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ANAIS DO ENCONTRO NACIONAL DISCURSO, IDENTIDADE E SUBJETIVIDADE

MÍDIA E DEMOCRACIA
volume 1 | número 2 | agosto de 2017
ANAIS DO ENCONTRO NACIONAL DISCURSO, IDENTIDADE E SUBJETIVIDADE

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO


Francisco Hudson Pereira da Silva

REVISÃO
Os autores

ANAIS DO ENCONTRO NACIONAL DISCURSO, IDENTIDADE E SUBJETIVIDADE


é uma publicação anual do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Estratégias de Comunicação
(NEPEC), vinculado à
Universidade Federal do Piauí.

CORPO EDITORIAL
Francisco Laerte Juvêncio Magalhães
Francisco Hudson Pereira da Silva
Pedro Júlio Santos de Oliveira
Thalyta Cristine Arrais Furtado
Thiago Ramos de Melo

e-mail: nepec.ufpi@gmail.com

CONSELHO CIENTÍFICO
Francisco Laerte Juvêncio Magalhães
Lívia Fernanda Nery
Viviane de Melo Resende
João Benvindo
Ribamar Jr.
Cássio Miranda
Maraísa Lopes

AUTOR CORPORATIVO
Editora Universidade Federal do Piauí
Campus Universitário Ministro Petrônio Portella, s/n - Ininga, Teresina - PI, 64049-550

ISSN 2525-6033
O ÚLTIMO PEDAÇO DE ILUSÃO: FLANNERY O’CONNOR, A IDENTIDADE E O REAL1

Victor Bruno2

Flannery O‘Connor, apesar de ainda ser relativamente desconhecida no Brasil, é talvez a escritora que
RESUMO

melhor comente sobre a condição do homem moderno. Sua abordagem é espiritual e suas histórias são
mais contos sobre nossa condição de pequenez ante à grandeza do espírito do que narrativas com começo,

modernidade. A partir de um de seus contos, ―The Enduring Chill‖, cujo protagonista é um jovem escritor
meio e fim. Por isso mesmo, isso lha dá uma posição privilegiada no mundo confuso que é o da

frustrado com a sua condição no mundo, este artigo tenta traçar um breve panorama sobre o homem
atual, uma criatura que cremos ser perdida num mar de ideologias que se contradizem, sem uma bóia para
se sustentar e sem nenhum tipo de redenção em vista. Na nossa abordagem, nos perguntamos quem é esse
homem e quais são suas possibilidades? Utilizando uma das maiores escritoras do século XX, propomos

Palavras-chave: Flannery O‘Connor; Eric Voegelin; estrutura da realidade; catolicismo; desordem da


uma pequena jornada em busca da nossa identidade como seres humanos e da identidade da modernidade.

identidade.

§ 1. Prolegômeno: apresentando Flannery O’connor

ão creio que haja no Brasil um escritor que se pareça — em matéria ou forma — com a sulista americana

N Flannery O‘Connor, autora morta precocemente pelo lúpus em 1964, aos 39 anos, e ainda a ser
descoberta nestas plagas. Motivos? Vários. Não apenas porque o conto brasileiro seja estruturalmente
diferente do conto americano (por razões que escapam ao interesse deste texto), 3 mas também por toda uma
série de temas e abordagens a determinados assuntos essenciais para o desenvolvimento da sua prosa (como

que são muito caros à maioria prosadores brasileiros, mas que O‘Connor simplesmente ignora. 4 Não há em
é o caso da sua abordagem em relação à espiritualidade, à religião e ao catolicismo) como também de assuntos

O‘Connor a mesma preocupação que Lima Barreto tem, por exemplo, em analisar a hipocrisia social das suas
redondezas (e tanto aquela como este são ficcionistas obsessivamente regionais: O‘Connor com a sua Geórgia

analisar relações de classe ou de raça. Para O‘Connor, todos são iguais: igualmente humanos e pecadores.
rural e Lima Barreto com o seu Rio de Janeiro de urbanização ainda incipiente, mas voraz), muito menos de

Flannery O‘Connor se encaixa num período muito peculiar da ficção americana. Ela se insere no meio

quase obsessivo de dialetos locais pelas personagens),5 mas contraposto a um lirismo místico —
de um grosso realismo linguístico inspirado por em James Joyce e William Faulkner (como evidenciado no uso

eminentemente católico —, numa clara reverência e aproximação dos chamados Southern agrarians, o

1
Trabalho apresentado no GT Linguagem, Cultura e Identidade do II Encontro Nacional sobre Discurso, Identidade e Subjetividade

Graduando em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal do Piauí. E-mail: victorbruno@outlook.com.
(ENDIS), realizado de 26 a 28 de abril de 2017.
2
3
Uma abordagem metódica e formal do conto moderno no contexto americano pode ser encontrada no artigo de A. L. Bader ―The
Structure of the Modern Short Story‖ (1945).
4
O‘Connor, ao contrário do que se esperaria de uma escritora do Sul dos Estados Unidos, raramente trata de questões sociais e

