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A CONSTRUÇÃO DA IMAGEM DA MULHER NA ARTE:

O CORPO E O GROTESCO FEMININOS DE GOYA

Bárbara Valle1

Resumo: A palavra grotesco e os seus vocábulos existentes em outras línguas derivam em última
instância de grotta (gruta). A caverna, “baixa, escondida, terrena, escura, material, imanente,
visceral. Como metáfora do corpo, a caverna grotesca tende a aparecer (e, no sentido metafórico
mais grosseiro, identificar) com o corpo feminino anatomicamente cavernoso”. (RUSSO, 2000)
Este espaço oculto é caracterizado pelo visceral. Sangue, lágrimas, vômito, excremento – todos os
detritos do corpo que são separados e colocados com terror e repugnância (predominantemente,
embora não exclusivamente) ao lado do feminino – estão ali em baixo, naquela caverna de abjeção.
Para melhor entendimento recorri aos estereótipos grotescos. Apesar de seus óbvios inconvenientes,
há uma grande vantagem em descrever certa iconografia feminina. Pois bem, através de um breve
resgate do conceito de “grotesco” através dos tempos em autores como Victor Hugo, Wolfgang
Kayser, Hegel, Mikhail Bakhtin, entre outros, pretendo mostrar a sua representação nas obras de
Goya, especialmente das Pinturas Negras e Caprichos, através do corpo feminino. O que é chamado
de “grotesco feminino” neste estudo garante a presença de mulheres, embora possam conter corpos
masculinos ou subjetividades masculinas na composição das gravuras.

Palavras-chave: feminino, Goya, grotesco

“Goya, alucinação das coisas ignoradas,


De fetos cuja carne cozinha sabás,
As velhas ao espelho e as jovens desnudadas,
Que ajustam sua meia e tentam Satanás”.

Baudelaire

Questionar as imagens da e sobre a mulher na arte é interrogar documentos tirados do seu


contexto por meio de uma seleção necessariamente subjetiva, porque toda seleção é subjetiva. É
focalizar o olhar sobre um objeto isolado e, por isso mesmo, distorcido, e vê-los com o olhar de
hoje, visto que a imagem figurativa é fixa, mas a percepção é móvel.
Goya é considerado por Hugo o fabricante de “beau-hideaux” (belo e horrível). O grotesco
em suas obras é percebido pelo monstruoso e pelas aberrações que produzem efeitos ora de medo,
ora de riso nervoso, criando um “estranhamento” do mundo, uma sensação de absurdo inexplicável,
que corresponde propriamente ao grotesco.
As imagens femininas grotescas são imagens que se opõem às imagens clássicas do corpo
humano acabado, perfeito e em plena maturidade, depurado das escórias do nascimento e do
desenvolvimento. O coito, a gravidez, o parto o crescimento corporal, a velhice, a desagregação e o

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despedaçamento corporal, entre outros, com toda sua materialidade imediata, constituem os
elementos fundamentais do sistema que as regem, o grotesco.
Pois bem, através de um breve resgate do conceito de “grotesco” através dos tempos em
autores como Victor Hugo, Wolfgang Kayser, Hegel, Mikhail Bakhtin, entre outros, pretendo
mostrar a sua representação nas obras de Goya, especialmente nas Pinturas e Caprichos, através do
corpo e do grotesco feminino percebido nelas.
Falarei aqui de dois tipos de grotesco, o grotesco cômico e o grotesco estranho. O grotesco
cômico, salientado por Mikhail Bakthin, nos seus escritos sobre Rebelais, onde o corpo grotesco é
concebido como corpo social e não está separado do resto mundo. Principalmente identificado com
o “estrato corporal inferior” e suas ações com a degradação, a imundice, a morte e o renascimento.
O grotesco estranho é apontado por Kayser e segundo Russo caracteriza como aquele onde se
relaciona com os registros psíquico e corporal como projeção cultural de um estado interior. A
imagem do corpo estranho e grotesco, como ambíguo, duplo, monstruoso, deformado, excessivo,
desprezível, não está identificada com a materialidade como tal, mas supõe uma divisão ou
distância as ficções discursivas do corpo biológico e da lei. A estranha imagem do corpo que
emerge nesta formulação nunca se encontra totalmente dentro ou fora da psique que depende do
“suporte” da imagem do corporal. No entanto, como muitos outros estudos do grotesco que
trabalham fora dos limites rígidos da psicanálise, a obra de Kayser, depende é até inconcebível sem
ele, do conceito de inconsciente. Os dois tipos de grotesco esboçados aqui não são pólos visíveis
confrontando-se mutuamente e o próprio desenvolvimento do conceito, na minha opinião, fez com
que os dois de uma certa forma se fundissem.
O que é chamado de “grotesco feminino” neste estudo garante a presença de mulheres,
embora possam conter corpos masculinos ou subjetividades masculinas na composição das gravuras
de Goya.

1. Sobre o conceito de grotesco

A discussão do conceito do grotesco se faz necessário devido às várias mudanças e nuances


do seu significado através dos tempos. A palavra grotesco e os vocábulos existentes em outras
línguas derivam do italiano La grottesca e grottesco como derivações de grotta (gruta). Usado para
designar certas espécies de ornamentações encontradas no fim do séc. XV (Kayser, 1986, p. 17-18).
O grotesco passa a ter, a partir do séc. XVI uma ligação com o desproporcional e a mistura
entre o animalesco e o humano fazendo com que o ser humano participe de um mundo diferente

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onde a vivência se confunde no teor de verdade e realidade. Já no século XVII grotesque perde o
traço de temibilidade e provoca um sorriso despreocupado.
No francês encontramos em Victor Hugo o sentido mais pleno da palavra grotesque e aí se
acha visivelmente sob influência germânica. Victor Hugo sem dúvida é o precursor do tema
grotesco na modernidade. No “Prefácio de Cromwell” ele introduz o grotesco para explicar um
novo tipo na poesia. Segundo ele, o estudo que os antigos faziam da natureza era sob um único
aspecto, repelindo na arte quase tudo que baseado na imitação não correspondia a certo tipo de belo.
Esse tipo de estudo se tornou com o tempo falso, mesquinho e convencional.
A partir do cristianismo, os modernos perceberão que “tudo na criação não é humanamente
belo, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do
sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz” (Hugo, 2002, p. 27).
No alemão do séc. XVIII embora o adjetivo grotesque não apareça muito, ele é empregado
com uma acepção vaga onde se define figuradamente: “o mesmo que singular desnatural,
aventuroso, esquisito, engraçado, ridículo caricatural, e coisas semelhantes” (Kayser, 1986, p. 27).
O grotesco enquanto categoria estética ficou fortemente ligado a uma reflexão artística do
séc. XVIII, o da caricatura. Nós, segundo Kayser, que faz uma interpretação psicológica do
conceito, verificamos que, no tocante à essência do grotesco, não se trata de um domínio próprio
sem outros compromissos e de um fantasiar totalmente livre (que não existe). “O mundo do
grotesco é o nosso mundo – e não o é. O horror, mesclado ao sorriso tem seu fundamento
justamente na experiência de que nosso mundo confiável e aparentemente arrimado numa ordem
bem firme se alheia sob a irrupção de poderes abismais, se desarticula nas juntas e nas formas e se
desenvolve em suas ordenações” (Kayser, 1986, p. 40).
Kayser não nega que a Caricatura e a Sátira estão perto do grotesco, mas há uma diferença
enquanto fenômeno puro, e nesse sentido, o grotesco se distingue da caricatura chistosa ou da sátira
tendenciosa. O grotesco desvela toda a sua profundidade somente na qualidade de polo oposto do
sublime, que eleva o nosso olhar para o lado mais elevado, sobre-humano, abrindo como ridículo-
disforme e monstruoso-horrível num mundo desumano do noturno e abismal. Assim o grotesco se
coloca como o contraste indissolúvel, sinistro “o que-não-devia-existir.” (Kayser, 1986, p. 60-61).
No entanto, a proximidade e a diferença do grotesco com o cômico é apreensível, pois o
cômico anularia de maneira inócua quando o que é afetado está fora de lugar, colocando em solo
firme da realidade. Pelo contrário, o grotesco, destrói fundamentalmente as ordenações e tira o chão
de sob os pés.

