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Fui atrás dele, esppntadíssima, mal segurando a saia do vestido, que se


nâo molhasse na relva cheia de raiva e curiosa ao mesmo tempo.
-
os
O guarto do jardineiro era ao fundo, entre a horta e o jardim, ao pé
PORCOS
de dois limoeiros da Pérsia, de gostoso cheiro. Ensombrando a porta,
havia uma latada de maracujás, e, à esquina, encostados à parede, es-
tavam os utensílios de jardinagem.

- Que guererá ele? - perguntava a mim mesmâ. De repente,


estaquei:
Não entro respondi, a um gesto que me fazia.
- -
Então, olhe daí!
- - replicou o homem bruscamente, escanca-
rando a porta.
Encostei-me ao umbral para não cair. No meio do quarto, ,ob omà
avalanche de rosas, entrevi o corpo de uma mulher.

- Era minha filha - disse o jardineiro, entre soluços que mais I903
se assemelhavam a uivos que a dor humana
-; um dia abandonou,
-me, correu por esse mundo... Esta noite, veio bater ao portão, mui.
to chorosa... que o amante lhe batera... Ouviu bem, senhora?Í Quis
A Artur Azevedo
fazê-la iurar que desprezaúa agora esse bandido, para viver só no
meu carinho... só no meu carinho!... Eu havia de tratá-la com todo q
Quando a cabocla Umbelina apareceu gráwida, o pai moeu-a de surras,
mimo, como se fora uma criancinha... Fiz-lhe mil promessas, de ioe-
afirmando que daria o neto aos porcos para que o comessem.
lhos, com lágrimas... Sabe o que me respondeu, a tudo?! Que amava
O caso nío eranovo, nem a espantou, e que ele havia de cumprir a
ainda o outro!
promessa, sabia-o bem. Ela mesma, lembrava-se, encontraraumavez
Cego de raiva, matei-a; ah! matei-a e não me arrependo... Antes
um braço de criança entre as flores douradas do aboboral. Aquilo, com
morta por um pai honrado do que batida por um cão qualquer...
certeza, tinha sido obra do pai.
Depois de morta... achei-a linda, linda! mas, coitadinha! vinha ml-
Todo o tempo da gravidez pensou, numa obsessão crudelíssima,
serável, quase nua... tive pena, e, para fazê-La apatecet bem a Nossa
torturante, naquele bracinho nu, solto, frio, resto dum banquete de-
Senhora, vesti-a de rosasÍ...
licado, que a torpe voracidade dos animais esquecera por cansaço e
enfartamento. Umbelina sentava-se horas inteiras na soleira da porta,
alisando com um pente vermelho de celuloide o cabelo negro e corre-
dio. Seguia âssim, preguiçosamente, com olhar agudo e vagaroso, a§
linhas do horizonte, tugindo de fixar os porcos, aqueles porcos
maldi- Onde se esconderia o grande Deus, divinamente misericordioso,
tos, que lhe rodeavam a casa desde manhã até a noite.
de quem o padre falava na missa do arraial em termos que ela não
Via-os sempre ali arrastando no barro os corpos imundos,
de pero atingia, mas a faziam estremecer?
ralo e banhas descaídas com o olhar guloso, ruzindo sob a párpebra
Ninguém pode fugir ao seu destino, diziam todos; estaria en-
mole e o ouvido encoberto pela orelha chata, no egoísmo
brutal de en- tão escrito gue a sua sorte fosse essa que o pai lhe prometia de
contrar em si toda a atenção. os leitões vinham por vezes, barulhentos -
matar a fome aos porcos com a carne da sua carne, o sangue do
e às cambalhotas, envolverem-se na sua saia e ela sacudia-os
de nojo, seu sangue?!
batendo-lhes com os pés, dando-lhes com torça. os porcos
não a te- Essas coisas rolavam-lhe pelo espírito, indeterminadas e confusas.
miam, andavam perto, fazendo desaparecer tudo diante da
sofreguidâo A raiva e o pavor do parto estrangulavam-na. Não queria bem ao filho,
dos seus focinhos rombudos e móveis, que iam e vinham grunhindo,
odiava nele o amor enganoso do homem que a seduzira. Matá-lo-ia,
babosos, hediondos, sujos da rama em que se dereitavam,
ou alourados esmagá-lo-ia mesmo, mas lançá-lo aos poÍcos... isso nunca! E voltava-
pelo pó de milho, que estava ali aos montes, flavescendo
ao sol. lhe à mente, num arrepio, aquele bracinho solto, gue ela tivera entre
Ah! os porcos eram um bom sumidouro para os vícios do cabocro!
os dedos indiferentes, na sua bestialidade de cabocla matuta.
umbelina execrava-os e ia passando de modo d,e acabar com o filho
O céu estava limpo, azttl, n:um céu de janeiro, quente, vestido de
duma maneira menos degradante e menos cruel.
luz, com a sua estrela Vésper enorme e diamantina, e a lua muito gran-
Guardar a criança... mas como? O seu olhar interrogava em
vâo o de, muito forte, muito esplendorosa!
horizonte frouxelado de nuvens.
A cabocla espreitou com olho vivo para os lados da roça de milho,
O amante, filho do patráo, tinhâ_a posto de lado... diziamaté
que onde ao seu ouvido agudíssimo parecera sentir uma bulha cautelosa
ia casar com outral Entretanto achavam-na todos bonita,
no seu tipo de pés humanos: mas não veio ninguém, e ela, abrasada, arrancou o
de índia, principalmente aos domingos, quando se enfeitava
com as xale dos ombros e arrastou-o no chão, segurando-o com a mão, que
maravilhas vermelhas, que rhe davam colorido à pele bronzead,a
ea as dores do parto crestavam convulsivamente. O corpo mostÍou-se
vestiam toda com um cheiro doce e modesto...
disforme, mal resguardado por uma camisa de algodão e uma saia de
Eram duas da madrugada, quando Umbelina entreabriu
um dia a chita. Pelos ombros estreitos agitavam-se as pontas do cabelo negro
porta da casa paterna e se esgueirou para o terreiro.
e luzidio; o ventre pesado, muito descaído dificultava-lhe a marcha,
Fazia luar; todas as coisas tinham um brirho suavíssimo.
A água que ela interrompia amiúde para respirar alto, ou parâ agachar-se,
do monjolo caía em gorgolões soluçados, flanqueando o rancho
de contorcendo-se toda.
sapé, e correndo depois em fio luminoso e trêmulo pela
planície toda. A sua ideia era ir ter o filho na porta do amante, matá-lo ali, nos
Flores de gabiroba e de esponjeira brava punham lençóis
de neve na degraus de pedra, que o pai havia de pisar de manhã, quando descesse
extensa margem do córrego; todas as ervas do mato cheiravam
bem. para o passeio costumado.
Um galo cantava perto, outro respondia mais longe, e ainda
outro, e Uma vingança doida e cruel aquela, que se fixara havia muito tem-
outro, até que as vozes dos últimos se contundiamna distância
com po no seu coração selvagem.
os mais leves rumores noturnos.
A criança tremia-lhe no ventre, como se pressentisse que entraria
umbelina afastou com a mão febril o xare que a envorvia, e,
desco- na vida para entrar no túmulo, e ela apressava os passos nervosamente
brindo a cabeça, investigou com olhar sinistro o céu profur-rdo.
prlr sohrc as folhas da trapoeraba maninha.
l
F
Ai! iam ver agora quem era a cabocra! Desprezavam-na? Riam-se Súbito, sacudiu-a uma dor violenta, gue a tomou de assalto, obri-
dela? Deixavam-na à toa como um cão sem dono? pois gue esperas-
gando-a a cravar as unhas no chão. Aquela brutalidade fê-la prague-
seml E ruminava seu plano, receando esquecer alguma minúcia... jar e ergueu-se depois raivosa e decidida. Tinha de atravessar todo o
Deixaria a criança viver alguns minutos, fá-la-ia mesmo chorar,
comprido pasto, a margem do lago e a orla do pomar, antes de cair na
paÍa gue o pailá dentro, entre o conforto do seu colchão de paina, porta do amante.
que ela desfiara cuidadosamente, lhe ouvisse os vagidos débeis
e os Foi; mas as forças diminuíam e as dores repetiam-se cadavez
guardasse sempre na memória, como um remorso. Ela estava perdida.
mais próximas.
Em casa não a queriam; arrrã.e renegava_a, o pai batia_lhe, o
aman_ Lá embaixo apareciaiâ a chapa branca, batida do luar, das pa-
te fechava-lhe as portas... e umberina praguejava alto, ameaçando de
redes da casa.
fazer cair sobre toda a gente acóleradivina!
A roceira ia com os olhos fitos nessa \uz, apressando os passos can-
o luar com a sua luz brancacent a e fuia iruminava a triste ca- sados. O suor caía-lhe em bagas grossas por todo o corpo, ao tempo
minhada daquela mulher quase nua e pesadíssima, que ia golpeada
que as pernas se the vergavam ao peso da criança.
de dores e de medo através dos campos. umberina ladeou a roça
No meio do pasto, uma figueira enorme estendia os braços som-
de milho, já seca, muito amarelada, e que estalava ao contato do
brios, pondo uma mancha negra em toda aquela extensão de luz. A ca-
seu corpo mal firme: passou depois o grande canavial, dum verde
bocla quis esconder-se ali, cansada da claridade, com medo de si mes-
d'água, que o luar enchia de doçura e que se alastrava pelo morro
ma, dos pensamentos pecaminosos que tumultuavam no seu espírito
abaixo, atéláperto do engenho, na esplanada da esquerda. por entre
e que a lua santa e branca parecia penetrar e esclarecer. Ela alcançou a
âs canas houve um rastejar de cobras, e ergueu_se da outra
banda, sombra com passadas vacilantes; mas os pés inchados e dormentes já
na negrura do mandiocal, um voo fofo de ave assustada. A cabocla
não sentiam o terreno e tropeçavam nas raízes das árvores, muito es-
benzeu-se e cortou direito pelo terreno mole do feijoal aind,anovo,
tendidas e salientes no chão. A cabocla caiu de joelhos, amparando-se
esmagando sob a sola dos pés curtos e trigueiros as folhinhas tenras
paÍa a frente nas mãos espalmadas. O choque foi rápido e as últimas
daplanta ainda sem flor. Depois abriurâem cima a cancera, que ge-
dores do parto vieram tolhê-1a. Quis reagir e ainda levantar-se, mas iá
meu prolongadamente nos movimentos de ida e volta, com que
ela não pôde, e furiosa descerrou os dentes, soltando os últimos e agudís-
o impeliu para diante e para trás, entrou no pasto d.a fazenda.
Uma simos gritos da expulsão.
grande nudez por todo o imenso gramado. o terreno descia
numa Um minuto depois a criança chorava sufocadamente. A cabocla en-
linha suave até o terreiro da habitação principal, gue aparecia ao
tão arrancou com os dentes o cordão da saia e, soerguendo o corpo,
longe num ponto branco. A cabocra abaixou-se tolhida, suspenden-
atou com firmeza o umbigo do filho, e enrolou-o no xale, sem olhar
do o ventre com as mãos.
quase para ele, com medo de o amar'..
Toda a sua energia ia fugindo, espavorida com a dor física, que
se Com medo de o amar!... No seu coração de selvagem desabrocha-
aproximava em contrações violentas.
va timidamente a flor da maternidade. Umbelina levantou-se a cus-
umbelina sentia uma grande ternura tomar-lhe o coração, subir- to com o filho nos braços. O corpo esmagado de dores, que parecia
lhe aos olhos.
esgarçarem-|he as carnes, não obedecia à sua vontade. Lá embaixo a
Não a sabia compreender e deixava-se ir naguera vaga sublime-
nTcsrna chapa de luz alvacenta acenava-lhe, chamando-a pata a vin-
mente piedosa e triste...
,lilnÇit ou pitra o amor. Julgava agora que se batesse àcluclas ialrclas c
JÚLIH LIIFES DE ffLI{[IDfl

chamasse o amante, ele viria comovido e trêmulo beijar o seu primeiro "e*+SeX""
filho. Aventurou-se em passadas custosas a seguir o seu caminho, mas
voltaram-lhe depressa as dores e, sentindo-se esvair, sentou-se na gta-
mapara descansar. Descobriu então a meio o corpo do filho; achou-o O CASO
branco, achou-o bonito, e num impulso de amor beijou-o na boca. A de
criança moveu os lábios na sucção dos recém-nascidos e ela deu-lhe o RUTH
peito. O pequenino puxava inutilmente, a cabocla não tinha alento, a
cabeça pendia-lhe numa vertigem suave, veio-lhe depois outra dor, os
braços abriram-se-lhe e ela caiu de costas.
A lua sumia-se, e os primeiros alvores da aurora tingiram dum ró-
seo dourado todo o horizonte. Em cima o azul carregado da noite mu-
dava para um violeta transparente, esbranquiçado e diáfano. Foi no
meio daquela doce transformação da luz que Umbelina mal distinguiu
um vulto negro, que se aproximava lentamente, arrastando no chão as
mamas pelancosas, com o rabo fino, arqueado sobre as ancas enormes,
o pelo hirto, irrompendo ralo da pele escura e rugosa, e o olhar guloso,
estupidamente fixo: era uma porca.
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Umbelina sentiu-a grunhir. Viu confusamente os movimentos re-
petidos do seu focinho trombudo, gelatinoso, que se arregaçava, mos-
trando a dentuça amarelada, forte. Um sopro frio correu por todo o A Valentim Magalhães
corpo da cabocla, e ela estremeceu ouvindo um gemido doloroso, do-
lorosíssimo, gue se cravou no seu coração aflito. Era o filho! euis er- pode abraçar sua noiva! Disse com bamboleaduras na papeira fláci-
guer-se, apanhá-lo nos braços, defendê-1o, salvá-Io... mas continuava a
da a palavrosa baronesa Montenegro ao Eduardo ]ordão, apontando a
esvair-se, os olhos mal se abriam, os membros lassos não tinham vigor,
neta, que se destacava na penumbra da sala como um lírio alvíssimo
e o espírito mesmo perdia a noção de tudo.
irrompido entre os florões grosseiros da alcatifa.
Entretanto, antes de morrer, ainda viu, vaga, indistintamente, o
Ele não se atreveu, e a moça conservou-se impassível.
vulto negro e roliço daporca, que se afastava com um montão de car-
Não se admire daquela frieza. Olhe: eu sei que Ruth o ama, não
ne perdurado nos dentes, destacando-se isolada e medonha naquela -
porque ela o dissesse - esta menina é de um recato e de um melindre
imensa vastidão cor-de-rosa.
de envergonhar a própria sensitiva - mas porque toda ela se altera
quando ouve o seu nome. o corpo treme-lhe, avoz mtsda de timbre
e os olhos brilham-lhe como se tivesse fogo lá por dentro. Outro dia,
porque uma prima mais velha, senhora de muito respeito, ousasse pôr
em dúvida o seu bom caráter, a minha Ruth fez-se de mil cores e tais
coisls lhc tlissc que nem sei como a olltra a mtttrou!
Toda a gente percebe que ela o ama; mas é uma obstin ada e lá tenho criado muitas meninas, minhas e alheias, mas em nenhuma
guarda consigo o seu segredo... Agora, que o senhor vem pedi_la, encontrei nunca tanta doçura, taflta altivez digna e tanta pudicícia.
é
que eu lhe declaro que estava morta por que chegasse esse momento. Aí lha deixo: confesse-a!
Apreciei-o sempre como um coração e um espírito de bom quilate. A velha saiu.
- Oh! Minha senhora... Todos os rumores da rua rolaram confusamente pela sala. A por-
- Não lhe faço favor. Além disso, Ruth está com vinte e três anos: ta que se abriu e fechou, trouxe, numa raja de luz, os repiques dos
parece-me ser já tempo de se casar. Há de ser uma excelente esposa: sinos, o rodar dos veículos, o sussurro abominável da cidade atate-
é bondosa, regularmente instruída, nada temos poupado com a sua fada: mas também tudo se extinguiu depressa. A porta fechou-se,
educação: e se não aparece e brilha muito na sociedade é pelo seu ex- as janelas voltadas para o jardim mal deixavam entrar a claridade,
cesso de pudor. Eu às vezes cismo que esta minha neta é pura demais coada por espessas cortinas corridas, e os noivos ficaram sós, silen-
para viver na terra. Todas as pessoas de casa têm medo de lhe ferir ciosos, contemplando-se de face.
os
ouvidos e escolhem as palavras quando falam com ela. Não admira: a
mãe teve só esta filha e foi rigorosíssima na escolha das mestras e das
amigas; o padrasto tratava-a também com muita severidade, embora
fosse carinhoso. um santo homem! Desde que ele morreu que nos O finado barão fora um colecionador afincado de móveis e de outros
fal-
ta a alegria em casa... A mulher, coitada, como sabe, ficou paralítica; e objetos dos tempos coloniais. Súdito de D. João vr, de que a sua ado-
esta pequena mesmo tornou-se melancólica e sombria. Às vezes penso rável memória acusava ainda todos os traços jâ aos noventa anos, era
que ela fez voto de castidade, tal é o seu recato; desengano-me lem- sempre o seu assunto predileto anarraçã,o dos sucessos históricos pre-
brando-me de quanto é moderada na religião e de que o seu bom sen- senciados por ele. À proporção que se ia afastando dos seus dias de
so se revela em tudo! o que tenho a dizer-lhe, portanto, é isto: afirmo- moço, mais aferrado se fazia aos gostos e às modas do seu tempo.
-lhe que Ruth o adora e que não há alma mais cândida, nem espírito Só se servia em baixela assinada com os emblemas da casa bra-
mais virginal que o seu. Aí a deixo por alguns minutos; se é o respeito gantina e a propósito de qualquer coisa dizia, fincando o gueixo
por mim que lhe tolhe as palavras, concedo-lhe plena liberdade. agudo entre o indicador em curva e o polegar: "Lembro-me de uma
Eduardo fixou na noiva um olhar apaixonado. Na sua brancura de vez em que D. Carlota ]oaquina..." Ou então: "Em que D. João vt, ou
petala de camélia não tocada, Ruth continuava em pé, no mesmo D. Pedro l" etc. e em seguidalâvinha uma descrição de tmTe-Deum,
can-
to sombrio da casa. os seus grandes olhos negros chispavam febre e ou de uma procissão, que a sua imaginação facultosa emprestava as
ela amarrotava com as mãos, lentamente, em movimentos apertados, mais brilhantes pompas. A família tinha um sorriso condescenden-
o Iaço branco do vestido. te para aquele apego, já sem curiosidade, à força de ouvir repetir
A baronesa acrescentou ainda, carregando nas qualidades da neta e os mesmos fatos. Os amigos evitavam tocar, de leve que fosse, em
fazend.o ranger a cadeira de onde se erguia: assuntos políticos, receosos da lonjura do capítulo que o barão a
- Ruth nunca foi de lastimeiras, e, apesar de mimosa e de aparen- propósito lhes despejasse em cima: mas só ele, o bom, o fiel, nada
temente frágll, tem boa saúde. um bom corpo ao serviço de uma ex- percebia, e, com os olhos no passado, toca a citar ditos e atitudes
celente alma. Dirão: "Estas palavras ficam marnaboca!..." pouco im- d«rs inrpcraclores e a curvar-se numa idolatria pelo espírito boníssi-
porta: não são a verdade. Tenho outras netas, filhas de outras filhas: rrro <l;r riltinur irr.rpcratriz.
Era nessa mesma sala que ela estava ainda, muda e pâlida, em fren-
Alguma coisa disso se refletira em casa: tudo ali era sóbrio, monó-
te do seu amado.
tono e saudoso.
Cadeiras pesadas, de moldes coloniais, largas de assento, pregueadas - Ruth... balbuciou Eduardo.
Mas a moça interrompeu-o com um gesto e disse-lhe logo, com voz
no couÍo lavrado de coroas e brasões fidalgos, uniam as costas às paredes,
segura e firme:
de onde um ou outro quadro sacro pendia desguarnecido e tristonho.
Minha avó mentiu-lhe.
Assim o quisera ele, que até mesmo na hora suprema rejeitata um -
O noivo recuou, num movimento de surpresa; foi ela que aproxi-
belo crucifixo que lhe oferecia o padre, voltando os olhos suplicemen-
mou-se dele, com esforço arrogante e doloroso, deslumbrando-o com
te para um outro crucifixo mais tosco, erguido sobre a cômoda, e que
o fulgor de seus olhos belíssimos, bafejando-lhe as faces com o seu
pertencera a D. Pedro l.
hálito ardente.
Para ele, naquela cruznáo estava só o Cristo: estava, de envolta com
o respeito pelos monarcas extintos, as lembranças de seus folguedos - Eu não sou pura! Amo-o muito paÍa o enganar. Eu não sou pura!
Eduardo, lívido, com latejos nas fontes e palpitações desordenadas
de moço. 'falvez mesmo, num volteio súbito da memória, se lembrasse
no coração, amparou-se a umâ antiga poltrona, velha relíquia de D.
das festas religiosas em que ÍtamotaÍa, à sombra dos conventos, a sua
Pedro 1, e olhou espantado pata a noiva, como se olhasse para utna
primeira mulher, e beliscara com freimas amorosas os braços gordos
louca. Ela, firme na sua resolução, muito chegada a ele, e a meia voz,
de lanoca, a mulatinha mais faceira de então... Quem sabe? Talvez que
para que a não ouvissem lá dentro, ia dizendo tudo:
na hora da morte não se possa só a gente lembrar das coisas sérias.
Qualquer hora vivida pode ser recordada rapidamente, sem tempo - Foi há oito anos, agui, nesta mesma sala... Meu padrasto era um
homem bonito, forte: eu uma criança inocente... Dominava-me: a sua
de escolha.
vontade era logo a minha. Ninguém sabel OhÍ Não fale! Não fale, pelo
Como alanoca não pertencia à história, a família ignorou-a; e pelo ar
amor de Deusl Escute, escute só; é segredo para toda a gente... No fim
gélido daquela galeria de espectros palacianos não apareceu nem um reque-
de quatro meses de uma vida de luxúria infernal, ele morreu, e foi ain-
bro quente da mulatinha risonha, que lhes desmanchasse a compostura.
da aqui, nesta sala, entre as duas janelas, que eu o vi morto, estendido
Depois de viúva, a segunda baronesa reformara algumas coisas e
na essa. Que libertação, que alegria que foi aquela morte para a minha
contundira os estilos, pondo no mesmo canto um contador Luiz xv,
alma de menina ultrajada! Ele estava no mesmo lugar em que me dera
um móvel da Renascença e uns tapetes modernos, entre largos repos-
os seus primeiros beijos e os seus infames abraços; ali! ali! oh, o danado!
teiros de seda cor de marfim.
mais do que nunca o quero mal agora! Não fale, Eduardol Minha avó
Aquela extravagância não conseguira quebrar a severidade do todo.
morreria, sofre do coração: e minha mãe ficou paralítica com o des-
Tinha uma fisionomia casta e grave aquela sala.
gosto da viuvez... Desgosto por aquele cão! e ela ainda me manda rezaÍ
As virgens dos quadros, de longo pescoço arqueado e rosto pegue-
por sua alma, a mim, que a quero no inferno! Às veres tenho ímpetos
nino, gozavam ali o doce sossego de uma meia tinta religiosa.
de lhe dizer: "Limpa essas lágrimas; teu marido desonrou tua filha, foi
Mas 1á dentro, os dias passavam entre o tropel da criançada, os
seu amante durante quatro meses..." Calo-me piedosamente; e acodem
sons do piano de Ruth e a confusão dos criados.
todos: que não chorei a morte daquele segundo pai e bom amigo!
E era por isso, que todos fugiamlâpara dentro e que só Ruth, nas
suas horas de inexplicável tristeza, se encerrava ali, em companhia da
aaa
Madona da Caldeira e da Virgem de S. Sisto.

