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Uma das raras cenas baseada no romance.
contraditoriamente, o introduz na sociedade da desigualdade, pois o ensina a falar e o
inicia nas noções de “bem” e de “mal”: em clara alusão à perda da inocência no
Gênesis. É significativo que, através deste amigo, o monstro adquira o hábito de fumar
– estimulado pela sociedade de consumo – denunciando o lado nocivo do contato social.
O anseio por uma companheira, que a criatura demonstra no livro, é exagerado
no filme, levando-a a declarar que seu único desejo é “ter uma esposa e família”, bem
ao gosto da moral americana dos anos trinta.
A personagem Pretorius também merece destaque. Mais do que o próprio
Frankenstein, ela personifica o cientista maléfico e insano, claramente inspirado em
personagens do cinema expressionista alemão, como Dr. Caligari, de Robert Wise
(1920) e Dr. Mabuse, de Fritz Lang (1928). Quanto a Lang, o grande cineasta do
Expressionismo alemão, tanto a ambientação do laboratório do Dr. Pretorius, quanto sua
criatura (a pretensa “noiva” do monstro) remetem – por suas afinidades estilísticas e
temáticas – ao seu Metrópolis: antológico pioneiro da ficção científica cinematográfica.
Este narra, em síntese, a história de um robô que assume a forma da linda e submissa
escrava Maria com a finalidade de enganar seus companheiros escravos, que se haviam
rebelado.
É notável como Whale consegue, em “The bride”, reunir numa mesma
produção tanto o marco literário quanto o cinematográfico da ficção científica. O filme
(que a crítica considera barroco, por sua estética de luz e sombras) poderia ser definido
como um “expressionismo hollywoodiano”. O cinema expressionista é, em geral, mais
relacionado ao gótico do que à ficção científica. Se considerarmos que ambos os
gêneros de alguma forma rompem com a realidade ordinária e buscam – pela magia ou
ciência – transcendê-la, torna-se compreensível a associação popular de Frankenstein ao
sobrenatural. Tal fato talvez designe um sintoma: o de que nos tempos atuais – tempos
de energia atômica – a ciência suscita mais o sentimento do terror gótico do que o da
eufórica confiança moderna. Ademais, não esqueçamos de que o titã Prometeu, fonte
arquetípica de Frankenstein, possuía o dom de prever o futuro podendo, portanto, ser
considerado o “patrono” tanto das artes divinatórias como da ficção científica,
revelando a filiação mítica e trágica da ciência.
Finalmente, ressalto que Frankenstein, em função de seu arrependimento, não é
visto no filme de Whale como um cientista perverso. Este papel fica exclusivamente
para o Dr. Pretorius, com o qual o monstro, já “degenerado”, se identifica. Isto é
evidenciado na seqüência final quando, após ser rejeitado pela tão ansiosamente
esperada companheira, ele põe fogo no laboratório e salva seu criador. A Dr. Pretorius,
no entanto, não permite que escape e lhe diz “we two belong dead” 3, decretando, assim,
a própria morte, como se, num inesperado retorno à sua natureza originalmente pura,
puna-se por sua “degeneração”.
Associo a salvação de Frankenstein por sua criatura – introduzida por Whale –
ao que aconteceu ao Fausto de Goethe. Tanto o monstro quanto os anjos que salvam
Fausto desempenham a função de deuses “ex-machinas”, aproximando ainda mais os
dois (convenientemente) arrependidos cientistas.
Apesar de, também no filme, o nome “Frankenstein” referir-se ao cientista e
todos referirem-se à criatura como “o monstro”, há um momento da trama, exatamente
o que dá título ao filme, no qual Dr. Pretorius refere-se à nova criatura como “a noiva de
Frankenstein”. Frase algo ambígua, pois tanto pode significar a noiva da criatura criada
por Frankenstein – caso no qual palavra noiva seria usada para diferenciar-se de
monstro, ambos “de Frankenstein” – quanto referir-se (e este parece ter sido o
entendimento geral) ao monstro, mais conhecido como “Frankenstein”. Curiosamente,
mesmo quando esta apropriação do nome do criador pela criatura não aparece no
enredo, a associação do nome do cientista ao monstro prevalece. É o caso de
Frankenstein Unboud [libertado] (1986), realizado por Roger Corman. O título foi
traduzido no Brasil como “Frankenstein, o monstro das trevas” – reforçando o caráter
gótico, expresso pela locução “das trevas”, e ilustrando a supramencionada denegação
que perpassa vários níveis deste mito. Tal fato contribuiu para que se perdesse a relação
do título original com o Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, o Prometeu libertado
(unbound) de Percy Shelley e com o subtítulo do próprio romance. Ao mesmo tempo,
fez com que o monstro adquirisse traços malignos e aterrorizantes, como prova a
maioria das versões hollywoodianas do mito. Inegavelmente, é a partir do cinema que a
criatura passa a ser definitivamente associada aos monstros góticos (como Drácula e o
Lobisomem) dos filmes de “terror”, gênero cinematográfico dos mais rentáveis.
Julgo que a análise acima de Frankenstein (obra e personagem) confirmou
tratar-se de um mito moderno. Um mito que, como todos os mitos, tem sua origem
talvez em uma lenda, talvez em uma mítica aposta, talvez em um romance, talvez em
outros mitos; não importa, é própria do mito esta incerteza. Mas como todo mito FR
quer ensinar algo: os perigos do individualismo excessivo e do conhecimento científico
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Nós dois pertencemos à morte.
e intervenção humana na natureza? A supremacia do fator estético na modernidade? A
origem de andróides e clones? Que Deus morreu? Penso que, em maior ou menor grau,
todas as alternativas apresentadas são procedentes. No entanto, algumas despertam
especial atenção: as que nos advertem que, desde Prometeu, Pandora, Adão e Eva, a
curiosidade tem-se revelado trágica. Frankenstein, mais do que condenar, leva-nos a
refletir sobre a real dimensão do saber humano e suas conseqüências. Tal saber torna-se
ainda mais delicado em um universo no qual Deus está morto e revela, como constata o
mitólogo Tarcísio Moura (1988, p. 50), que a ciência “só destrói um mito criando outro:
o de si mesma”.