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Hegel é para Kayser quem conseguiu sondar as profundezas metafísicas do fenômeno. No
conceito hegeliano do grotesco o vocábulo perde todo o seu teor de ridículo, embora contenha a
referência ao supra-sensível a ao extra-humano. É importante salientar que, para Hegel “o
fenômeno do grotesco se vincule a determinada situação histórica, apresentando-se como expressão
de uma mentalidade pré-clássica e pré-filosófica” (Kayser, 1986, p. 93).
Mas afinal há alguma coisa de comum nos quadros, nas estampas que foram designadas pelo
grotesco, apesar de todas as variações da língua? Kayser crê que sim, “por mais que a um tal
conceito atemporal do grotesco não pertença tudo quanto, no decorrer do tempo, foi designado com
o termo” (Kayser, 1986, p. 155). O grotesco apontará três domínios, o processo criativo, a obra e a
sua recepção, aspecto tríplice próprio, em geral, de toda a obra de arte que é “criada”. Este fato é
para Kayser significativo e corresponderá às coisas, indicando que o conceito encerra o instrumento
necessário a uma noção estética fundamental. Esta obra possui uma estrutura de caráter especial,
que a capacita a perdurar aquilo que lhe deu azo, pois ela dispõe da força para elevar-se acima da
“ocasião”. Finalmente, porém a obra é “recebida”, só no ato da recepção é possível experimentá-la,
por modificante que seja o ato.
Para conceituar o grotesco, Kayser salienta que continua válido o fato de que o grotesco só é
experimentado na recepção. Por isso é, perfeitamente concebível que seja recebido como grotesco
algo que na organização da obra não se justifica absolutamente como tal, enquanto nada soubermos
sobre a obra, assistimo-nos no direito de empregar a palavra grotesco.
Na delimitação do conceito, Kayser salienta que ao rol do grotesco pertence tudo o que é
“monstruoso”. Assim, limitarei a apresentar algumas características e conteúdos pertencentes ao
grotesco, explicitadas tanto por Kayser, quanto por Backthin, na sua análise sobre o corpo grotesco,
especialmente aquelas que mais adiante serão úteis na análise das obras de Goya.
Para Bakthin, na base das figuras grotescas encontra-se uma concepção especial do conjunto
e dos limites corporais. Essas fronteiras entre corpo e mundo, e seus diferentes corpos serão
diferentes das existentes nas imagens clássicas naturalistas:

“O corpo grotesco é um corpo em movimento. Ele jamais está pronto nem acabado: está sempre em
estado de construção, de criação, e ele mesmo constrói outro corpo; além disso, esse corpo absorve o
mundo e é absorvido por ele. (...) Por isso o papel essencial é entregue no corpo grotesco àquelas partes; e
lugares, onde se ultrapassa, atravessa os seus limites, põe em campo um outro (ou segundo) corpo: o
ventre e o falo, essas são as partes do corpo que constituem o objeto predileto de um exagero positivo, de
uma hiperbolização; elas podem mesmo separar-se do corpo, levar uma vida independente, pois
sobrepujam o restante do corpo, religado ao segundo plano (o nariz pode também separar-se do corpo).
Depois do ventre e do membro viril é a boca que tem o papel mais importante no corpo grotesco, pois ela
devora o mundo: e em seguida o traseiro. Todas essas excrescências e orifícios caracterizam-se pelo fato
de que são o lugar onde se ultrapassam as fronteiras entre dois corpos e entre o corpo e o mundo, onde se

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efetuam as trocas e as orientações recíprocas. Por isso os principais acontecimentos que afetam o corpo
grotesco, os atos do drama corporal – o comer, o beber, as necessidades naturais (e outras excreções:
transpiração, humor nasal, etc.), a cópula, a gravidez, o parto, o crescimento, a velhice, as doenças, a
morte, a mutilação, o desmembramento, a absorção por outro corpo – efetuam-se nos limites do corpo e
do mundo ou nas do corpo antigo e do novo; em todos esses acontecimentos do drama corporal, o começo
e o fim da vida são indissoluvelmente imbricados.” (BAKTHIN, 1987, p. 277)

Assim, a lógica artística da imagem grotesca ignora a superfície do corpo e ocupa-se apenas
das saídas, excrescências, rebentos e orifícios, isto é, unicamente daquilo que faz atravessar os
limites do corpo e introduz ao fundo desse corpo. A imagem grotesca mostra a fisionomia não
apenas externa, mas ainda interna do corpo: sangue, entranhas, coração e outros órgãos, muitas
vezes fundem-se, fisionomia interna e externa numa única imagem.
Bakthin evoca a ideia da metamorfose incompleta para caracterizar o fenômeno da imagem
grotesca após o Renascimento, isto é, se encontra em estado de transformação, no estágio da morte
e do nascimento, de crescimento e da evolução. Outro traço importante é a ambivalência, nos dois
pólos da mudança – o antigo e o novo, o que morre e o que nasce o princípio e o fim da
metamorfose – são esboçados em uma ou outra forma.
Para Kayser o grotesco é uma estrutura e sua natureza se define com a expressão o grotesco
é o mundo alheado (tornado estranho). Assim, “o horror nos assalta, e com tanta força, porque é
precisamente o nosso mundo cuja segurança se nos mostra como aparência. Concomitantemente,
sentimos que não nos seria possível viver neste mundo transformado. No caso do grotesco não se
trata de medo da morte, porém de angústia de viver. Faz parte da estrutura do grotesco que as
categorias de nossa orientação do mundo falhem” (Bakthin, 1987, p. 277).

2. Corpo e grotesco feminino em Goya

A palavra grotesco, como vimos anteriormente, deriva em última instância de grotta (gruta).
A caverna, “grota – esco”, “baixa, escondida, terrena, escura, material, imanente, visceral. Como
metáfora do corpo, a caverna grotesca tende a aparecer (e, no sentido metafórico mais grosseiro,
identificar) com o corpo feminino anatomicamente cavernoso”(Russo, 2000, p.13), o espaço, úmido
e escuro, oculto em que é caracterizado pelo visceral. Sangue, lágrimas, vômito, excremento – todos
os detritos do corpo que são separados e colocados com terror e repugnância (predominantemente,
embora não exclusivamente) ao lado do feminino – estão ali em baixo, naquela caverna de abjeção.
Assim, para melhor entendimento recorri aos estereótipos grotescos. Apesar de seus óbvios
inconvenientes, há uma grande vantagem em descrever certa iconografia feminina. A Bruxa, a Dona
Gorda, a Bruaca, a Mulher Indisciplinada, A Aberração, assim como também os problemas

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femininos mais comuns como processos e partes do corpo: doença, velhice, reprodução, não-
reprodução, secreções, caroços, inchaços, perucas, cicatrizes e próteses, são representações que
serão objetos de estudo na obra de Goya, onde o corpo feminino é visto como grotesco (o corpo
velho, o corpo irregular).
O corpo grotesco é o corpo aberto que se projeta, ampliando, secretamente, o corpo do vir-a-
ser, do processo e da mudança. O corpo grotesco se opõe ao corpo clássico, que é monumental,
estático, fechado e liso, corresponde às aspirações do individualismo burguês; o corpo grotesco está
associado ao resto do mundo, ele é aberto, protuberante, irregular, secretamente múltiplo e mutável;
está identificado com a cultura “inferior” não oficial ou com o carnavalesco, e com a transformação
social.
A imagem que representa a concepção grotesca do corpo será, para Bakthin, as velhas
grávidas das figuras de terracota de Kertch. Para ele “é a morte prenhe, a morte que dá à luz”
(Bakthin, 1987, p. 23). A combinação do corpo velho, disforme e decomposto da velhice com o
corpo novo, embrionário, faz com que nada seja perfeito, estável ou calmo. É a vida se revelando no
seu processo ambivalente, interiormente contraditório.
Na obra de Goya é percebida a presença do grotesco na representação do feminino. Os
“Caprichos” são os exemplos mais férteis, embora este aspecto exista também em outros desenhos e
pinturas. Goya apesar de ter sido pintor da corte espanhola durante toda a sua vida desenvolveu uma
ácida crítica ao sistema político e social vigente. Assim, rompendo com o que fazia até então, a
harmonia tradicional, com os Caprichos de 1797, põe em evidência a fealdade.
O bestiário de Goya transforma-se de sarcasmo em desespero total, sem saída, no qual a
própria humanidade se deforma e corrompe numa animalidade corpórea. Voltamos ao estado de
animalidade primária, à complexa experiência do corpo natural cujo grito originário é transmutado
pela autodestruição que empreendemos contra nós mesmos. O seu bestiário funciona como um
código onde imagens de animais e seres monstruosos com seus atributos intrínsecos substituem os
próprios homens e mulheres em bestas primitivas, na maior das críticas a toda a humanidade. A
representação grotesca do feminino se insere aqui relacionada com a velhice, a obesidade, a
aberração e monstruoso e a bruxaria.