O‘Connor, o encontro do homem dificilmente se dá em estruturas e complexos sociais (i.e., ela nega a experiência humana como algo
raciais. Sua abordagem, como pretendo demonstrar aqui, é eminentemente pessoal, espiritual e, consequentemente, universal. Para

puramente materialista, o que é louvável), mas sim no campo da sua participação na estrutura do real — na methexis, assunto que
abordarei em instantes. O‘Connor aborda o homem e sua experiência dentro do campo da ―igualdade circunstante‖ (v. EMBRY, 2008,

Uma análise formalista do estilo de Flannery O‘Connor pode ser encontrada em Pollack (2007).
pp. 42–43, 119).
5

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movimento literário liderado pelos sulistas John Crowe Ransom, Robert Penn Warren e Donald Davidson. 6
Inclusive o título de ―escritora agrária‖ muito agradava a autora (v. O‘CONNOR, 1980, p. 148). Portanto, seu uso

questões educacionais. Por exemplo, vejamos esta passagem de ―The Artificial Nigger‖, na qual a palavra ―ast‖
intenso da oralidade e do dialeto local não tem o objetivo de acentuar diferenças de classes ou relativizar

entra no lugar de ―ask‖ (perguntar), um exemplo de oralidade em sua escrita:

―Whyn't you ast one of these niggers the way?‖ Nelson said. ―You got us lost.‖
―This is where you were born,‖ Mr. Head said. ―You can ast one yourself if you want to‖
(O‘CONNOR, 1971, p. 261).7

Quer dizer, a manutenção e a inclusão da oralidade dentro do contexto do trabalho da autora


americana quer dizer menos uma forma de delineação social e mais uma compreensão, uma instalação
completa do lugar geográfico na imaginação da autora. Isso quer dizer que o estilo de Flannery O‘Connor é
verdadeiramente humano — e participa plenamente do entremeio entre a ideia e a realidade. Há, portanto, uma
unidade na imaginação e na identidade da autora.

§ 2. A ficção em busca da ordem: “The enduring chill”

Isso abre uma fresta para o real assunto deste ensaio. Há um conto de O‘Connor, chamado ―The
Enduring Chill‖ (O calafrio permanente), no qual a personagem principal sofre um claro distúrbio na unidade da
sua identidade e personalidade. Tal distúrbio é justamente rastreado à sua pretensa erudição, que o leva a se

―The Enduring Chill‖ é protagonizado pelo jovem Asbury, aspirante a escritor que infelizmente ainda
arvorar una ficção mental densamente elaborada.

nada publicou e ganha por isso alfinetadas de sua irmã. ―Mary George — O‘Connor nos informa — had said that
the age most people published something was twenty-one, which made him exactly four years overdue‖
(O‘CONNOR, 1971, p. 361). O jovem aspirante está retornando para sua cidade, Timbersboro (fictícia), de Nova
York, para onde foi com o intuito de fugir da ―slave‘s atmosphere of home‖ (ibid., p. 364) e de retorna para se
tratar de uma doença aparentemente mortal. ―He looks a hundred years old‖, sentencia Mary George (ibid., p

Asbury é sofisticado e cita Joyce, quer escrever uma peça sobre os negros estivadores da sua mãe —
363).

à Zola em Germinal —, e é ateu. Macambúzio, não se sente compreendido por sua mãe. Antes, escreve-lhe uma
longa carta — ―[i]t was such a letter as Kafka had addressed to his father‖ (ibid., p. 364) — e que lhe tomou
dois cadernos inteiros. Apesar do seu ateísmo, em cima da cama do jovem escritor há infiltrações na parede,

acreditar que ―God is an idea created by man‖ (ibid., p. 376), pede para que um padre jesuíta venha visitá-lo
em forma de estalactites, que se parecem com um grande pássaro com as asas abertas, e mesmo que

para ter uma conversa intelectual — apenas para caçar dele quando percebe que ele não é tão letrado quanto
ele, Asbury. No fim, após uma patética conversa com os empregados negros da sua mãe, Asbury descobre que

empregados como laboratório para a sua peça à la Zola. Indignado por não morrer — e com medo que sua mãe
tem febre de Malta, contraída depois que bebeu leite não-pasteurizado num dia em que quis trabalhar com os

