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O PROMETEU HÍBRIDO

Marília Mattos

“O verdadeiro Homem é o verdadeiro Deus”.


M. Gabriel

Como indica o título, este texto abordará o caráter trágico de Frankenstein.


Pelo fato de ser uma narrativa épica e moderna – dois fatores tradicionalmente
considerados incompatíveis com a própria noção de trágico –, esta requer algumas
ponderações antes de procedermos à sua análise. Assim, objetivando contextualizar o
fenômeno trágico na modernidade, recorrerei ao ensaio Shakespeare e o pensamento
renascentista, de Anatol Rosenfeld (1973), que enfoca o ressurgimento do fenômeno
trágico na Renascença, fato fundamental para que possamos compreendê-lo no
Romantismo.
O autor ressalta que a mais drástica transformação ocorrida na passagem da
Idade Média para a Moderna é o fato de, nesta última, o pensamento tornar-se
crescentemente nominalista, ou seja, considerar reais somente as coisas concretas e
individuais. No período medieval, prevalecia o chamado “realismo conceitual”, que
postulava que a nomes e conceitos dos seres individuais e transitórios do mundo físico
correspondem essências ou formas que os precedem e têm existência atemporal no
logos divino. Os ecos platônicos desta doutrina são claramente audíveis. A Escolástica
apropriou-se do célebre “mundo das Idéias”, concebido por Platão em sua República, e
o transformou no Reino Celestial cristão – formado por um deus único e onipotente e
seu séqüito angelical. Este neo-platonismo está intimamente ligado à visão hierárquica
medieval, que considerava estar a plenitude da realidade no Uno, de onde se
desenvolveu o mundo múltiplo e sensível no qual vivemos. Tal desenvolvimento
significaria, em verdade, uma degradação, já que, como ressalta Rosenfeld (1973,
p.124) “a perfeição diminui na escala descendente dos arcanjos, anjos, serafins e
querubins, até os organismos terrenos e materiais” que, por serem compostos pelos
quatro elementos, decompõem-se inexoravelmente. Cabe frisar que a esta diminuição na
escala do Ser corresponde uma diminuição na escala dos valores.
De acordo com a lógica escolástica, portanto, a horrenda criatura do Dr.
Frankenstein representaria mais um rebaixamento na escala ontológica. Cientificamente
gerada a partir de cadáveres, ela é um arauto da crise do pensamento religioso
destronado pelo racionalismo iluminista. A metáfora é clara: composta por seres em
decomposição, roubados de túmulos (numa distancia ainda maior dos entes angelicais
do que a existente entre estes e os humanos), o monstro frankensteiniano provém do
Hades grego ou do Inferno cristão, localizados no mundo subterrâneo. Em vários
momentos da trama, ele se compara ao Satã do Paraíso Perdido, de Milton, o que
reforça minha convicção a respeito de sua origem infernal. Também em termos
platônicos, a criatura expressa uma degradação: criada pela cópia (o cientista) e não
pela Idéia (Deus), ela não passa de simulacro – cópia da cópia – ao qual nenhum
modelo abstrato corresponde.
A crescente valorização dos seres individuais, fomentada pelo nominalismo
renascentista, fortalece, conseqüentemente, a noção e importância do individualismo
que marcará a modernidade. Como veremos, tal individualismo está estreitamente
ligado ao renascimento da tragédia, que havia sido excluída do drama medieval.
Na Idade Média, dominada pelo teocentrismo cristão, tudo era concebido a
partir de uma divindade bondosa e onipotente. Eis porque um mito trágico, como a
expulsão de Adão e Eva do Éden, só poderia surgir em um período anterior ao
Cristianismo, sob a égide do deus Javé, irascível e vingativo. A crença cristã em uma
harmonia universal – manifestação de seu “Deus de amor” – impossibilita o trágico,
pois este é sempre fruto de um conflito. Rosenfeld pontua que o universo medieval é um
universo “explicado”, onde todos os processos temporais correspondem ao plano
prefigurado de Deus e são, portanto, imbuídos de sentido, embora de um sentido por
vezes inacessível à mente humana. Neste plano, mesmo o mal tem seu lugar
providencial, visto contribuir para a harmonia do Todo. Essa visão, à qual corresponde o
palco simultâneo, é desfavorável ao trágico e, mesmo, ao dramático, conclui Rosenfeld,
já que, além do público, o próprio personagem conhece de antemão seu destino
(ROSENFELD, 1973, p.125). Esse, no entanto, não foi o único motivo para o
desaparecimento do trágico na Idade Média. É oportuno lembrar que naquele período a
Igreja Católica, através da Inquisição, havia “decretado” a morte de Dioniso, o deus da