2.1 A velhice

A presença feminina se torna inofensiva, na imagem da anciã, desprovida de seus encantos.


No capricho n. 55, intitulado “Hasta la Muerte” (fig. 1), em seu tocador na frente do espelho, uma

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velha horrível se arruma. Uma mulher a olha com admiração e dois jovens assistem, um olha para
cima enquanto o outro não pode conter um sorriso e coloca a mão na boca.
Em outra pintura, de um período anterior, intitulada “As Velhas segurando o seu espelho”
ou também “Hasta la Muerte” (fig. 2), representa, como a anterior, uma mulher velha de cabelos
brancos e olhos avermelhados, enfeitada com seus melhores vestidos, em azul pálido e branco com
pontos dourados e muitas jóias no corpo, nas orelhas, em quatro de seus dedos e no pulso. Está se
olhando em um espelho, escrito “¿Qué tal?”, atrás o que sugere um conselho. Atrás das duas – ou
rondando – Cronos segurando uma vassoura e se preparando pra trocar de “mundo” a velha dama.
Para Anderson (1987, p. 57) não é da velhice que Goya está zombando, mas da vaidade da
velhice. Vestidas com roupas que mais se adequariam a jovens. Uma das velhas está usando uma
flecha feita com joia – o dardo de Cúpido – em seus cabelos, os quais não deve ser tão louro assim;
mas será por fim o Tempo (Cronos) que terá a última palavra a respeito de seu destino, e não o
Cupido.

2.2 A obesidade

Este tema aparece em Goya especialmente em dois trabalhos. Na pintura “Susana e los
Viejos” (Fig. 3), Susana aparece sentada semi-nua, melancolicamente, enquanto é assediada por
dois velhos de feições grotescas. No capricho nº 65, intitulado “Donde vá mamá?” (Fig. 4) uma
bruxa muito obesa parece que com a ajuda dos outros vai voar. Segundo Lafuente Ferrari (1978,
p.166) o desenho preparatório, na série inicial de Sueños nº 9 diz na legenda: “Bruxa poderosa que
por ser hidrópica, sai para o passeio com as melhores voadoras”.
Para Russo a imagem da mulher gorda funciona para literalmente “degradar”, com seu corpo
degradado, aqueles aspectos repudiados de produção e “riscos de superprodução” “Como outras
categorias de abjeção historicamente relacionadas com o grotesco, a gordura e o excesso corporal
de vários tipos são com mais freqüência considerados em termos passivos, individuais ou
meramente descritivos” (Russo, 2000, p. 39).

2.3 A Aberração

As aberrações com o corpo feminino são percebidas especialmente em três caprichos. No


Capricho nº 21 “Que la descánan!” (Fig. 5) a mistura de animais aos corpos cria o grotesco na
imagem. Os membros da cúria possuem um rosto animalizado e seguram uma mulher com o corpo
de ave, uma aberração. Em outro Capricho, de nº 63, “Miren que graves!” (Fig. 6), também a

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mistura de animais e homens formando o caricaturesco. No primeiro plano um homem nu com
perfil e boca de ave de rapina, suas mãos tem garras. A segunda figura do desenho é uma velha
horrenda com traços de asno e largas orelhas caídas. Parece que a distância mulheres observam.
Goya diz que são duas bruxas. No capricho nº 48, “Soplones” (Fig. 8) aparecem em primeiro plano
um bruxo e uma bruxa, o primeiro tapa os ouvidos para não perceber os outros personagens que se
dirigem a ele. Uma espécie de demônio feminino com asas de morcego e cujo ventre sai um felino.
A aberração e o grotesco, segundo Russo, se sobrepõem como categorias do corpo. A
aberração fisiológica representa neste caso, os problemas entre o animal e o humano. Para
perceber o grotesco nestes caprichos é interessante, salientarmos o que Bakthin caracteriza em
relação ao corpo:

“...dentre todos os traços do rosto humano, apenas a boca e o nariz ( esse último como substituto do falo)
desempenham um papel importante na imagem grotesca do corpo. As formas da cabeça, das orelhas, e
também do nariz, só tomam caráter grotesco, quando se transformam em figuras de animais ou coisas. Os
olhos não têm nenhuma função. Eles exprimem a vida puramente individual, e de alguma forma interna,
que tem a sua própria existência, a qual não conta para nada no grotesco. Esse só se interessa pelos olhos
arregalados (...), pois interessa-se por tudo que sai, procura sair, ultrapassa o corpo, tudo o que procura
escapar-lhe. Assim, todas as excrescências e ramificações têm nele um valor especial, tudo o que em
suma prolonga o corpo, reúne-o aos outros ou ao mundo não-corporal. Além disso, os olhos arregalados
interessam ao grotesco, porque atestam uma tensão puramente corporal. No entanto, para o grotesco, a
boca é a parte mais marcante do rosto. A boca domina. O rosto grotesco se resume afinal em uma boca
escancarada, e todo o resto é para emoldurar essa boca, esse abismo corporal escancarado e devorador”
(BAKTHIN, 1987, pg 276-277).

2.4 A feitiçaria

Este tema, embora presente de uma forma ou de outra em várias obras de Goya, será
analisado, para efeitos didáticos, em três caprichos. No capricho de nº 44, “Hillan delgado” (Fig. 7),
aparecem três bruxas, que são identificadas pela vassoura e os bebes mortos pendurados. No
capricho nº 68, “Linda Maestria” (Fig. 9) há uma bruxa mais velha ensinando outra a voar em sua
vassoura. No capricho nº 69 “Sopla” (Fig. 10), várias bruxas estão reunidas e usam um menino para
atiçar o fogo.
Ao zoomorfismo pertence também outra categoria de mulheres: as feiticeiras. O fato de
pertencerem ao mito e à história explica a massa do corpus iconográfico. Todos os tipos de público
são sensíveis às imagens sobre feitiçaria que invadem todos os países e todas as épocas, ainda que
esta caça muito especial não tenha aí sido praticada. Goya continua a ser o exemplo típico da
pregnância do mito.

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No retrato das feiticeiras há uma inversão característica. Os objetos tradicionais dos papéis
femininos são desviados da função: a vassoura serve para abandonar o espaço doméstico, o ungüeto
curativo transforma-se em bálsamo para atrair demônios, o caldeirão serve pra cozer fetos e fazer
sopas diabólicas em fogo lento. É o mundo às avessas produzido pelas mulheres.

Palavras finais

Goya foi, neste trabalho, um exemplo da iconografia grotesca feminina, onde em sua obra
grotesca predominou imagens tradicionais da velhice, da obesidade, das aberrações e
monstruosidades e da feiticeira, postulou uma conexão natural entre corpo feminino (ele mesmo
naturalizado) e os elementos primordiais.
O que tentei mostrar aqui foi que este posicionamento do grotesco – como superficial e
marginal – sugere certa construção do feminino, como contemporaneamente costuma ser descrito
por críticos pós-estruturalistas e feministas como superfície e detalhes corporais.
Embora o conceito de grotesco tenha perdido a sua essencialidade com o tempo ele ainda foi
visto aqui como uma “misteriosa e terrível relação entre o mundo fantástico e o real”, como afirma
Kayser. O mundo representado pelo grotesco é aquele que em que o horror nos assalta e perdemos
momentaneamente as noções de mundo que julgávamos seguras. A partir disso “aquilo-que-não-
devia-ser” aparece rompendo as fronteiras entre o dentro e o fora do corpo, mostrando o conflito
entre cultura e corporalidade e é neste sentido em que o conceito de Kayser e Bakthim se fundem.
Poderíamos encarar aqui o grotesco como outro estado da consciência, uma outra
experiência de lucidez, que penetra através das entranhas da realidade lhes tirando o véu de
encobrimento. Com a sua propensão ao bizarro e ao vulgar, o grotesco é capaz de subverter o
sentido estabelecido das coisas e delinear uma radiografia inquietante, surpreendente do real.
Freud no seu texto de 1919, intitulado “Das Unheimliche”, salienta que raramente um
psicanalista é “impelido” a pesquisar o tema da estética, mesmo quando esta se entende não só
como teoria da beleza, mas teoria das qualidades do sentir. Mas, às vezes acontece de ele se
interessar por um ramo particular daquele assunto, quando esse se revela como remoto e
negligenciado na literatura sobre estética.
O tema do Unheimliche é um desse tipo. Segundo ele “Relaciona-se indubitavelmente com o
que é assustador – com o que provoca medo e horror; certamente”. No entanto não é um medo ou
horror ao que é desconhecido, mas ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar. A partir daí
Freud tentará explicar, em que circunstâncias o familiar pode tornar-se estranho e assustador. Freud

