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FACES SOB O VÉU: uma análise do fantástico na contística Lygiana

Rayssa Kelly Santos de Oliveira

Compreende-se Literatura Fantástica por um gênero literário que é composto por


elementos sobrenaturais, em que o leitor é surpreendido, estimulando a imaginação. Tais
narrativas o levam a alternar-se entre o que é real e imaginário. Para Todorov (1981), o
fantástico é a “vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as leis
naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural.” (p. 23). Diante disso, o
autor releva que o considerado Fantástico pode ser subdividido em duas categorias: o
estranho e o maravilhoso. O estranho, dessa forma, ocuparia um lugar de explicação, ou
seja, os acontecimentos que ocorrem podem ser explicados e aceitos diante das leis
universais naturais, já o maravilhoso estende-se ao oposto. Sem poder ser explicado pelas
leis naturais, o público leitor necessita aceitá-las como plausível e concebível dentro
daquela narrativa.
Tratando-se do aspecto histórico, os estudos que cerceiam a Literatura Fantástica
tiveram seu alicerçamento entre os séculos XVIII e XIX, época em que muitos escritores
começaram a delinear pontos acerca do gênero. No entanto, foi apenas no século XX que
a teoria foi aprimorando-se. Mediante o repertório de Ceserani (2006):
O fantástico operou [entre os séculos XVIII e XIX], como todo o
verdadeiro e grande modo literário, uma forte reconversão do
imaginário, ensinou aos escritores caminhos novos para capturar
significados e explorar experiências, forneceu novas estratégias
representativas. (CESERANI, 2006, p.103).

Além disso, provocou nos leitores sensações inquietantes, já que desde épocas
longínquas o sujeito é permeado por lendas, seja urbanas ou rurais, que motivam o
despertar das emoções, a partir da fantasia criada pela mente humana. Contos de suspense,
terror, fantasia, aventura, mistério, trazem, muitas vezes, o sentimento de medo ou
vacilação, mas ao mesmo tempo, são importantes para que ocorra o translado entre o
mundo real em direção ao sobrenatural e vice-versa. Assim, as obras vão ganhando um
espaço significativo no repertório dos indivíduos, tornando-se infindáveis (Lourenço e
Silva, 2010), como a lenda da sereia brasileira Iara e o Boto cor-de-rosa que se transforma
em ser humano.
Segundo Coalla (1994, apud VOLOBUEF, 2000, p. 111), o fantástico atravessou
distintas etapas com o passar dos séculos, dado que ao final do século XVIII e início do
XIX, havia uma exigência do sobrenatural, a exemplo de fantasmas e características de
monstros, já no século XIX, as narrativas das alucinações, angústias, fatores internos e a
própria loucura ganharam espaço nas obras. Todavia, foi no século XX que o fantástico
traz o contraponto entre os elementos que permeiam o cotidiano.
Camarini (2014) ao trazer relatos sobre os pioneiros do gênero fantástico revela
que a contribuição de Jacques Cazotte deu-se com o conto “La Diable Amoureux” (1772),
sendo o estreante da Literatura Fantástica. Assim como Cazzote, Charles Nodier, com Du
“Fantastique en Littérature” (1830) também ganha espaço inaugural em trazer elementos
reflexivos em torno do fantástico, já que a obra traz um estudo sobre as manifestações
fantásticas que transcorreram na literatura. A revisão literária consistia em levantar
históricos acerca de obras em que estavam evidentes características fantásticas, no
entanto, o diferencial do autor demarcava-se na elucidação e na explanação que a
materialidade não se fazia compreender de maneira mais enfática.
Ademais, Camarini (2014) salienta três principais etapas do trabalho desenvolvido
por Nodier: a poesia, o desconhecido e a mentira. O primeiro acentua-se na tentativa de
recriar a realidade vivida no mundo. O segundo, por sua vez, tenta esclarecer o mundo de
maneira adversa, pois recai no insucesso e o último, faz-se na tentativa de compreender
o mundo por meio das invenções. Sendo esta última de maior destaque, pois, segundo o
autor é o momento em que o fantástico ganha seus primeiros passos. Para ele:

Essas três etapas evidenciam uma das principais características do


fantástico: este não se apresenta como fruto de mentes perturbadas,
visionárias ou alucinadas, mas é oriundo do racional, do
desenvolvimento da mente humana. (CAMARINI, 2014, p. 14)

Compreende-se, assim, que o fantástico possui uma estrutura basilar no mundo


real, já que vem da incógnita das leis reais o aspecto imaginativo e criativo do ser humano.
Todavia, ao nos determos a Maupassant, o fantástico viria a ser conexo à alma,
isto é, a imaginação do sujeito é que estava a cargo dos primórdios da criação, não os
elementos externos. O autor acredita que, dentro do aspecto desse tipo de literatura,
deveria haver uma resolução e/ou explanação científica frente a todos os acontecimentos
enigmáticos e/ou misteriosos.
Todorov (1981), recobrando a narrativa já mencionada de Cazotte (1772), salienta
especificidades sobre o gênero. De acordo com ele, o significado de fantástico estaria
tanto nas questões que envolvem as leis naturais, como da racionalidade. Logo, em uma
associação entre o que seria imaginário e real, a hesitação viria como ponto
central/essencial do que é fantástico.
Para ele, o primeiro elemento do fantástico envolve o leitor, este, por sua vez, terá
a oportunidade do progresso da escolha, optando por uma solução ilusória ou
imagética/imaginativa. Desse conflito, é desenhado o cotidiano entre o sobrenatural e a
realidade de mundo.
Por conseguinte, não se pode captar de vista que uma obra fantástica se oponha a
realidade ou transcenda as leis da causalidade e da racionalidade sem que haja o clima de
pavor, temor e medo. Pois “o tempo e o espaço do mundo sobrenatural (...) não são o
tempo e o espaço da vida cotidiana” (TODOROV, 2003, p. 126), uma vez que o
considerado sobrenatural promove a inserção da materialidade no espiritual
reciprocamente, quebrando a fragmentação entre o que seria sujeito e seu objeto.
De acordo com Lovecraft (1987), o medo é efeito essencial frente a narrativa
fantástica. No entanto, Todorov refuta que:
Para Lovecraft o critério do fantástico não se situa na obra a não ser na
experiência particular do leitor, e esta experiência deve ser o medo. “A
atmosfera é o mais importante pois o critério definitivo de autenticidade
[do fantástico] não é a estrutura da intriga a não ser a criação de uma
impressão específica. (...) Por tal razão, devemos julgar o conto
fantástico nem tanto pelas intenções do autor e os mecanismos da
intriga, a não ser em função da intensidade emocional que provoca. (...)
Um conto é fantástico, simplesmente se o leitor experimenta em forma
profunda um sentimento de temor e terror, a presença de mundos e de
potências insólitas” (pág. 16). Os teóricos do fantástico invocam
freqüentemente esse sentimento de medo ou de perplexidade, que a
dupla explicação possível é para eles a condição necessária do gênero
(TODOROV, 1981, p. 20).

