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A influência e a crítica de Lukács na sociologia da cultura de José Guilherme Merquior

Kaio Felipe1

1. Introdução
Em seu artigo Cultura marxista, publicado em 1983 no Jornal do Brasil, o ensaísta e
diplomata José Guilherme Merquior (1941-1991) comenta sobre a influência das idéias marxistas
na iniciação intelectual da “geração 1960”. Em tom bem-humorado, o autor alega que o marxismo
significava, “pelo menos no Rio [de Janeiro], duas coisas: estética e livros em italiano2” (Merquior,
1983, p. 196). O que mais interessava a jovens universitários como ele e seu amigo Leandro Konder
(1936-2014) era “a teoria da cultura do marxismo ocidental (...), com Lukács e Benjamin à frente”
(Ibidem, p. 196). Em muitos casos (como o dele próprio) o interesse por tais autores não se devia ao
fato de serem marxistas, “mas por soarem tão „cultura‟, tão sofisticados e vagamente heréticos,
dentro da tosca tradição marxista nesses domínios” (Ibidem, p. 196).
O filósofo e crítico húngaro Georg Lukács (1885-1971), um dos fundadores do marxismo
ocidental 3, foi de fato uma grande influência para essa “geração 1960” de intelectuais brasileiros.
Konder e Carlos Nelson Coutinho (1943-2012) organizaram as primeiras obras de Lukács
publicadas no Brasil, dentre elas Ensaios de Literatura (1965) e Realismo Crítico Hoje (1969).
Gunter Karl Pressler afirma em Benjamin, Brasil (2006) que também Luiz Costa Lima (1937) e
Roberto Schwarz (1938) foram fortemente influenciados por Lukács (cf. Pressler, 2006, p. 101).
No caso específico de José Guilherme Merquior, Pressler chega a rotulá-lo como um
“conservador esclarecido e „lukacsiano‟” (Ibidem, p. 112), argumentando que Lukács seria uma das
principais bases filosóficas e teóricas de Merquior (cf. Ibidem, p. 97). Nesse sentido, obras como
Formalismo e Tradição Moderna (1974) estariam marcadas por uma análise lukacsiana da
alienação na sociedade de massa. Entre as décadas de 70 e 80, José Guilherme, de acordo com
Pressler, “encontrou em Lukács aplicações críticas sobre a temática da alienação, mas „comprou‟ o
anti-modernismo” do crítico húngaro (Ibidem, p. 115).

1
Doutorando em Sociologia e Mestre em Ciência Política pelo IESP/UERJ. E-mail: kaiofelipe@iesp.uerj.br
2
A propósito, Merquior, Konder e outros jovens intelectuais brasileiros dos anos 1960 liam esses autores em italiano
porque, como não dominavam a língua alemã, recorriam às traduções publicadas na Itália, as quais, de acordo com José
Guilherme, contavam “com prefácios e introduções da melhor categoria, assinados por Paolo Chiarini, Renato Solmi e
outros „relações públicas‟ desse quilate.” (Ibidem, p. 197)
3
Vertente do pensamento marxista caracterizada pela epistemologia humanística (isto é, a adoção de uma abordagem
hermenêutica e a crítica do naturalismo cientificista), pelo forte investimento na crítica cultural (tanto da arte erudita
quanto da cultura de massa) e pelo ecletismo conceitual. (cf. Merquior, 1987, p. 19) Na tradição do marxismo ocidental
há uma mescla das análises de Marx (1818-1883) com a filosofia de Hegel (1770-1831) e, no caso da Escola de
Frankfurt, com a sociologia de Georg Simmel (1858-1918) e Max Weber (1864-1920) (cf. Vandenberghe, 2012, p. 81).
Dentre os principais “marxistas ocidentais” podem ser citados, além de Lukács, Antonio Gramsci (1891-1937), Max
Horkheimer (1895-1973), Herbert Marcuse (1898-1979) e Theodor Adorno (1903-1969).
O propósito deste ensaio é averiguar se estas qualificações feitas por Gunter Pressler a
Merquior são consistentes. Pretendo responder a duas perguntas: até que ponto Merquior foi
influenciado por Lukács, isto é, em quais posições (tanto em estética quanto em sociologia da
cultura) ambos convergem? E quais são suas principais críticas e divergências em relação ao
pensador húngaro?
No próximo capítulo apresento um breve sumário das posições estéticas de Georg Lukács,
concentrando-me naquelas que são incorporadas ou criticadas por José Guilherme. Nos capítulos
seguintes pretendo analisar, em ordem cronológica, ensaios em que Merquior adota uma abordagem
lukacsiana, como Razão do Poema (1965), Contradições da vanguarda (1965) e Formalismo e
Tradição Moderna, além de escritos em que faz uma avaliação crítica de Lukács: Arte e Sociedade
em Marcuse, Adorno e Benjamin (1969), História de uma Classe de Inconsciência (1980) e O
Marxismo Ocidental (1986).

2. Do romantismo anticapitalista ao realismo socialista: as transformações no


pensamento estético de Lukács
A trajetória intelectual de Georg Lukács é marcada por drásticas rupturas, mas ao mesmo
tempo por um constante busca por um sentido transcendental. É possível delimitar pelo menos
quatro fases do pensamento lukacsiano: o neo-idealismo kierkegaardiano de A Alma e as Formas
(1911); a mescla de utopismo russófilo, Hegel e sociologia à la Simmel e Weber em A Teoria do
Romance (1916); o marxismo hegeliano com toques messiânicos de História e Consciência de
Classe (1923); e, a partir da década de 1930, a combinação entre marxismo ortodoxo e
conservadorismo estético em obras como O Romance Histórico (1938) e Realismo Crítico Hoje
(1957).
Em Sobre a Essência e a Forma do Ensaio, prefácio de A Alma e as Formas, Lukács
argumenta que, enquanto na ciência são os conteúdos que agem sobre nós, na arte são as formas; “a
ciência nos oferece fatos e suas conexões, a arte, por sua vez, almas e destinos” (Lukács, 2008, p.
106). As formas são como uma revelação, a conciliação da existência essencial com a existência
empírica, “o momento místico da união do exterior com o interior” (Ibidem, p. 111).
Na modernidade, porém, as formas não estão dadas de maneira imediata nem na arte, nem na
existência cotidiana. No primeiro caso, a conciliação da vida concreta e os valores últimos não pode
mais ser efetuada pelo próprio artista, mas sim pelo crítico/ensaísta, que “sempre fala das questões
últimas da vida, porém sempre no tom de quem falasse apenas de quadros e livros” (Ibidem, p.
112). Já no âmbito da existência, ensaios como O despedaçamento da forma ao chocar-se com a
vida alegam que atitudes como a de Kierkegaard (1813-1855), que buscou, a partir de um gesto
(entendido aqui como “decisão”), impor uma forma à vida, dar um “salto” (cf. Machado, 2004, p.
34), também estariam condenadas ao malogro. No último ensaio, A Metafísica da Tragédia, Lukács
parece apostar na resignação heróica, na aceitação da inevitável absurdidade da vida como destino
(cf. Vandenberghe, 2012, p. 347-348).
Escrita durante a Primeira Guerra Mundial, A Teoria do Romance revela um espírito menos
soturno e trágico que o de A Alma e as Formas, porém continua marcada por um “estado de ânimo
de permanente desespero com a situação mundial” (Lukács, 2009, p. 8), flertando com o
“anticapitalismo romântico”, isto é, de uma hostilidade cultural pela sociedade liberal-burguesa (cf.
Ibidem, p. 16). Há também um tom mais utópico; não por acaso, o propósito original deste ensaio
era ser a introdução de uma exegese histórico-filosófica da obra de Dostoiévski (cf. Tertulian, 2008,
p. 105), o qual Lukács considerava que havia esboçado em seus romances a possibilidade de um
novo mundo.
A Teoria do Romance apresenta as conseqüências estéticas da crise da modernidade, da
decadência do Ocidente: o solo transcendental da forma romanesca é um mundo reificado, sem
alma. Estaríamos, portanto, vivendo numa época em que não é mais possível escrever epopéias,
pois o indivíduo perdeu seus laços com a comunidade (sendo assim, a arte já não tem o caráter
imanente e orgânico que possuía, por exemplo, na Grécia Antiga), nem tragédias, porque o
“filisteísmo cultural” do mundo das convenções burguesas impede que o drama evoque algum
sentido transcendental que impeça a crescente sensação de anomia e alienação dos indivíduos. O
romance, portanto, é expressão do desabrigo transcendental, é “a epopéia do mundo abandonado
por Deus” (Lukács, 2009, p. 89); por ser uma construção “problemática”, emblema de uma
modernidade que perdeu o sentido da vida, a forma romanesca é também marcada por uma
dissonância: por um lado há constatação da nulidade da ação humana e por outro há um vislumbre
de reconciliação – ainda que problemática – entre atividade e contemplação, entre o indivíduo e o
mundo (cf. Silva, 2006, p. 89).
Na segunda parte deste ensaio, Lukács formula uma tipologia da forma romanesca,
postulando que cada uma delas tenta resolver à sua maneira a relação entre alma e mundo: o
idealismo abstrato, em que o herói luta em nome dos valores que a sua época renega, sendo que,
nessa distância na relação entre mundo objetivo e subjetivo, revela-se uma diferença em relação ao
equilíbrio e a “saúde” da epopéia (vide Dom Quixote, de Cervantes [1547-1616]); o romantismo da
desilusão, marcado pelo refúgio na vida interior diante da impossibilidade de se contentar com o
mundo das convenções (ex.: A Educação Sentimental, de Flaubert [1821-1880]); o romance de
formação, uma tentativa de síntese a partir da auto-limitação do protagonista, da “reconciliação do
indivíduo problemático, guiado pelo ideal vivenciado, com a realidade social concreta” (Lukács,
2009, p. 138), tal como ocorre no Wilhelm Meister de Goethe (1749-1832); por fim, a extrapolação
das formas sociais de vida, com romances que repudiam as convenções da civilização ocidental,
mas também, de acordo com o pressentimento messiânico de Lukács, sugerem uma perspectiva de
transformação, “proclamam a chegada do novo”, rompendo com a “época de perfeita
pecaminosidade” que é o próprio habitat do romance (Ibidem, p. 160-161) – eis o caso das obras de
Tolstoi (1828-1910) e principalmente Dostoiévski (1821-1881).
A Teoria do Romance possui forte inspiração teórico-metodológica nas ciências do espírito4; a
análise lukacsiana da evolução das formas literárias visa a historicizar conceitos como a “tragédia
da cultura” de Simmel e o “desencantamento do mundo” de Weber (cf. Vandenberghe, 2012, p.
353-354). Outra referência central para este ensaio é Hegel, pois com ele Lukács compartilha a tese
de que “o nascimento do sujeito reflexivo e o desencantamento do mundo, assim como a cisão da
interioridade do indivíduo e da exterioridade da sociedade são processos correlativos.” (Ibidem, p.
355) O próprio autor reconhece a influência hegeliana em prefácio escrito em 1962: “Que eu saiba,
(...) é a primeira obra das ciências do espírito em que os resultados da filosofia hegeliana foram
aplicados concretamente a problemas estéticos” (Lukács, 2009, p 11).
História e Consciência de Classe, uma compilação de ensaios sociopolíticos e filosóficos
escritos após sua conversão ao marxismo, não chega a tratar diretamente de cultura e arte; porém, a
auto-crítica que lhe segue na década de 30 “corresponde a uma guinada política espetacular no
pensamento estético de Lukács” (Jimenez, 1999, p. 314). O pensador húngaro aposta não mais nas
“vanguardas ocidentais que se comprazem na degradação do capitalismo” nem no “romantismo
revolucionário que se satisfaz beatificamente com o retrato idílico dos heróis proletários” (Ibidem,
p. 314): Lukács passar se ancorar na teoria do reflexo, segundo a qual a arte tem como tarefa
realizar a imagem da realidade tal qual ela se reflete na consciência humana:
Esta teoria do reflexo, em Lukács, não significa que se deva copiar
minuciosamente a realidade para chegar a uma figuração ingênua e
esquemática (...). A realidade refletida não é um clichê fotográfico; é uma
realidade transfigurada pela consciência dos homens e alimentada por sua
imaginação. O artista autenticamente realista constrói a realidade a partir de
um detalhe, de um elemento típico, particular, para chegar ao essencial, à
totalidade (Ibidem, p. 315).
Os ensaios O Romance como Epopéia Burguesa (1935) e O Romance Histórico (1938)
apresentam uma nova visão da forma romanesca em relação à defendida em A Teoria do Romance.
Se antes Lukács argumentava que o romance tinha elementos dramáticos, pois representava a luta
do indivíduo contra a sociedade em busca de valores autênticos, na década de 30 o autor passa a
aproximá-lo mais da épica. Embora ainda reconheça que o romance como forma “é a epopéia de
4
Wilhelm Dilthey (1833-1911) propôs um dualismo epistemológico entre: I) as “ciências da natureza”, que tratam da
natureza não criada pelo homem, objetivam a explicação dos fenômenos a partir do seu exterior e recorrem ao estudo
de segmentos isolados e atomizados do real; II) as “ciências do espírito”, as quais se ocupam do mundo histórico criado
pelo homem, adotam a compreensão interna das obras humanas e a apreensão integradora das formas de vivência (cf.
Cohn, 2003, p. 22; grifos no original). Entre os autores filiados a esta concepção teórica estão Rickert (1863-1936),
Simmel e Weber.
uma sociedade que destrói a possibilidade da criação épica”, Lukács afirma que “o romance abre
caminho para um novo florescimento da épica, (...) gerando possibilidades artísticas novas que a
poesia homérica ignorava.” (Lukács, 2011a, p. 202) O caráter dramático da composição de algumas
obras de Balzac (1797-1850) e Dostoiévski não seria contraditório, “pois não se pode imaginar um
drama que contenha uma riqueza de detalhes mediadores tão ramificada como aquela que tem lugar
no romance.” (Ibidem, p. 212)
Lukács sempre foi refratário ao esteticismo (isto é, à idéia da “arte pela arte”), mas se nos
ensaios de A Alma e as Formas isso decorria de um moralismo em prol da autenticidade, de uma
ética de valores absolutos, na fase marxista de sua produção intelectual há outros elementos
heterônomos à arte que guiam sua interpretação: o método sociológico e a ideologia política. O
primeiro deles orienta o seu conceito de romance histórico, o qual trata de “figurar de modo vivo as
motivações sociais e humanas a partir das quais os homens pensaram, sentiram e agiram de maneira
precisa, retratando como isso ocorreu na realidade histórica.” (Idem, 2011b, p. 60) Tal tipo de
narrativa pretende elucidar conflitos sociais, políticos e psicológicos a partir de uma representação
histórica dos mesmos. Em suma, “significa o coincidir e o entrelaçar-se – condicionados por uma
crise histórica – das crises que se abatem sobre o destino pessoal de uma série de homens.” (Ibidem,
p. 58)
Por sua vez, o viés político que marca suas concepções estéticas aparece, por exemplo, em sua
concepção teleológica da literatura, ao defender o realismo socialista: no período de construção do
socialismo, a tarefa do romance seria figurar concretamente a “astúcia” do desenvolvimento
histórico, a “luta pelo homem novo e pela erradicação de qualquer forma de degradação do
homem.” (Idem, 2011a, p. 239). Na introdução de Realismo Crítico Hoje (1957), essa politização da
arte é explícita:
Desde as jornadas de junho de 48 – durante as quais se assistiu ao
esmagamento do proletariado parisiense – o problema fundamental da época
em que vivemos é o combate travado entre o capitalismo e o socialismo. É
evidente que também a literatura e a teoria literária devem refletir esta
situação (Idem, 1969, p. 27; grifos meus).
Uma das principais teses da fase marxista de Lukács consiste na defesa do realismo e a crítica
das vanguardas. Em A concepção do mundo subjacente à vanguarda, um dos ensaios de Realismo
Crítico Hoje, o pensador húngaro argumenta que os fatores que condicionam verdadeiramente o
estilo duma obra não são os elementos formais (no sentido “formalista” do termo - por exemplo,
referindo-se às técnicas de escrita), mas sim “as imagens de mundo que os escritores comunicam
através de suas obras, (...) as atitudes que os mesmos tomam em relação à sua própria apreensão do
real” (Ibidem, p. 36). Sendo assim, a essência mais profunda de uma obra literária exprime-se pela
resposta que ela dá à pergunta: “O que é o homem?”
De acordo com o Lukács, as linhagens realista e vanguardista dão respostas bem distintas a
essa indagação. Os autores associados ao realismo entendem o homem como animal social e
compõem personagens com “enraizamento concreto no seio de relações humanas e sociais”
(Ibidem, p. 37); já os ligados à vanguarda literária consideram que o ser humano, o indivíduo no
sentido genérico é “essencialmente solitário, desligado de todas as relações humanas, e a fortiori,
social, ontologicamente independente” (Ibidem, p. 37). Enquanto a solidão na literatura realista
seria uma situação provisória, um certo destino social, para “os pensadores e escritores da
decadência”, esta solidão corresponde, “de maneira universal e eterna, à „condição humana‟”
(Ibidem, p. 38). Desta forma, o mundo interior do homem é reduzido a uma subjetividade abstrata, e
conseqüentemente há uma dissolução dos traços da personalidade humana, à qual corresponde “um
corte radical entre a literatura e o mundo” (Ibidem, p. 44).
Sob essa ótica, o pensador húngaro afirma que expoentes da literatura de vanguarda como
Franz Kafka (1883-1924), Robert Musil (1880-1942) e T. S. Eliot (1888-1965) promoviam uma
dissolução do real na criação artística, a partir de uma concepção do homem como “ser desprovido
de qualquer unidade objetiva, simples seqüência incoerente de fragmentos instantâneos, extraídos
de experiências vividas que são, por definição, tão impenetráveis para o indivíduo como para outros
homens” (Ibidem, p. 46). Mesmo Kierkegaard, cujo “proto-existencialismo” tanto havia
influenciado Lukács em A Alma e as Formas, agora é visto como “um dos pais e um dos clássicos
da decadência moderna”, pois teria concebido que “cada homem vive num incógnito perfeitamente
impenetrável a outros homens” (Ibidem, p. 47).
Lukács ainda atesta uma continuidade entre o naturalismo e a literatura de vanguarda,
utilizando a metáfora biológica da patologia: se entre os naturalistas o elemento doentio era simples
ornamento estético, “mancha de cor viva no quadro cinzento de todos os dias”, para os
vanguardistas “tornou-se protesto moral contra um mundo ignóbil”, levando-os a uma opção
estética e existencial pela “fuga para a doença” (Ibidem, pp. 50-51). Num sentido sociológico, a
vanguarda não passaria de símbolo do declínio da burguesia capitalista (cf. Jimenez, 1999, p. 316);
para Lukács, os escritores de sua época deveriam fazer mais do que simplesmente refletir o
desespero e a insatisfação da sociedade burguesa tardia; caberia a eles revelar as possibilidades
positivas e levar o socialismo em conta (cf. Eagleton, 2011, p. 95).
A literatura realista antiga, “mesmo quando submetia à mais dura crítica o mundo que se
oferecia à sua representação, figurava-o espontaneamente como uma realidade unificada e
necessariamente ligada ao homem.” (Lukács, 1969, p. 65) Já no século XX, os adeptos do realismo
crítico (ou seja, feito por escritores burgueses, mas progressistas – por exemplo, Thomas Mann
[1875-1955]) – até reservam algum lugar à decomposição de certos elementos (por exemplo, a
“subjetivação” e a “autonomização” do tempo), mas apenas “como aspectos que permitissem
caracterizar melhor o presente e de tal maneira que, precisamente através deles, a unidade, antes
espontânea, se torna consciente.” (Ibidem, pp. 65-66) Para o Lukács marxista, o realismo “é um
método, o caminho para se chegar a verdade e, também, o critério para se julgar a produção
artística” (Frederico, 1997, p. 34; grifo no original).
Em suma, é possível afirmar que as primeiras obras de Lukács são marcadas por uma
melancólica interpretação das condições de possibilidade da arte em meio à decadência moral do
mundo moderno, levando-o a uma interpretação ética da evolução dos gêneros literários, sendo o
romance o retrato de um mundo sem Deus, a era da alienação absoluta; e a solução para esse
impasse estético também passa pela ética, consistindo num apelo utópico à edificação de um novo
mundo. Após sua conversão à causa comunista, Lukács impregnou sua crítica literária e sua estética
de objetivos políticos e de concepções sociologizantes, estabelecendo o estilo realista tanto em sua
vertente “crítica”, como contribuição da burguesia progressista para o retrato da realidade em sua
totalidade (isto é, em sua forma integral, perfeita em si mesma) quanto na propriamente
“socialista”, tendo em vista a literatura como expressão do processo de construção de um novo
homem numa sociedade sem classes.

3. A influência (e o afastamento) de Lukács na obra de Merquior nas décadas de


1960 e 1970
Razão do Poema, primeiro livro de José Guilherme Merquior, foi publicado em 1965,
contendo ensaios sobre crítica e estética escritos entre 1961 e 1964. Há pelo menos cinco ensaios
desta obra na qual é possível rastrear ecos lukacsianos. O primeiro deles é Crítica, razão e lírica
(1962): para sustentar sua afirmação de que a lírica contemporânea tem uma abertura para o social
(cf. Merquior, 2013, p. 195), o autor recorre, dentre outros autores, a Lukács, a quem atribui o
reconhecimento de que a literatura, mesmo se mantendo como atividade autônoma e específica, não
existe sem realizar-se na direção de uma necessária finalidade, a qual é justamente sua grandeza: “a
profundidade e a riqueza das suas relações com a realidade-afetiva” (Lukács in Merquior, 2013, p.
200).
Em Notas Estéticas (1963), Merquior faz a primeira alusão a um princípio da estética
lukacsiana que muito inspirou a sua obra crítica: “aquilo que é social na obra de arte é a forma”
(Merquior, 2013, p. 222). A função da arte é ser linguagem, “isto é, transposição ao nível do
domínio, da clarificação e da consciência – daquelas formas sociais que constituem a bruta
experiência do cotidiano” (Ibidem, p. 223). Para José Guilherme, a arte, especialmente a literatura,
realiza um trabalho filosófico: “por ela, a sociedade se conhece a si mesma” (Ibidem, p. 223). Nas
Notas Estéticas o autor também se aproxima de Lukács ao apontar a existência de dois Ocidentes –
o da tradição humanista e o da decadência contemporânea; sobre este, afirma: “haverá coisa mais
anti-ocidental que o niilismo?” (Ibidem, p. 227) Por fim, o autor adere à critica lukacsiana à estética
de Nietzsche (1844-1900), pois também discorda da idéia de que a arte deve se basear na estilização
e na exemplaridade, isto é, no deleite estético e na “exaltada admiração pelo moralismo e pela
disciplina clássica” (Ibidem, p. 228). Merquior alega que na Grécia, cujo ideal dionisíaco de arte é
evocado por Nietzsche em O Nascimento da Tragédia, “a arte não „embelezou‟ a vida, senão no
sentido de que era a própria vida que se aperfeiçoava sempre, (...) porque nunca deixou de se
examinar e de se discutir” (Ibidem, p. 228).
O curto ensaio Responsabilidade social do artista (1963) parte do pressuposto que a arte é
uma forma de conhecimento, o que por si só implica responsabilidade. Aqui a influência de Lukács
aparece mitigada por uma ênfase menos na política do que no respeito à autonomia estética: José
Guilherme concebe a arte como reflexão e reflexo; não importa a ideologia, mas sim se o artista vê
e compreende a realidade como artista. Desta maneira, a obra de arte serve a uma prática, porém na
qualidade de teoria; sendo assim, a arte já é, por si mesma, uma responsabilidade social, e “a função
estética reveste essencialmente uma condição moral.” (Ibidem, p. 233)
Coppelius ou a vontade alienada (1964) aproxima-se das concepções estéticas do pensador
húngaro devido à sua leitura sociológica do conto fantástico O Homem de Areia, de Hoffmann
(1776-1822). Ao se deparar com a postura ambígua do narrador diante do comportamento
viciosamente “alienado” do protagonista Natanael, o qual é assombrado pela visão de um mágico
que teria matado seu pai e não cede aos apelos “racionalistas” de sua amada Clara, Merquior
conclui que, mesmo que a visão do autor fosse liberal e progressista, seu estilo não poderia ser
iluminista: como no contexto prussiano do início do século XIX a burguesia era “uma classe débil e
hesitante, pronta a compor-se para uma mesquinha sobrevivência, Hoffmann criou um estilo do
imaginário para esse estado de espírito”, recorrendo ao “chiaroscuro das sombras e luzes de um
mundo dinâmico” (Ibidem, p. 178).
Em Estética e Antropologia (1964), último ensaio de Razão do Poema, nota-se um
afastamento de José Guilherme em relação não só a Lukács, mas ao marxismo em geral. Neste texto
há uma crítica da ontologia essencialista da estética marxista, isto é, de seu humanismo a-histórico:
Por trás de toda a estética marxista, mesmo esparsa e esboçada como ela é,
existe um “princípio unificador” que é a preocupação com a integridade do
homem. (...) A defesa do homem, a salvaguarda de sua verdadeira natureza
constituíam o motivo inspirador de todo grande realismo. (...) A preocupação
com uma integridade humana, denominador comum a toda grande arte para
o marxismo, é uma idéia confusa. Examinada de perto, sugere contradição
com a própria índole do pensamento de Marx, (...) medularmente historicista
(Ibidem, pp. 241-245).
Leandro Konder corrobora esse argumento de que Razão do Poema é o livro que retrata tanto
a aproximação quanto a ruptura de José Guilherme com o marxismo:
Razão do poema (...) juntava artigos de inspirações mais ou menos
lukacsiana (como “Crítica, razão e lírica” e “Coppelius, ou a vontade
alienada”) com o ensaio “Estética e antropologia”, no qual pela primeira vez
se explicitavam publicamente as dúvidas em relação a Marx (Konder, 2008).
A despeito dessa divergência filosófica, no ensaio As Contradições da Vanguarda (1965),
Merquior ainda mostra posições estéticas relativamente próximas do realismo crítico defendido por
Lukács em sua maturidade. Exemplo disso é quando argumenta que “a crítica essencial dos desvios
da vanguarda se fundamenta na acusação de irrealismo” (Merquior, 1981, p. 84); porém, aponta os
excessos da arte vanguardista (mas não de toda vanguarda; Merquior aprecia Brecht [1898-1957],
por exemplo) e sua defesa do realismo ecoam não só o crítico húngaro, mas também Walter
Benjamin (1892-1940), na medida em que concebe o realismo como atitude literária em que a
observação prevalece sobre a imaginação, visando a exprimir a realidade da vida cotidiana,
“freqüentemente, de forma visionária, fantástica, alusiva e simbólica” (Ibidem, p. 85).
Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin (1969) é a primeira obra em que José
Guilherme faz críticas mais contundentes a Lukács. Elas aparecem em um capítulo no qual compara
as teorias estéticas do húngaro e de Adorno (o qual, diga-se de passagem, também não escapa ileso
do balanço crítico de Merquior). Em primeiro lugar, discorda de sua visão política da arte; em
segundo lugar, alega que “seus tipos ideais são todos construídos à base da ficção realista do século
XIX, onde a presença do sociológico e do político no foco da ação romanesca é uma constante”
(Idem, 1969, p. 71); em terceiro, afirma que “o conceito de tipo emperra a capacidade analítica do
pensamento de Lukács” (Ibidem, p. 71). José Guilherme também vê problemas na tese do Lukács
marxista segundo a qual a representatividade sociológica deveria ser o critério final de apreciação
estética, e o acusa de elaborar noções estéticas “vulnerabilíssimas à miopia do sociologismo, porque
derivadas de uma preocupação extra-literária com a exatidão do reflexo, na obra, das linhas da
realidade histórico-social” (cf. Ibidem, p. 75). Embora reconheça a validez da análise sociológica
(afinal ele próprio a praticava), argumenta que “o que é condenável é a sua versão megalomaníaca,
isto é, o juízo sociologístico.” (Ibidem, p. 78)
Referindo-se às críticas de Lukács a autores supostamente “decadentes” como Flaubert e
Kafka, Merquior afirma que a maior lacuna da teoria lukacisana está em sua incapacidade de
“descobrir e de entender o significado crítico – na área de uma crítica da cultura moderna – das
grandes obras da literatura ocidental desde o segundo Oitocentos aos nossos dias” (Ibidem, p.75;
grifos no original). O autor de Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin também lamenta
que Lukács não consiga ver no radicalismo literário uma “refração cheia de sentido da problemática
do homem contemporâneo” (Ibidem, pp. 76-77). Por fim, critica o normativismo de Lukács, para
quem “o critério decisivo de avaliação da obra é um ideal social: a obra será tanto melhor quanto
mais acompanhe a saúde da sociedade” (Ibidem, p. 82; grifos no original). Em conseqüência desse
acento normativo, em sua fase marxista este autor seria incapaz de conceber a arte “como
verdadeira expressão de uma crise de valores. A arte só reflete o real projetando nele o ideal, isto é,
verdade do Bem.” (Ibidem, p. 83)
José Guilherme Merquior, contudo, poupa o jovem Lukács de maiores ressalvas; além disso,
não deixa de notar que sua obra de juventude muito influenciou Adorno: este filósofo frankfurtiano
“parte da Teoria do Romance, e não do Lukács posterior, para cunhar o conceito da nova ficção
como epopéia negativa” (Ibidem, p. 85; grifos no original).