6
Os Southern agrarians são ainda pouco conhecidos aqui no Brasil, talvez porque lamentavelmente nosso imaginário sobre o Sul dos
Estados Unidos ainda é desgraçadamente povoado pelas imagens sinistras da Ku Klux Klan e dos confederados escravocratas. Pena —
o Sul americano tem grandes similaridades com o nosso Nordeste, algo discutido en passant por Gilberto Freyre em Casa-Grande &
Senzala (2003, pp. 30–31; v. também FREYRE, 1977, p. 41). Os agrarians surgiram exatamente, diga-se, para revitalizar e tomar de volta
a bela e lírica terra do Dixie, da América profunda, e reclamar a poesia inerente àqueles rincões rurais contra a modernização que
eles viam (corretamente) como alienante e corrosiva do século XX. Há algum tipo de semelhança entre eles e o Movimento Nordestino
da década de 30 (v. CARPEAUX, 1964, p. 305–320), mas essa comparação deve ser feita prudentemente. Uma introdução aos Southern
agrarians pode ser encontrada em The Rebuke of History, de Paul V. Murphy (2001, pp. 31–61, 179 sqq.).
7
Para preservar o estilo e o ritmo da prosa de O‘Connor, decidi manter as citações no original. Além do mais, ―The Artificial Nigger‖
era, de acordo com a própria, seu conto que mais lhe agradava (O‘CONNOR, 1980, p. 209), então creio que é melhor deixar as coisas
como são.

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lhe descubra a carta kafkaniana — ele olha para a infiltração em forma de pássaro sobre a sua cama, que
agora lhe parece, estranhamente, com uma manifestação viva do Espírito Santo que vem lhe pegar.

paralelos entre a experiência do homem moderno — e também do brasileiro — e o trabalho de Flannery


Nesse brevíssimo resumo, já foram feridos três elementos que podem ser explorados na busca de

O‘Connor. São estes: o Espírito Santo (a religiosidade e a unidade do real), a arte (o trabalho de compreensão

explicitados no conto acima, ou mesmo em outros trabalhos literários de O‘Connor na ficção: a sua prosa
do real) e a localização do espaço geográfico (o mundo das mutações). Nenhum desses elementos são

sempre tem um fundo eminentemente narrativo, apesar de haver um subtexto moral sempre muito forte — e,
para a autora, necessário. Necessário porque, para O‘Connor, a ficção deve levar o leitor — e suas
personagens, também — a um reencontro com a realidade (cf. O‘CONNOR, 1969, p. 112). Tal reencontro fica
cristalino em ―The Enduring Chill‖. Asbury tem um desvio — vamos chamar assim — entre o que o real é e qual
a sua leitura dele. Portanto, um problema de participação (methexis) na realidade. Isto é dizer, em outras
palavras, que Asbury tem um problema de ―paralaxe cognitiva‖, um desvio psicológico típico da modernidade

Cap. 5; 2013, Cap. 14). Em ―The Enduring Chill‖, o problema de Asbury o leva a querer, voluntariamente, abolir sua
caracterizado pelo próprio desvio entre o eixo imaginativo e a experiência real do indivíduo (v. CARVALHO, 2011,

Malta do que morrer mesmo e nunca mais escrever nada. Abury não tem a unidade da sua consciência — e
participação no mundo dos vivos: o choca muito mais ter uma doença espúria (e não letal) como a febre de

essa falta de unidade se traduz, como já dito num problema de methexis e também no seu duelo contra a
divindade (que vem de forma simbólica na figura de um padre jesuíta muito velho e que ignora o ateísmo do

O problema de Asbury atinge também outras linhas. Raciocinando como O‘Connor, Asbury não crer no
protagonista).

Uno, em Deus, não se traduz em um problema de espírito. Apologeta Flannery O‘Connor não é. A autora
interpreta a realidade da existência de Deus como um fato cabal e consumado, sacramentado no momento da
Revelação Divina. Isso significa que Deus é parte necessária da realidade, e a negação da Sua existência é
simplesmente loucura e cedo ou tarde o real terá necessariamente que vencer e penetrar a Segunda Realidade
na qual Asbury está vivendo (v. VOEGELIN, 1990a, p. 112). 8 Asbury vive uma completa ficção, um teatro mental de
puro ressentimento e mentiras, cortando quase que completamente todo o seu contato com o real: para si,
Asbury não é um jovem problemático, mas antes um artista (fracassado), desejoso de ser algo, de ser um

de qualquer culpa. É evidente que nada disso é real — Asbury é ranzinza, somente; mas um ranzinza
James Joyce, mas cujas pretensões são tolhidas pela sociedade mesquinha e medíocre. Ele está, para si, isento

terrivelmente ressentido. A falta de coragem de Asbury em encarar isso é o que lhe faz entrar nesse teatro
mental, a Segunda Realidade, e nunca mais sair de lá. Mas, como explica Eric Voegelin, a Segunda Realidade é
um fenômeno dentro da Primeira Realidade (o real em si; vide ibid., p. 113), e evidentemente ele tem que

é um evento traumático — simbolizado por O‘Connor como a aproximação do pássaro gelado do Espírito Santo:
ingressar nesse mundo de fantasia. Como acontece tantas vezes, a violação da Segunda Realidade pela Primeira

