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Além disso, provocou nos leitores sensações inquietantes, já que desde épocas
longínquas o sujeito é permeado por lendas, seja urbanas ou rurais, que motivam o
despertar das emoções, a partir da fantasia criada pela mente humana. Contos de suspense,
terror, fantasia, aventura, mistério, trazem, muitas vezes, o sentimento de medo ou
vacilação, mas ao mesmo tempo, são importantes para que ocorra o translado entre o
mundo real em direção ao sobrenatural e vice-versa. Assim, as obras vão ganhando um
espaço significativo no repertório dos indivíduos, tornando-se infindáveis (Lourenço e
Silva, 2010), como a lenda da sereia brasileira Iara e o Boto cor-de-rosa que se transforma
em ser humano.
Segundo Coalla (1994, apud VOLOBUEF, 2000, p. 111), o fantástico atravessou
distintas etapas com o passar dos séculos, dado que ao final do século XVIII e início do
XIX, havia uma exigência do sobrenatural, a exemplo de fantasmas e características de
monstros, já no século XIX, as narrativas das alucinações, angústias, fatores internos e a
própria loucura ganharam espaço nas obras. Todavia, foi no século XX que o fantástico
traz o contraponto entre os elementos que permeiam o cotidiano.
Camarini (2014) ao trazer relatos sobre os pioneiros do gênero fantástico revela
que a contribuição de Jacques Cazotte deu-se com o conto “La Diable Amoureux” (1772),
sendo o estreante da Literatura Fantástica. Assim como Cazzote, Charles Nodier, com Du
“Fantastique en Littérature” (1830) também ganha espaço inaugural em trazer elementos
reflexivos em torno do fantástico, já que a obra traz um estudo sobre as manifestações
fantásticas que transcorreram na literatura. A revisão literária consistia em levantar
históricos acerca de obras em que estavam evidentes características fantásticas, no
entanto, o diferencial do autor demarcava-se na elucidação e na explanação que a
materialidade não se fazia compreender de maneira mais enfática.
Ademais, Camarini (2014) salienta três principais etapas do trabalho desenvolvido
por Nodier: a poesia, o desconhecido e a mentira. O primeiro acentua-se na tentativa de
recriar a realidade vivida no mundo. O segundo, por sua vez, tenta esclarecer o mundo de
maneira adversa, pois recai no insucesso e o último, faz-se na tentativa de compreender
o mundo por meio das invenções. Sendo esta última de maior destaque, pois, segundo o
autor é o momento em que o fantástico ganha seus primeiros passos. Para ele:
Assim, é notável que recorre a temas como loucura, solidão, alucinação e ânsia
para representar as sensações internas, a partir das vivências externas, de seus
personagens, rompendo o equilíbrio entre a realidade e irrealidade para revelar desejos
ou ensejos antes não mostrados, enfatizando como as relações humanas podem ser
complexas, paradoxalmente, em suas próprias complexidades, visto que “utiliza recursos
da metamorfose e do fantástico, explora o terror, a que se associa a loucura.”
(CASTELLO, 1999, p. 473).
Deste modo, como alguns autores fantásticos apoiavam-se na teoria para elaborar
a premissa de suas obras, Lygia confabulava que esses temas –do sobrenatural –
estimulavam e motivavam a alma do ser. O tempo, o infinito, além dos já mencionados,
movimentavam, para ela, a mente humana.
Nesse contexto, analisar, sob o viés da literatura fantástica, a literatura Lygiana,
faz-nos aprofundar nas questões que permeiam a inquietude e, não menos, a fragmentação
humana, frente aos conflitos, devaneios e ao espiritual. Abordaremos a presença do
fantástico no conto “O noivo”, inserido no livro de contos “Um Coração Ardente” (2012),
dado que a autora utiliza da ambiguidade dos eventos e tradições sociais, elementos
demarcados no gênero em estudo, para convidar o leitor a confabular, criar, imaginar e
interpenetrar na narrativa.
O enredo proposto por Telles suplanta-se no que discutimos ao longo do trabalho
acerca dos parâmetros autorais, mormente, Todorovianos.
O fantástico é desenhado, no conto, a partir da hesitação do leitor entre uma
explanação e uma elucidação que beira o contraponto do racional e sobrenatural, já que
os personagens que compõem essa narrativa são passíveis de comparação e inserção em
um universo possível, ou seja, a realidade. Dessa maneira, a análise adiante transporta-
nos para um universo fantástico em que fascina, extasia e desassossega as estruturas mais
íntimas do sujeito.