O trecho a seguir sintetiza a posição de Merquior sobre Lukács no fim da década de 1960:
Georg Lukács é um dos mais eminentes pensadores de nossa época. Mesmo
sem sair do terreno dos seus escritos estéticos, é forçoso reconhecer a
grandeza da sua contribuição teórica. Com ele, a estética marxista ganhou
sistematicidade. Mas isso apenas torna mais melancólico que a sua evolução,
depois da fecundidíssima fase inicial, tenha redundado numa das grandes
vitórias da insensibilidade ante as formas artísticas da tradição moderna. Seu
sociologismo “engagé”, seus tipos representativos-proféticos, são uma
versão sofisticada da velha mania de subordinar a expressão artística a
exigências em que transparece a não menos velha desconfiança moralística
em relação à arte (Ibidem, p. 79).
Uma das obras-primas de José Guilherme Merquior, Formalismo e Tradição Moderna (1974)
não é tão lukacsiano quanto Gunter Pressler sugere; pelo contrário, esta influência é mesclada com a
de vários outros pensadores, como Benjamin, Adorno, Lévi-Strauss (1908-2009) e até Heidegger
(1889-1976); no caso de Adorno, por exemplo, ela aparece no ensaio Kitsch e antikitsch (arte e
cultura na sociedade industrial). De toda forma, há uma menção elogiosa às obras A Alma e as
Formas e A Teoria do Romance no capítulo Érato e Clio: lírica e história no Ocidente moderno.
Sobre a primeira delas, Merquior aproveita para fazer uma comparação desfavorável à fase marxista
do filósofo húngaro:
Lukács já pratica então o sábio lema: „o que é social na obra de arte é a
forma‟ – o qual ele mesmo, após sua conversão ao marxismo, desobedecerá
reiterada e deploravelmente, embora, de certo modo, mais em sua práxis
crítica do que em sua estética (Idem, 2015, p. 102).
Sobre A Teoria do Romance, eis a avaliação de José Guilherme:
Obra consular de toda a crítica formal e anti-formalista de nosso século, A
Teoria do Romance consiste num poderoso contraponto entre elementos
fundamentais da concepção narrativa e determinadas configurações
existenciais da cultura moderna. Neste livro, o caráter audazmente sintético e
especulativo da análise cultural – muito mais próxima da Geistesgeschichte
de Dilthey do que qualquer sociologia empírica – absolutamente não
prejudica sua penetração estética e histórica (Ibidem, p. 102; grifos no
original).
Uma prova de que o jovem Lukács ainda fecundava o pensamento de Merquior é o princípio
metodológico que este autor propõe logo em seguida: “Tudo está em saber ler a história no texto
poético em vez de dissolvê-lo na história” (Ibidem, p. 103; grifos no original).
Neste capítulo foi possível notar que, entre os anos 60 e 70, José Guilherme migrou de uma
simpatia pela defesa do realismo e pelo método sociológico do “velho” Lukács, presente em alguns
ensaios de Razão do Poema, para uma discordância de sua análise excessivamente normativa da
arte; porém, é possível notar uma crescente valorização da fase pré-marxista do pensador húngaro.

4. A avaliação crítica de Lukács em escritos de Merquior dos anos 80


Após cursar seu segundo doutorado em Sociologia na London School of Economics na
segunda metade da década de 70 (o primeiro havia sido em Letras, pela Sorbonne, concluído em
72), José Guilherme Merquior mudou alguns de seus posicionamentos políticos e estéticos; passou a
defender o liberalismo social em política, o racionalismo crítico à la Karl Popper (1902-1994) em
epistemologia e atenuou bastante seu entusiasmo pelas vanguardas no campo da estética. É possível
que seu orientador Ernest Gellner (1925-1995) tenha inspirado essa transição ideológica:
Merquior – estimulado por Ernest Gellner – mobilizou-se numa resoluta
campanha em defesa da razão e do sentido da objetividade, pela democracia
liberal e contra os irracionalismos (entre os quais ele incluía o milenarismo
revolucionário, a paranóia dos fascismos, as religiões psicanalíticas, a magia
surrealista e todas as crenças a que o espírito inglês permaneceu refratário,
conforme expressões utilizadas num dos ensaios de As idéias e as formas)
(Konder, 2008).
No livro citado por Leandro Konder, publicado em 1981, há um artigo intitulado História de
uma classe de inconsciência (1980), cujo pretexto era coincidentemente resenhar uma coletânea de
Lukács organizada por Konder. José Guilherme comenta o itinerário intelectual do crítico húngaro,
mas com uma avaliação inversa à que apresentara em Arte e Sociedade e em Formalismo e
Tradição Moderna: desta vez é a obra de juventude de Lukács que recebe a maior parte das críticas,
enquanto certos aspectos da fase marxista (exceto a obra História e Consciência de Classe, ainda
impregnada do hegelianismo e do messianismo da primeira fase) são vistos num prisma favorável.
Merquior começa o artigo argumentando que desde cedo Lukács é marcado por “uma
acendrada mística da cultura como caminho para o Absoluto. Ao mesmo tempo, identificará essa
fome de absoluto com uma nostalgia da comunidade” (Merquior, 1981, p. 156; grifos no original).
Em seguida, avalia que a “errante necessidade de absoluto” e o “tremendo anelo de autoridade”
(Ibidem, p. 158) do autor de A Alma e as Formas inspiraram o personagem Naphta, de A Montanha
Mágica (1924), romance de Thomas Mann.5 Em seguida o autor vincula a mística messiânica e o

5
José Guilherme Merquior provavelmente baseou-se na obra Main Currents of Marxism, de Leszek Kołakowski (1927-
2009), para fazer esta comparação entre o critico húngaro e o personagem criado Mann: “Lukács is depicted in literature
as the Jesuit Naphta in Thomas Mann's The Magic Mountain: a highly intelligent character who needs authority, finds
it, and renounces his own personality for its sake. Lukács in fact was a true intellectual, a man of immense culture (…),
but one who craved intellectual security and could not endure the uncertainties of a sceptical or empirical outlook. In
the Communist party he found what many intellectuals need: absolute certainty in defiance of facts, an opportunity of
desprezo pela modernidade de Lukács não só com o marxismo ocidental que este ajudou a fundar
com História e Consciência de Classe, mas também com a arte de vanguarda:
...o ânimo soteriológico por trás do messianismo revolucionário do
marxismo ocidental nasceu dos mesmos impulsos românticos e
irracionalistas que motivaram a ruptura da arte moderna com a sociedade
liberal e a civilização industrial. Numa palavra: marxismo ocidental e alto
modernismo europeu são filhos do mesmo caldo de cultura (Ibidem, p.159-
160; grifos no original).
Merquior critica o fato de que categorias como reificação (Simmel) e racionalidade
instrumental (Weber) se transformaram, na primeira obra marxista de Lukács, em “filosofemas
descarnados, despidos de especificação sociológica” (Ibidem, p. 161). Além disso, alega que essa
influência problemática se alastrou pelo marxismo ocidental, em particular na Escola de Frankfurt:
tal vertente seria marcada pela aliança de “filosofia social sem nenhum embasamento histórico-
sociológico com mitos de origem escatológica proclamado por decreto.” (Ibidem, p. 161)
A partir de 1928, entretanto, Lukács rechaça as teses de História e Consciência de Classe,
afastando-se do debate político, e inaugura uma polêmica tanto contra sectarismo da “arte
revolucionária” (a propósito, sua concepção de “realismo socialista” estava longe de ser fiel à
ortodoxia da arte oficial do regime soviético) quanto contra o modernismo literário. Desta vez, José
Guilherme tem uma avaliação favorável do conservadorismo estético – isto é, a valorização do
“cânone ocidental” em detrimento das inovações da arte contemporânea – assumido pelo húngaro:
O anti-vanguardismo do “segundo” Lukács encerra um núcleo teórico de
grande lucidez: a superação daquele extremado rejeicionismo em relação à
cultura liberal-burguesa, que tanto marcara a gnose estética dos
modernismos na Europa. Enquanto o jovem Lukács vituperava a
modernidade social, o Lukács maduro repele o modernismo para aceitar a
modernidade como estágio necessário na evolução da cultura. (...) Com essa
ultrapassagem de seu próprio messianismo sectário, Lukács se tornou um
grande precursor (...) de nossa urgente necessidade de fazer as contas com o
delírio irracionalista de nossa intelligentsia humanística. (Ibidem, p. 163).
É possível notar que a mudança de visão de mundo e de preocupações teóricas de José
Guilherme Merquior altera também a forma como ele se posiciona em relação a Lukács. Se nos
anos 60 e 70 havia empenhado uma defesa do modernismo e uma crítica ligeiramente
“frankfurtiana” da modernidade, agora os pólos se invertem: Merquior se assume um “neo-
iluminista”, em prol das instituições da “tradição moderna” (ciência, economia de mercado e
democracia) e rejeita a Kulturkritik das vanguardas estéticas e filosóficas. Desta forma, a crítica do
irracionalismo6 e da decadência feitas pelo “velho” Lukács é vista numa perspectiva mais favorável.

total commitment that supersedes criticism and stills every anxiety. In his case, too, the commitment was such as to
afford its own assurance of truth and invalidate all other intellectual criteria.” (Kolakowski, 1978, p. 306)
6
Merquior concebe como irracionalismo “o repúdio sistemático aos valores da modernidade social”, “a rejeição
apocalíptica da dinâmica sociológica do mundo moderno – do universo social definido pela progressiva conjunção de
Os temas de História de uma Classe de Inconsciência são desdobrados no capítulo dedicado a
Lukács em O Marxismo Ocidental (1986); é a última e definitiva avaliação de sua obra feita por
Merquior. Este reconhece três méritos em A Teoria do Romance: primeiro a noção de que “a ficção
moderna fervilha de solitários em busca de algo, muitas vezes em luta com seu meio social” (Idem,
1987, p. 102); segundo, a perspicácia do húngaro em perceber que o tempo interior é um elemento
de estruturação nos romances modernos; por fim, a constatação da “posição irônica do autor
onisciente, tão desligado dos heróis quanto da própria sociedade em que vive” (Ibidem, p. 102).
Ao comentar a guinada de Lukács ao marxismo, José Guilherme volta a afirmar que ele
“votou ao comunismo sua semi-trágica, semi-utópica Kulturkritik, sua necessidade mística de
absolutos éticos.” (Ibidem, p. 107) A análise sobre História e Consciência de Classe revela uma
faceta interessante do húngaro – além de decisiva para o desdobramento do marxismo ocidental:
Seu objetivo ostensivo era fornecer uma legitimação filosófica à revolução
bolchevique. (...) No fundo, a política revolucionária era para Lukács pouco
mais que um meio para restauração de uma harmonia cultural há muito
perdida. Acresce que o cultural equivalia ao espiritual; cultura como alta
cultura era um substituto laico da espiritualidade. (...) Cultura, assim
concebida, é tudo menos superestrutura. (...) Indiscutivelmente, o que
Lukács oferece como filosofia da revolução bolchevique merece ser
chamado comunismo-cultura (Ibidem, pp. 118-119; grifos do autor).
A mistura de marxismo e crítica cultural romântica em Lukács, assim como sua argumentação
“apresentada mais por asserção do que por qualquer lógica demonstrativa” (Ibidem, p. 114), tiveram
um efeito deletério no marxismo como heurística sociológica, pois o transformaram em uma “„visão
de mundo‟ carregada de dogmatismo e girando em torno de uma mitologia de consciência de
classe” (p. 132). Baseando-se em Kolakowski, Merquior afirma que a conseqüência imprevista
disso que é que o romantismo e a rejeição da ciência e da indústria (associadas à reificação
capitalista) “deram à obra de Lukács o poder de desvendar a medula da mitologia marxista (...).
Lukács revelou o romantismo oculto do próprio marxismo” (Ibidem, p. 133; grifos meus). 7

técnica e democracia, eficiência e liberdade.” (Merquior, 1983, p. xi) Além disso, o autor vê como irracionalista o
comportamento em seita, a natureza gnóstica (isto é, a pretensão de possuir conhecimentos “superiores”) que certas
vanguardas artísticas e escolas do pensamento (por exemplo, a psicanálise e o próprio marxismo) possuem, imunizando-
se de possíveis críticas e refutações.
7
Eis o trecho que embasou a análise de Merquior: “Despite his intention, his work had the effect of revealing the
mythological, prophetic, and utopian sense of Marxism which had eluded Marx's more scientistic followers. The
blurring of the distinction between descriptive and normative elements is in fact characteristic of the way in which a
myth is apprehended by believers: narration and precept are not distinguished, but are accepted as a single reality. (...)
Marxism is not simply a theory about the world, which can be accepted by anyone whether or not he approves the
values of the political Marxist movement; it is an understanding of the world that can only be enjoyed within that
movement and in political commitment to it. Marxism in this sense is invulnerable to rational argument: outsiders
cannot understand it correctly, and therefore cannot criticize it effectively. Thus, as Lukács showed, the Marxist
consciousness obeys the epistemological rules appropriate to a myth” (Kolakowski, 1978, p. 298; grifos no original).
José Guilherme termina sua avaliação crítica novamente reconhecendo que, a partir dos anos
30, o crítico húngaro deixou, em grande parte, de ser um marxista ocidental. Embora tenha
conservado inúmeros traços idealistas, como seu apego à totalidade, Lukács “abandonou a posição
de Kulturkritik exacerbada – tanto assim que descobriu inúmeras virtudes no passado capitalista,
distinguindo, em matéria de arte e cultura burguesas, boas e más tradições, tradições progressistas e
tradições reacionárias” (Ibidem, p. 134). Por outro lado, Merquior não concorda com a forma pela
qual Lukács equacionou o problema do irracionalismo; discorda, por exemplo, da associação “fácil”
entre Nietzsche e o fascismo que há em A Destruição da Razão (1952): “culpa por associação não é
critério para descartar teorias, seja de que espécie forem” (Ibidem, p. 135). Talvez Lukács devesse
enfrentar o irracionalismo que há não só no pensamento “burguês”, mas também no marxista.
Nota-se, portanto, que tanto em História de uma Classe de Inconsciência quanto em O
Marxismo Ocidental há críticas ao jovem Lukács (principalmente à obra História e Consciência de
Classe), pelo seu legado irracionalista e messiânico, e uma defesa do Lukács marxista “ortodoxo”,
ainda que restrita ao conservadorismo estético, à rejeição da arte de vanguarda e à luta contra o
irracionalismo filosófico.

5. Conclusão
Ao longo deste ensaio busquei demonstrar que José Guilherme Merquior se aproxima de
Lukács em pelo menos três pontos de vista: em primeiro lugar, sempre concordou com a tese de que
aquilo que é verdadeiramente social na arte (e, em particular, na literatura) está na forma e não no
conteúdo; em segundo lugar, a partir de 1980 concorda com a crítica lukacsiana à arte moderna pela
rejeição da mesma à modernidade, além de também preferir o teor crítico do realismo (entendido
aqui de forma ampla, não se restringindo ao “crítico” ou ao “socialismo”) em vez do
experimentalismo muitas vezes estéril da arte de vanguarda; em terceiro, compartilha do
diagnóstico de que o irracionalismo é um elemento central na crise da arte e cultura modernas.
Merquior diverge de Lukács em vários pontos, dos quais destaco três: primeiro, em seus
ensaios dos anos 60 e 70 é recorrente à crítica do sociologismo e da politização da arte que marcam
a fase marxista do pensador húngaro; segundo, em seus textos sobre Lukács na década de 1980 há
uma rejeição da Kulturkritik romântica e anticapitalista que marca a obra de juventude de Lukács,
assim como seu legado problemático para o marxismo ocidental; por fim, Merquior acredita que
não se resolve o problema do irracionalismo simplesmente associando-o à decadência da sociedade
liberal-burguesa, pois os elementos utópicos, dogmáticos e místicos do próprio pensamento
lukacsiano também podem ser encarados como irracionalistas.
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