embriaguez e da tragédia. Seu monoteísmo não poderia permitir festividades em que se
celebrassem e imitassem deuses e semideuses pagãos, como acontecia nas orgíacas
celebrações dionisíacas, origem do teatro grego. Assim, foi eliminado do drama o
elemento trágico, dionisíaco por excelência. O ressurgimento do herói trágico, na
Renascença, deve-se, sobretudo, à retomada de certos elementos peculiares à Grécia
Clássica dos cultos a Dioniso, como elucida o estudo Tragédia e Modernidade, de
Carlos Baumgarten (1999). O autor – que faz uma breve retrospectiva da história da
Grécia até o aparecimento da tragédia na Grécia antiga, no século V a.C. – buscou sua
inspiração na mitologia olímpica, politeísta. Baumgarten centraliza sua análise na
trajetória grega a partir do surgimento das cidades-Estado, quando se deu a célebre
“democracia grega”, na qual reinava um liberalismo cultural. Esse liberalismo,
conforme veremos no terceiro capítulo, é um traço ideológico fundamental da burguesia
– classe da qual Victor Frankenstein, sob diversos aspectos, é uma expressão legítima.
Arnold Hauser, em sua análise da arte grega clássica, afirma que, graças ao
desenvolvimento do comércio e da sociedade – centrados na cidade –, somados ao
triunfo da economia de concorrência, o individualismo torna-se saliente em todos os
campos da vida cultural (HAUSER,1972, p.110). Tais condições são, em vários
aspectos, similares às transformações ocorridas do feudalismo medieval para o Estado
moderno, um processo que culminou com a Revolução Francesa e a Revolução
Industrial, cujo mito de Frankenstein sintetiza.
O individualismo, para Ian Watt (1997), é a principal marca do herói moderno.
Tal fato evoca uma aproximação do fenômeno trágico clássico e seu correspondente
moderno, assim como uma relação íntima entre individualismo e tragédia, cuja
elucidação é fundamental para a compreensão de Victor Frankenstein enquanto herói
trágico. Portanto, retornemos à Grécia, pois, como enfatiza Gerd Bornhein, “a
comparação com os gregos deixa aquilatar o sentido da evolução do trágico através do
teatro do Ocidente e medir o que permanece constante e o diferente desse constante”
(BORNHEIM,1975, p.87). Embora Bornheim e Baumgarten restrinjam-se apenas ao
drama, na busca de compreender o trágico moderno, sustento que na modernidade o
fenômeno trágico extrapola os limites daquele gênero, manifestando-se também no
romance, do qual Frankenstein é um exemplo significativo. Um importante aspecto a
ser considerado, segundo Hauser, é que a arte, durante a tirania, tornou-se independente
da religião, passando a ser um fim em si mesma. Paradoxalmente, no entanto, é durante
esse período que surgem novos cultos panteístas; entre estes, o culto a Dioniso,
considerado a origem do teatro grego (BORNHEIM,1975). Isso demonstra haver, na
raiz da arte trágica, a simultaneidade de elementos míticos e racionais, sagrados e
profanos ou, como queria Nietzsche, dionisíacos e apolíneos. O período posterior,
conhecido como Classicismo, abrange os séculos V e IV a.C, mas foi no primeiro que
ocorreu o período áureo da arte trágica. A história grega dessa fase resume-se
praticamente a Atenas, por sua relevância adquirida na vitória contra os persas. Com a
ascensão de Péricles ao poder (por volta de 450 a.C.), Atenas conhece o auge de sua
democracia e riqueza (BAUMGARTEN, 1985, p. 41). São deste período peças
consideradas marcos da tragédia clássica, como Prometeu acorrentado e Édipo rei, este
último também uma referência fortemente presente em Frankenstein, no conflito entre a
criatura e seu “pai”.
Apesar de a tragédia grega ter como fonte inspiradora os mitos tradicionais de
sua religião olímpica, é também no século V que surgem, segundo Baumgarten, as
primeiras especulações filosóficas, que pretendiam explicar a realidade racionalmente, e
não mais através dos mitos (BAUMGARTEN, 1985). A tragédia nasce, portanto, no
declínio da importância dos mitos, causada pelo racionalismo nascente, e que culminará
no herói trágico moderno, profundamente individualista. Tanto a questão da crise do
pensamento mítico na Grécia clássica, provocada pelo pensamento filosófico, quanto a
individualização do herói trágico nesse mesmo período, indicam uma analogia com a
Renascença. Fundamentada na filosofia conhecida por humanismo, que colocou a razão
humana no lugar até então ocupado por Deus, a Renascença pôs em crise a supremacia
do pensamento religioso medieval, reforçando, simultaneamente, a importância do
indivíduo, através do cogito, ergo sum cartesiano, que funda as bases do racionalismo
do século XVII, emblemático da modernidade.

2.1 UM HERÓI TRÁGICO EM TEMPOS MODERNOS

No Romantismo – movimento artístico associado à modernidade –, a revolução


burguesa, o Iluminismo e a idéia da “morte de Deus” contribuíram significativamente
para que a Ciência ocupasse o lugar até então pertencente à religião e à monarquia
absolutista, sua extensão política. Os cientistas, na modernidade, substituem os antigos
“seres virtuosos que gozam de grande prestígio”, descritos por Aristóteles (1999, p. 51),
em sua caracterização do herói trágico. São eles os novos “caracteres superiores” que
detêm o conhecimento inacessível ao restante dos mortais.
Victor Frankenstein é um estudante de medicina que se destaca dos demais
pela superioridade intelectual, ressaltada na caracterização da personagem. Sua sede de
conhecimento reúne os principais sintomas da hybris imprescindível ao herói trágico,
superando mesmo a encontrada nas tragédias clássicas, pois custa conceber arrogância
maior do que a pretensão de igualar-se a Deus em seu principal atributo: o poder de
criar outro ser.
Frankenstein, ao decidir realizar tal projeto, é tomado por uma obsessão em
tudo semelhante ao que é denominado Daimon. Eis como Vernant e Naquet o
descrevem:

mania, lyssa, até, ará, miasma, crisys. Todos esses nomes recobrem
uma única realidade mítica, um númen sinistro que se manifesta sob
múltiplas formas, em momentos diferentes, na alma do homem e fora
dele; é uma força de desgraça que engloba, ao lado do criminoso, o
próprio crime, seus antecedentes mais longínquos, as motivações
psicológicas da falta, suas conseqüências, a polução que ela traz, o
castigo que ela prepara para o culpado e sua descendência. Em grego,
um termo designa esse tipo de potência divina, pouco individualizada
que, sob uma variedade de formas, age de uma maneira que, no mais
das vezes, é nefasta ao coração da vida humana: o Daimon
(VERNANT; NAQUET, 1977, p. 51).

As passagens abaixo ilustram como essa força irracional, juntamente com a


hybris, apossa-se de Frankenstein:

O acaso – ou melhor, a influência maligna do Anjo da Destruição


sob cuja influencia onipotente eu estava desde o momento que dei
meus passos relutantes para fora da porta de meu pai – me conduziu
primeiro a mister Krempe, professor de filosofia natural (SHELLEY,
1985, p.44, grifo meu).

Ninguém pode conceber a variedade de sentimentos que me lançavam


para frente como um furacão num primeiro entusiasmo do sucesso. A
vida e a morte se me apareciam como limites ideais, que eu
primeiro devia transpor, para lançar uma corrente de luz em nosso
mundo de trevas. Uma nova espécie me abençoaria como seu
criador e sua origem; muitas criaturas felizes e excelentes passariam a
dever sua existência a mim. Nenhum pai poderia reclamar a gratidão
de um filho tão completamente quanto eu a daquelas criaturas. Assim
refletindo, achei que, se eu fosse capaz de animar a matéria inerte, eu
poderia no decorrer do tempo (embora agora o julgue impossível)
restituir à vida, os corpos aos quais a morte tinha destinado à
decomposição (SHELLEY, 1985, p.5, grifo meu).

É curioso que Frankenstein considere impossível a realização do sonho de


poder animar, a partir daquela primeira experiência, qualquer cadáver. Considerando
que os fatos comprovam justamente o oposto, vejo tal enunciação como uma
denegação1, pois a estrutura moral e psíquica de Frankenstein não suportou a grandeza
blasfêmica de seu ato. O conflito entre daimon e ethos (caráter), em Frankenstein – este
último impregnado da moral apolínea-socrática vigente – lança o cientista,
irremediavelmente, na crise da qual ele só escapará com a morte. O monólogo
supracitado expõe sintomaticamente a questão que perpassa o romance e constitui seu
cerne: a busca humana pelo conhecimento é essencialmente trágica, como nos alertam
os mitos de Prometeu e de Adão e Eva.
Podemos também identificar, na passagem acima, uma espécie de embrião do
que, em 1884, seria anunciado por Friedrich Nietzsche em Assim falou Zaratustra: a
vinda do super-homem. O protagonista desse livro, Zaratustra, proclama a morte de
Deus e prega que o homem deve ser superado pelo super-homem, pois “está para este
assim como nós para o macaco”. Zaratustra considera-se “um anúncio do raio e uma
pesada gota procedente da nuvem; mas este raio chama-se super-homem”
(NIETZSCHE, 1999, p. 28). Eis, ainda, o que Zaratustra acrescenta a respeito do raio,
aqui considerado literal e metaforicamente:
Não me basta que o raio já não prejudique. Não quero desviá-lo; quero
que aprenda a trabalhar para mim. A minha sabedoria acumula-se há
muito tempo como uma tempestade; cada vez se torna mais tranqüila e
sombria. Assim faz toda a sabedoria que há de chegar e engendrar o
raio (NIETZSCHE, 1999, p.75, grifo meu).

Há várias semelhanças entre as idéias de Victor Frankenstein e de Zaratustra.


Além da crença na superação do homem por uma nova espécie e do anúncio da morte
de Deus – que está significativamente ausente do romance de Mary Shelley, tendo o
protagonista tomado seu lugar enquanto Criador – também para o Dr.Frankenstein o
raio tem especial importância. Foi, precisamente, ao ver uma árvore fulminada por um
raio que Frankenstein vislumbrou o fascinante poder da eletricidade:

Durante todo o tempo que durou a tempestade eu fiquei observando


seu progresso com curiosidade e deleite. De pé na porta, vi de repente
uma língua de fogo sair de um velho carvalho que ficava a 20 metros
de nossa casa. Tão logo a luz sumiu, o velho carvalho havia
desaparecido, não mais restando dele senão um cepo queimado.
Quando o visitamos na manhã seguinte, encontramos a árvore

1
Termo cunhado por Freud para designar o recurso que consiste em, inconscientemente, trazer à tona -
através da negação verbal – algo que o ego, por medo, recalca. A denegação tem o efeito de,
simultaneamente, aliviar o inconsciente do conteúdo recalcado e afirmar, através da negação, sua
ausência de risco (FREUD, 1984).
despedaçada de maneira singular. Ela não fora esfacelada pelo
choque, mas reduzida a finos cordões de madeira. Jamais vira uma
coisa tão completamente destruída.
Eu já travara conhecimento com as leis mais evidentes da eletricidade.
Nesta ocasião, achava-se conosco um homem, grande pesquisador das
ciências naturais, que, excitado por este acidente, se pôs a explicar
uma teoria que elaborara sobre a eletricidade e o galvanismo, ao
mesmo tempo nova e espantosa para mim (SHELLEY, 1999, p. 40).

Frankenstein realiza o que pretendia Zaratustra, pois, ao conferir vida através


da eletricidade à sua criatura formada por cadáveres, faz com que o raio “trabalhe para
ele” e gera seu próprio super-homem: um ser de dois metros e quarenta de altura, capaz
de subjugar, física e intelectualmente, seu criador.
A aproximação entre FR e algumas concepções nietzscheanas fica mais clara
quando investigamos o mito de Dioniso, ao qual Nietzsche recorre. De acordo com o
mitólogo Lévi, Zeus enamora-se da mortal Sêmele e desperta o ciúme de Hera, que
convence Sêmele a pedir a seu amante divino que lhe apareça em toda sua glória, o que
faz com que morra fulminada por um raio de Zeus; este lhe arranca o feto por eles
concebido e o introduz na coxa, onde permanece até o final da gestação, o que o torna
sujeito a dois nascimentos (LÉVI, 1997, p. 240).
Dos vários mitos existentes sobre Dioniso – testemunhos de seu caráter
inapreensível, porque múltiplo e mutante –, chamo a atenção para o que o apresenta
como Zagreu por ser este, mais especificamente, o recorte nietzscheano:

Os titãs, aproveitando a distração de seus pais adotivos, que estavam


dançando, atraem o menino Dioniso, o matam, esquartejam, cozinham
seus pedaços, em um caldeirão e os comem. Então Zeus, seu pai, com
um raio fulmina os Titãs e ressuscita Dioniso, pois seu coração
permanecera vivo, salvo por Atena. Isso faz com que o deus seja
também conhecido como “o que nasceu duas vezes” (LÉVI, 1997, p.
233).

Nas reflexões de Nietzsche em O nascimento da tragédia, o drama trágico


grego é colocado como resultante da fusão entre o que o autor denomina espírito
apolíneo e espírito dionisíaco. Enquanto o primeiro representa a realidade dos sonhos, a
consciência, o sol, a aparência bela do mundo interior e a harmonia das formas, ou seja,
a arte do “figurador plástico”, o segundo associa-se à embriaguez, à desmedida, à
criatividade, aos instintos, à noite e à arte não-figurada da música. Para Nietzsche, a
interiorização apolínea, centralizando o homem em si próprio, é vista como o
principium individuationis. A embriaguês dionisíaca – que o descentra, levando-o a se
unir a outros homens e à natureza – romperia a individualização apolínea. A arte trágica
aparece, assim, como fruto do conflito entre os referidos princípios opostos
(NIETZSCHE, 2000). Essa tese nietzstcheana explicaria, portanto, o surgimento da
tragédia durante o classicismo, quando os cultos dionisíacos coexistiam com as
divagações filosóficas, tipicamente apolíneas.
Nietzsche também focaliza o herói trágico, considerando-o uma personificação
da união dos princípios apolíneo e dionisíaco, na medida em que a palavra lhe dá
precisão e clareza apolínea e sua raiz mítica o liga a Dioniso, de cujas celebrações
originou-se a tragédia. O filósofo detém-se longamente no papel desempenhado pelo
coro, que aparece como algo que isola o drama, isentando-o do que ele chama de
“imitação servil da realidade” e suprimindo a existência da possibilidade de um
naturalismo da tragédia. Assim, o coro representaria o impulso dionisíaco, responsável
pelo efeito trágico, a saber: a abolição das diferenças sociais, que separam os homens, e
do princípio de individualização. Cabe enfatizar que o coro, por ter sua origem no
ditirambo (cantos em louvor a Dioniso), está intrinsecamente ligado à música. Para
Nietzsche, sua função é, através da individuação apolínea, dar visibilidade à força
dionisíaca, fonte criadora oriunda da música, e representar o conjunto dos espectadores,
cujos integrantes perderam a identidade. É no processo do coro dionisíaco que
Nietzsche situa a origem da tragédia, por ser este a matriz do diálogo, de tudo que
acontece em cena. A tragédia é, portanto, a representação apolínea de elementos
dionisíacos.
Nietzsche reconhece nos heróis trágicos a onipresença de Dioniso, de quem
aqueles, até Eurípides, não passariam de máscaras; e é tal idéia que quero reter, pois
Nietzsche considera Prometeu o “mais dionisíaco” dos heróis da tragédia ática, aquele
que em momento algum se arrepende de sua hybris. Prometeu é, portanto, considerado o
oposto das personagens euripidianas – enfraquecidas pela moral maniqueísta socrática,
que exalta a virtude, confia ingênua e ilimitadamente no poder do logos (invés do mito)
e defende a idéia otimista de uma felicidade individual, garantida por um deus ex-
machina, que livra o herói do sofrimento e, segundo Nietzsche (2000), expulsa o
espírito dionisíaco do drama grego provocando, assim, a morte da tragédia. Em O
nascimento da tragédia, Nietzsche ressalta:
Quem compreende esse cerne interior da lenda de Prometeu – quer
dizer, a necessidade imposta ao indivíduo que aspira ao titânico –
deverá também sentir, ao mesmo tempo, o não-apolíneo dessa
concepção pessimista; pois Apolo quer conduzir os seres singulares à
tranqüilidade precisamente traçando linhas fronteiriças entre eles, e
lembrando sempre de novo, com suas exigências de auto-
conhecimento e comedimento, que tais linhas são as leis mais
sagradas do mundo.(...) Esse afã titânico de ser como que o Atlas de
todos os indivíduos e carregá-los com a larga espádua cada vez mais
alto e cada vez mais longe, é o que há de comum entre o prometéico e
o dionisíaco. O Prometeu esquiliano é, nessa condição, uma máscara
dionisíaca, ao passo que, no profundo pendor para a justiça antes
mencionado, Ésquilo trai, ao olho penetrante, a sua descendência
paterna de Apolo, o deus da individuação e dos limites da justiça. E
assim a dupla essência do Prometeu esquiliano, sua natureza a um só
tempo dionisíaca e apolínea, poderia ser do seguinte modo expressa
em uma formulação conceitual: “tudo o que existe é justo e injusto e
em ambos os casos igualmente justificado. Isso é o teu mundo, isso se
chama um mundo” (NIETZSCHE, 1999, p. 69, grifo meu).

