Você está na página 1de 12

Eduardo de Faria Carniel

Universidade de São Paulo

A fogueira da reprodução social


Uma análise comparativa de Anticristo e A Bruxa

O Cinema de Lars Von Trier


Prof. Patricia Kruger

São Paulo
2019
A obra de Lars von Trier conforma uma extensa cinematografia, ao mesmo
tempo muito dissonante entre si e também com alguns elementos transversais. Na
contramão das pressões do cinema naturalista hegemônico, uma das suas tendências
mais interessantes é uma renovação das estruturas brechtianas de estranhamento,
que revestem cada um de seus filmes com camadas múltiplas de ironia, desafiando o
espectador. Combinado a esse espírito instaurado de dúvida permanente, o cineasta
também trabalha com as convenções do gênero cinematográfico, usando, nos seus
diferentes filmes, de ferramentas desses gêneros (horror, musical, melodrama,
policial…) para, mais do que apenas subvertê-los textualmente, esgarçar os
pressupostos dos modelos reconhecidos pelo público até levá-los à sua última
potência, colocando-os em contraste com o que essas ferramentas dizem sobre a
realidade que produziu esses gêneros e com as expectativas do próprio público
espectador. Essas duas linhas de força (camadas de ironia e exploração dos
pressupostos dos gêneros) combinadas produzem um rico material que, para além de
dar conta de uma leitura de fôlego sobre a sociedade no presente momento histórico,
inspiram uma distância crítica que trabalha para desnaturalizar não só o que está
posto como natural nos pretextos da forma do cinema naturalista nos seus diferentes
modos, mas também para desnaturalizar as estruturas da própria realidade, que são
as condições de possibilidade das formas dramáticas que servem como experimentos
ao cineasta.
Trier oferece um aparato de leitura crítica do cinema que também se presta a
enxergar procedimentos de estranhamento parecidos em outros filmes, muitos deles
que também se propõe a estabelecer um diálogo crítico. Este trabalho buscará se
valer da análise feita no curso sobre o filme Anticristo, no que se refere à substância
narrativa e histórica do filme e também à sua construção formal, e traçar paralelos e
discrepâncias com outra obra muito semelhante no tema e no seu tratamento.
Falamos de A Bruxa, longa de estreia do diretor Robert Eggers e distribuído pela
empresa independente A24, que foi lançado em 2015 com bastante reconhecimento
do público e da crítica. Reelaborando as convenções do horror e problematizando-as
à luz dos desenvolvimentos do capitalismo do século XXI, os dois filmes se
aproximam quanto à análise da subjugação feminina que persiste historicamente no
signo da bruxa, especialmente quanto ao interesse da ordem social patriarcal nessa
categorização e nas reações que surgem a partir da opressão que se institui.
A Bruxa está inserido em um novo ciclo de filmes de horror psicológico que
vem ganhando tração nessa década, caracterizado pelo abandono da surpresa e do
susto em favor de um temor lento e penetrante, e que geralmente gira em torno dos
temas da desintegração da unidade familiar, do luto e do apocalipse. Esse ciclo
também tem uma tendência a retratar assombrações ou possessões que se
desenvolvem em locais desolados ou rurais, e usa de narrativas não-lineares para
complexificar a questão da confiança nos personagens e na narração. Denominado
por alguns círculos críticos como “pós-horror” 1, muito já foi dito sobre a inadequação
desse termo por insinuar um desenvolvimento inédito ou distante da tradição do
gênero, o que não é verdade considerando o seu longo histórico de abordagem de
profundidade psicológica e social. Mesmo assim, é importante registrar uma
tendência recente dos filmes de horror de aproximação da linguagem do drama
familiar e da sua combinação com o oculto (cujos exemplos incluem, mas não estão
limitados a, Hereditário, O Babadook e Ao Cair da Noite, além do filme em questão
no trabalho) e, para os propósitos deste trabalho, a categoria de pós-horror serve
para intenções descritivas.
Alinhado com o choque no meio liberal com os desenvolvimentos pós-crise de
2008, especialmente a tomada de poder de alternativas conservadoras e autoritárias,
o pós-horror trabalha estruturalmente com a sensibilidade da estranheza repentina
de um ambiente onde até o momento tudo era familiar - rememorando Freud,
encenam um pesadelo do Inquietante 2, mas baseado menos na figura do híbrido
entre o familiar e o estranho, e mais na virada repentina de um ao outro. O locus
dessa inquietação, e onde se materializa o horror, é no espaço doméstico, onde as
tensões internas ao ambiente familiar ecoam uma profunda quebra geracional. É
recorrente nesses filmes a utilização de um dispositivo narrativo baseado em uma
herança maldita, sobrenatural ou não, que passa dos pais aos filhos e corrói por
dentro as ligações no núcleo da família, representativas do sentimento de uma
geração de ter tido a si transmitido um mundo econômica, social e ambientalmente
desolado no qual qualquer proposta de sacrifício por um suposto bem comum inspira
mais desconfiança do que entusiasmo. O escopo da angústia leva a uma necessidade
da transcendência do psicológico e do intersubjetivo, alcançando o léxico do oculto
como representação de forças que operam sob leis incompreensíveis e que movem os
indivíduos a irem contra seus próprios interesses sem o seu conhecimento.

1 BRIDGES, J.A. “Post-Horror Kinships: From Goodnight Mommy to Get Out”. Disponível em
<https://brightlightsfilm.com/post-horror-kinships-from-goodnight-mommy-to-get-out/>
2 FREUD, Sigmund. "O Inquietante". In: Obras Completas- Volume 14: História de uma neurose
infantil ("o Homem dos Lobos"), Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo:
Companhia das Letras, 2010
A ação d’A Bruxa transcorre com o uso de muitas dessas ferramentas, porém
com a particularidade da ambientação histórica, mais especificamente no século
XVII em New England. Por conta da sua ortodoxia religiosa e social, a família
protagonista é expulsa da colônia recém-formada, que jura alinhamento à igreja
anglicana em nome do Commonwealth. Liderados pelo pai William, a família,
composta ainda pela mãe, a filha mais velha, o filho púbere, duas crianças gêmeas e
um bebê, monta acampamento na beira de uma floresta e constrói uma vida rústica,
subsistindo do trabalho da terra e fortemente ligada aos preceitos cristãos, de
maneira radicalmente tradicional. Após o desaparecimento do bebê pelas mãos de
alguma criatura desconhecida, que se revela ser um covil de bruxas que habita a
floresta (imaginado ou não pela família), a família entra numa espiral de tragédia e
desconfiança, centrada principalmente na filha mais velha, Thomasin, cada vez mais
responsabilizada pelos eventos macabros que assombram a família e acusada de
bruxaria. A obcecada reconstrução histórica dos cenários, figurino, linguagem e até
dos diálogos (muitos retirados de diários reais de colonos do século XVII) concede
um caráter contraditório de veracidade histórica a uma narrativa sobrenatural, o que
inspira a reflexão de que, para os personagens, o que aparece como sobrenatural não
tem nada de fantasioso e está aterrado em uma visão de mundo firme sobre os
perigos reais que ameaçavam a ordem. E se para eles a ameaça representada não está
na fantasia, e sim na realidade, talvez o que ela representa esteja também na nossa.
Desde o começo, Thomasin é a mais hesitante da família quanto ao plano
eremítico do pai, e internaliza suas dúvidas de maneira a questionar a própria fé.
Muito dessa hesitação tem a ver com a ameaça que o seu desenvolvimento como
mulher coloca aos outros personagens: sua mãe Katherine expressa insegurança
quanto à sua independência, que pode representar um questionamento à ordem
hierárquica da casa, e comunica ao pai a necessidade de encontrar uma maneira de
transformá-la na esposa de alguém; e no ambiente repressor e autófago da casa na
floresta, ela começa a se tornar um confuso objeto de desejo do seu irmão Caleb.
A combinação dessas duas ansiedades dos personagens em relação a si
conjuram bem o que significa o medo da bruxaria para aquela família naquele
contexto. A ordem moral puritana a que a família de William se filia, e rompe com a
colônia para perseguir, é baseada na subjugação a Deus por meio da confissão do
pecado, que aparece como uma estrutura opressiva que pode estar em todos os
lugares, e pela qual cada evento parece ser uma denúncia da fraqueza humana