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E isto a minha vida. cedi sem amor, pela violência, mas cedi. Dou-
-
lhe a liberdade de restituir a sua palavra à minha família. confessaria àquele que amasse só para não sentir a humilhação de o
Ruth falara baixo, precipitando as palavras, toda curvada para enganar. E o que é pot aí a vida conjugal senão a mentira, a mentira e,
Eduardo' que lhe sentia o aroma dos cabelos e o calor da febre. mais ainda, a mentira?
Em um último esforço, a moça fez-rhe sinal que saísse e ele O outro está morto... ninguém sabe, só ela e eu! Ela e eu! e que nos
obede-
ceu, curvando-se diante dela, sem lhe tocar na mão. importam os outros, tendo toda a mâgoa em nós dois só?! Antes to-
dos os outros soubessem... Não! Que será preferível
- ser desgraçado
guardando uma aparência digna, ou... ? Não! em certos casos ainda há
alguma felicidade em ser desgraçado... Ela ama-me... eu amo-a... ele
O outro está morto há oito anos... ninguém sabe, só ela e eu... Está morreu há oito anos... já náo lhe falam sequer no nome... Ninguém
morto, mas vejo-o diante de mim: sinto-o no meu peito, sobre os sabe! ninguém sabe... só ela e eu!
meus ombros, debaixo de meus pés, nele tropeço, com ele me abraço Eduardo Jordão passava agora os dias em uma agitação medonha.
em uma luta que não venço nunca! Ninguém sabe... mas por Atraía e repelia a imagem de Ruth, até que um dia, vencido, escreveu-
ser igno-
rada será menor a culpa? Dizem todos que Ruth é puríssima! -lhe longamente, amorosamente, disfarçando, sob um manto estre-
Assim
o creem. Deverei contentar-me com essa credibilidade? Bastará lado de palavras de amor, a irremediável amargura da sua vida. "Que
mais
tarde, paÍa a minha ventura, saber que toda a gente me imagina esquecesse o passado... ele amava-a... o tempo apagaria essa ideia, e
feriz?
o meu amigo Daniel é felicíssimo, exatamente por ignorar o gue os eles seriam felizes, completamente felizes."
outros sabem. se a mulher dele tivesse tido a coragem de Ruth, amá-la-
-ia da mesma maneira? se a minha noiva nâo tivesse me dito
nada, não
seria o morto quem se levantasse da sepultura e me viesse reratar
bar-
baramente as suas horas de volúpia, gue me fazem tremer de horror! O casamento de Ruth alvoroçava a casa. A baronesa ocupava toda a gen-
E eu, ignorante, seria venturoso, amariaa minha esposa, te, sempre abundante em palavras e detalhes. Só Ruth, ainda mais ar-
à sombra do
maior respeito e com a mais doce proteção... E assim?r poderei sempre redia e séria, se encerrava no seu quarto, sem intervir em coisa alguma.
conter o meu ciúme e não aludir jamais ao outro? Relia devagaÍ a carta do noivo, em que o perdão que ela não solici-
Ele morreu há oito anos... era só tinha quínze... ninguém sabe! tara vinha envolvido em promessas de esquecimento. Esquecimento!

ela e eu!... e ela ama-me, ama-me, ama-me! se não me amasse como se fosse coisa que se pudesse prometer!
e fosse
em todo caso minha dir-me-ia do mesmo modo tudo? Não... parece- A moça, de bruços na cama, com o queixo fincado nas mãos, os
-me que não... não sei... se não me amasse... nada me diria! olhos parados e brilhantes, bem compreendia isso.
Daí, quem
sabel Amo-o muito para o enganar... parece-me que lhe ouvi Entraria no lar como uma ovelha batida. O perdão que o noivo lhe
isto! Se
eu pudesse esquecê-la! Não de'o adorá-la assim! É uma mulher mandava revoltava-a. Pedira-lhe ela que the narrasse a sua vida dele,
de-
sonrada. A pudica açucena de envergonhar sensitivas é uma as suas faltas, os seus amores extintos? Não teria ele compreendido a
murher
desonrada... E eu amo-a! eue hei de fazer agora? Abandoná_l enormidade do seu sacrifício? Seria cegol seria surdo?... dono de um
a... náo
seria digno nem generoso... Aquela confissão custou-lhe uma agonia! coração impenetrável e de uma consciência muda? As suas mãos esta-
se ela não fosse honesta não afrontaria assim a minha cólera, nenr rianr só afeitas a carícias que não procrlrassem estrangulá-la no tcrrí-
se
vt'l irrstiurtc cr'r'r quc cla Ihc clissera cu rrão sou pura? ()rr crrliio por'
-
.9'; 'à- .Íi. r,.^
ata .§. ,
corpo angélico' tão casta-
que não a ouvira de joelhos, compenetrado daquele amoÍ, tão grande
- Quêl seria ainda paÍa o outro aquele
para o outÍo
que assim se desvendava tudo?l Ele prometia esquecerl mas no futuro, mente emoldurado nas roupas do noivado? Seria ainda
ser sua?!
quando se enlaçassem, não evocariam ambos a lembrança do outro? aquela mocidade, aquela criatura divina, que deveria
Talvez que, então, Eduardo a repelisse, a deixasse isolada no seu leito E a mesma voz rePetiu:
de núpcias, e fugindo para a noite livre fosse chorar lâ fora o sonho
- Vai ficar com o Padrasto"' sósl Fora para
da sua mocidade... Sim, a sua noite de núpcias seria uma noite de in- Com o padrasto, noites e dias"' fechados"' unidos"'
fernol Se ele fosse generoso ela adivinharia através da doçura do seu isso que ela se mata ta' parair ter com o outro! Aquele
outro de quem
pata a re-
beijo os ressaibos da lembrança do primeiro amante; e quanto maior via o esqueleto torcendo-se na cova, de braços estendidos
fosse a paixão, maior seria a raiva e o ciúme. conquista da sua amante!
o véu e
Esquecimento!... sim... talvez, lâ para a velhice, quando ambos, Alucinado, ciumento, Eduardo aÍrancou então num delírio
frios e calmos, fossem apenas amigos. as flores de Ruth, e inclinando um tocheiro
pegou fogo ao pano da essa'
que viam sorrir a
Ruth pensou em matar-se. Viver na obsessão de uma ideia humi- E a todos que acudiram nesse instante pareceu
thante era demais para a sua altivez. Desejou então uma morte suave, morta em um êxtase, como se fosse aquilo que ela desejasse"'
que a levasse ao túmulo com a mesma aparência de recém-cândida, de
envergonhar a pr ópria sensitiva.
Queria um veneno que a fizesse adormecer sonhando; e quânto
derapara que nesse sonho fosse um beijo de Eduardo que lhe pou-
sasse nos lábios!