As considerações acima evidenciam o aspecto premonitório da tragédia de


Prometeu, pois esta, assim como seu protagonista, teve o poder de prever a supressão do
elemento dionisíaco do drama clássico, simbolizada pela prisão do herói – a mais fiel
representação de Dioniso, segundo Nietzsche.
É a afirmação dionisíaca a tudo, o SIM até mesmo ao sofrimento, que Eurípides,
juntamente com Sócrates, baniu do drama grego através da exaltação do homem teórico.
Esse espírito afirmativo, dionisíaco, além do bem e do mal, que Nietzsche espera que
retorne através do super-homem, não necessitará de deuses ex-machinas, nem do céu
cristão para justificar sua existência, pois seu “consolo metafísico” é a própria vida, que
permanece após passarem as ilusórias individualidades forjadas por Apolo.
A referida noção nietzscheana de herói trágico denota a idéia de uma unidade
entre os seres, para a qual a consideração da individualidade seria a causa do mal, pois,
segundo o mito, a paixão dionisíaca – o dilaceramento sofrido pelo deus – gerou os
diferentes indivíduos, que representam o princípio apolíneo. É o próprio Nietzsche
quem conclui:

Nas intuições mencionadas temos já todos os componentes de uma


visão de mundo profunda e pessimista e com eles, ao mesmo tempo, a
doutrina da tragédia que está nos mistérios: o conhecimento da
unidade fundamental de tudo que existe, a consideração da
individuação como a fonte e o primeiro fundamento de todo
sofrimento, como algo repudiável em si mesmo (NIETZSCHE , 1999,
p.70).

No romance de Mary Shelley, o monstro foi criado a partir de pedaços de


cadáveres - dilacerados por Frankenstein e artificialmente reunidos para formar um
novo organismo, que o cientista ressuscitou através da eletricidade. Sua dilaceração dos
cadáveres lembra uma bacante2 possuída por Dioniso, que revive sua paixão
esquartejando seu objeto de desejo. Como o próprio deus, o monstro nasce duas vezes:
primeiramente, através de cada indivíduo que o formou e, após a morte destes, através
de um raio (eletricidade). Dioniso, segundo o mito, desceu ao Hades em busca de sua
mãe, Sêmele. Zagreu (um dos nomes de Dioniso) é filho de Perséfone e de Zeus ou
Hades e, segundo Alain Moreau, identificado com o próprio Hades (MOREAU, 1997,
p. 244). Temos aí outra semelhança entre o monstro frankensteiniano e Dioniso: a
origem subterrânea, infernal. Em Ecce Hommo (1988), ao comentar Zaratustra,
Nietzsche declara a respeito da noção de “super homem”: “mas isto é o conceito do
próprio Dioniso” (NIETZSCHE, 1998, p.130). Esta declaração sugere que a figura do
raio – fonte da vida de Dioniso, do monstro e do super-homem – é, nestes mitos, mais
do que mera coincidência. Esperançoso, Nietzsche previa o terceiro nascimento de

