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Imagem e transgressão: o monstro como limite em Freaks

JOÃO VICTOR DE SOUSA CAVALCANTE*

RESUMO: O trabalho elabora questionamentos sobre as relações entre monstro, imagem e


alteridade encontradas no filme Freaks (Tod Browning, 1932). A partir do conceito de
transgressão de Georges Bataille, em diálogo com autores da imagem e da antropologia,
discutimos a aparição do corpo monstruoso como um elemento de intersecção cultural e
sígnica, que desestabiliza a representação e põe em questão as fronteiras da identidade, em um
processo de fabricação da alteridade. Nossa hipótese é que, na relação com o monstruoso, a
subjetividade não se assenta no caráter estável e agregador de uma identidade, mas na relação
transgressora e fragmentária da alteridade, em que o “outro” é sempre fabricado,
configurando-se não apenas como limite, mas também como condição para o “eu”. A partir da
análise fílmica do longa, buscamos entender as complexas relações entre monstro, imagem e
alteridade. Tomamos como abordagem conceitual, o pensamento do filósofo espanhol
Eugenio Trías, cuja discussão sobre o limite nos é fundamental, além de autores que se
dedicam a pensar o tema da monstruosidade como José Gil, Jeffrey Cohen e Noël Carrol.

Introdução
“[...] notoriamente no hay clasificación del universo que no
sea arbitraria y conjetural. La razón es muy simple: no
sabemos qué cosa es el universo” (El idioma analítico de
John Wilkins - J. L. Borges).

O convívio com formas monstruosas aparece nas culturas sob um imperativo ambíguo,
em que fascínio e horror confundem-se em um discurso que evoca simultaneamente a sedução
e a aterradora transgressão dos corpos. Uma possível gênese do monstro é encontrada no
pensamento mágico, em tradições mitológicas, nas quais a monstruosidade aparece como
manifestações diretas do sagrado, seja nas cosmogonias e narrativas de fim do mundo, seja
incidindo diretamente sobre a vida cotidiana, como intermediários entre o sagrado e o
profano. O pensamento racional do Ocidente ocupou-se extensamente sobre as questões da
monstruosidade, sobretudo das longínquas raças monstruosas dos confins do mundo: Santo
Agostinho discute (ainda no século 5) a existência de raças prodigiosas e elabora
questionamentos sobre a essência e a unidade da raça humana, descendente dos filhos de Noé
(GIL, 2006). Em pleno século XXI, quando a secularização dos mitos e a fé na ciência estão
na ordem do dia, a monstruosidade ainda nos é uma constante, um tema contemporâneo.

*
Cientista social e jornalista, mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e docente do
curso de Jornalismo da Universidade Federal do Cariri (UFCA). Pesquisador vinculado ao grupo Imago:
laboratório de estudos de estética e imagem, do PPG/COM UFC.
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Seria incipiente afirmar que entre nós e os monstros da mitologia grega haja uma
genealogia direta, contínua e mapeada, que incluiria no mesmo estatuto linguístico “monstro”
as raças fantásticas descritas e ilustradas por Ulisse Aldrovandi em seu Monstrorum Historia
(1642) e o moderno Frankstein. Tais correspondências não existem como heranças históricas,
senão como perturbações, relampejos do passado, em uma leitura benjaminiana da história,
reafirmando sua presença ubíqua nas culturas como elementos que nos conduzem para uma
zona limítrofe, fendida, em que a elaboração do discurso vacila diante do impacto causado
pela monstruosidade. O ponto de partida deste trabalho é pensar o monstro – bem como suas
variações: bestas, estrangeiros, vampiros, zumbis etc. – como elementos de intersecções na
tessitura cultural, como fissuras epistemológicas com as quais a racionalidade científica de um
mundo desencantado se debate continuamente.
Este trabalho se debruça sobre os corpos monstruosos figurados em Freaks, longa-
metragem de 1932, dirigido por Tod Browning. Parto da hipótese de que, ao exibir corpos
monstruosos, com deformidades físicas aparentes, a imagem fílmica amplia o espectro da
monstruosidade, causando uma desarticulação nas representações dicotômicas do eu e do
outro: a transgressão da carne, que reverbera no filme como uma transgressão política,
espacializa o limite, pensado aqui a partir de seu dentro. Nesse sentido, penso uma articulação
entre monstro e alteridade: ao dilatar a noção de limite, a partir do pensamento do filósofo
espanhol Eugênio Trías, o monstro (o corpo não normativo) não surge como uma fronteira
imóvel para a fabricação do normativo, mas sim como sua amplitude e condição.
O ensaio reclama o lugar do monstro para a discussão sobre alteridade em dois
espaços justapostos: um primeiro nível da visualidade, articulando uma política da estética, ou
uma ética das formas não normativas. Interessa-me pensar o duplo vínculo entre a imagem
cinematográfica e a imagem monstruosa, bem como seus respectivos agenciamentos. Um
segundo momento, intimamente relacionado ao anterior, conduz para uma epistemologia do
corpo monstruoso, como um fenômeno estético e antropológico, não como relações de causa e
efeito entre sociedade e imagem, mas como perturbações simbólicas e dinâmicas nos textos
da cultura. Nesse sentido, busco partir de uma erótica (BATAILLE, 2014) da imagem do
monstro, relacionando efeitos de sentido e efeitos de sensação (presença, afecção) à movediça
realidade do limite (TRÍAS, 2000; 2004; 2006).
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Monstro, cerco e mistério

Freaks tem início com um enigma: um grupo de observadores curiosos admira uma
criatura em uma caixa. A suposta aberração não é mostrada até o final do filme, vemos apenas
a reação de espanto e medo do grupo que olha, como espectadores de um museu de itens
exóticos. Após essa primeira cena, a trama começa de fato, como um flashback, e narra a
historia de um circo itinerante cujas atrações incluem, dentre outras, uma bela trapezista, um
brutamontes de força física descomunal e um grupo de pessoas com visíveis deformidades
físicas, tais como gêmeas siamesas, um homem sem braços e pernas, cujo corpo se resume ao
torso, uma mulher barbada etc. A narrativa do filme explora os bastidores desse circo
itinerante, como uma crônica da vida ordinária desses artistas, das tensões afetivas
promovidas pelo contato entre o grupo de freaks, que se apresenta vasto e unido, com outros
cujos corpos não apresentam deformidades explícitas.

O circo como espaço fílmico já se anuncia anteriormente na obra de Tod Browning,


notadamente no longa metragem The Unknown, de 1927. O diretor foi, antes da carreira no
cinema, artista de um circo itinerante, fato comumente lembrando pela crítica e pelos seus
biógrafos e que vai reverberar em diversos de seus trabalhos. Não proponho aqui uma relação
de causa e efeito entre o vivido e o filmado, nos moldes de uma sociologia da arte. Se destaco
o espaço do circo na obra de Browning, sobretudo no objeto deste estudo, é para pensar a
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relação entre o espaço e a monstruosidade: relação recorrente em narrativas sobre monstro,


das quais evoco o labirinto e o minotauro, em que o próprio espaço apresenta-se como
monstruoso. O circo se apresenta como uma espacialidade movediça. Seu caráter itinerante,
sempre em deslocamento, desmontado e remontado em solos diversos, é, no entanto,
circunscrito por uma fronteira nítida que resguarda um mobiliário não menos fantástico.
Evocar o circo também é um modo de remontar as práticas de freak shows, ou feira de
aberrações:

By the early Thirties the exploitation of freaks at fairs, carnivals or amusement parks
was beginning to fade. These were the years of an important switch: the “monsters”
were disappearing from the real world to populate the imaginary world of cinema, a
medium just entering into the sound era19. As a consequence of modernisation, of a
new social sensibility and moral attitude and of scientific progress (for example,
Siamese twins could be surgically separated more easily), monstrosity became at the
same time acceptable and medicalized: the deformed body was being removed from
society, vanishing from sight (BRODESCO, 2014, p. 295).

Eugénio Trías (2004) elabora uma topografia do espaço limítrofe a partir da noção de
limes, fortificações nas bordas das cidades do Império Romano, cuja função estratégica de
controlar a entrada de estrangeiros possibilitou a formação de zonas habitacionais nas nessas
áreas periféricas. Assim entendido, o limite, para Trías, não é uma linha que restringe, mas
sim uma zona habitada, o habitar e lugar do sujeito limítrofe, entendido como aquele que se
alimenta dos frutos cultivados no limes (TRÍAS, 2004). Tal atribuição topográfica ao ser do
limite encontra eco na elaboração de uma semiótica sistêmica proposta pelo semioticista russo
Iuri Lotman (2000), que conceitua cultura como um sistema sígnico complexo e cambiante,
que forma uma esfera relativamente isolada sobre o pano de fundo da não-cultura, aquilo que
não pertence ao subconjunto específico que é uma cultura, ou que se opõe à tudo aquilo que é
extra sistêmico. Em uma lógica interna, os sistemas culturais (semiosferas) se estruturam em
polos hegemônicos e periféricos, entre os quais ocorre um intenso comércio sígnico, dinâmica
em que tensões políticas são constantemente acionadas.
Para a semiótica de matriz russa, cultura não se confunde necessariamente com
sociedade, sendo entendida mais precisamente como um entrelaçamento de sistemas
semióticos justapostos, que traduzem as informações codificadas e as inserem na memória da
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coletividade. As informações não traduzidas não fazem parte, portanto, daquela cultura,
reforçando assim a oposição fundamental com a não-cultura. Essa dinâmica tradutora garante
a sobrevivência do sistema e a geração de informações novas, pois é mediante operações
tradutoras que o extra sistêmico pode ser compreendido.
O espaço delimitado pelo circo, em Freaks, materializa-se como esse habitat em que
os corpos aberrantes dos monstros humanos desfilam em sua exuberância. Não à toa a
narrativa fílmica conduz o espectador não para o picadeiro do circo, mas para seus bastidores,
o espaço interdito aos olhos do público que lota as arquibancadas para assistirem o freak
show. Os personagens do longa não são mostrados como aberrações em um mostruário, mas
em suas tensões fronteiriças evidenciadas pelo espaço do circo: tensões externas, em que o
fora e o dentro são problematizados e tensões internas, em que as potências políticas dos
corpos entram em conflito em um duplo movimento de aproximação e afastamento,
promovido pelas pressões em ambos os lados da fronteira. Para Trías (2004), a noção de cerco
“sugiere uma presión efectiva y determinante, ejercida por um poder que envuelve y rodea em
circo. De hecho cerco sugiere el circo o círclo latino: uma presión ‘cercana’ que se ‘acerca’”
(TRÍAS, 2004, p.86).
Nas narrativas de fantasia, os monstros surgem como um elemento de encantamento
do mundo, compondo um mobiliário extraordinário, porem não tão problemático do ponto de
vista da confusão dos corpos e do sentido. Basta lembrarmo-nos de outros monstros,
contemporâneos a Freaks que vieram à luz por meio do cinema, como as filmagens de King
Kong (1933) e Drácula (1931), em que os monstros são associados diretamente à animalidade
e à corrupção da alma. Em Freaks, observamos um processo inverso: os personagens do longa
são exuberâncias de uma realidade desencantada, monstros humanos, ou ainda, monstros
biológicos, ao assumirem indesejadas deformidade físicas aparentes, em uma realidade
ordinária: a trama do filme mostra o desenrolar doméstico e prosaico da vida desses artistas
circenses, sobretudo seu convívio com outras pessoas, cujos corpos são apresentados de
acordo com padrões normativos.
É esse convívio, a exibição viva da mobilidade inerente às fronteiras que torna
problemático o desenrolar da trama do longa-metragem. Há um deslocamento político no
modo de exibição do corpo do monstro no filme que destoa dos tradicionais modos de
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representação de elementos não normativos nas iconografias modernas, sobretudo a fotografia


nas primeiras décadas do século XX. Os monstros em Freaks assumem uma posição de
protagonistas da representação, desafiando-a, olhando de volta o espectador, o que rompe com
a lógica de exibição fetichizada dos freak shows e das feiras de aberrações do final do século
XIX. O debate em torno da relação entre monstros e alteridade é permeado pela linha tênue
entre exibir a diferença e exibir o exótico. Grande parte da iconografia (sobretudo fotografias)
que traz com referente o corpo do monstro, não o mostra de fato: as imagens mostram um
olhar sobre esses corpos não normativos, normalmente produzidos com o intuito de exibir
seus elementos exóticos, ou desnudá-los diante da racionalidade científica, como o caso das
imagens abaixo, que trazem os irmãos Tocci, gêmeos siameses nascidos no final do século
XIX, e Julia Pastrana, conhecida, também no século XIX, como a mulher-gorila.

O olhar sobre a monstruosidade, como visto nas imagens acima, exibe o corpo de
modo quase indefeso ao olhar do observador. Se a tentativa é entregar o corpo em sua
transparência biológica à racionalidade médica e científica, o resultado é justamente o oposto.
Ao exibir a desmesura da carne, as imagens do monstro potencializam seu mistério inerente.
Ao trazer para o plano cinematográfico elementos da ordem do estranho, ou do sinistro. Jean-
Louis Comolli (2008), ao tratar do dispositivo cinematográfico defende uma ideia de que os
mecanismos de representação são ideológicos e afirma a posição do cinema como uma
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máquina de reduzir a alteridade, pois nos possibilita usufruir do corpo do outro, do corpo
filmado. Para ele, o cinema tem a possibilidade de domesticar o desconhecido, de trazer para
o campo do visível os elementos da ordem da vertigem e do estranho.

Monstro e imagem

O que costumeiramente chamamos de monstro é um significado genérico para um


significante escorregadio. O termo é utilizado, de certo modo, por falta de melhor palavra, não
tanto para conferir um nome à coisa, mas para assinalar um tipo de identidade a esses corpos
oriundos de lugar nenhum (NOUAILLES, 2014). Há elementos da ordem da monstruosidade,
elementos da ordem do estranho, do insólito, da vertigem, que criam um tipo de lacuna entre o
que é visto como monstruoso e o que é descrito pela palavra. Um exemplo pertinente
encontrado na obra de Robert Louis Stevenson, “O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”,
publicada em 1886. Em uma passagem, já nas páginas iniciais, o monstro, Mr. Hyde, é assim
apresentado por um dos personagens:

Ele não é fácil de descrever. Há algo de errado com sua aparência, alguma coisa
desagradável, alguma coisa realmente detestável. Nunca vi nenhum outro homem a
quem detestasse tanto, e devo confessar que não saberia dizer por quê. Ele deve ter
uma deformidade em algum lugar do corpo, embora não consiga especificar em que
ponto. É um homem de aparência extraordinária e, no entanto, não posso apontar nele
nada que seja fora do comum (STEVENSON, 2013, p. 16).

O trecho da obra de Stevenson nos mostra com precisão o abismo existente entre o
sentido e a sensação no tocante à monstruosidade. Nomear os corpos aberrantes de “monstro”
isenta o discurso de elaborar um sentido racional para aqui que destoa das formas comuns da
cultura. Quando as fronteiras estão claramente nomeadas, as definições encontram no discurso
um lugar de ampla compreensão, a partir de dicotomias que reafirmam as instâncias do eu e
do outro: natureza e cultura; animal e humano; estrangeiro e familiar. O monstro não ocupa
nem o lá nem o cá da fronteira, ele é a fronteira em si, a encarnação da impossibilidade em
reduzir a experiência do corpo a dicotomias rígidas. Michel Foucault (2013) afirma que, em
sua forma e existência, o monstro viola as leis da natureza e da sociedade, uma vez que não há
parâmetro legal nem esquema médico que sejam capazes de punir ou curar a monstruosidade.
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Uma das possíveis definições da monstruosidade encontra eco na deformidade do


corpo em relação a um corpo “normal”. Para Aristóteles, por exemplo, o monstro (teratos) é
definido como aquele que não se parece com os pais, ou seja, aquele a quem a natureza
afastou de um tipo genérico (DAVIES, 2013). A conceituação aristotélica se baseia em uma
transgressão da mimese com a natureza, um rompimento com a tipificação ideal da imagem
do corpo, notadamente o corpo paterno, de modo que a relação de identificação com princípio
paterno não é tanto genética ou jurídica, mas sim especular, imagética. A conceituação latina
nos oferece um caminho análogo para pensar a monstruosidade. O termo monstro vem da
palavra latina monstrare, que foi comumente traduzida por “mostrar” ou ainda por “indicar
com o olhar”. Entretanto, monstrare, também pode ser entendido como “ensinar um
determinado comportamento” ou ainda “advertir” (GIL, 2006). A primeira acepção ˗˗ mostrar
˗˗ difundiu-se mais nas línguas latinas, possivelmente por conta da homofonia das palavras,
mas também por uma relação figurativa com o objeto, pois monstros são imagens que
raramente se deixam mostrar1.
A palavra monstro convoca imediatamente uma imagem. Do ponto de vista do
discurso, o problema da monstruosidade se apresenta resolvido, como uma solução, por meio
da nomeação, da ambivalência imanente da monstruosidade e do descontrole médico-jurídico
de seus corpos anômalos. Quando o núcleo normativo (polo hegemônico) de um sistema
cultural nomeia ou atribui caráter de monstruosidade a determinados corpos ou situações
(monstro moral), fica estabelecido, a partir de um estatuto linguístico (simbólico), o lugar do
monstro na confusão das fronteiras, reafirmando, assim, seu pertencimento ao núcleo não
normativo, transgressor (polo periférico). A nomeação, por mais deslocada de um significante
preciso, denota um gesto de poder: lembremos-nos da narrativa bíblica em que Adão vê
desfilar diante de si todas as espécies animais e cabe a ele batizá-las, consolidando não apenas
os símbolos linguísticos da criação do mundo, mas reafirmando a posição de domínio do
homem sobre outras formas de vida na Terra.
A imagem, contudo, recoloca o problema da monstruosidade em uma potência outra:
uma potência de desarticulação de fronteiras, da ordem de um erotismo em que os efeitos de

1
Outras palavras associadas à monstruosidade possuem semelhante carga semântica, tais como portenta, que
quer dizer predição e prodigia, cuja etimologia nos remete à ideia de anúncio ou premonição (PRIORE, 2000;
GIL, 2006).
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sensação e afecção desarticulam a lógica linear do discurso verbal. Cria-se, a partir da


exibição do monstro uma erótica dupla: há algo imanentemente imagético no monstro, e há
algo de monstruoso na imagem (NANCY, 2005). Cria-se um tipo de terceira margem que
ritualiza zonas intermediárias da cultura, atravessa dicotomias que se fazem crer estanques,
dilatando a topografia da fronteira como uma zona habitável. O monstro, ressalto, não pode
ser visto como um rompimento definitivo com o discurso verbal, este se faz necessário de
modo a reforçar o lugar da monstruosidade como um espaço de transgressão, que, no léxico
de Bataille (2014) é inerente ao funcionamento da vida humana, como uma dimensão do
excesso e da experiência interior, funcionando como uma contraparte dos interditos culturais.
Nomear a imagem monstruosa é manter o monstro em seu lugar de transgressor, espaço em
que o erotismo e o dispêndio encontram eco, como uma redundância que reforça a
monstruosidade.
Não que a palavra seja imperfeita e esteja, em face do visível, num déficit que em vão
se esforçaria por recuperar. São irredutíveis uma ao outro: por mais que se diga o que
se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que
se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas
resplandecem não é aquele que os olhos descortinam, mas aquele que as sucessões da
sintaxe definem (FOUCAULT, 1999, p. 12).

A nomeação surge em Freaks de modo dissonante de tradicionais narrativas sobre


monstruosidade, notadamente em uma cena de confraternização em que a prodigiosa família
de monstros celebra o casamento de um dos seus, o jovem anão Hans, com a trapezista do
circo, pertencente à outra esfera da comunidade, possuidora de um corpo normativo,
conhecida por sua beleza. A cena, desenrolada nos moldes de um ritual, em que um dos
personagens sobe à mesa com um grande cálice, cujo conteúdo é bebido por casa um dos
membros daquela confraria monstruosa. Enquanto a bebida é servida, os membros da festa
entoam um canto que mistura uma onomatopeia sem significado e a frase “Nós te aceitamos.
Uma de nós!” (We accept you. One of us!), referindo-se à jovem trapezista, como um tipo de
batismo em que ao compartilhar da bebida com os freaks ela passaria a fazer parte daquela
família, não por compartilhar das mesmas excepcionalidades físicas, mas por associação
vinda do matrimônio, quase como uma conversão religiosa.
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A resposta da trapezista é agressiva: aos berros proclama “Aberrações! Aberrações”


(Freaks! Freaks!) e se desfaz da bebida oferecida no grande cálice. Tal tipo de nomeação, no
entanto não restringe o espaço das aberrações à periferia do discurso. Há uma redundância
que reforça a monstruosidade reinante na mesa, que é, entretanto, a própria potência política
que forma elos entre aquela figuras não normativas, como um tipo de infra política, uma ética
ligada ao corpo, não ao que eles tem de semelhante, mas ao fato de que todos compartilham
diferenças físicas excepcionais. A identidade entre os freaks não é formada por um
reconhecimento especular, mas por um sentimento de comunidade ligada a uma politia dos
corpos. A monstruosidade, aqui, não os torna portadores do significado “monstro”, mas sim
produtores desse significado, como uma aliança ética dos que partilham juntos os frutos do
limes, como pura fronteira aberta às possibilidades infinitas da carne.

Referências Bibliográficas

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