Dessa forma, Todorov remonta que o medo “está frequentemente ligado ao


fantástico” endossando que “procurar a sensação de medo nos personagens tampouco
permite definir o gênero” e nega a questão que o efeito seja à condição necessária para
definir o gênero (1981, p.21).
Verifica-se, assim, que Todorov (1981) teoriza em relação as definições do
fantástico em função do real e imaginário, ofertando melhor âmbito a hesitação de um
leitor –implícito – frente a um evento ocorrido de forma sobrenatural que não tem como
ser esclarecido pelas leis terrenas, preservando a incerteza até as últimas linhas do texto,
afinal “o fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis
naturais, face a um aparentemente sobrenatural" (p. 31).
É nesses meandros que nos deparamos com a literatura fantástica e Lygia
Fagundes Telles, uma das mais renomadas contistas e romancistas da literatura feminina
brasileira.
Telles nasceu em São Paulo, em 1923 e desde criança demonstrou atração e
admiração pelas letras. Aos oito anos – quando voltara a São Paulo após passar alguns
anos no Rio de Janeiro – começou a se interessar por literatura já no colégio. Teve como
estreia literária, em 1938, “Porão e Sobrado”, o qual foi bem aclamado pela crítica. Desde
então, a autora se tornou a dama da literatura brasileira e a maior escritora brasileira
viva.
Os temas que percorrem suas linhas são bastante múltiplos, no entanto, os
considerados universais como amor, mistério, medo, morte, fantasia e loucura são os que
mais ganham a atenção do público leitor, já que o estilo de sua escrita é ficcional e tem
um forte apreço no surrealismo, além do expressionismo e, não menos, existencialismo.
Na visão de Silva (2009), ela dispõe “de um estilo personalíssimo, se vale
largamente das imagens simbólicas, responsáveis em grande parte pela universalização e
densidade de suas tramas.” Além disso, diante desse simbólico imagético, afirma que
“repetem-se imagens de fontes, jardins, rosas, estátuas, tapeçarias, gatos, sótãos, espelhos,
escadas, todas 16 elas imagens portadoras de sentidos que ultrapassam o meramente
denotativo.” Por fim, a autora afirma que o estilo Lygiano é transposto, muitas vezes,
“para o domínio do devaneio ou do sonho, chamam a atenção sobre si mesmas e desafiam
o leitor a interpretá-las” (SILVA, 2009, p. 1).
Diante disso, observamos que, de fato, os simbolismos em torno de sua obra frente
a universalização são grandes enigmas que o leitor pode, além de interagir/participar,
sentir, uma vez que suas narrativas provocam medo, angústia e até desespero.
A evidência de um sentimento de medo, propriamente, é marcada pelo contexto
já mencionado do sobrenatural, além do terror e ilusório. Assim, temos, nos enredos da
autora, o fantástico.
Nos conceitos Borgeanos (2016), não se pode compreender o fantástico como todo
e qualquer aspecto do sobrenatural, pois ele se encontra na divisão entre dois universos:
o que a sociedade vive e presencia e outro que não composto pelas mesmas leis, havendo,
assim, encontros e características misteriosas. De acordo com Finazzi-Agro (2019), tudo
aquilo que deveria acontecer, não acontece. Opostamente, pode ocorrer o que não seja
esperado. Observa-se, notoriamente, tais aspectos nas narrativas de Telles, demarcadas
por mistérios, sem uma asserção da verdade, ofertando ao leitor toda a liberdade
interpretativa frente as ambiguidades e incertezas. Nas palavras da autora:
Considero o meu trabalho de natureza engajada, ou seja, comprometido
com a nossa condição nesse escândalo das desigualdades sociais. Quase
peço desculpas ao leitor quando 18 ele me faz perguntas sobre a criação
literária – ah, sempre o mistério que não tem explicação, nem o mistério
nem o ser humano. Participante deste tempo e desta sociedade, tento
mostrar as chagas desta sociedade – é o que posso fazer. Então fico
assim constrangida quando se queixam, eu devia passar mais esperança
para o leitor, não? Portanto agora, é possível ser otimista diante de
tamanha crueldade? De tamanho desamor? (Telles, 2002, p. 90)

No reflexo dos dizeres de Lygia, analisamos o fantástico de suas linhas em um


aspecto dual que caminha do natural oposto ao sobrenatural, em que predomina a
sensação de indecisão. Perante Lucas (2000):
É comum na sua ficção que o sobrenatural se misture à ordem secular
das coisas, como se não houvesse distância entre o real e o surreal.
Fantasias secretas, noturnas e diurnas, encontram expansão no seu
texto, enfatizando ora a vida, ora a morte. (...) O racional se entrelaça
com a rotação do insólito, do maravilhoso e das propriedades mágicas.
A lógica do real se apresenta em estado de transe. A autora, através da
verossimilhança que a narrativa fantástica se constrói utiliza da alegoria
para representar pensamentos, ideias e qualidades sob forma
metafórica, em que cada elemento funciona como disfarce dos
elementos da ideia representada, ressignificando-a. (LUCAS, 2000, p.
15)

Assim, é notável que recorre a temas como loucura, solidão, alucinação e ânsia
para representar as sensações internas, a partir das vivências externas, de seus
personagens, rompendo o equilíbrio entre a realidade e irrealidade para revelar desejos
ou ensejos antes não mostrados, enfatizando como as relações humanas podem ser
complexas, paradoxalmente, em suas próprias complexidades, visto que “utiliza recursos
da metamorfose e do fantástico, explora o terror, a que se associa a loucura.”
(CASTELLO, 1999, p. 473).
Deste modo, como alguns autores fantásticos apoiavam-se na teoria para elaborar
a premissa de suas obras, Lygia confabulava que esses temas –do sobrenatural –
estimulavam e motivavam a alma do ser. O tempo, o infinito, além dos já mencionados,
movimentavam, para ela, a mente humana.
Nesse contexto, analisar, sob o viés da literatura fantástica, a literatura Lygiana,
faz-nos aprofundar nas questões que permeiam a inquietude e, não menos, a fragmentação
humana, frente aos conflitos, devaneios e ao espiritual. Abordaremos a presença do
fantástico no conto “O noivo”, inserido no livro de contos “Um Coração Ardente” (2012),
dado que a autora utiliza da ambiguidade dos eventos e tradições sociais, elementos
demarcados no gênero em estudo, para convidar o leitor a confabular, criar, imaginar e
interpenetrar na narrativa.
O enredo proposto por Telles suplanta-se no que discutimos ao longo do trabalho
acerca dos parâmetros autorais, mormente, Todorovianos.
O fantástico é desenhado, no conto, a partir da hesitação do leitor entre uma
explanação e uma elucidação que beira o contraponto do racional e sobrenatural, já que
os personagens que compõem essa narrativa são passíveis de comparação e inserção em
um universo possível, ou seja, a realidade. Dessa maneira, a análise adiante transporta-
nos para um universo fantástico em que fascina, extasia e desassossega as estruturas mais
íntimas do sujeito.
“O noivo” é narrado em terceira pessoa, no entanto, os diálogos do protagonista
são bem enfáticos com ele mesmo. Inicialmente, seu nome é resguardado e o leitor tem
conhecimento apenas do de Emília, a empregada que logo cedo bate à porta do quarto do
patrão, o qual se indaga: — Emília, é você, Emília? (TELLES, 2018, p. 593). No entanto,
a mulher demora a responder, fato que já o deixa desconfiado, mas logo em seguida tem
sua resposta: Eu queria saber se o senhor se esqueceu, é que está chegando a hora…
(TELLES, 2018, p. 593). Ao perguntar do que se trata, é imediatamente avisado do
casamento. Ao saber sobre o evento, a confusão, o questionamento e a investigação
tomaram conta daquela cenário. Ao ir buscar um café, Emília o deixa com seus
pensamentos.
Absorto, olha para o relógio e percebe que é manhã de 12 de novembro. Naquela
quinta-feira, às 8:30 levanta da cama e se direciona ao espelho que “parecia flutuar na
sombra assim como um grande peixe luminoso no fundo do mar” (TELLES, 2018, p.
593). Decidira, naquele momento, que aquela que trabalha para ele estava alucinada.
O fantástico tem de oportunizar um ambiente admissível de normalidade, apto a
ofertar credibilidade aos leitores [e também obtê-la] para que ainda que haja uma
ocorrência estranha, evite que, instantaneamente, gere ares de incerteza ou suspeitas que
ocasionariam em uma recusa da veracidade do que, já de natureza própria, parece
inverossímil. Telles realiza tal tracejo, já que o ambiente do conto, mesmo com um clima
