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PROCESSOS DE COMPOSIÇÃO DA PERSONAGEM NA

FICÇÃO GÓTICA: AS FIGURAÇÕES DO MONSTRO


HUMANO
Júlio França (UERJ)

1. DO GÓTICO COMO SUBGÊNERO NARRATIVO MODERNO


O Gótico é uma tradição ficcional moderna que codificou, através de seus temas
e de suas figuras recorrentes, de suas convenções e de seus maneirismos, um modo
narrativo de figurar e de expressar os medos e as ansiedades de uma época e de um
lugar. O que chamamos de narrativa gótica é, portanto, a consubstanciação de uma
visão de mundo desencantada em uma forma artística altamente estetizada,
convencionalista e simbólica. Tal concepção implica, ainda, o entendimento de que a
poética gótica não é – apenas – um estilo de época dos séculos XVIII e XIX. As
reelaborações da maquinaria gótica estendem-se, continuamente, por toda a era
moderna, até nossos dias, quando ainda é uma forma pujante de expressar e representar
os horrores do mundo contemporâneo (cf. BOTTING, 2014).
Muito embora os elementos góticos tenham sido pulverizados na ficção e na
cultura ocidental, é possível falar em três traços fundamentais da estrutura narrativa e da
visão de mundo góticas. São eles: o locus horribilis, a personagem monstruosa e a
presença fantasmagórica do passado. Obviamente, tais elementos não são, por si só,
exclusivos do Gótico, mas podem ser descritos como seus aspectos fundamentais
quando aparecem em conjunto e sob o regime de um modo narrativo que emprega
técnicas de suspense para compor enredos voltados a produzir efeitos estéticos
negativos – como o sublime terrível, o grotesco, o art-horror etc.
O presente artigo tem por objetivo analisar um desses elementos, a personagem
monstruosa e, mais especificamente, a sua forma mais recorrente, desde o Gótico
setecentista até o cinema de horror do século XXI: o monstro humano.

2. DA PERSONAGEM MONSTRUOSA E SEU SENTIDO MIMÉTICO


A personagem monstruosa é um elemento fundamental não apenas da estrutura
narrativa, mas desempenha também um papel determinante para os sentidos miméticos
do Gótico. Isso porque monstruosidades ficcionais podem ser entendidas como
constructos, nos quais se corporificam, metaforicamente, os medos, os desejos, as
ansiedades e as fantasias de uma época e de um lugar. Não raramente, o monstro torna-
se a diferença encarnada: são os atributos do “Outro” – ou seja, diferenças culturais,
políticas, raciais, econômicas, sexuais que são figuradas na constituição do ser
monstruoso (cf. COHEN, 1996).
A efetiva ameaça representada pelos monstros ficcionais para o leitor não é,
obviamente, física, mas cognitiva. Os monstros são seres híbridos, intersticiais, muito
comumente apresentados como indescritíveis ou inconcebíveis, pois não podem ser
identificados ao que se entende por natural ou normal em uma cultura. Eles podem
mesmo criar tensões e instalar crises em nossas categorias de entendimento do mundo
(cf. CARROLL, 1999).
Os monstros são, sobretudo, indicadores de demarcações sociais, e reforçam
códigos culturais e morais, além de assinalar as fronteiras das práticas e
comportamentos que são socialmente aceitáveis. Entretanto, justamente por sua íntima
ligação com práticas interditas, o monstro também seduz, por contemplar fantasias
escapistas e desejos socialmente reprimidos. Em outras palavras, muito do que tememos
no comportamento do monstro é aquilo que desejaríamos fazer caso não fôssemos
proibidos. E nesse jogo entre a repulsa e a atração repousa o fascínio do monstro gótico.

3. DA PERSONAGEM MONSTRUOSA: SUA FUNÇÃO NARRATIVA NO


GÓTICO
O monstro, na narrativa gótica, pode assumir inúmeras formas. Ele é capaz de
inspirar reações que vão desde os extremos da repugnância física (Håkan transformado
em vampiro, em Deixe ela entrar (2004), de Lindqvist) à repulsa moral (Patrick
Bateman, em Psicopata Americano (1991), de Easton Ellis); do horror da presença
incontornável (Pinhead, de Hellraiser (1987), de Barker) à angústia da existência
presumida (a criatura de O Horla (1887), de Maupassant). Tratemos primeiro, porém,
não de suas figurações, mas de sua função narrativa nos enredos góticos.
A literatura gótica é, reiteradas vezes, criticada por ser excessivamente
esquemática. No que tange às personagens, os detratores do gênero acusam-nas de
serem muito tipificadas e pouco realistas. Ora, gêneros são, por definição,
esquemáticos, mas nem por isso há uma relação direta entre o uso de convenções e a
criatividade artística. Não pretendo, contudo, tergiversar, a fim de contemporizar o
esquematismo das narrativas góticas. Proponho que o foco se desloque para a função


narrativa desses tipos e esquemas, o que será feito em comparação a outro modo
narrativo bastante popular: o melodrama1.
A escolha não é gratuita: os dois gêneros compartilham entre si muitas
semelhanças. Tal como o Gótico, o Melodrama foi uma resposta literária à crise
moderna, e tomou a forma de dramas hiperbólicos, intensamente emocionais, baseado
em conflitos morais abertamente maniqueístas. No mundo dessacralizado do
Iluminismo, os novos imperativos éticos precisavam partir do indivíduo. Daí o bem e o
mal serem altamente personalizados nesses enredos, e se confrontarem como
antagonistas muito bem definidos.
Em suas formas mais ambiciosas, tanto o Gótico quanto o Melodrama podem
ser entendidos como modos de desvelar, demonstrar e tornar operacional o universo
moral em uma era pós-sagrada. Indulgência à emotividade intensa; esquematização e
polarização moral; vilania explícita, perseguição aos bons e recompensa final da
virtude; tramas sombrias, suspense e peripécias de tirar o fôlego: tais características,
presentes em grande parte da literatura popular moderna, são características tanto dos
enredos góticos quanto dos melodramáticos.
Em que se diferenciariam, então, essas duas formas ficcionais? Ambos
compartilham a preocupação com o mundo sem deus iluminista, e tomam o Mal como
algo real, uma força irredutível que ameaça aflorar a qualquer momento. Todavia,
enquanto o Melodrama explora, até as últimas consequências, a força do Mal por meio
do aparente triunfo da vilania, mas o dissipa com a vitória final da virtude, o Gótico se
volta para a reafirmação do numinoso em si mesmo. No Gótico, nem os finais são
sempre otimistas, nem o Bem e o Mal são sempre representados de modo maniqueísta.
Lidando com conteúdos da existência que não conseguem ser administrados pela
mente racional, no mundo representado pelo Gótico as forças espirituais existem, mas
não mais como fontes e garantias de comportamentos éticos, mas como potências
naturais primitivas a inspirar medo no homem. A perda do sagrado ameaça arremessar
os seres humanos, uma vez mais, para fora do reino de Deus, para o mundo dos homens,
onde homens fazem homens sofrer, e se vive ante a ameaça constante de retorno ao
pesadelo do estado natural hobbesiano.

4. O PECULIAR ANTAGONISMO DO VILÃO MONSTRUOSO



1 A descrição aqui feita das semelhanças entre o gótico e o melodrama se baseia inteiramente no notável

trabalho de Peter Brooks (1995).


Em suas primeiras encarnações, a configuração de personagens nas narrativas
góticas pouco se diferenciava do romance sentimental, a modo de Richardson. A
estrutura era dependente de personagens com pouca profundidade psicológica, mas
grande alcance dramático – suas falas e seus atos, artificiosos, nos parecem, hoje, mais
adequados aos palcos do que às páginas do romance. Nesses enredos, uma importante
função cabia à heroína perseguida, possuidora de uma notável habilidade de sobreviver
às situações mais ultrajantes e perigosas. Mas era sobretudo o vilão que avultava como
o personagem principal. Se, ao levar à perdição aqueles à sua volta, ele funcionava
como figuração do Mal absoluto, também ele precisava lidar com as agruras de seu
próprio destino. É possível tomar como exemplo Ambrosio, protagonista de O monge
(1796), de Matthew Lewis. Ainda que seja movido e castigado pelo próprio Satã – seja
sob a forma final com seu cascos e chifres luzidios, seja sob a forma ainda mais terrível
e tentadora de Matilda – ele próprio é também uma vítima – em seu caso, das absurdas
condições da vida monástica.
A irredutível ambiguidade do vilão vai se tornar ainda mais explícita nas obras
do gótico romântico, quando a personagem monstruosa passará a figurar a tensão entre
as convenções sociais e as noções de liberdade e de individualidade. A esse propósito,
cito Fred Botting (2014, p. 89):
(...) obscuros, isolados e soberanos, eles são andarilhos, párias e rebeldes
condenados a vagar pelas fronteiras dos mundos sociais, portadores de uma
verdade escura ou de um conhecimento horrível (...) são transgressores que
representam os extremos da paixão individual e da consciência.2
Os protagonistas do gótico romântico são simultaneamente vilões – porque
transgridem os valores convencionais – e heróis – exatamente pela mesma razão.
Pensemos em Heathcliff, em O morro dos ventos uivantes (1847), de Emily Brönte.
Violento, diabólico, vingativo, mas simultaneamente melancólico, autodestrutivo,
obcecado por um amor impossível. Sua condição patética inspira ódio e repulsa, mas,
paradoxalmente, compaixão por seu sofrimento, e admiração, pela afirmação soberana
que faz de sua própria vontade.
Ao longo do XIX, o Gótico foi progressivamente se afastando da estrutura do
enredo melodramático, ainda muito fortes em romances como os de Ann Radcliffe.
Tome-se como exemplo uma obra como Melmoth, the Wanderer (1820), de Charles
Maturin, em que o vilão não mais era a causa do Mal, pois sua eliminação não leva à
restauração da ordem. Nas palavras de David Punter (1996, p. 128): “O mundo não é


2 As citações de obras sem tradução em português foram feitas por mim.


purgado com a morte de Melmoth, porque ele não é essência do mal, mas um agente do
mal perene”. O verdadeiro mal, portanto, não estava no indivíduo: era a tirania, a
corrupção, o preconceito, os aristocratas, as instituições de poder religioso e/ou
científico; as hierarquias sociais – a lista de causas aventadas é longa, e muda de
narrativa para narrativa.

5. AS BESTAS HUMANAS
Uma mudança radical no modo hegemônico de figuração do vilão monstruoso
Gótico se deu na segunda metade do XIX. Os efeitos de A origem das espécies (1859)
sobre as mentes do oitocentos foram avassaladores. A ideia darwiniana de que a
competição por vantagens reprodutivas era a principal alavanca das mudanças das
espécies levou, no senso comum, à percepção de que a natureza era inevitavelmente
hostil e confrontativa. Em consequência, as ameaças do Mal metafísico do primeiro
gótico, que tantas vezes tomavam formas sobrenaturais alegóricas, como fantasmas e
aparições, dava lugar ao monstro como um ser corpóreo, algo no continuum entre o
homem e animal – é a era das bestas humanas.
Consolidava-se, paulatinamente, a ideia de que o ser humano estava muito mais
próximo do reino animal do que da posição privilegiada na grande cadeia dos seres
proposta pela tradição judaico-cristã. Essa percepção é incrementada pelos trabalhos de
criminologistas como Lombroso e Lordeau, que propunham que alguns humanos eram
mais primitivos e bestiais em sua natureza do que outros. Uma obra literária
fundamental para exemplificar esse período é A ilha do Dr. Moreau (1896), de H. G.
Wells. Nela fazem-se presentes tanto o cientista extrapolador, ao modo de Victor
Frankenstein, quantos as criaturas híbridas, meio homens meio animais, da tradição dos
metamorfos da literatura fantástica universal. Mas o derradeiro e culminante horror
experimentado por Edward Prendrick, o narrador-protagonista, não é vivenciado na Ilha
de Moreau, mas em seu retorno à Europa:
Então, olho meus semelhantes à minha volta. E entro em pânico. Vejo rostos
vivos e brilhantes, outros sombrios e perigosos, outros dissimulados,
fingidos; nenhum que possua a calma dignidade de uma alma racional. Sinto
como se o animal estivesse brotando através deles, como se em breve a
degradação dos ilhéus fosse acontecer de novo em maior escala. (WELLS,
1983, p. 199-200)
Eis a face sombria do que chamamos de Gótico-Naturalismo (cf. SENA, 2017),
em que o vilão em potencial é a própria espécie humana. A confusa absorção das teorias
da evolução e da seleção natural redundou no Darwinismo Social: a ideia de que os


indivíduos estavam em constante competição, e que apenas o melhor sobreviveria. Tal
pensamento acabou por ser aplicado, em larga escala, a grupos raciais e a nações. A
crença na superioridade de um grupo sobre os demais seria endossada por teorias da
hierarquia das raças, como a de Ernst Haeckel, criando as condições intelectuais para as
ideologias nacionalistas, às políticas nazistas de esterilização e o próprio Holocausto.
(Cf. COLAVITO, 2008, p. 167). Depois de 1940, o horror real estava disponível em
todos os noticiários: a barbárie da guerra, Auschwitz e os Gulag, a ameaça do apocalipse
nuclear.
O que representa Drácula diante de Hitler? Frankenstein ante o exército
vermelho? Porque temer o despertar de Cthulhu se uma simples bomba pode
destruir instantaneamente o mundo, algo que os Old Ones não conseguiram
fazer em milhões de anos? (COLAVITO, 2008, p. 225)
O futuro anunciado pelo ideal iluminista de progresso havia chegado, e a
revolução tecnológica trazia seus próprios e novos temas e motivos para o Gótico. A
civilização não havia eliminado a barbárie, mas a reinventado com requintes de
crueldade. Duas linhagens de horror ganharam, então, força, ambas relacionadas à
ciência de meados do XX, ambas racionalizando o horror. Uma delas focou-se na
psicologia, na mente humana como fonte de horrores; a outra levou a narrativa de
monstros em direção à ficção científica, a partir dos terrores gerados pela ciência
nuclear e na ameaça que vinha do céu, de outros mundos (COLAVITO, 2008, p. 225).
Os próximos tópicos se fixarão na primeira dessas linhagens, em especial na figura do
monstro humano.

6. OS HORRORES DA MENTE HUMANA


As novas concepções científicas sobre a mente humana produziram um sentido
de fatalismo que levou à ideia de que o horror não é o resultado aberrante de monstros
raros, mas uma situação incontornável da realidade. Tomando-se como exemplos os
Estados Unidos da América, país que se tornaria o principal exportador de horrores
ficcionais ao longo do século XX, pode-se observar uma série de eventos que pareciam
confirmar a crueldade inerente à natureza humana. Dos brutais crimes de Kansas,
retratados por Truman Capote em A sangue frio (1966), passando pelo famoso
experimento de aprisionamento de Stanford, conduzido por Philip Zimbardo, em 1971,
aos assassinatos de Ed Gein e da “Família” Manson, os exemplos eram inumeráveis, e
pareciam atestar que o horror não era uma exclusividade das múltiplas formas do


fascismo, mas estava em cada um de nós. Tal percepção naturalista do mal humano já
estava presente em Freud, em O mal estar na civilização:
Os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no
máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas
entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de
agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um
ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a
satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho
sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento,
apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e
matá-lo. (FREUD, 1996, p. 116)
Para conter a ameaça de nossas mentes instáveis, contava-se, por um lado, com a
psiquiatria, por outro, com o trabalho policial. As narrativas góticas reaproximam-se da
literatura de crime3. Os vilões monstruosos são agora psycho killers – Norman Bates,
Leatherface, Hannibal Lecter. A aleatoriedade e a crueldade de seus atos dominam os
enredos, e é observável o predomínio das “tramas acidentais” (cf. COLAVITO, 2008, p.
283-345), em que um ou mais personagens inocentes acidentalmente transgridem uma
fronteira – física, cultural – e encontram um monstro cuja existência desconheciam.
É importante lembrar que, nesse momento, a principal mídia do Gótico já não é
mais a literatura, mas o cinema. Ainda que seja verdadeiro que os enredos fílmicos
fossem alimentados pelas narrativas literárias, a própria literatura absorveu elementos
da narrativa fílmica. Muitos romances e contos já eram concebidos pensando-se em
futuras adaptações cinematográficas, o que tornou essas narrativas extremamente
gráficas e explícitas, como modo de atender também a um público educado pelo
cinema. Nos anos oitenta, surge o termo splatterpunk, contraponto literário do Gore,
que se caracteriza pela exploração pornográfica – e quase apologética – da tortura, do
sangue e do dilaceramento dos corpos das personagens, que tem no britânico Clive
Barker um de seus principais autores.
As formas ficcionais do horror extremo vão se tornando ainda mais explicitas
nas narrativas dos anos noventa. Não há razão real para o sofrimento – ou, quando há, é
banal e superficial –, sendo que o motivo da tortura é menos importante do que o
sofrimento em si próprio. O herói não tem escolhas, além de sofrer nas mãos do
monstro. O horror é inevitável, e o máximo que se pode esperar é sobreviver, mas
nunca, efetivamente, triunfar. O sofrimento da vítima parece se tornar mais importante
do que o comportamento predatório do monstro em si.


3 A bem da verdade, Gótico e Literatura de Crime nunca estiveram totalmente separados. Suas origens

modernas são comuns, e podem ser rastreadas desde as narrativas do Newgate Calendar ou a ficção
detetivesca de Edgar Allan Poe, por exemplo.


O splatterpunk teria rompido com a tradição gótica? Quais medos e ansiedades
estariam sendo tematizados pelos espetáculos carnográficos do horror do final do século
XX e início do XXI? Creio que a resposta pode ser encontrada olhando de volta para os
monstros. Os vilões do Torture Porn seriam ou psicopatas – denominação que se dá
àqueles que são incapazes de compartilhar quaisquer sentimentos com os outros – ou
sádicos, o que se dá quando o indivíduo compartilha dos sentimentos, mas com efeitos
contrários, isto é, tem prazer com o sofrimento alheio. De uma forma ou de outra, são
indivíduos que perderam a capacidade de se sensibilizar com o sofrimento alheio.
Sofrem da ausência de uma capacidade considerada profundamente humana: a empatia.

7. O VILÃO GÓTICO E A EMPATIA


A empatia tem uma longa história no campo de reflexões sobre o Gótico.
Edmund Burke, na obra que é a fundamentação filosófica avant la lettre da literatura
gótica, Investigações filosóficas sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo
(1759), já reconhecia a empatia como condição fundamental para o bom funcionamento
das artes voltadas à produção de emoções estéticas intensas.
Burke (1993, p. 52) define tal afeto como uma “espécie de substituição,
mediante a qual colocamo-nos no lugar de outrem e somos afetados, sob muitos
aspectos, da mesma maneira que eles”. Sua teoria do sublime é construída justamente a
partir da articulação entre a empatia e o deleite – o prazer negativo que advém do alívio
da dor. Violência, crueldade, morte – causas de aversão no plano da realidade –
poderiam ser prazerosamente experimentados, na arte, através de nossa capacidade de
estabelecer relações empáticas com as personagens ficcionais. O deleite adviria
justamente do alívio decorrente de não se estar sujeito aos riscos associados àquelas
fontes de dor.
Para além de Burke, o papel da empatia no campo das poéticas negativas pode
ser observado da reflexão aristotélica sobre o trágico – como nos conceitos de
philanthropia e éleos – até as reflexões contemporâneas sobre o horror ficcional – como
no conceito de assimilação de Noël Carroll4.
Numa visada rápida, estaríamos inclinados a imaginar que as relações empáticas
na contemplação das obras góticas se dão apenas com o sofrimento das vítimas. Isso
seria plenamente verdadeiro em uma estrutura melodramática convencional, em que a

4 Para um aprofundamento das relações entre empatia e horror, ver o artigo “A empatia nas estratégias do

horror artístico: o caso Hitchcok” (FRANÇA, 2017).


simpatia da plateia deveria ser, indiscutivelmente, direcionada às personagens heroicas
e às reconhecidas como boas e inocentes. Porém, como foi dito anteriormente, também
o vilão gótico era objeto de vínculos empáticos com os leitores, o que me leva à
hipótese que defendo neste artigo: a de que o monstro gótico do final do século XX é
um arauto da crise da empatia.
Uma obra que antecipa magistralmente esse possível Zeitgeist finissecular é
Androides sonham com ovelhas elétricas, romance de 1968, que o próprio autor, Phillip
K. Dick, transformaria no roteiro da distopia gótica seminal dos anos 80: Blade Runner,
de Ridley Scott. No sombrio romance de Dick, a empatia exerce um papel
preponderante. Em primeiro lugar, o protocolo utilizado pelo caçador de androides Rick
Deckard para testar quem é humano quem é máquina baseia-se em reações empáticas:
androides não conseguem reagir empaticamente a eventos cruéis com a mesma
velocidade de um ser humano, e, assim, revelam sua condição não humana. Contudo,
embora a empatia seja a pedra de toque que permite distinguir entre humanos e
replicantes, ela é uma faculdade em risco de desaparecimento no futuro pós-apocalipse
nuclear construído por Dick. Teme-se que a falta de empatia leve a extinção em massa
da humanidade, o que acaba dando forma a uma grotesca forma de religião: o
Mercerismo.
O Mercerismo é uma religião “tecnológica” que se vale de um dispositivo
eletrônico chamado de “caixas de empatia”. Através delas, os usuários/fiéis são
conectados a um ambiente virtual em que compartilham os sofrimentos do mártir e
fundador da religião, Wilbur Mercer, enquanto ele sobe eternamente uma montanha e
pedras são atiradas contra ele. Todos aqueles ligados à caixa de empatia compartilham a
dor e os ferimentos de Mercer, bem como partilham também todas as emoções de todos
os usuários simultâneos das caixas.
A obsessão extrema por empatia representada no romance de Dick aponta para a
desesperada tentativa humana de estabelecer vínculos gregários em um mundo
dessacralizado. Trata-se, ainda, do impulso do homem moderno tentando tornar possível
a vida humana em sociedade no mundo sem deus. Nesse sentido, é plenamente
compreensível que o vilão do fim do século XX seja o psicopata, o indivíduo totalmente
incapaz de estabelecer vínculos empáticos.

8. OS MALES DO EXCESSO DE EMPATIA


É possível ir mais além, e propor um desdobramento do entendimento do papel
da empatia como força figurativa do vilão gótico. Minha nova proposição é que, no
século XXI, teme-se não apenas a falta de empatia, mas também o excesso de empatia,
porque nem sempre as reações empáticas conduzem ao Bem.
À primeira vista, pode parecer paradoxal que um sentimento de compassividade
tal qual a empatia possa ser vetor de atos vis e repulsivos. A empatia, contudo, não é
uma faculdade humana que estimule exclusivamente sentimentos benévolos. O
professor de Psicologia de Yale, Paul Bloom (2016), tem demonstrado que sentimentos
assassinos para com estranhos são bastante comuns quando o indivíduo entende o outro
como uma ameaça real a si ou aos seus. Consequentemente, sentimentos muito intensos
de compaixão, amor e empatia, por aqueles que nos são próximos, criariam as
condições para o surgimento de sentimentos de ódio para com aqueles que não
identificamos como semelhantes.
Bloom apoia-se em estudos recentes conduzidos por Anneke Buffone e Michael
Poulin (2014), que apontam para como a empatia com indivíduos em situação de vítima
pode até mesmo levar à agressão de terceiros sem relação direta com a causa da
vitimização. O estudo associou os indivíduos mais sensíveis à vasopressina e à
oxitocina – hormônios associados à compaixão, à ajuda e à empatia – a comportamentos
mais agressivos ante o sofrimento de vítimas – mesmo quando tais vítimas fossem
estranhas a esses indivíduos.
O próprio Paul Bloom e Nick Stagnaro, em estudos de psicologia
comportamental, chegaram a resultados similares ao estudo genético de Buffone e
Poulin, relacionando diretamente a empatia à agressividade contra terceiros. Suas
experiências demonstraram que quanto maior o vínculo empático estabelecido, mais
severa é a punição que se deseja a quem perpetra violência contra quem lhe é próximo.
Historicamente, a exploração da empatia entre grupos sociais tem conduzido
tanto a linchamentos – de negros no sul americano, de judeus na Alemanha nazista, em
que se explorava de modo sensacionalista casos isolados de violência cometida contra
brancos e alemães por negros e judeus, respectivamente – quanto à justificação de
guerras, como as mais recentes do Iraque e da Síria. Para tal, basta que se estabeleça
uma relação entre um nós, identificados como vítimas de violência, e um eles, descritos
como perpetradores da violência: qualquer agressão a um de nós desencadeará um
desejo de reação contra eles de intensidade muitas vezes superior à violência sofrida.
Pensemos como Donald Trump, ao longo da campanha presidencial de 2016, explorou