“O noivo” é narrado em terceira pessoa, no entanto, os diálogos do protagonista
são bem enfáticos com ele mesmo. Inicialmente, seu nome é resguardado e o leitor tem
conhecimento apenas do de Emília, a empregada que logo cedo bate à porta do quarto do
patrão, o qual se indaga: — Emília, é você, Emília? (TELLES, 2018, p. 593). No entanto,
a mulher demora a responder, fato que já o deixa desconfiado, mas logo em seguida tem
sua resposta: Eu queria saber se o senhor se esqueceu, é que está chegando a hora…
(TELLES, 2018, p. 593). Ao perguntar do que se trata, é imediatamente avisado do
casamento. Ao saber sobre o evento, a confusão, o questionamento e a investigação
tomaram conta daquela cenário. Ao ir buscar um café, Emília o deixa com seus
pensamentos.
Absorto, olha para o relógio e percebe que é manhã de 12 de novembro. Naquela
quinta-feira, às 8:30 levanta da cama e se direciona ao espelho que “parecia flutuar na
sombra assim como um grande peixe luminoso no fundo do mar” (TELLES, 2018, p.
593). Decidira, naquele momento, que aquela que trabalha para ele estava alucinada.
O fantástico tem de oportunizar um ambiente admissível de normalidade, apto a
ofertar credibilidade aos leitores [e também obtê-la] para que ainda que haja uma
ocorrência estranha, evite que, instantaneamente, gere ares de incerteza ou suspeitas que
ocasionariam em uma recusa da veracidade do que, já de natureza própria, parece
inverossímil. Telles realiza tal tracejo, já que o ambiente do conto, mesmo com um clima
de mistério, ganha credibilidade ao assemelhar-se a realidade vigente.
Ao retornamos ao conto, vemos o protagonista visualizar um cinzeiro e rememorar
sua vida com Naná, sua amante, bem como os feitos profissionais. Emília, ao retornar,
entrega-lhe um cigarro sob repreensão “Só um e chega! Disse em voz alta como se o
médico estivesse ali ordenando, nunca em jejum! Ele tinha uma voz sinistra, um
verdadeiro terrorista proibindo os melhores prazeres desta vida tão curta! disse em voz
alta soprando a fumaça para o teto.” (TELLES, 2018, p. 594).
Nesse ponto do conto, é perceptível o contato do leitor com uma espécie de
anunciação. Isto é, o fato de Emília alertar nosso protagonista e ele, por sua vez,
subestimar os conselhos médicos, embora sútil, faz com que haja uma percepção sobre a
tríade: viver, prazer e ameaça, já que é a representação do cigarro que traz prazer e ameaça
ao conceito de viver bem em um dia belo, descrito como aprazível pelo personagem.
No que segue a cena, o personagem observa um elegante paletó de seda importado
da Áustria, de aspecto novo e dispendioso, fazendo-o crer que Emília estava certa sobre
o casamento e que a mente dele é que estava dúbia. Questiona-se se seria o padrinho, mas
não consegue lembrar quem se casaria. “Ah, lá estava a etiqueta brilhosa, Cordis.”
(TELLES, 2018, p. 595).
A partir desse momento, é possível observar um sentimento de certa ânsia, já que
sua mão começara a tremer e a memória permanecia falha. Além disso, cordis, palavra
latina para coração, também pode designar misericórdia/ter compaixão, o que remonta
as tradições religiosas para quando alguém está em momento de desesperança ou
moribundo, nos meandros dos preceitos, ter misericórdia para que se possa purificar-se
dos pecados. Assim sendo, as mãos trêmulas também possibilita indícios do que o cigarro
provocara naquele corpo, ratificando melhor o exposto religioso.
Assim, “caminhou até o espelho e nele viu-se embaçado como uma figura de
sonho” (TELLES, 2018. p. 594). Mais uma vez, a figura do espelho turvo é apresentada.
Segundo Todorov (1980) “Há um fenômeno estranho que pode ser explicado de duas
maneiras, por tipos de causas naturais e sobrenaturais. A possibilidade de vacilar entre
ambas cria o efeito fantástico”. (p. 23).
É nessas causas sobrenaturais que encontramos o efeito que o espelho embaçado
traz, pois não provém das leis naturais, sendo, como bem aponta o autor, um
acontecimento que a razão não pode explicar. O personagem, por estar envolvido com os
enigmas daquela situação, não percebe que não há reflexo corporal.
Quando visualiza o armário e não encontra sua maleta costumeira de viagem,
empalidece e a angústia impera, já que naquele momento já havia se convencido que o
casamento seria dele e que normalmente seria aquele objeto que usaria para lua de mel
“Quem teria levado essa maleta e por quê?!...” (TELLES, 2018, p. 595). A maleta não só
viria representar a viagem física, mas também a metafísica, que interliga a relação entre
mente e matéria, transcendendo a experiência sensível, havendo, dessa forma, reflexão
diante de algo, inexplicável, frente ao personagem, bem como afirma o pensamento
Aristotélico (2006) e Kantiano (1986). Esse ensejo faz com que haja dúvidas em torno do
ter ou não perdido, de fato a memória.
Assim, na tentativa de recobrar e se autoafirmar, o personagem fala consigo
mesmo afirmando vários pontos de suas vivências: