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Tadeusz Kantor
1. Craig afirma: a marionete deve retornar; o ator vivo deve desaparecer. O homem,
criado pela natureza, é uma ingerência estranha na estrutura abstrata de uma obra de
arte.
De acordo com Gordon Craig, em algum lugar às margens do Ganges, duas mulheres invadiram
o templo da Divina Marionete, que conservava com vigilância o segredo do verdadeiro TEATRO.
Essas duas mulheres tinham inveja desse SER perfeito e almejavam seu PAPEL, que era iluminar
o espírito dos homens pelo sentimento sagrado da existência de Deus; elas almejavam sua
GLÓRIA. Apropriaram-se de seus movimentos e de seus gestos, de suas vestimentas
maravilhosas, e, pelo recurso de uma medíocre paródia, admiraram-se satisfazendo os gostos
vulgares da plebe. Quando enfim elas fizeram construir um templo à imagem do outro, o teatro
moderno - o que conhecemos muito bem e que ainda permanece - havia nascido: a ruidosa
Instituição de utilidade pública. Ao mesmo tempo que ela, surgiu o ATOR. Em apoio à sua tese
Craig invoca a opinião de Eleonora Duse: "Para salvar o teatro, é preciso destruí-lo; é preciso que
todos os comediantes e todas as comediantes morram de peste... são eles que levantam
obstáculos à arte..."
2. Teoria de Craig: o homem-ator suplanta a marionete e toma seu lugar, causando
assim o declínio do teatro.
Há algo de imponente na atitude desse grande utopista quando ele afirma: "Exijo com toda a
seriedade o retorno do conceito da supermarionete ao teatro... e desde que ela reapareça, as
pessoas poderão novamente venerar a felicidade da existência e render uma divina e alegre
homenagem à MORTE." De acordo com a estética SIMBOLISTA, Craig considerava o homem
submetido a paixões diversas, a emoções incontroláveis e, por conseguinte, casuais como um
elemento absolutamente estranho à natureza homogênea e à estrutura de uma obra de arte,
como um elemento destruidor do seu caráter fundamental: a coesão. Craig - assim como os
simbolistas cujo programa, em seu tempo, teve um desenvolvimento notável - tinha atrás de si
os fenômenos isolados mais extraordinários que, no século XIX, anunciavam uma época nova
assim como uma arte nova: Heinrich von Kleist, Ernst Theodor Hoffmann, Edgar Allan Poe... Cem
anos antes, e por razões idênticas às de Craig, Kleist tinha exigido que o ator fosse substituído
por uma marionete, pensando que o organismo humano, submetido às leis da NATUREZA,
constituía uma ingerência estranha na ficção artística nascida de uma construção do intelecto. As
outras censuras de Kleist faziam-se sobre os limites das possibilidades físicas do homem e ele
denunciava além disso o papel nefasto do controle permanente da consciência, incompatível com
os conceitos de encantamento e de beleza.
3. Da mística romântica dos manequins e das criações artificiais do homem do século
XIV ao racionalismo abstrato do século XX
Ao longo do caminho que se pensava seguro e que foi tomado ao homem do Século das luzes e
do racionalismo, eis que avançam, saindo repentinamente das trevas, sempre mais numerosos,
os SÓSIAS, os MANEQUINS, os AUTÔMATOS, os HOMÚNCULOS - criações artificiais que são
várias injúrias às criações próprias da NATUREZA e que carregam em si todo o menosprezo,
todos os sonhos da humanidade, a morte, o horror e o terror. Assiste-se ao aparecimento da fé
nas forças misteriosas do MOVIMENTO MECÂNICO, ao nascimento de uma paixão maníaca de
inventar um MECANISMO que sobrepujasse em perfeição, em implacabilidade, o tão vulnerável
organismo humano. A tudo isto em um clima de satanismo, no limite do charlatanismo, das
práticas ilegais, da magia, do crime, do pesadelo. É a CIÊNCIA-FICÇÃO da época, na qual um
cérebro humano demoníaco criava o HOMEM ARTIFICIAL. Isto significava simultaneamente uma
crise de confiança súbita em relação à NATUREZA e a esses domínios da atividade dos homens
que lhe estão intimamente associados.
Paradoxalmente, é dessas tentativas românticas e diabólicas ao ponto de negar à natureza seu
direito à criação que nasce e se desenvolve o movimento RACIONALISTA ou mesmo
MATERIALISTA - sempre mais independente e sempre mais perigosamente distanciado da
NATUREZA - a corrida para um "MUNDO SEM OBJETO", para o CONSTRUTIVISMO, o
FUNCIONALISMO, o MAQUINISMO, a ABSTRAÇÃO e, finalmente, o VISUALISMO PURISTA que
reconhece simplesmente a "presença física" de uma obra de arte. Esta hipótese arriscada que
tende a estabelecer a gênese pouco gloriosa do século do cientismo e da técnica engaja apenas
minha própria consciência e serve unicamente à minha satisfação pessoal.
4. O dadaísmo, introduzindo a "realidade já pronta" (os elementos da vida), destruiu os
conceitos de homogeneidade e de coerência da uma obra de arte postulados pelo
simbolismo, a Arte nova e por Craig
Mas retornemos à marionete de Craig. Sua idéia de substituir um ator vivo por um manequim,
por uma criação artificial e mecânica, em nome da conservação perfeita da homogeneidade e da
coerência da obra de arte, não tem mais sentido hoje. Experiências ulteriores que destruíram a
homogeneidade da estrutura de uma obra de arte introduziram nela elementos ESTRANHOS,
através de colagens e de montagens; a aceitação da realidade "já pronta"; o pleno
reconhecimento do acaso; a localização da obra de arte na estreita fronteira entre REALIDADE
DA VIDA e FICÇÃO ARTÍSTICA - tudo isto tornou negligenciáveis os escrúpulos do início de nosso
século, do período do simbolismo e do "Art nouveau".
A alternativa "arte autônoma de estrutura cerebral ou perigo de naturalismo" deixou de ser a
única possibilidade.
Se o teatro, em seus momentos de fraqueza, sucumbiu ao organismo humano vivo e a suas leis,
é porque aceitou, automática e logicamente, esta forma de imitação da vida que constituem sua
representação e sua re-criação.
Ao contrário, nos momentos em que o teatro era suficientemente forte e independente para
permitir-se libertar-se dos constrangimentos da vida e do homem, produzia os equivalentes
artificiais da vida que, sujeitando-se à abstração do espaço e do tempo, eram ainda mais vivos e
mais aptos a atingir a absoluta coesão.
Em nossos dias essa alternativa na escolha perdeu tanto seu significado quanto seu caráter
exclusivo. Pois criou-se uma nova situação no domínio da arte e existem novos quadros de
expressão.
O surgimento do conceito de REALIDADE "JÁ PRONTA" retirada do contexto da existência tornou
possíveis sua ANEXAÇÃO, sua INTEGRAÇÃO na obra de arte através da DECISÃO, do GESTO e do
RITUAL. E isto é presentemente muito mais fascinante e mais poderosamente inserido no real
que qualquer entidade abstrata ou artificialmente elaborada, ou que esse mundo surrealista do
"MARAVILHOSO" de André Breton. Happenings, "eventos" e "instalações" reabilitaram
impetuosamente regiões inteiras da REALIDADE até então desprezadas, desembaraçando-as do
peso de suas destinações terra a terra. Esse DESLOCAMENTO da realidade pragmática - essa
"suspensão" para fora das fronteiras da prática cotidiana - puseram em movimento a imaginação
dos homens muito mais profundamente que a realidade surrealista do sonho onírico.
Foi isto que finalmente fez desaparecer toda importância aos temores de ver o homem e sua vida
interferir no plano da arte.
5. Da "realidade imediata" do happening à desmaterialização dos elementos da obra de
arte.
Portanto, como toda fascinação, também esta tornou-se, depois de certo tempo, CONVENÇÃO
pura - universalmente, tolamente, vulgarmente utilizada. Essas manipulações quase rituais da
realidade, ligadas à contestação do ESTADO ARTÍSTICO e do LIGAR reservado à arte,
começaram, pouco a pouco, a tomar um sentido e um significado diferentes. A PRESENÇA
material, física do objeto e o TEMPO PRESENTE no qual podem figurar unicamente a atividade e a
ação aparentemente atingiram seus limites e tornaram-se um entrave. ULTRAPASSÁ-las
significava privar essas relações de sua IMPORTÂNCIA material e funcional, ou seja, de sua
possível APREENSÃO.
(Dado que trata-se aqui de um período muito recente, ainda não terminado, fluido, as
considerações seguintes referem-se e ligam-se às minhas próprias atividades criativas.) O objeto
(A Cadeira, Oslo, 1970) tornava-se vazio, desprovido de expressão, de encadeamentos, de
pontos de referência, de sinais de uma intercomunicação voluntária, de sua mensagem; ele
estava orientado para nenhum lugar e tornava-se um engodo. Situações e ações permaneciam
encerradas em seu próprio CIRCUITO, ENIGMÁTICAS (O Teatro impossível, 1973). Em minha
manifestação intitulada Cambriolage (Furto) deu-se uma INVASÃO ilegítima sobre o terreno em
que a realidade tangível encontrava seus prolongamentos INVISÍVEIS. Cada vez mais
distintamente se precisa o papel do PENSAMENTO, da MEMÓRIA e do TEMPO.
Kantor, 1975
(In "Le Théâtre de la Mort". Editions L'Age d'Homme, Lausanne, 1977, p. 215-224.
Tradução de Roberto Mallet. www.grupotempo.com.br)