casos de crimes de mexicanos cometidos contra americanos para promover o ódio
destes para com aqueles.
Não é por acaso, portanto, que uma trama recorrente nas histórias de horror que
exploram a tortura é a transformação das vítimas de violência em torturadores. A
estratégia narrativa da reversão dos papéis é uma técnica que encoraja a audiência, por
meio de relações empáticas, a ficar do lado do torturador. O enredo retributivo apoia-se
na pressuposição de que a punição física é moralmente justificada, e na lógica de que a
grandeza da punição deve ser equivalente à grandeza da transgressão (cf. MORRIS,
2012). Trata-se, em última instância, de uma atualização da Lex Talionis, que
estabelece a rigorosa reciprocidade entre crime e pena – se alguém é vitimado por
tortura, tem o direito de torturar em retribuição.
Gostaria de concluir com uma demonstração final de como a narrativa gótica
incorpora o Zeitgeist de nossos dias e como ele dá forma aos vilões góticos
contemporâneos. Não citarei uma obra literária, mas a série televisiva britânica Black
Mirror, mais especificamente do último episódio da terceira temporada: “Hated in the
Nation” (2016), dirigido por James Hawes, e roteirizado por Charlie Brooker.
A narrativa se dá em um futuro muito próximo, quando Garrett Scholes, um
hacker, ganha controle de abelhas-robôs criadas para substituir as abelhas reais – todas
extintas. Ele usará os insetos eletrônicos como minúsculos assassinos para eliminar um
indivíduo por dia. A vítima, contudo, não será escolhida por ele, mas será a pessoa mais
odiada pelas redes sociais nas últimas 24 horas. A hashtag de Twitter “#Deathto...”
torna-se uma macabra cédula eleitoral para indicar o próximo individuo a ser morto
pelas abelhas eletrônicas de Scholes. Invariavelmente, a vítima é alguém que
demonstrou completa falta de empatia por alguma situação identificada com causas
politicamente corretas – em uma referência óbvia aos linchamentos virtuais que
infestam as redes sociais no mundo real.
O roteiro guarda, porém, uma grande peripécia, quando por fim se revelará
quem são os verdadeiros alvos de Gareth Sholes: o hacker quer forçar as pessoas a
encarar as consequências de seus atos. Ele usará as abelhas para matar as centenas de
milhares de indivíduos que tuitaram a hashtag “#DeathTo...”. No fim, não há como
identificar de forma maniqueísta o vilão dessa narrativa: Scholes? Todos aqueles que
tuitaram “#Deathto...” e levaram à morte os mais odiados de cada dia? Tanto o hacker
quanto os fomentadores da lista dos mais odiados têm em comum o excesso de empatia
que leva a um desejo de vingança superior ao mal cometido.


O episódio de Black Mirror vale como uma demonstração de que a perenidade
da narrativa gótica baseia-se em sua capacidade de oferecer estruturas narrativas que,
apesar de serem de fácil assimilação para o leitor médio, ao mesmo tempo permitem
que suas formas essenciais, como é o caso do vilão gótico, suportem renovadas
atualizações e desenvolvimentos. O Gótico, assim, permite a reflexão sobre os medos
humanos, por meio de nossas faculdades da imaginação, com toda a complexidade,
beleza e tragicidade da condição humana.

REFERÊNCIAS

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