2
V. As bacantes (EURÍPIDES, 1979).
Dioniso, o retorno de uma era dionisíaca (de super-homens e tragédias), que havia sido
banida pelo racionalismo socrático, tido por ele como um “signo de declínio, de doença,
de instintos que se dissolvem anárquicos” (NIETZSCHE, 2000, p.14).
O filósofo, como vimos, atribuiu a morte da tragédia à predominância, no
drama euridipiano, da união do espírito apolínio ao socratismo, teórico, moralista e
decadente, que nega o saber mítico e os instintos, dionisíacos. Eurípides substituiu o
herói trágico, até então coletivo e dionsíaco, pelo indivíduo. Essa crítica nietzscheana ao
legado socrático foi, sob vários aspectos, antecipada pelos adeptos do Sturm und Drang3
e românticos, especialmente em sua crítica ao Iluminismo e afirmação da morte de Deus
- anunciada quase um século depois por Zaratustra. O próprio Nietzsche – não obstante,
no livro, ter veementemente negado ser um romântico – em autocrítica ao Nascimento
da tragédia, dezesseis anos após sua publicação, considera “defeitos” sua “demasiada
extensão” e seu “Sturm und Drang” (NIETZSCHE, 1988, p.15). Outro fato sintomático
da aproximação entre o monstro e o homem dionisíaco, esperado por Nietzsche, é a
criatura não haver sido nomeada, ou seja, não ter recebido a principal marca da
individuação: o nome. A mania, que acomete o cientista quando resolve criar outro ser,
é típica possessão dionisíaca concretizada pela ciência, apolínea. Seu conseqüente
arrependimento é fruto da moral socrática, execrada por Nietzsche, que rejeita o espírito
dionisíaco do mesmo modo que Frankenstein rejeita sua criatura. O racionalismo
socrático encontra sua realização máxima no pensamento iluminista, como veremos no
próximo capítulo, e considera Dioniso o duplo antagônico de Apolo. Omite-se o fato
deste ser fruto daquele, assim como Dioniso só é visível graças a Apolo, que lhe dá
forma. É o antagonismo entre criador e criatura, em FR, que, analogamente, provoca a
destruição de ambos4.
Embora Mary Shelley declare, no subtítulo, tratar-se de uma versão moderna
do mito grego de Prometeu, percebe-se nitidamente a moral judaico-cristã orientando,
ideologicamente, a trama. Isso é verificável, por exemplo, no diálogo com o clássico da
literatura inglesa Paraíso Perdido, de John Milton – de onde a autora retira a epígrafe
do romance. O sentimento de culpa é quase onipresente nas reflexões de Frankenstein

3
Movimento artístico alemão do séc. XVIII, precursor do Romantismo.
4
Apesar da interdependência entre a pulsão apolínea e dionisíaca já ter sido elucidada, aqui cabe uma
reiteração: em vários momentos, Victor Frankenstein é explicitamente associado a Apolo e sua criatura a
Dioniso. Isso poderia equivocadamente sugerir que estas categorias são claramente separadas e opostas.
De fato, julgo que, sob alguns aspectos, tal analogia procede. Todavia, ela não deve ser lida em termos
platonicamente antagônicos, pois criador e criatura – sendo heróis trágicos - expressam simultaneamente
ambas as pulsões. Nada é mais distante da visão nietzscheana do que o maniqueísmo.
concernentes à sua ousada e bem-sucedida experiência. Podemos detectar – no modo
como os fatos nos são apresentados – a intenção pedagógica e moralizante, apontada
criticamente por Goethe e Schiller, a respeito da visão romântica do teatro (LESKI,
1996, p. 46). Isto é evidente na passagem abaixo, onde Frankenstein aconselha Walton:

Aprenda comigo, senão pelos meus preceitos ao menos pelo meu


exemplo, que mais feliz é aquele que acredita que sua aldeia é o
mundo, do que aquele que aspira tornar-se maior do que sua natureza
permite (SHELLEY, 1985, p.51 e 52).