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citará Schelling que define como “o nome de tudo aquilo que deveria ter permanecido... secreto e
oculto, mas veio a luz”.

No caso da literatura, por exemplo, para produzir esse sentimento de Unheimliche

“o escritor consegue quando move-se no mundo da realidade comum. Nesse caso, ele aceita também
todas as condições que operam para produzir sentimentos estranhos na vida real; e tudo o que teria um
efeito estranho, na realidade, o tem na sua história. Nesse caso, porém, ele pode até aumentar o seu efeito
e multiplicá-lo, muito além do que poderia acontecer na realidade, fazendo emergir eventos que nunca, ou
muito raramente, acontecem de fato. Ao fazê-lo, trai, num certo sentido, a superstição que e
ostensivamente superamos; ele nos ilude quando promete-nos dar-nos a pura verdade e, no final, excede
essa verdade. Reagimos às suas invenções como teríamos reagido diante de experiências reais; quando
percebemos o truque, é tarde demais, e o autor já alcançou o seu objetivo.” (FREUD, 1996, p. 267)

O mundo mostrado não é o da forma, mas o do processo com o qual é construída. O


grotesco nos produz o Unheimliche freudiano, o “inquientante familiar” aquilo que deixamos de
reconhecer como identidade normalizada, por efeito de forças obscuras e incompreensíveis. Dessa
maneira talvez, o grotesco não represente um mundo tão “alheado” assim, mas que pretende se
tornar distante quando se trata do corpo da mulher e este é o grande risco de seu excesso nas
sociedades contemporâneas.

Referências

ANDERSON, Janice. Vida e obra de Goya. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.


BAKTHIN, Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de
François Rabelais. Hucitec Editora , UNB, 1987
FERRARI, Enrique Lafuente. Los caprichos de Goya. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1978.
FREUD, Sigmund. O Estranho. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Vol XVII. Rio de
Janeiro. Imago, 1996
HUGO, Victor. Do Grotesco e do Sublime. Perspectiva, São Paulo, 2002.
KAYSER, Wolfgang. O Grotesco. Configuração na Pintura e na Literatura, Perspectiva, São Paulo,
1986.
RUSSO, Mary. O grotesco feminino: risco, excesso e modernidade. Rio de Janeiro: Rocco, 2000

THE CONSTRUCTION OF THE IMAGE OF WOMEN IN ART. THE FEMALE BODY AND
GROTESQUE IN GOYA'S PAINTINGS AND WHIMS.

The word grotesque and its words existing in other languages derive ultimately grotta (grotto). The
cave, "low, hidden, earthy, dark, material, immanent, visceral. As a metaphor for the body, the
grotesque cave tends to appear (and, in the roughest metaphorical sense, identify) with the

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anatomically cavernous female body". (RUSSO, 2000) This hidden space is characterized by the
visceral. Blood, tears, vomit, excrement - all the detritus of the body that are separated and placed
with terror and loathing (predominantly, though not exclusively) beside the female - are down there
in that cave of abjection. For a better understanding, I resorted to grotesque stereotypes. Despite its
obvious drawbacks, there is a great advantage in describing a certain feminine iconography. Well,
through a brief rescue of the concept of "grotesque" through the ages in such authors as Victor
Hugo, Wolfgang Kayser, Hegel, Mikhail Bakhtin, among others, I intend to show their
representation in the works of Goya, especially the Black Paintings and Whims, Through the female
body. What is called the "female grotesque" in this study guarantees the presence of women,
although they may contain male bodies or male subjectivities in the composition of the engravings.

Keywords: Female, goya, grotesque

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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