perante a tentação. A postura de William é de aprofundar cada vez mais a presença
da culpa e da penitência como maneira de limpeza dos pecados, em conjunto com
uma austera corrente de comando para garantir o funcionamento dessa célula
doméstica. Para essa sensibilidade penitente e obcecada pela rigidez que se reproduz
na casa (e na América da época), a disrupção da ordem e a ameaça ao poder está
ligada de modo indissolúvel ao afloramento da sexualidade feminina, principal
símbolo da tentação e, por conseguinte, do pecado. As aparições da bruxa são
compostas a partir dessa mesma conceitualização, uma mulher nua que alterna entre
uma moça atraente e uma idosa cadavérica, mas a própria Thomasin, antes do
contato direto com o sobrenatural, já mostra as tendências da sua propensão a esse
lado. Quando está lavando as roupas com seus irmãos no rio e estes não param de
brincar, o que começa com uma brincadeira de colocar medo em crianças se torna
uma identificação: Thomasin declara “eu sou a bruxa da floresta”, e sua voz e seus
trejeitos se transformam de maneira sensual, roçando as saias e se impondo de
maneira dominadora aos gêmeos chocados. De todas as pessoas que poderiam se
identificar com as ameaças externas à ordem da casa, é ela quem mais intuitivamente
conecta os dois impulsos que moldam o que é visto como abjeto.
As conexões com Anticristo já se fazem visíveis com a associação da
feminilidade ao caos e à ameaça à ordem. Se n’A Bruxa essa ligação é
institucionalizada mais diretamente por um contexto histórico de repressão aberta,
em Anticristo a associação é mais complexa e mediada. Permanece o espaço familiar
como locus do conflito (nesse caso restrito à mínima unidade possível, o casal) e o
alicerce do horror na perda do filho, que mostra a presença da desintegração familiar
como instância de desespero. E no centro da responsabilidade dessa desagregação
doméstica está Ela, a personagem mulher, atravessada pela culpa e pelo luto que são
a fonte da sua subjugação. Na casa onde Ela e Ele se estabelecem, também numa
floresta, também existe uma ordem hierárquica - mas ao contrário da rígida e cristã
lei de William, Ele se mina do discurso da técnica, da racionalidade, da prática clínica
e também da compaixão (a todo momento ele só demonstra querer o melhor para
Ela), fazendo com que a sua dominância seja difícil de questionar, mesmo que
igualmente corrosiva. E para o casal, as ameaças a essa ordem não estão
personificadas em entidades externas que vêm perturbar a harmonia (mesmo que os
diferentes elementos da natureza mostrem que algo estranho está no ar); elas estão
na própria casa. A posição d’Ele como o centro ideológico do filme, e o seu narrador
por excelência, envolve a associação d’Ela com tudo que é visto como descontrolado,
irracional e caótico. Esse aviltamento da personagem só é possível como
consequência direta da apropriação d’Ele do lugar da racionalidade e do poder,
fazendo com que essas características não advenham organicamente d’Ela, mas que
sejam frutos da projeção do seu marido sobre si (beneficiado pelo monopólio do foco
narrativo do filme):

Em suma, o universo feminino apresentado pelo filme é, sem


dúvida, o universo da loucura e da contraposição à razão. Mas é o
universo que Dafoe, a corporificação do discurso autoritário e
patriarcal do filme, quer fazer-nos crer como intimamente ligado às
mulheres, universo que, segundo ele e o discurso misógino que
personifica, deve ser controlado e supervisionado, como qualquer
âmbito em que reine a insanidade.3

Se no contexto d’A Bruxa, onde a dominação era efetuada pela penitência e


pelo medo da tentação, e o Outro maligno era simbolizado pela sexualidade, em
Anticristo, onde a dominação é exercida pela racionalidade e pela técnica, o mal vem
em formato de loucura. Tanto a culpa cristã quanto o rebaixamento pelo
racionalismo são demonstrações das violências simbólicas de uma mesma origem - o
patriarcado capitalista- portanto é patente que as duas categorias negativas estejam
presentes nas caracterizações das duas personagens mulheres; mas o que define a
fonte do terror em cada um dos casos é menos o que cada mulher elege para si, e
mais o discurso de onde os homens as colocam de maneira degradante, que é nos
dois casos o oposto polar do conceito por onde se estrutura a sua autoridade. O efeito
colateral dessa designação é, nos dois casos também, a aceitação da personagem
mulher dessa sua posição e o uso dela para romper a ordem eleita pelo homem. Em
Anticristo, como sabemos, Ela, depois do estudo obsessivo do processo de caça às
bruxas na História, e em contato com a natureza nos seus diversos elementos (ou
assim acha Ele), protagoniza uma rebelião em que o “caos reina”, e todas as ordens
estabelecidas pela racionalidade são desafiadas depois que Ela incorpora a narrativa
de infanticida. Ela o estupra ao invés do contrário, o prende com as ferramentas que
ele usava antes, e mesmo quando as constelações dos três personagens mensageiros
se alinham, Ele admite que tudo continua sem fazer sentido. A única saída que Ele
enxerga é a destruição da mulher, queimando-a na fogueira de modo a não deixar

3 KRUGER, Patricia de Almeida. “A projeção da figura feminina em Anticristo, de Lars von Trier”.
Revista Criação e Crítica nº 13, 2014
nenhum rastro do que costumava ser, e após isso a ordem é restabelecida (mesmo
que o final indique que existe um reprimido nessa violência misógina que pode, a
qualquer momento, retornar).
E se n’A Bruxa, a estrutura repressiva que possibilita o conflito é mais
evidente, e não há muitas dúvidas do papel que cumpre o discurso masculino para
perpetuar uma violência que só aprofunda o desastre, a complexidade está na
resposta de Thomasin. Durante muito tempo do filme, a figura que assombra e
aterroriza a família é a própria bruxa, que, até onde se sabe, é de fato uma entidade
externa. Porém, o instrumento da criatura para incidir sobre a família e subverter a
ordem tão cara ao pai é contaminar os outros membros da família com a mesma
pulsão de sexualidade que é vista como tão nociva. E vale dizer, sempre com algum
elemento que também é tabu aos olhos contemporâneos, numa tentativa de
aproximação com as sensibilidades atuais para que se compreenda a extensão moral
do que está sendo mostrado. Uma alucinação de Katherine é que o seu bebê volta são
e salvo, e, enquanto sonha que o está amamentando, a câmera abruptamente corta
para a realidade, onde um corvo bica os mamilos da mãe, que emite sons de regozijo.
A justaposição da amamentação com o prazer sexual com a dor por meio da edição é
onde o pesadelo do Inquietante aparece com toda a força, já que, ao mesmo tempo
que nos causa repulsa, toca em feridas sociais edipianas de elaboração complexa.
Com Caleb, em uma das mais cruciais cenas do filme, após o próprio desaparecer
depois de ser seduzido pela bruxa, ele volta e é deitado em uma cama onde
convulsiona e pede perdão a Deus, enquanto sua família reza a sua volta.
Abruptamente, o garoto entra em transe com uma visão de Jesus Cristo, no que
parece uma arrebatação e a salvação esperada. Mas as frases que recita levantam
suspeitas:

Cast the light of thy Countenance upon me. Spread over me


the lap of thy love. Wash me in the ever-flowing fountains of thy
blood. Let me ever be with thee. Wholly thine I am, my sweet Lord
Jesus. O my Lord, my love! Kiss me with the kisses of thy mouth,
how lovely art thou! ...thy embrace! My Lord, my love, my soul's
salvation, take me to thy lap!4

O tom erótico das evocações de Jesus faz questionar a razão do delírio de


Caleb, e abre a cogitação se ele foi provocado pela influência maligna da bruxa. O
4 EGGERS, Robert. The VVitch: a New England Folktale. Roteiro disponível em:
<https://www.scriptslug.com/assets/uploads/scripts/the-witch-2016.pdf>
filme se recusa a apresentar uma definição fechada, especialmente considerando que
essa é uma prece retirada dos registros históricos de pastores puritanos, inspirada
nos cânticos do rei Salomão. Contudo, inserida no contexto mais geral do filme, fica
evidente que a presença da sexualidade aparece para implicar, em algum nível, a
presença da bruxa, e a sua influência em virar do avesso os ditames de pureza de
William, fazendo transparecer os comportamentos reprimidos e conspurcados da
família.
Após a morte de William também, a identificação prévia de Thomasin com
esses comportamentos eventualmente levam ao ataque direto de sua mãe contra ela,
clamando que Thomasin “fede ao mal”. Mais uma vez a ameaça do infanticídio
aparece como a personificação do horror, porém desta vez da perspectiva da filha
ameaçada; e não demora para que Thomasin, em legítima defesa, esfaqueie sua mãe
e se encontre sozinha na casa abandonada. Desolada, a única presença viva na casa é
Black Phillip, o bode negro da família, que matou William e sob o qual pairam
suspeitas de uma ligação com o diabo. Depois de Thomasin questioná-lo se ele de
fato teve a ver com a manipulação das pessoas da casa, e só receber um longo silêncio
de resposta, ela finalmente desiste - até que Black Phillip a responde com um simples
“o que quereis?”
Neste final está condensada a principal ambiguidade do filme. Após ter
associado a influência do oculto com a destruição e o sofrimento por todo o enredo, o
suposto principal agente do oculto oferece a Thomasin nada menos do que tudo que
ela deseja, especialmente se isso quiser dizer “viver deliciosamente”, satisfazendo
todas as suas necessidades materiais e sensuais. Parece uma contradição que uma
voz masculina a ofereça libertação, depois do masculino ter sido a principal fonte da
repressão e da dominação para ela. Mas a representação do diabo dá pistas de qual é
a sua fonte: além do longo silêncio que antecede seu pronunciamento, sua aparição
indireta, em que apenas seus pés e mãos aparecem, com botas e luvas anacrônicas,
sugerem para a plateia que este diabo também é uma projeção - dos espectadores, e
também de Thomasin. A partir daí, o sobrenatural do filme é relido pela chave das
necessidades das próprias personagens, que tentando se manter dentro de um
contexto repressivo, em que a eles são negados seus impulsos humanos, irrompe o
reprimido pelo vetor da sexualidade. Thomasin, a parte mais subjugada da repressão,
é a que melhor consegue articular esse irrompimento como libertação - e na cena
final, ascende orgasticamente ao céu em contato com outras como si.
Mas o que parece um final feliz, mesmo que já ambíguo, dá mais uma volta no
parafuso com uma reflexão histórica: nunca sabemos o que aconteceu com os gêmeos
da família, que desapareceram sem deixar traços. De acordo com algumas narrativas
populares sobre as bruxas no século XVII, o unguento com o qual elas produziam a
sua levitação era feito de