de mistério, ganha credibilidade ao assemelhar-se a realidade vigente.
Ao retornamos ao conto, vemos o protagonista visualizar um cinzeiro e rememorar
sua vida com Naná, sua amante, bem como os feitos profissionais. Emília, ao retornar,
entrega-lhe um cigarro sob repreensão “Só um e chega! Disse em voz alta como se o
médico estivesse ali ordenando, nunca em jejum! Ele tinha uma voz sinistra, um
verdadeiro terrorista proibindo os melhores prazeres desta vida tão curta! disse em voz
alta soprando a fumaça para o teto.” (TELLES, 2018, p. 594).
Nesse ponto do conto, é perceptível o contato do leitor com uma espécie de
anunciação. Isto é, o fato de Emília alertar nosso protagonista e ele, por sua vez,
subestimar os conselhos médicos, embora sútil, faz com que haja uma percepção sobre a
tríade: viver, prazer e ameaça, já que é a representação do cigarro que traz prazer e ameaça
ao conceito de viver bem em um dia belo, descrito como aprazível pelo personagem.
No que segue a cena, o personagem observa um elegante paletó de seda importado
da Áustria, de aspecto novo e dispendioso, fazendo-o crer que Emília estava certa sobre
o casamento e que a mente dele é que estava dúbia. Questiona-se se seria o padrinho, mas
não consegue lembrar quem se casaria. “Ah, lá estava a etiqueta brilhosa, Cordis.”
(TELLES, 2018, p. 595).
A partir desse momento, é possível observar um sentimento de certa ânsia, já que
sua mão começara a tremer e a memória permanecia falha. Além disso, cordis, palavra
latina para coração, também pode designar misericórdia/ter compaixão, o que remonta
as tradições religiosas para quando alguém está em momento de desesperança ou
moribundo, nos meandros dos preceitos, ter misericórdia para que se possa purificar-se
dos pecados. Assim sendo, as mãos trêmulas também possibilita indícios do que o cigarro
provocara naquele corpo, ratificando melhor o exposto religioso.
Assim, “caminhou até o espelho e nele viu-se embaçado como uma figura de
sonho” (TELLES, 2018. p. 594). Mais uma vez, a figura do espelho turvo é apresentada.
Segundo Todorov (1980) “Há um fenômeno estranho que pode ser explicado de duas
maneiras, por tipos de causas naturais e sobrenaturais. A possibilidade de vacilar entre
ambas cria o efeito fantástico”. (p. 23).
É nessas causas sobrenaturais que encontramos o efeito que o espelho embaçado
traz, pois não provém das leis naturais, sendo, como bem aponta o autor, um
acontecimento que a razão não pode explicar. O personagem, por estar envolvido com os
enigmas daquela situação, não percebe que não há reflexo corporal.
Quando visualiza o armário e não encontra sua maleta costumeira de viagem,
empalidece e a angústia impera, já que naquele momento já havia se convencido que o
casamento seria dele e que normalmente seria aquele objeto que usaria para lua de mel
“Quem teria levado essa maleta e por quê?!...” (TELLES, 2018, p. 595). A maleta não só
viria representar a viagem física, mas também a metafísica, que interliga a relação entre
mente e matéria, transcendendo a experiência sensível, havendo, dessa forma, reflexão
diante de algo, inexplicável, frente ao personagem, bem como afirma o pensamento
Aristotélico (2006) e Kantiano (1986). Esse ensejo faz com que haja dúvidas em torno do
ter ou não perdido, de fato a memória.
Assim, na tentativa de recobrar e se autoafirmar, o personagem fala consigo
mesmo afirmando vários pontos de suas vivências:

“Perdi a memória!” Fechou as mãos e bateu com os punhos no chão.


“Mas se eu me lembro de tudo, como é que perdi a memória?” (...) “Mas
que brincadeira é esta? Estou ótimo, nunca estive tão bem, meu nome é
Miguel, advogado, quarenta anos, trabalho na Goldschmidt e Pedro é
meu chefe, eles são chatos mas pagam bem, minha mãe morreu há três
anos e Naná é minha amante, ela fazia cerâmica mas agora faz
estátuas… (TELLES, 2018, p. 595)

É notório a presença de mais elemento importantes ao conhecimento do leitor: o


nome do personagem, que se reconhece, e pontos chave sobre sua vida íntima, como a
morte dos pais, a amante Naná e sua profissão. Todavia, “lembrava-se de tudo, menos do
casamento, essa faixa da memória continuava apagada, só aí a névoa se fechava
indevassável.” (TELLES, 2018, p. 596). Não recordava no casamento e muito menos da
noiva, que, segundo o narrador, se diluía no éter “As coisas se passavam como nas
histórias encantadas, onde o príncipe mandava vir a donzela de um reino distante sem tê-
la visto nunca”. (TELLES, 2018, p. 596).
Com isso, testemunhamos, na narrativa, o universo em que o personagem existe e
se move orientando-se pelas mesmas categorias presentes no universo, o qual,
habitualmente, tomamos por real(idade). As suas estruturas não são modificadas por
outras, para além do que já temos conhecimento.
O acontecimento supostamente anormal em um ambiente controlado por nossas
leis – mesmo estranho – não é chamado pelo verdadeiro ‘nome’, já que o enunciado pelo
narrador entrelaça-se de tal forma que não é claramente visível. Dessa maneira, há uma
ambivalência e uma vacilação do leitor, mormente quanto a perda de memória seletiva
do noivo: seria loucura, lesão que ocasiona amnésia, trauma, ilusão, sonho?
De toda forma, o mistério da noiva perdida e do casamento eleva-se
gradativamente e, consequentemente, a angústia de Miguel, era como se fosse algo
sobrenatural ou um sonho persistente, pois no local desse traço de memória ficava o vazio,
que não se preenchia jamais.
O horror da espera, juntamente com a perturbação do sofrimento, fez com que
nomes de distintas mulheres com quem já tivera tido um relacionamento viesse à tona. A
figura de Dora aparece em páginas finais de um álbum, porém lembra-se do breve
romance e que já estava casada. O nome de Naná fora esquecido já que era desquitada e
o casamento seria na igreja. Rosana, viúva. Quatro anos de relacionamento com Jô, mas
criticou o ídolo da moça, Mozart, e esta desapareceu. Cecília, casada pela terceira vez.
Amanda era das noitadas, Regina já era mãe e Virgínia morta. Vera, irmã de seu melhor
amigo, também veio a ser uma hipótese, mas logo cessou.
Emília trouxe o café e em seu sorriso brotava um tom sombrio, como se estivesse
chocada diante da situação. Miguel, por sua vez, convence-se que a empregada está triste
pelo seu casamento e por não querer uma nova patroa na casa.
No entanto, os sinais de loucura, frente a própria consciência do personagem, já
surgiam e ele, a todo momento, queria fugir desse renome. Frederico, seu amigo, chega
para levá-lo ao evento e o apressa, indagando-o se havia tomando banho. Diante da
resposta negativa, responde: “Ainda não?! Santo Deus. Bom, paciência que agora não vai
dar mesmo tempo — exclamou Frederico empurrando-o para o quarto. — Vai sem tomar
banho. (...) — Você está pálido, Miguel, que palidez é essa? Nervoso?” (TELLES, 2016,
p. 598)
Com a chegada de Frederico e a saída de ambos, podemos observar alguns
aspectos que deixam o leitor ainda mais aflito, diante do mistério que rodeia o enredo:
Emília chora ao presenciar Miguel sair, atendo-se a falar que não irá ao evento, pois “não
gosta de ver”. Ademais, já na frente da igreja, Frederico oferece um lenço para que Miguel
limpe o sangue que estava escorrendo na barba – que ele tentou fazer mais cedo – e o
protagonista, portanto, guarda o lenço de sangue no bolso. O paletó era largo demais,
apertava o colarinho e a cabeça doía.
Diante do que fora exposto ao leitor, embora recaia no campo da interpretação, é
razoável associar o sangue escorrendo no rosto, perto da boca e o lenço embebido com o
líquido no bolso, as considerações que o médico fizera sobre o cigarro do protagonista, já
que as doenças advindas do uso excessivo de tabaco, podem causar sangramento e, em
muitos casos, levar a danos irreversíveis.
Ao entrar na igreja, o cheiro de flores de velório exala e a ênfase da nódoa de
sangue no lenço é revivida, “(...) É como se o seu sangue e não apenas algumas gotas
tivesse se esvaído. (...) ainda sangra? (TELLES, 2018, p. 599)”, perguntou Frederico.
Assim, a personagem caminha e se sente fraca, além do cheiro forte de flores e velas o
incomodar, afinal, “o perfume das flores era morno assim como nos velórios.” (TELLES,
2018, p. 599).
Naquele momento, começara a observar as vestimentas da família, na coloração
preta, e as angústias e tristezas, com choros e cochichos, inclusive da sua antiga amante.
A absorção de Miguel ainda é marcada por ilusões e expectativas, embora os sintomas
corporais cada vez mais anunciem a sua situação diante do (não) mundo, ou um mundo
que ele ainda estaria por conhecer, casando-se ou não.
Durante toda a narrativa há um explorar de suspense, mormente ao final, quando
o fio que interliga o enredo encaixa-se melhor frente ao que é revelado ao leitor. O
sobrehumano surge com mais afinco, quando o noivo começa a ter a visão da noiva vindo
em sua direção. Embora com a cabeça latejando com violência e o corpo desfalecendo, o
protagonista houve Tia Sônia informar que ela havia acabado de chegar: “a noiva foi
surgindo lentamente como se tivesse estado submersa abaixo do nível do tapete
vermelho” (...) “Ela foi se aproximando ao compasso grave da marcha” (...) “E quem
estaria por detrás, quem?” (TELLES, 2018, p. 599)
Ao final do conto, é exposto ao leitor o momento em que Miguel levanta o véu da
noiva e encontra apenas névoa, no entanto, começa a lembrar das memórias de infância e
das cantigas da “Senhora Dona Sancha” que costumava brincar, era “como se estivesse
ali à espera não há alguns minutos mas alguns anos, toda a duração de uma vida”. (...)
“Queremos ver sua cara!”. (TELLES, 2018, p. 600)
Diante dessas memórias infantis, o véu sobe devagar e o personagem experiencia
um sentimento de finitude, encarando-a e aninhando-se para o beijo do encontro: “Que
estranho. Lembrei-me de tantas e justamente nela eu não tinha pensado…” (TELLES,
2018, p. 600).
Sabendo-se que no gênero fantástico tem de conservar-se uma dialética engenhosa
entre duas hipóteses interpretativas – ilusão ou verdade – de um acontecimento,
alegadamente, estranho – já que se houvesse a comprovação das hipóteses a dialética seria
rompida e o equilíbrio e, por sua vez, declinaria-se para um dos lados –, o conto nos
mantém exatamente nessa conjuntura, pois mesmo que haja interpretações plurais diante
do leitor, como relatado nas linhas anteriores, há sempre uma hesitação.
Isso ocorre posto que a narrativa não revela, abertamente, sobre o motivo do
personagem vivenciar tais experiências de horror, medo, desespero, mistério e angústia
(sentimentos que também podem facilmente ser vividos por quem faz a leitura).
Além disso, também permanece no campo interpretativo se os acontecimentos
foram verdade ou ilusão. Os fenômenos que acontecem com Miguel não é explicado
diante das leis universais, abrindo espaço para o leitor elucubrar sobre loucura ou sonho,
por exemplo. Dessarte, Lygia Fagundes Telles elabora hipóteses que se perpetuam,
mantendo viva e dinâmica a ambiguidade e indecisão deste leitor.
Faz-necessário, de tal forma, salientar que a análise não teve como enfoque a
biografia e nem o conjunto estético ou de obras da autora, mas relacionar a teoria
apresentada com os elementos recorrentes no conto em questão, uma vez que o
sobrenatural e o insólito unem-se na teoria e no texto literário.
Além disso, a partir dessa pesquisa, não se esgota as possibilidades analíticas, nem
tampouco as que recaem sobre o tema do fantástico, já que Lygia Fagundes Telles é uma
autora multifacetada e seus contos exploram caminhos outros.
Espera-se, portanto, que a discussão contribua com a extensão não só dos
conhecimentos e percepções acerca do trabalho da autora, mas também da literatura
fantástica.
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