemporânea. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
SCHOLES, R.; KELLOGG, R. A natureza da narrativa. Trad. Gert Meyer.
São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1977.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. História, memória e literatura: o testemunho
na era das catástrofes. Campinas: Ed. UNICAMP, 2003.

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SOBRE OS AUTORES

Adriana Iozzi Klein


Mestre e Doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada. Professora
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo (USP) e do Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura
e Culturas da mesma universidade.

Augusto Rodrigues Silva Junior


Mestre em Letras. Doutor em Literatura Comparada. Professor Adjunto
do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB).

Cássio Eduardo Viana Hissa


Mestre em Demografia. Doutor em Geografia. Professor Associado do
Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG).

Eclair Antonio Almeida Filho


Mestre em Letras Neolatinas – Língua francesa e Literaturas de língua
francesa. Doutor em Letras ‒ Língua francesa e Literaturas de língua
francesa. Professor Adjunto do Instituto de Letras da Universidade de
Brasília (UnB).

Gloria Ignacia Vergara Mendoza


Doutora em Letras. Professora da Universidad de Colima, México.

José Manuel González Freire


Doutor em Filologia. Professor da Universidad de Colima, México.

Lemuel da Cruz Gandara


Mestre em Literatura. Doutorando em Literatura junto ao Mestrado em
Literatura da Universidade de Brasília (UnB).

Leonardo Francisco Soares

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Doutor em Letras: Estudos Literários. Professor adjunto do Instituto de
Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Estudos
Literários da mesma universidade.

Lucila Gutiérrez Santana


Mestre e Doutora em Linguística.Professora da Universidad de Colima,
México.

Maria Elisa Rodrigues Moreira


Mestre em Estudos Literários – Teoria da Literatura. Doutora em Estudos
Literários – Literatura Comparada. Professora do Mestrado em Letras da
Universidade Vale do Rio Verde (UninCor). Integrante do Grupo de
Pesquisa Criticum – Correntes Críticas Modernas e Contemporâneas.

Maria Ivonete Santos Silva


Mestre em Literatura. Doutora em Teoria Literária e em Educação.
Professora Titular do Instituto de Letras e Linguística da Universidade
Federal de Uberlândia (UFU). Líder do Grupo de Pesquisa Criticum –
Correntes Críticas Modernas e Contemporâneas.

Maurício Guilherme Silva Júnior


Mestre e Doutor em Estudos Literários. Professor do Centro
Universitário de Belo Horizonte (UniBH). Integra o Programa de
Comunicação Científica e Tecnológica (PCCT) da Fundação de Amparo
à Pesquisa no Estado de Minas Gerais (Fapemig).

Mónica Bueno
Doutora em Filosofia e Letras. Professora Adjunta na Universidade
Nacional de Mar del Plata, Argentina (UNMdP).

Rosane Cardoso
Mestre e Doutora em Letras. Professora na Universidade de Santa Cruz
do Sul (UNISC) e no Centro Universitário UNIVATES.

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