the fat of children digged out of their graves, of juices of smallage,


wolfe-bane, and cinque foil, mingled with the meal of fine wheat.5

Se nunca mais vimos os gêmeos, e Thomasin está flutuando em frente a uma


enorme fogueira, é de se imaginar que a gordura das crianças necessária para o
unguento está queimando no fogo. Mesmo que esteja colocada uma saída para a sua
repressão, ela não é sem violência e sem contradição - junto com a sexualidade que
irrompe, também irrompe o espírito destrutivo que busca botar abaixo a ordem, e o
que estiver no caminho para ela. Essa virada é um exemplo do dispositivo trierano
que discutíamos no início do trabalho: através do esgarçamento das convenções dos
filmes de horror (a sobrevivência da virginal Final Girl, até que ela não se torna mais
tão virginal assim), e a inserção de múltiplas camadas de ironia, forçando o
espectador a questionar o conjunto dos pontos de vista apresentados, acabam por
trazer à tona as contradições históricas que possibilitam a violência que vemos na
nossa frente. Tanto Anticristo como A Bruxa, ao fim e ao cabo, não são filmes sobre
os poderes destrutivos de mulheres liberadas - eles são sobre de onde nascem as
bruxas, como figura de horror no inconsciente. Nos dois casos, a conformação do
discurso de dominação de uma figura masculina, calcada nos conceitos do
cristianismo e/ou do racionalismo científico, pedras basilares da formação do
capitalismo moderno, teve que vir acompanhada da personificação de tudo que há de
abjeto no contexto apropriado ao dominador. Não por acaso, essa personificação se
deu na figura de uma mulher. A diferença entre os dois se dá se a vitória (aparente)
se dá pelas mãos da força dominadora, como em Anticristo, ou se a parte dominada
ganha uma oportunidade histórica de um tour de force no último ato - com todas as
contradições que advém dessa alternativa.
O trabalho seminal de Silvia Federici sobre a caça às bruxas na Europa
demonstra como, longe de ser um processo apenas ficcional, ele foi o próprio tecido
da formação do capitalismo na Europa (e também na América, mesmo que isso não

5 SPENCE, Lewis. The Encyclopedia of the Occult. Bracken Books, 1970


esteja tão presente na obra, como atestaram os julgamentos de Salem, entre outros).
De acordo com ela, a perseguição às bruxas foi uma espécie de “terapia social”
durante o interregno entre o feudalismo e o capitalismo, cujo papel foi duplo:
esmagar as violentas revoltas camponesas contra os encercamentos e a expropriação
da terra, que eram majoritariamente lideradas por mulheres, atribuindo um caráter
de heresia a toda a linguagem do poder feminino e das revoltas; e organizar uma
nova ordem social em que a exploração do tempo do trabalhador seria essencial para
a produção do lucro, dessa maneira racionalizando a divisão do tempo e, por
conseguinte, a reprodução social:

Do mesmo modo que os cercamentos expropriaram as terras


comunais do campesinato, a caça às bruxas expropriou os corpos das
mulheres, os quais foram assim “liberados” de qualquer obstáculo que
lhes impedisse de funcionar como máquinas para produzir mão de
obra. A ameaça da fogueira ergueu barreiras mais formidáveis ao
redor dos corpos das mulheres do que as cercas levantadas nas terras
comunais. 6

Essas duas funções organizadoras do capitalismo encontram eco na dupla


ansiedade dos personagens de A Bruxa. O medo do desafio à ordem rígida na casa de
William, uma minissociedade patriarcal, ecoa o objetivo de esmagar as revoltas
camponesas que pudessem apresentar uma disputa de poder. E o medo da
sexualidade comunica uma preocupação pela regulação completa do corpo feminino,
para que houvesse uma regulação completa da força de trabalho. O discurso
racionalista d’Ele em Anticristo adiciona mais uma camada à estrutura de
dominação, exibindo a ideologia oficial para a erradicação de formas generalizadas
de comportamento feminino, e de sociabilidades que não cabem mais numa
sociedade orientada pelo lucro. Mesmo William deixa transparecer sua inclinação
irresistível à tendência histórica do capitalismo de mercado, quando vende a taça de
prata da família para comprar equipamentos de caça (pelo que, mais tarde, coloca a
culpa em Thomasin).
Federici deixa claro que a armação intelectual que apoiou a perseguição às
mulheres não veio pronta diretamente do racionalismo, mas foi na verdade uma
bricolagem de conceitos filosóficos apropriada a um período transicional de modos
de produção. O reaparecimento do tema das bruxas, figurado sob a luz específica da

