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Marília Mattos
mania, lyssa, até, ará, miasma, crisys. Todos esses nomes recobrem
uma única realidade mítica, um númen sinistro que se manifesta sob
múltiplas formas, em momentos diferentes, na alma do homem e fora
dele; é uma força de desgraça que engloba, ao lado do criminoso, o
próprio crime, seus antecedentes mais longínquos, as motivações
psicológicas da falta, suas conseqüências, a polução que ela traz, o
castigo que ela prepara para o culpado e sua descendência. Em grego,
um termo designa esse tipo de potência divina, pouco individualizada
que, sob uma variedade de formas, age de uma maneira que, no mais
das vezes, é nefasta ao coração da vida humana: o Daimon
(VERNANT; NAQUET, 1977, p. 51).
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Termo cunhado por Freud para designar o recurso que consiste em, inconscientemente, trazer à tona -
através da negação verbal – algo que o ego, por medo, recalca. A denegação tem o efeito de,
simultaneamente, aliviar o inconsciente do conteúdo recalcado e afirmar, através da negação, sua
ausência de risco (FREUD, 1984).
despedaçada de maneira singular. Ela não fora esfacelada pelo
choque, mas reduzida a finos cordões de madeira. Jamais vira uma
coisa tão completamente destruída.
Eu já travara conhecimento com as leis mais evidentes da eletricidade.
Nesta ocasião, achava-se conosco um homem, grande pesquisador das
ciências naturais, que, excitado por este acidente, se pôs a explicar
uma teoria que elaborara sobre a eletricidade e o galvanismo, ao
mesmo tempo nova e espantosa para mim (SHELLEY, 1999, p. 40).
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V. As bacantes (EURÍPIDES, 1979).
Dioniso, o retorno de uma era dionisíaca (de super-homens e tragédias), que havia sido
banida pelo racionalismo socrático, tido por ele como um “signo de declínio, de doença,
de instintos que se dissolvem anárquicos” (NIETZSCHE, 2000, p.14).
O filósofo, como vimos, atribuiu a morte da tragédia à predominância, no
drama euridipiano, da união do espírito apolínio ao socratismo, teórico, moralista e
decadente, que nega o saber mítico e os instintos, dionisíacos. Eurípides substituiu o
herói trágico, até então coletivo e dionsíaco, pelo indivíduo. Essa crítica nietzscheana ao
legado socrático foi, sob vários aspectos, antecipada pelos adeptos do Sturm und Drang3
e românticos, especialmente em sua crítica ao Iluminismo e afirmação da morte de Deus
- anunciada quase um século depois por Zaratustra. O próprio Nietzsche – não obstante,
no livro, ter veementemente negado ser um romântico – em autocrítica ao Nascimento
da tragédia, dezesseis anos após sua publicação, considera “defeitos” sua “demasiada
extensão” e seu “Sturm und Drang” (NIETZSCHE, 1988, p.15). Outro fato sintomático
da aproximação entre o monstro e o homem dionisíaco, esperado por Nietzsche, é a
criatura não haver sido nomeada, ou seja, não ter recebido a principal marca da
individuação: o nome. A mania, que acomete o cientista quando resolve criar outro ser,
é típica possessão dionisíaca concretizada pela ciência, apolínea. Seu conseqüente
arrependimento é fruto da moral socrática, execrada por Nietzsche, que rejeita o espírito
dionisíaco do mesmo modo que Frankenstein rejeita sua criatura. O racionalismo
socrático encontra sua realização máxima no pensamento iluminista, como veremos no
próximo capítulo, e considera Dioniso o duplo antagônico de Apolo. Omite-se o fato
deste ser fruto daquele, assim como Dioniso só é visível graças a Apolo, que lhe dá
forma. É o antagonismo entre criador e criatura, em FR, que, analogamente, provoca a
destruição de ambos4.
Embora Mary Shelley declare, no subtítulo, tratar-se de uma versão moderna
do mito grego de Prometeu, percebe-se nitidamente a moral judaico-cristã orientando,
ideologicamente, a trama. Isso é verificável, por exemplo, no diálogo com o clássico da
literatura inglesa Paraíso Perdido, de John Milton – de onde a autora retira a epígrafe
do romance. O sentimento de culpa é quase onipresente nas reflexões de Frankenstein
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Movimento artístico alemão do séc. XVIII, precursor do Romantismo.
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Apesar da interdependência entre a pulsão apolínea e dionisíaca já ter sido elucidada, aqui cabe uma
reiteração: em vários momentos, Victor Frankenstein é explicitamente associado a Apolo e sua criatura a
Dioniso. Isso poderia equivocadamente sugerir que estas categorias são claramente separadas e opostas.
De fato, julgo que, sob alguns aspectos, tal analogia procede. Todavia, ela não deve ser lida em termos
platonicamente antagônicos, pois criador e criatura – sendo heróis trágicos - expressam simultaneamente
ambas as pulsões. Nada é mais distante da visão nietzscheana do que o maniqueísmo.
concernentes à sua ousada e bem-sucedida experiência. Podemos detectar – no modo
como os fatos nos são apresentados – a intenção pedagógica e moralizante, apontada
criticamente por Goethe e Schiller, a respeito da visão romântica do teatro (LESKI,
1996, p. 46). Isto é evidente na passagem abaixo, onde Frankenstein aconselha Walton: