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São Paulo
2019
A obra de Lars von Trier conforma uma extensa cinematografia, ao mesmo
tempo muito dissonante entre si e também com alguns elementos transversais. Na
contramão das pressões do cinema naturalista hegemônico, uma das suas tendências
mais interessantes é uma renovação das estruturas brechtianas de estranhamento,
que revestem cada um de seus filmes com camadas múltiplas de ironia, desafiando o
espectador. Combinado a esse espírito instaurado de dúvida permanente, o cineasta
também trabalha com as convenções do gênero cinematográfico, usando, nos seus
diferentes filmes, de ferramentas desses gêneros (horror, musical, melodrama,
policial…) para, mais do que apenas subvertê-los textualmente, esgarçar os
pressupostos dos modelos reconhecidos pelo público até levá-los à sua última
potência, colocando-os em contraste com o que essas ferramentas dizem sobre a
realidade que produziu esses gêneros e com as expectativas do próprio público
espectador. Essas duas linhas de força (camadas de ironia e exploração dos
pressupostos dos gêneros) combinadas produzem um rico material que, para além de
dar conta de uma leitura de fôlego sobre a sociedade no presente momento histórico,
inspiram uma distância crítica que trabalha para desnaturalizar não só o que está
posto como natural nos pretextos da forma do cinema naturalista nos seus diferentes
modos, mas também para desnaturalizar as estruturas da própria realidade, que são
as condições de possibilidade das formas dramáticas que servem como experimentos
ao cineasta.
Trier oferece um aparato de leitura crítica do cinema que também se presta a
enxergar procedimentos de estranhamento parecidos em outros filmes, muitos deles
que também se propõe a estabelecer um diálogo crítico. Este trabalho buscará se
valer da análise feita no curso sobre o filme Anticristo, no que se refere à substância
narrativa e histórica do filme e também à sua construção formal, e traçar paralelos e
discrepâncias com outra obra muito semelhante no tema e no seu tratamento.
Falamos de A Bruxa, longa de estreia do diretor Robert Eggers e distribuído pela
empresa independente A24, que foi lançado em 2015 com bastante reconhecimento
do público e da crítica. Reelaborando as convenções do horror e problematizando-as
à luz dos desenvolvimentos do capitalismo do século XXI, os dois filmes se
aproximam quanto à análise da subjugação feminina que persiste historicamente no
signo da bruxa, especialmente quanto ao interesse da ordem social patriarcal nessa
categorização e nas reações que surgem a partir da opressão que se institui.
A Bruxa está inserido em um novo ciclo de filmes de horror psicológico que
vem ganhando tração nessa década, caracterizado pelo abandono da surpresa e do
susto em favor de um temor lento e penetrante, e que geralmente gira em torno dos
temas da desintegração da unidade familiar, do luto e do apocalipse. Esse ciclo
também tem uma tendência a retratar assombrações ou possessões que se
desenvolvem em locais desolados ou rurais, e usa de narrativas não-lineares para
complexificar a questão da confiança nos personagens e na narração. Denominado
por alguns círculos críticos como “pós-horror” 1, muito já foi dito sobre a inadequação
desse termo por insinuar um desenvolvimento inédito ou distante da tradição do
gênero, o que não é verdade considerando o seu longo histórico de abordagem de
profundidade psicológica e social. Mesmo assim, é importante registrar uma
tendência recente dos filmes de horror de aproximação da linguagem do drama
familiar e da sua combinação com o oculto (cujos exemplos incluem, mas não estão
limitados a, Hereditário, O Babadook e Ao Cair da Noite, além do filme em questão
no trabalho) e, para os propósitos deste trabalho, a categoria de pós-horror serve
para intenções descritivas.
Alinhado com o choque no meio liberal com os desenvolvimentos pós-crise de
2008, especialmente a tomada de poder de alternativas conservadoras e autoritárias,
o pós-horror trabalha estruturalmente com a sensibilidade da estranheza repentina
de um ambiente onde até o momento tudo era familiar - rememorando Freud,
encenam um pesadelo do Inquietante 2, mas baseado menos na figura do híbrido
entre o familiar e o estranho, e mais na virada repentina de um ao outro. O locus
dessa inquietação, e onde se materializa o horror, é no espaço doméstico, onde as
tensões internas ao ambiente familiar ecoam uma profunda quebra geracional. É
recorrente nesses filmes a utilização de um dispositivo narrativo baseado em uma
herança maldita, sobrenatural ou não, que passa dos pais aos filhos e corrói por
dentro as ligações no núcleo da família, representativas do sentimento de uma
geração de ter tido a si transmitido um mundo econômica, social e ambientalmente
desolado no qual qualquer proposta de sacrifício por um suposto bem comum inspira
mais desconfiança do que entusiasmo. O escopo da angústia leva a uma necessidade
da transcendência do psicológico e do intersubjetivo, alcançando o léxico do oculto
como representação de forças que operam sob leis incompreensíveis e que movem os
indivíduos a irem contra seus próprios interesses sem o seu conhecimento.
1 BRIDGES, J.A. “Post-Horror Kinships: From Goodnight Mommy to Get Out”. Disponível em
<https://brightlightsfilm.com/post-horror-kinships-from-goodnight-mommy-to-get-out/>
2 FREUD, Sigmund. "O Inquietante". In: Obras Completas- Volume 14: História de uma neurose
infantil ("o Homem dos Lobos"), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo:
Companhia das Letras, 2010
A ação d’A Bruxa transcorre com o uso de muitas dessas ferramentas, porém
com a particularidade da ambientação histórica, mais especificamente no século
XVII em New England. Por conta da sua ortodoxia religiosa e social, a família
protagonista é expulsa da colônia recém-formada, que jura alinhamento à igreja
anglicana em nome do Commonwealth. Liderados pelo pai William, a família,
composta ainda pela mãe, a filha mais velha, o filho púbere, duas crianças gêmeas e
um bebê, monta acampamento na beira de uma floresta e constrói uma vida rústica,
subsistindo do trabalho da terra e fortemente ligada aos preceitos cristãos, de
maneira radicalmente tradicional. Após o desaparecimento do bebê pelas mãos de
alguma criatura desconhecida, que se revela ser um covil de bruxas que habita a
floresta (imaginado ou não pela família), a família entra numa espiral de tragédia e
desconfiança, centrada principalmente na filha mais velha, Thomasin, cada vez mais
responsabilizada pelos eventos macabros que assombram a família e acusada de
bruxaria. A obcecada reconstrução histórica dos cenários, figurino, linguagem e até
dos diálogos (muitos retirados de diários reais de colonos do século XVII) concede
um caráter contraditório de veracidade histórica a uma narrativa sobrenatural, o que
inspira a reflexão de que, para os personagens, o que aparece como sobrenatural não
tem nada de fantasioso e está aterrado em uma visão de mundo firme sobre os
perigos reais que ameaçavam a ordem. E se para eles a ameaça representada não está
na fantasia, e sim na realidade, talvez o que ela representa esteja também na nossa.
Desde o começo, Thomasin é a mais hesitante da família quanto ao plano
eremítico do pai, e internaliza suas dúvidas de maneira a questionar a própria fé.
Muito dessa hesitação tem a ver com a ameaça que o seu desenvolvimento como
mulher coloca aos outros personagens: sua mãe Katherine expressa insegurança
quanto à sua independência, que pode representar um questionamento à ordem
hierárquica da casa, e comunica ao pai a necessidade de encontrar uma maneira de
transformá-la na esposa de alguém; e no ambiente repressor e autófago da casa na
floresta, ela começa a se tornar um confuso objeto de desejo do seu irmão Caleb.
A combinação dessas duas ansiedades dos personagens em relação a si
conjuram bem o que significa o medo da bruxaria para aquela família naquele
contexto. A ordem moral puritana a que a família de William se filia, e rompe com a
colônia para perseguir, é baseada na subjugação a Deus por meio da confissão do
pecado, que aparece como uma estrutura opressiva que pode estar em todos os
lugares, e pela qual cada evento parece ser uma denúncia da fraqueza humana
perante a tentação. A postura de William é de aprofundar cada vez mais a presença
da culpa e da penitência como maneira de limpeza dos pecados, em conjunto com
uma austera corrente de comando para garantir o funcionamento dessa célula
doméstica. Para essa sensibilidade penitente e obcecada pela rigidez que se reproduz
na casa (e na América da época), a disrupção da ordem e a ameaça ao poder está
ligada de modo indissolúvel ao afloramento da sexualidade feminina, principal
símbolo da tentação e, por conseguinte, do pecado. As aparições da bruxa são
compostas a partir dessa mesma conceitualização, uma mulher nua que alterna entre
uma moça atraente e uma idosa cadavérica, mas a própria Thomasin, antes do
contato direto com o sobrenatural, já mostra as tendências da sua propensão a esse
lado. Quando está lavando as roupas com seus irmãos no rio e estes não param de
brincar, o que começa com uma brincadeira de colocar medo em crianças se torna
uma identificação: Thomasin declara “eu sou a bruxa da floresta”, e sua voz e seus
trejeitos se transformam de maneira sensual, roçando as saias e se impondo de
maneira dominadora aos gêmeos chocados. De todas as pessoas que poderiam se
identificar com as ameaças externas à ordem da casa, é ela quem mais intuitivamente
conecta os dois impulsos que moldam o que é visto como abjeto.
As conexões com Anticristo já se fazem visíveis com a associação da
feminilidade ao caos e à ameaça à ordem. Se n’A Bruxa essa ligação é
institucionalizada mais diretamente por um contexto histórico de repressão aberta,
em Anticristo a associação é mais complexa e mediada. Permanece o espaço familiar
como locus do conflito (nesse caso restrito à mínima unidade possível, o casal) e o
alicerce do horror na perda do filho, que mostra a presença da desintegração familiar
como instância de desespero. E no centro da responsabilidade dessa desagregação
doméstica está Ela, a personagem mulher, atravessada pela culpa e pelo luto que são
a fonte da sua subjugação. Na casa onde Ela e Ele se estabelecem, também numa
floresta, também existe uma ordem hierárquica - mas ao contrário da rígida e cristã
lei de William, Ele se mina do discurso da técnica, da racionalidade, da prática clínica
e também da compaixão (a todo momento ele só demonstra querer o melhor para
Ela), fazendo com que a sua dominância seja difícil de questionar, mesmo que
igualmente corrosiva. E para o casal, as ameaças a essa ordem não estão
personificadas em entidades externas que vêm perturbar a harmonia (mesmo que os
diferentes elementos da natureza mostrem que algo estranho está no ar); elas estão
na própria casa. A posição d’Ele como o centro ideológico do filme, e o seu narrador
por excelência, envolve a associação d’Ela com tudo que é visto como descontrolado,
irracional e caótico. Esse aviltamento da personagem só é possível como
consequência direta da apropriação d’Ele do lugar da racionalidade e do poder,
fazendo com que essas características não advenham organicamente d’Ela, mas que
sejam frutos da projeção do seu marido sobre si (beneficiado pelo monopólio do foco
narrativo do filme):
3 KRUGER, Patricia de Almeida. “A projeção da figura feminina em Anticristo, de Lars von Trier”.
Revista Criação e Crítica nº 13, 2014
nenhum rastro do que costumava ser, e após isso a ordem é restabelecida (mesmo
que o final indique que existe um reprimido nessa violência misógina que pode, a
qualquer momento, retornar).
E se n’A Bruxa, a estrutura repressiva que possibilita o conflito é mais
evidente, e não há muitas dúvidas do papel que cumpre o discurso masculino para
perpetuar uma violência que só aprofunda o desastre, a complexidade está na
resposta de Thomasin. Durante muito tempo do filme, a figura que assombra e
aterroriza a família é a própria bruxa, que, até onde se sabe, é de fato uma entidade
externa. Porém, o instrumento da criatura para incidir sobre a família e subverter a
ordem tão cara ao pai é contaminar os outros membros da família com a mesma
pulsão de sexualidade que é vista como tão nociva. E vale dizer, sempre com algum
elemento que também é tabu aos olhos contemporâneos, numa tentativa de
aproximação com as sensibilidades atuais para que se compreenda a extensão moral
do que está sendo mostrado. Uma alucinação de Katherine é que o seu bebê volta são
e salvo, e, enquanto sonha que o está amamentando, a câmera abruptamente corta
para a realidade, onde um corvo bica os mamilos da mãe, que emite sons de regozijo.
A justaposição da amamentação com o prazer sexual com a dor por meio da edição é
onde o pesadelo do Inquietante aparece com toda a força, já que, ao mesmo tempo
que nos causa repulsa, toca em feridas sociais edipianas de elaboração complexa.
Com Caleb, em uma das mais cruciais cenas do filme, após o próprio desaparecer
depois de ser seduzido pela bruxa, ele volta e é deitado em uma cama onde
convulsiona e pede perdão a Deus, enquanto sua família reza a sua volta.
Abruptamente, o garoto entra em transe com uma visão de Jesus Cristo, no que
parece uma arrebatação e a salvação esperada. Mas as frases que recita levantam
suspeitas:
6 FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante,
2017
expropriação da reprodução social e da dominação patriarcal, nos leva a refletir
sobre as relações com o momento que estamos vivendo. No período após a crise de
2008, um conjunto de pressupostos do capitalismo financeirizado foi desafiado, e
desde então a sociedade global passa por uma reestruturação que atravessa o
conjunto da vida social. Um momento também de interregno, se não entre modos de
produção, possivelmente entre diferentes etapas do mesmo modo. E uma bricolagem
ideológica que vem tomando o discurso hegemônico por todo o mundo é o uso de
argumentos técnicos, por vezes até racionalizantes, para a justificativa de programas
de austeridade brutal e também de fortalecimento de alternativas políticas
regressivas e até protofascistas (nos EUA, um dos lemas da alt-right é “fatos não
ligam para os seus sentimentos”).
Esse processo de reestruturação produtiva passa centralmente pelas mulheres
como sempre passou. Em primeiro lugar, através da desestruturação dos serviços
públicos, funções que tradicionalmente são destinadas às mulheres na esfera do
trabalho assalariado (saúde, educação, assistência social, etc.); e em segundo lugar,
através do controle direto do trabalho não-assalariado (doméstico), muito
majoritariamente realizado pelas mulheres, e o mesmo o controle direto dos corpos,
com uma investida contra os direitos reprodutivos e a possibilidade de planejamento
de natalidade:
But the working class doesn't only work in its workplace. A woman
worker also sleeps in her home, her children play in the public park and
go to the local school, and sometimes she asks her retired mother to
help out with the cooking. In other words, the major functions of
reproducing the working class take place outside the workplace.
FREUD, Sigmund. "O Inquietante". In: Obras Completas- Volume 14: História de
uma neurose infantil ("o Homem dos Lobos"), Além do princípio do prazer e outros
textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010