O conflito de nosso herói é aquele identificado por Gerd Bornheim (1975) na


tragédia moderna, debilitada por emprestar excessiva importância à subjetividade,
sobretudo quando considerada em seu aspecto moral.
Harold Bloom (1991), ao comentar FR, refere-se a Victor como “o idiota da
moral”, já que o arrependimento sentido em relação à sua criação provém de conflitos
de ordem subjetiva – tais como sua incapacidade de amar, que o faz odiar sua criatura e
fugir à sua responsabilidade, e o fracasso estético da sua criação – mas não do fracasso
da criação em si. Bloom vê um involuntário humor no contraste entre a enormidade da
descoberta do cientista e as emoções mundanas do criador, o qual, achando que a
pequenez das partes o diminuía, faz sua criatura com 2,40 metros de altura e
proporcionalmente larga. O cientista sonha com “uma nova espécie que lhe abençoaria”,
mas considera seu laboratório “a oficina de uma sórdida criação” e falha no teste
fundamental de sua criatividade, conforme observa Bloom. Para ele, no momento em
que Frankenstein foge ao ver abrir-se o olho “baço e amarelo” da criatura, o cientista
passa da autonomia de um supremo artífice para o terror de um filho da terra, cujo
coração – como confessa Frankenstein – “fica paralisado de horror e repugnância”. Por
fugir à sua responsabilidade, Frankenstein desencadeia os acontecimentos que o levarão
à sua destruição no Ártico, fim considerado por Bloom como “digno de um homem que
jamais conseguiu compreender totalmente a existência de outro” (BLOOM, 1985,
p.219).
Eis as reflexões de Victor Frankenstein concernentes a este momento de
terror:

Os diferentes fatos da vida não são tão variáveis quanto os


sentimentos humanos. Há dois anos eu vinha trabalhando com o único
objetivo de insuflar vida num corpo inanimado. Eu havia desejado
isso com um ardor que excedia a moderação, mas agora, que eu
havia terminado, desvanecera-se a beleza do sonho, e meu coração se
enchia de terror e asco. Incapaz de suportar o aspecto do ser que eu
criara, saí correndo e continuei a andar pelo quarto, sem poder dormir
(SHELLEY, 1985, p.57, grifo meu).

O horror e repúdio à criatura, experimentados pelo cientista, e sua posterior


destruição, por ela provocada, confirmam a afirmação feita por Nietzsche a respeito do
ato criador. Segundo ele:

A imortalidade paga-se caro: tem de se morrer várias vezes em vida.


Existe uma coisa chamada rancune do que é grandioso; um trabalho
feito, depois de contemplado, volta-se contra o seu autor.
Precisamente porque o concebeu, ele passa a ser fraco – já não
consegue suportar o seu feito, já não o pode encarar de frente
(NIETZSCHE, 1988, p.123).

É como se o impulso dionisíaco – que domina o cientista e o faz


transgressoramente criar o monstro e encontrar a chave da imortalidade – após o feito o
abandonasse para incorporar-se na criatura, metáfora de sua parte irracional. Zaratustra
declara “amar o que quer criar qualquer coisa superior a si próprio e que dessa arte
sucumbe”. Este não é, exatamente, o caso de Frankenstein. O que o fez sucumbir foi
menos a grandeza de seu feito do que sua incapacidade de assumir a responsabilidade
por seus atos. Ao negar sua obra, Frankenstein torna-se fraco, reapolinizado, vítima do
acesso moralista cristão que, enquanto herdeiro da moral socrática, nega Dioniso e,
segundo Bloom, idiotiza Frankenstein. A criatura frankensteiniana é o retorno de
Dioniso, que fora recalcado pelo Iluminismo e seu culto ao racionalismo teórico,
também herdado de Sócrates. Este retorno chama-se Romantismo.

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