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All content following this page was uploaded by Letícia Schuler on 03 April 2020.
INTRODUÇÃO
As palavras, quando escritas, são capazes de nos revelar, muitas vezes, um
passado e suas marcas; vivências que foram responsáveis pela formação de um eu que,
nas letras, teve sua história percebida por outros olhares. Se especificarmos um pouco
mais nossa reflexão e enveredarmos pela literatura de mulheres negras, perceberemos
que, em alguns casos, há um tempo que, mesmo que para muitos já tenha findado, ainda
ecoa nesses espaços de manifestação, ainda se faz presente nessa escrita que tanto
pode nos dizem acerca do íntimo de alguém. São marcas, perdas e dores que ganham
concretude junto à arte da palavra.
O texto poético, enquanto recurso estilístico, é um desses lugares que pode expor
ao leitor, a partir de um eu lírico, subjetividades e possibilidades para olhar em direção ao
que não está explícito nas letras, ou seja, para além daquilo que está posto naquele
conjunto de versos. Para tanto, é necessário buscar e trilhar caminhos que nos conduzam
a uma melhor compreensão daquilo que vamos apreender, e, as elaborações teóricas da
psicanálise, campo de saber elaborado a partir de Sigmund Freud durante o século XIX,
dentre outras, nos fornece possibilidades para a execução de tal tarefa.
Dentre a rica lista de nomes de escritoras negras que conseguiram seu lugar na
literatura e tiveram suas vozes ouvidas, Rita Santana vem consolidando seu espaço na
contemporaneidade, por seu ecletismo e lírica do cotidiano. A professora e atriz baiana
inicia suas primeiras publicações em jornais, ao escrever contos para o Diário da tarde e
para o suplemento cultural do A tarde. Desde então, sua bibliografia conta obras em que a
poesia é protagonista. Tratado das veias (2006) é um exemplo delas, e é composto pelo
poema selecionado para nossa análise.
“Azul”, através daquilo que é evocado pelo eu-lírico, nos coloca diante de uma
trajetória que se estabeleceu enquanto uma herança de sua negritude; um passado que
foi perdido e teve na cor, papel decisivo para que vazios impossibilitassem uma plenitude
de ser todo; uma completude. Os estudos de Freud (1915) acerca da melancolia dialogam
com nossa reflexão, ao nos trazer contribuições a respeito dessas faltas que habitam o
sujeito. Assim, a interface entre a literatura, este campo que reverbera manifestações do
íntimo do ser humano, e a psicanálise, se estabelece enquanto possibilidade para base
de nossa proposta.
O lugar em que a voz do texto se vê construída é bastante significativo para
nossa reflexão. Mas é interessante destacarmos que, mesmo com a nítida percepção de
que a voz do poema é de uma mulher negra, precisamos compreender a capacidade que
ela nos dispõe para buscar outras informações, que, como já foi dito anteriormente, estão
além das linhas. As estruturas de um inconsciente, melancólico, já estão se manifestando
no texto. Percebemos que o encontro com o sofrimento desencadeia nessa configuração
psicológica, este, por sua vez, está atravessado também pelo elemento cor, o azul,
fundamentando, assim, nossa leitura psicanalítica.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
É a partir do texto “Luto e melancolia” (1915), escrito por Freud, que a psicanálise
confere ao mundo uma teorização sólida sobre os enigmas de uma das expressões mais
autênticas da dor de existir, que se traduz e se manifesta como uma insuficiência
constitutiva. É interessante destacar que o pai da psicanálise inicia sua teorização
baseando-se não apenas na melancolia, mas também no luto e em que medida esses
eventos psíquicos se aproximam ou se distanciam.
Este segundo se inscreve enquanto um afeto advindo pelo impacto da morte de
algo ou alguém querido, dessa forma, é uma reação natural a uma perda em que a
energia dirigida anteriormente a este objeto perdido, é desligada. Há uma inibição e
restrição do eu sem que a autoestima seja afetada, traço, dentre outros, que difere o luto
da melancolia. Pois, “no luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o
próprio Eu. O doente nos descreve seu Eu como indigno, incapaz e desprezível” (FREUD,
[1915] 2010, p. 176) e a autodepreciação, que ocorre insistentemente, impossibilita
Anais do V Seminário MILBA - UFRPE 333
Entre a tradição e a contemporaneidade: insubmissas vozes de mulheres
investimentos externos e nos coloca diante do fato de que a libido foi direcionada para o
próprio eu, o que ocasionou numa identificação com o objeto perdido. Assim, Freud
conclui que:
[...] a partir de então este pôde ser julgado por uma instância especial como um
objeto, o objeto abandonado. Desse modo a perda do objeto se transformou numa
perda do Eu, e o conflito entre o Eu e a pessoa amada, numa cisão entre a crítica
do Eu e o Eu modificado pela identificação. (FREUD, [1915] 2010, p. 181).
ANÁLISE E REFLEXÕES
A cultura, em seus registros, atribuiu ao azul uma determinada representação que
nos remete à tristeza e pode ser um modo pelo qual esse sentimento se manifesta e nos
diz de uma imensidão do vazio, de uma ausência.
No quesito artístico, em sequência ao que já pontilhamos anteriormente, diversos
exemplos podem ser citados. Para ressaltar apenas alguns, no cinema, a Trilogia das
cores de Krzysztof Kielowski dá destaque à composição cênica azulada em A liberdade é
azul (1993), ao acompanhar a trajetória enlutada de sua protagonista. Outro exemplo que
se associa à negritude está numa obra recente, dirigida por Barry Jenkins, premiada com
o Oscar, Moonlight (2016). O filme se inspirou na peça dramática de Tarell Alvin McCraney
em que se pontua como semiose central a representação de um doloroso vazio na
3 Robert Johnson (1911-1938) é considerado uma lenda do blues como ter conseguido estabelecer o
formato de doze compassos para este gênero musical, de modo bastante surreal, tendo em vista que
conseguiu aprender e dominar o violão e essa técnica em tempo muito curto, durante um desaparecimento
repentino decorrente de tragédias e perdas pessoais. Nesse eventual “retiro”/sumiço, criou-se a alegação
de que essa avançada habilidade foi adquirida em uma negociação com o próprio diabo pelo preço de sua
alma.
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Entre a tradição e a contemporaneidade: insubmissas vozes de mulheres
[...]
Não sei tratar dos amigos.
Sei tratar alguns peixes, mas dos homens não sei.
Suas escamas crespas,
Vísceras rubras demais pra minha paciência dilatada.
São flamas demais entre nós, os amigos.
Perdi e encontrei terezas, jorges, tonhos, miguéis, primos,
Aluguéis, janelas, gudes, bordados, assovios, cartas de amor,
Fraudes descartáveis, autorias duvidosas, alarmes, amores...
[...] a tristeza faz parte de cada um de nós. É ingrediente que nos constitui, e sem
o qual não tomaríamos consciência, pois somos todos, enquanto seres falantes,
forjados por uma perda, modelados por uma falta resultante de nossa retirada do
universo da natureza. É por isso que as separações – ou a separação da mão,
quem sabe da mãe-terra, mãe nutriente –, lançando o homem no desamparo, são
muito frequentemente evocadas na origem desse mal-estar. (PERES, 2003, p. 10).
É possível concluirmos que a falta se firma enquanto esse elemento que nos
constitui e proporciona um sentimento de morte, mesmo que a vida ainda habite o corpo
do indivíduo; é uma fraqueza que domina o eu e destitui a existência de sentido, de razão.
“Azul” nos coloca diante de uma dolorosa memória que é tecida a partir dos
acontecimentos da própria existência. A voz poética rememora as perdas sofridas ao
longo da vida e as chances perdidas por ser negra. A perda, na forma mais ampla da
palavra, se torna a grande companheira dessa voz, e o sentimento de orfandade, em
meio a separações, desilusões e rejeições, a conduz durante a vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Anais do V Seminário MILBA - UFRPE 338
Entre a tradição e a contemporaneidade: insubmissas vozes de mulheres
Neste presente exercício de leitura, o texto poético de Rita Santana nos tocou
sobretudo ao conseguir transitar pelo limiar entre a caracterização de sua escrita, de
mulher negra – ainda que problemática quanto ao fato de o gênero lírico romper com essa
delimitação –, e a universalização de uma voz que superpõe à tessitura de seu lirismo, as
características do sentimento de perda e de sua individualidade dentro dos contornos da
melancolia.
A composição de “Azul” nos lançou um desafio de perceber que sua presença
constituía uma riqueza no campo das cores, pois a cor carregada na negritude, ainda
mais se for bastante escura, também se valeria de uma poética do retinto ao reluzir as
marcas do sofrimento do povo negro por meio de uma cor que concentra tantas
ambuiguidades representacionais, mas não menos associadas à própria história dos
afrodescendentes mundo afora. Do blues ao black dog, da pele reluzindo ao luar ao
“próprio azul, simples, etéreo, incorpóreo” que a tudo compõe, os vazios de um céu
exigem de nosso olhar contemplativo sentidos outros à beleza de todas as cores.
REFERÊNCIAS
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo,
ensaios sobre a metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das
Letras, 2010.
KIPFER, Barbara Ann; CHAPMAN, Robert L. Dictionary of American slang. New York:
HarperCollins, 2007.
PICASSO, Pablo. Crouching woman. 1902. Pintura, óleo sobre tela, 90x71 cm.
TRILOGIA das cores: A liberdade é azul. Direção de Krzysztof Kielowski. França: MK2,
1993 (100 min.)
Anais do V Seminário MILBA - UFRPE
Entre a tradição e a contemporaneidade: insubmissas vozes de mulheres
5ª edição
Volume único
Recife
Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE
2019
Anais do V Seminário MILBA - UFRPE
Entre a tradição e a contemporaneidade: insubmissas vozes de mulheres
ISBN: 978-65-86547
CDD 809.3
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ÍNDICE
MULHERES NO FANTÁSTICO: 40
REVISITANDO SILVINA OCAMPO 40
Amanda Brandão Araújo Moreno 40