The fierce bird which through the years of his childhood and the days of his illness had been poised
over his head, waiting mysteriously, appeared all at once to be in motion. Asbury blanched and the
last film of illusion was torn as if by a whirlwind from his eyes. He saw that for the rest of his days,
frail, racked, but enduring, he would live in the face of a purifying terror. A feeble cry, a last

implacable, to descend (O‘CONNOR, 1971, p. 382).


impossible protest escaped him. But the Holy Ghost, emblazoned in ice instead of fire, continued,

8
Há uma diferença fundamental entre ―The Enduring Chill‖ e outros contos da autora. Normalmente o fator ―descrença‖ não se traduz
em uma revelação simples, como se se tirasse o coelho da cartola do mágico, como é o caso neste conto. Em outros (como ―Parker‘s
Back‖, um dos últimos da autora), o ateísmo — ou a simples descrença — é vencido com a observação de que é justamente o
descrente um dos filhos preferidos de Deus e escolhido para carregar a Palavra. Repito; O‘Connor não é apologeta. O fato do
protagonista ser escolhido não faz o faz ser um missionário pregador, mas antes simboliza o retorno da unidade da consciência e a
assimilação da verdadeira personalidade do indivíduo (que pode muito bem ser uma criança assassina, como é no romance The Violent
Bear It Away). Em outros casos, a assimilação da personalidade e do sentido da vida de uma personagem implica em sua morte, como
é o caso do conto ―Greenleaf‖ e do final de Wise Blood, romance de estreia da autora.

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Interpretemos o sinal do Espírito Santo: passemos adiante.

§ 3. Os dramas e as doenças da nossa idade

O quadro de Asbury, portanto, é de grande desordem. Mas que espécie de desordem? Falei acima do
Espírito Santo, da methexis, da identidade do ser com o estar. Mas tomados como elementos de uma narrativa
ficcional eles aparentemente nada dizem sobre a ―vida real‖ e sobre nós mesmos — e o objetivo deste ensaio é
mostrar como que O‘Connor escreve fala muito a respeito da nossa realidade enquanto homens e mulheres
modernos.

refugiado da União Soviética — que preferiu se manter em anonimato —, ―Much though I hated the Communists,
Viver em desordem é uma das piores coisas que podem acontecer com um indivíduo. Como disse um

I saw then that even the grim order of Communism is better than no order at all‖ (apud KIRK, 2008). Toda a
história da humanidade, desde nossos primórdios nas cavernas até nossa entrada no terceiro milênio pode ser
recontada como a nossa busca pelo encontro da ordem e da representação dentro dos contextos de vivência
em comunidade. Era isso, e não outra coisa, que o homem de Lascaux queria quando se pintou naquelas

atividades que dão liga à sua gente. Todas as culturas que já existiram viveram exatamente esse drama — Qual
primitivas paredes: buscar ou representar uma identidade de si e de seus grupos, balizado por certas

é a identidade da minha gente? E, como demonstrou Christopher Dawson, a perda da cultura inteira de uma
sociedade implica a perda da sua própria identidade, estabelecendo assim o primeiro passo para o seu eventual

próprias dinâmicas — normalmente variações de alguma atividade humana essencial para as suas
desaparecimento (DAWSON, 2012, pp. 110, 114). Todas as civilizações têm uma força motriz dentro das suas

sobrevivências — e que se erguem através do trabalho dos poetas e dos grandes fundadores culturais até
atingir o patamar de mito fundador — ou modular — daquela sociedade (v. ibid., pp. 96–97).9
Mas então qual é o nosso ―mito modular‖? Já que aparentemente na nossa sociedade sentimos o
mesmo drama de Asbury, só que de forma analógica, uma vez que o drama do esfarelamento da identidade é a
pauta do dia em nossa sociedade.
Primeiro temos que saber qual é a nossa sociedade. Chamo genericamente a sociedade que Asbury,
você e eu vivemos de ―ocidental‖, já que, mesmo com todas as flexões possíveis, a cultura sulista americana e a
brasileira são desdobramentos de uma unidade-mãe — a cultura ocidental. Essa cultura, por sua vez, se
sustenta sobre três pernas — a cultura filosófica helênica, a legal romana e a espiritual israelita, ou judaico-
cristã (v. sobre o assunto SCHALL, 2003, p. 429 e KIRK, 2008, Cap. 1). 10 Não é possível falar em uma cultura
ocidental sem mencionarmos esses três pilares, e só um lunático poderia negá-los. Mas a negação desses
pilares é justamente o que vem desmantelando a unidade do ser no nosso tempo. Em outras palavras, é essa
negação que adoece o nosso homem. Isso não quer dizer, naturalmente, que devemos aceitar cegamente todos

9
Que o leitor perceba que eu uso a palavra ―mito‖ em seu sentido original — ―narrativa‖ — e não na sua infeliz conotação moderna de

Esse modelo de ―tripé‖ — ou de ―triângulo‖ — se parece com aquilo que Eric Voegelin aborda em determinado momento da sua New
fábula fantástica.
10

Science of Politics (2000, pp. 178 sqq.) sobre o modelo trinitário da História tal como concebido por Joaquim de Fiore, um modelo que

verdadeiramente a Revelação do Senhor. Voegelin condena tal interpretação da História como imanentista e gnóstica — o que é
diz que supostamente haverá uma era do Pai, do Filho e do Espirito Santo e no qual só nessa última era poderemos compreender

mesmo. O que ocorreu com o ―tripé‖ ocidental — e o que o faz escapar do gnosticismo de Fiore e de todos os outros que quiseram

pp. 181–83], uma neurose tipicamente russa infinitamente reeditada durante o regime comunista do século XX) — é que o tripé-
tornar a Terceira Era, a Era do Espírito Santo para si (como Hitler e os moscovitas do tempo de Ivan IV, o Terrível [v. VOEGELIN, 2000,

fundador ocidental não clama para si nenhum tipo de verdade transcendente e nem imanentista na qual a realidade divina se dá dentro
do campo histórico. O triângulo ocidental se baseia numa construção puramente cultural e histórica, e não clama nenhum tipo de
verdade que não seja aquela da sua própria existência (e a necessidade da sua sobrevivência). Ademais, dependendo de qual

Kirk adiciona Londres na parada — v. KIRK, 2008, Cap. 1 e 4 e KIRK, 1993). No caso brasileiro, podemos dizer que nossa quarta cidade é
sociedade ocidental estivermos falando, podemos acrescentar uma quarta cidade fonte de cultura (no caso americano, o supracitado

Lisboa.

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os feitos e o status quo. Ao contrário: o homem tem que, por princípio, estar alerta para preservar aquilo que
deve ser preservado e mudar aquilo que deve ser mudado. Essa é a própria tensão-base do ser e, em última
análise, o drama da vida em sociedade, uma vez que a identidade se forja justamente na dinâmica da
preservação e da mudança (afinal de contas, uma personalidade se constrói nas coisas que adquirimos e

preservação da ordem interior do nosso ser — e se Platão está certo e de fato a sociedade nada mais é do que
remodelamos através dos anos). Mas tais operações de preservação e mudança dependem da saúde e

Agora chegamos a um quadro de dualidade entre o macro e o micro. O macro é a sociedade — a


o homem em larga escala, a doença da consciência do homem põe em cheque toda a estrutura da sociedade.

ordem social, digamos —, e o micro é o homem mesmo, sua constituição psicossomática. Podemos agora
responder à pergunta feita há pouco: Que espécie de desordem é essa que aflige Asbury? É de uma espécie

notar isso no conto de Flannery O‘Connor — afinal, estamos interpretando a história com o famoso
doentia, daquela que suga até a última gota de força e vigor num ser. Só que, sendo uma ficção, é muito fácil de

―distanciamento crítico‖. Mas como traduzir isso para a realidade?


E nossa sociedade, através dos últimos três séculos, entramos numa espiral vertiginosa e maluca de
compartimentalização da unidade da identidade. Esse processo não se dá no homem em si, individualmente; é
antes a consequência de um fenômeno geral e que opera desde fora em sua mentalidade, através dos tempos.
Em tempos passados, estava muito claro para os homens que havia uma unidade-base (ou, para sermos mais

constituição humana. Essa imagem essencial, essa unidade-base, é a de Jesus Cristo, o ―novo Adão‖ e ―segundo
platônicos, ideal) da existência. O homem da sociedade cristã modelava sua vida à imagem da unidade-ideal da

homem‖ (1 Cor 15:45), que é o referencial macrocósmico (transcendente) ao qual o microcósmico (imanente)
está subordinado.11 Isso se nota mais claramente quando observamos a popularidade de certas leituras não-
bíblicas, mas de cunho religioso, como a Imitação de Cristo, de Tomás de Kempis, escrito por volta do século XV,

quais ―fremem as nossas paixões, revivem os nossos combates interiores, gemem as nossas misérias e aos
livro escrito como forma de conselho e admoestação para monges e padres, e que, graças às suas linhas nas

nossos arrependimentos, exprimem-se, em toda sua força, as nossas mais nobres aspirações‖ (FRANCA, 1970,
p. 9), ganhou enorme popularidade entre o público leigo desde então. Isso quer dizer que Tomás de Kempis
conseguiu refletir e dar testemunho de uma verdade transcendente; que conseguiu, em seu livro, refletir como
em filigrana a modulação desse homem que serve de unidade de referência para nós mesmos. Na Imitação de
Cristo sentem-se as aspirações de um homem transcendente, sem máculas e pecados; um homem que
consegue entrar pela porta estreita. Transfere-se, portanto, dentro da Imitação de Cristo, o referencial mítico

homem que tinha exatamente tais qualidades — qualidades testadas na bigorna da Cruz e da Paixão e portanto
da nossa sociedade. Nossa civilização cresceu à sombra, justamente, da realidade de um homem assim, de um

reveladas aos olhos de todos como físicas e reais. Em outras palavras, nossa civilização floresceu com a
imagem do homem ideal revelado.
Porém, com a entrada da modernidade (que podemos marcar mais ou menos pelo século XVIII)
atravessamos um complexo de dúvida e intensa imanentização do Eschaton, que é o processo no qual as coisas

é que não existisse tais processos de imanentização antes — como o já citado Eric Voegelin diz, a heresia
pertencentes à ordem da divindade são trazidas ao mundo imanente (i.e., o nosso; o mundo das mutações). Não

gnóstica é a mãe da imanentização e a chave fundamental da natureza da modernidade (v. VOEGELIN, 2000, pp.
175 sqq.). Não faltaram, durante vários períodos da nossa história, seitas milenaristas que juravam de pés

11
Há dois estudos sobre esse tema. O primeiro é o de Olavo de Carvalho (2015, pp. 31–33) e o outro é o de René Guénon (s/d, pp. 14

cristão propriamente dito. ―A realização efetiva dos estados múltiplos do ser refere-se à concepção daquilo que as diferentes
sqq.). Note-se, contudo, que o estudo de Guénon fala do homem universal mais na perspectiva do esoterismo islâmico do que do

doutrinas tradicionais — diz Guénon — e notadamente o esoterismo islâmico, chamam de ‗Homem Universal‘; esta concepção

hermetismo ocidental, entre o ‗macrocosmo‘ e o ‗microcosmo‘‖ (GUÉNON, s/d, p. 14). Tomei, portanto, o cuidado de usar a
estabelece a analogia constitutiva entre a manifestação universal e sua modalidade individual humana, ou, na linguagem do

nomenclatura que Guénon considera própria do ―hermetismo ocidental‖ ao me referir à unidade-base do homem dentro do contexto

universal‖) de Guénon.
cristão de forma que não haja nenhum tipo de confusão. O Prof. Carvalho, no ensaio que referi acima, utiliza a nomenclatura (―homem

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juntos que sabiam a data do Apocalipse (ou que no mínimo ele estava próximo) ou que determinada figura
política era o Messias Reencarnado (v. COHN, 1970, Caps. 1 e 6). Tais pensamentos nunca foram embora e nem
ficaram relegados àquele período histórico tido como horroroso que foi a Idade Média; antes, se intensificam

um fenômeno muito corriqueiro a partir do final do século XIX — normalmente ligado à algum tipo de revolução
durante a modernidade, porém geralmente dissociado do elemento espiritual. Exemplo: o messianismo político é

coletiva, como a Revolução de Outubro. Antes de ser uma novidade, é nada mais uma recapitulação do
milenarismo igualitário tratado por Norman Cohn nos três últimos capítulos de seu livro The Pusuit of the
Millennium. Além disso, a figura da pessoa messiânica intensifica-se formidavelmente nesse mesmo período
uma vez que, não havendo mais a teologia da divindade, necessita-se de um outro tipo de teologia — e é essa
nova teologia, um Ersatz da divindade, só que intramundano. Precisamos acreditar em algo — nem que esse
algo seja um político (v. PAYNE e GROSSHANS, 1963 e BILLINGTON, 1980, Caps. 8–11). Portanto, o pensamento
moderno sofre um processo de destaque, como se se arrebentasse da unidade estruturante da realidade. Junto

também a ―superação‖ das ideias daquele período, valendo-se dos novos recursos científicos e matemáticos
à criação de mitos sobre o período espiritual anterior (genericamente chamado de Idade Média), inventa-se

que vêm a explicar fenômenos cujas explicações eram até então desconhecidas. Até o nome do novo período
vem para realçar a nova ordem espírito-social: Iluminismo. E a reboque do esclarecimento que o período
proporciona vem um novo fenômeno: o Progresso. Nessa nova ordem o deus é o Fato, aquela coisa material e

Diversas expressões de pensamento desabrocharão nesse tempo. Infelizmente — ou talvez felizmente


visível, mensurável e quantificável.

— elas não são o tema deste ensaio, até porque seria necessário um tomo inteiro, ou mesmo mais de um, para
se fazer um estudo dessa magnitude. Porém podemos perceber claramente que o abandono do nosso mito
essencial e estruturador (a realidade de Cristo) deixou o homem moderno completamente perdido. Sem notar
que, como falou Russell Kirk, o fato nada mais é que um fenômeno construído (i.e., acidental), e que só significa

matematizantes — como, e especialmente, o positivismo comteano — o homem passa a pedir mais poesia e
algo quando tomado em conjunto (KIRK, 1969, p. 351). À luz da descoberta que doutrinas mecanicistas e

imaginação. Porém essa imaginação não é a verdadeira imaginação — a imaginação moral a qual se refere
brevemente Sir Edmund Burke nas suas Reflexões sobre a Revolução em França. A imaginação moral é aquele

além da vã e crua matéria, que ―nos permite aumentar a estima da nossa dignidade humana‖ (BURKE, 1951, p.
arcabouço de imagens e valores internos que cada um de nós carrega e que nos permite ver as coisas para

74). A imaginação moral é aquele elemento imaginativo que nos faz perceber que um rei não é um mero homem,

o homem moderno — e o jovem Asbury é a maior exposição possível dessa frustração — pediu. Antes,
que o amor entre um pai e uma mãe é mais que um apanhado de descargas bioquímicas. Mas não foi isso o que

aconteceu um completo desmonte da imaginação, seja ela moral ou outra qualquer, foi a confirmação desta
previsão de Burke:

woman, a woman is but an animal,—and an animal not of the highest order. […] Regicide, and
On this scheme of things [do fim da imaginação moral], a king is but a man, a queen is but a

parricide, and sacrilege, are but fictions of superstition, corrupting jurisprudence and by
destroying its simplicity. The murder of a king, or a queen, or a bishop, or a father, are only
common homicide,—and if the people are by any chance or in any way gainers by it, a sort of
homicide much in the most pardonable, and into which we ought not make too a severe scrutiny
(ibid., 74).

Ao contrário, essa imaginação que foi pedida é na verdade um movimento refratário à matematização
que se erguia naquele tempo, portanto pegando o pior daquilo a que se opunha. A libertação aparente que ele
teve do mundo dos fatos o desmontou quase que completamente (ou melhor, o desconstruiu) até que se
descobrisse como um monte de átomos que se autocontradizem, sem nada significarem num todo senão que o
homem não tem liberdade de seguir seus impulsos e é um organismo vítima dos mandos e desmandos dos
outros, das verdades selecionadas e catalogadas por instituições que ele não escolheu e crente de mitos (agora
como sentido de fábula) perfeitamente inexistentes. Sua única saída é crer que as verdades selecionadas pela

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sociedade são apenas algumas verdades e não querem dizer que exista de todo uma única verdade, mas uma
coleção delas que podem ser usadas ou não na construção da nossa narrativa pessoal. Essa é a era do
estruturalismo e do pós-estruturalismo, da verdade e da pós-verdade, da subjetividade, das narrativas políticas
e da ideologia. É a era da persuasão.
Entrementes, o homem também percebe que não dá para viver somente com a matéria e a carne: é

deuses — primeiramente ao deus do Fato e depois ao deus do imaterial. Daí surgirem o Apostolado Positivista,
necessário preencher a fome do espírito. Porém mesmo assim a fé também tem que ser ajustada aos novos

fundado pelo próprio Auguste Comte e depois o kardecismo, compêndio de cristianismo com positivismo. Mas,
mesmo assim, de fato ainda há uma estranha similaridade entre o Apostolado e o kardecismo com a velha fé
cristã: ainda há o ramerrão da doutrina e do lugar sagrado, da fé praticada em ambientes internos e e do

e já, e deve ser portátil, podendo ser praticada em qualquer lugar. Até porque a religião varia de ―subjetividade‖
dogmatismo que exige aquiescências por parte do praticante. A nova fé tem que manifesta sua existência agora

para ―subjetividade‖ — e drogas como o LSD permitem um contato com elementos e visões transcendentes
muito mais fortes e impactantes do que qualquer espírito falante. Doutrinas orientais são, nesse aspecto, muito

religiões e hábitos espiritualistas orientais — I-Ching, yoga, budismo, confucionismo, holismo, simbologias
mais flexíveis que as nossas, e daí, da década de 1960 em diante temos o magnífico desfile de importações de

orientais mal interpretadas (yin e yang), todos no fundo substitutos da ladainha infernal do terço mariano
tradicional. É a volta do velho simbolismo das eras iniciado por Joaquim de Fiore citado supra — porém sai a
Era do Espírito Santo e entra a Nova Era de Fritjof Capra.
Todos esses episódios da inteligência e da fé humana ocidental dos últimos três séculos (que
certamente não foram contados nem em profundidade e nem integralmente nesses breves parágrafos) deram,
de alguma maneira ou de outra, uma mão ao processo de compartimentalização que me referi há instantes. A
compartimentalização fez com que a estrutura da unidade-base do homem se desfizesse e se desencontrasse.
Aquele todo sólido, nítido ao qual se referia a Imitação de Cristo se liquefaz deprimentemente. Ou melhor, se
desconstrói. O homem ainda está aí, vivo, mas não está mais em sua integralidade — e é essa ausência de
integralidade que o faz estar perdido: não há mais um referencial de unidade, e sem unidade não há identidade,
uma vez que a identidade é necessariamente um referencial integral e identificável de algum ser. Como um
homem que não se reconhece mais como um todo pode sobreviver num mundo de permanente mutação?
Simplesmente não pode. Daí que a enorme quantidade de ideologias e filosofias surgidas nos últimos três
séculos, antes de o completar e guiar, o deixaram ainda mais sozinho. E como haveria de ser diferente, sendo

Asbury, o jovem escritor fracassado e ressentido de Flannery O‘Connor, surge exatamente como a
criações meramente humanas, sem nenhuma unidade verdadeiramente transcendente?

de âncora no mar revolto da vida na Terra. Ainda mais significativo é ―The Enduring Chill‖ datar do século XX, um
imagem perfeita de uma humanidade que se diz cética, mas que anseia dolorosamente por algum tipo de chão,

século marcado pelo morticínio e pelo fracasso de tantas ideias políticas redentoras. Como eu sou um otimista,

matar — e parece que tampouco acredita O‘Connor. O leite que Asbury bebe, aos olhos de desprezo dos negros
não acredito que todo esse processo de automutilação e de desmantelamento da nossa identidade irá nos

que ele acha que conhece (mas que no fundo sabe tanto sobre eles quanto sobre si mesmo: nada) é um símbolo

cru não matará Asbury — muito para o seu desespero —, mas ferira-lo até que ele se recomponha e aprenda
perfeito para o que a humanidade fez consigo mesmo no período que tentei brevemente resumir acima: o leite

conviver consigo mesmo.


Ser um ser humano é uma experiência dolorosa. A convivência com a dor, com a frustração e com a

sensações — especialmente quando contrastadas como aquelas mais agradáveis como o prazer, a segurança e
incerteza é parte não-negociável da nossa existência neste planeta. Com efeito, são exatamente essas

o conforto — que originam aquele efeito que Aristóteles denominava de thauma (Θαῦμα), o espanto que inicia

estrutura do nosso corpo — que há um arranhão da nossa unidade e nos faz partir em busca de descobrir que,
o processo filosófico. É o dolorido processo de espanto que nos faz perceber que algo está mexendo com a

estático que reage a certos fenômenos. O mundo nos convida a nos comovermos — e essa é uma das palavras
se, afinal estamos sendo mexidos, espantados por alguma coisa, é porque temos uma identidade em estado

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mais fortes e provavelmente mais belas de toda a língua portuguesa — enquanto entes viventes. E eis que surge
a pergunta mais importante que um ser humano pode fazer em toda sua vida: Quem sou eu? Com ela se
aprende a fazer todas as perguntas subsequentes.

deprimente, mas esse é o estado no qual a maior parte da humanidade se encontra nos nossos dias — e é o
O homem que entra em estado de negação da sua própria natureza é um homem fadado à confusão. É

estado também de Asbury. Parece que tudo foi prometido ao nosso jovem escritor, algo que podemos notar
através de sua arrogância e de sua certeza em seu conhecimento, por mais que exista um filtro de insegurança
em suas ações (aliás, tal filtro existe justamente porque Asbury não consegue se instalar em sua própria
identidade). Nossa humanidade, nos dias que correm, também acreditou em várias promessas — a promessa da
ideologia, das ciências duras, do cálculo e da materialidade — e se vê atordoada com a descoberta de que tais
promessas, ou mesmo de que o chamado progresso em nada progride se o preço que ele cobra é a nossa
dissolução. Nós, como Asbury, bebemos do leite da falsidade e agora convalescemos da nossa própria febre de
Malta, uma doença espúria, que podia ser evitada, mas que, apesar de dolorosa e incômoda, não mata. Tal é a

mas sábio, de dois funcionários negros de sua mãe — crendo que ao cometer tal ato ele estará se aproximando
nossa situação. E aqui está a chave: quando Asbury bebe o leite contaminado ele o faz sob o olhar compassivo,

de algum tipo de verdade representada por aqueles dois homens. Os dois funcionários sabem que o leite está

mesma forma, nosso espírito — e o espírito da Unidade — sabe perfeitamente o que a humanidade faz consigo,
contaminado, porém nada fazem: deixam que Asbury se contamine de forma que ele aprenda uma lição. Da

mas espera que ela mesma entenda suas ações e retorne à sua própria unidade. Porém, para fazer isso, ela
primeiro tem que reaprender a fazer aquelas duas perguntas tão próprias do espírito humano: Quem sou eu?
Creio que podemos dizer com certeza que assim como o paciente não se cura de uma doença que não
sabe que tem, a humanidade não saberá reencontrar-se consigo mesma sem saber o que é aquilo que lhe faz

falar aquelas palavras daquele outro personagem fictício de vida desgraçada — mas desgraçada porque não
está perdida. Resta agora nos reencontrarmos. E o reencontro será iniciado, creio eu, quando conseguirmos

conseguimos compreendê-lo — e que nossos tempos insistem em subjugar como um lunático, mas que no fundo
é sapientíssimo: Don Quixote. ―Yo sé quién soy‖ — é isso o que ele diz é isso o que temos que aprender a dizer.

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12
Os contos de Flannery O‘Connor referidos neste ensaio foram tirados, todos eles, dessa edição.

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