6 FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante,
2017
expropriação da reprodução social e da dominação patriarcal, nos leva a refletir
sobre as relações com o momento que estamos vivendo. No período após a crise de
2008, um conjunto de pressupostos do capitalismo financeirizado foi desafiado, e
desde então a sociedade global passa por uma reestruturação que atravessa o
conjunto da vida social. Um momento também de interregno, se não entre modos de
produção, possivelmente entre diferentes etapas do mesmo modo. E uma bricolagem
ideológica que vem tomando o discurso hegemônico por todo o mundo é o uso de
argumentos técnicos, por vezes até racionalizantes, para a justificativa de programas
de austeridade brutal e também de fortalecimento de alternativas políticas
regressivas e até protofascistas (nos EUA, um dos lemas da alt-right é “fatos não
ligam para os seus sentimentos”).
Esse processo de reestruturação produtiva passa centralmente pelas mulheres
como sempre passou. Em primeiro lugar, através da desestruturação dos serviços
públicos, funções que tradicionalmente são destinadas às mulheres na esfera do
trabalho assalariado (saúde, educação, assistência social, etc.); e em segundo lugar,
através do controle direto do trabalho não-assalariado (doméstico), muito
majoritariamente realizado pelas mulheres, e o mesmo o controle direto dos corpos,
com uma investida contra os direitos reprodutivos e a possibilidade de planejamento
de natalidade:

But the working class doesn't only work in its workplace. A woman
worker also sleeps in her home, her children play in the public park and
go to the local school, and sometimes she asks her retired mother to
help out with the cooking. In other words, the major functions of
reproducing the working class take place outside the workplace.

Who understands this process best? Capitalism. This is why capitalism


attacks social reproduction viciously in order to win the battle at the
point of production. This is why it attacks public services, pushes the
burden of care onto individual families, cuts social care--in order to
make the entire working class vulnerable and less able to resist its
attacks on the workplace.7

Se os filmes de horror trabalham com a ansiedade e a angústia, e o que existe


por trás do que é aceito socialmente (e muitas vezes mobilizam esse afeto para canais
ideológicos), o ressurgimento das bruxas pela chave da exploração e da dominação
da reprodução social merece atenção, por estar codificando um terror muito real

7 BHATTACHARYA, Tithi. “What is social reproduction theory?” Disponível em:


<https://socialistworker.org/2013/09/10/what-is-social-reproduction-theory>
sobre essa etapa do desenvolvimento histórico. E mais, por ser um terror
generificado, condensa em uma forma a experiência de um setor que sempre
movimentou decididamente as estruturas da sociedade - para além das revoltas
camponesas, as revoluções francesa e russa começaram com greves de mulheres - e
que vem se inscrevendo no cenário internacional de disputa de poder. Prestemos
atenção, então, ao que as bruxas revelam sobre nós, e sobre si próprias.
Obras citadas

BHATTACHARYA, Tithi. “What is social reproduction theory?” Disponível em:


<https://socialistworker.org/2013/09/10/what-is-social-reproduction-theory>

BRIDGES, J.A. “Post-Horror Kinships: From Goodnight Mommy to Get Out”.


Disponível em <https://brightlightsfilm.com/post-horror-kinships-from-goodnight-
mommy-to-get-out/>

FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São


Paulo: Elefante, 2017

FREUD, Sigmund. "O Inquietante". In: Obras Completas- Volume 14: História de
uma neurose infantil ("o Homem dos Lobos"), Além do princípio do prazer e outros
textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010

KRUGER, Patricia de Almeida. “A projeção da figura feminina em Anticristo, de Lars


von Trier”. Revista Criação e Crítica nº 13, 2014

SPENCE, Lewis. The Encyclopedia of the Occult. Bracken Books, 1970

Você também pode gostar