De luto a casa. Ramos e coroas virginais entravam a todo o instante.


Quem saberia explicar a morte de Ruth? Foram achá-la estendida na
cama, já" toda fria.
Agora estava entre as duas janelas, na grande sala sombria, espa-
lhando sobre o fumo da essa as suas rendas brancas e o seu fino véu
de noiva. Parecia sonhar som o desejado esposo, que ali estava a seu
lado, pálido e mudo.
Entravam iâpara o enterro e foi só então que umavoz disse alto,
saindo da penumbra daquela sala antiga:

- Vai ficar com o padrasto, no mesmo jazigo...


Eduardo fixou a morta com doloroso espanto. Estava linda! Na pele
alvíssima nem uma sombra. Os cabelos negros, mal atados na nLlca,
desprendiam-se em uma madeixa abundante, de largas ondas.
JÚLIfl LIIPI5 NE HtI{EI[fl

- Aptteza na mulher é como o aroma na flor.


"lde confessâÍ a vossa alma ao grande Osíris! para a terdes limpa
de toda a mâcula e poderdes dizer no fim da vida; Eu não fiz derramar
A NEUROSE lágrimas; eu não causei terror!"
da "Quanto mais elevada é a posição da mulher, maior é o seu dever
de bem se comportar."
COR "Curvai-vos perante a côlera dos deuses! lavai de lágrimas as dores
alheias, para que sejam perdoadas as vossas culpasÍ"
"Evitai a peste e tende horror ao sangue..."

- Nota bem, princesa:


E tende horror ao sangue!
A princesa sonhava: ia navegando num lago vermelho, onde o sol
estendia móvel e quebradiça uma rede dourada. Recostava-se num
barco de coral polido, de toldo matizado sobre varais crivados de ru-
bis; levava os pés mergulhados nLlma alcatifa de papoulas e os cabelos
semeados de estrelas...
Quando acordou, o sacerdote,iâde pé, enrolava o papiro, sorrindo
I903 com ironia.
Ainda estás aí?
-
Para vos repetir: Arrependei-vos, não abuseis da vossa posição de noi-
Desenrolando o papiro, um verho
-
sacerdote sentou-se ao lado da bera va do senhor de todo o Egito... lavai para sempre as vossas mãos do sangue...
princesa lssira e principiou a ler_lhe A princesa fez um gesto de enfado, voltando para o outro lado o
uns conselhos, escritos por um
sábio antigo. Ela ouvia-o indolente, rosto; e o sacerdote saiu.
deitada sobre as clobras mores e
fundas de um manto d.e purpura;os lssira levantou-se, e, arqueando o busto para trás, estendeu os bra-
grandes olhos negros cerrados,
os
braços nus cruzados sobre a n*ca,
o, pe, trigueiros e descalços unidos ços, num espreguiçamento voluptuoso.
à braçadeira de ouro lavrado Uma escrava entrou, abriu de par em par alargajanela do fundo,
do leito.
Pelos vidros de cores brirhantes colocou em frente a cadeira de espaldar de marfim com desenhos e hie-
das janeras, entravairíad,a aruz
d,o
sol' o ardente sol do Egito, pondo róglifos na moldura, pôs no châo a almofada para os pés, e ao lado a ca-
reflexos fugitivos nas rongas barbas
prateadas do velho e nos cabelos
escuros da princesa, sobre a çoula de onde se evolava, enervante e entorpecedor, um aroma oriental.
sua túnica de linho fino. "rp".r"o, lssira sentou-se, e, descansando o seu formoso rosto na mão, olhou
O sacerdote, sentado num tamborete, demoradamente para a paisagem. A viração brincava-lhe com a tuni-
baixo, continuava a ler no
papiro, convictamente; entretanto ca, e o fumo da caçoula envolvia-a toda.
a princesa, inclinando a cabeça
para trás, adormecia! C) céu, azul-escuro, não tinha nem um leve traço de nuvenr. A cicla-
Ele lembrava-lhe: <lc tlc'lt'hus p;rrccia racliante. Os vidros e os metais deitavarrr chisp;rs
de fogo, como se aqui, ali e acolá,houvesse
incêndio; e ao fundo, entre
as folhagens escuras das árvores
ou as paredes do casario, serpeava, Esquecera aplacidez de Karnac. Lamentava só as ovelhinhas bran-
como uma largafita de aço batida
d.eluz,o rio Nilo. cas que ela imolava nos seus jardins das papoulas rubras.
Princesa de raça, neta de um faraó,
lssira era orgulhosa; odiava A loucura do encarnado aumentou.
todas as castas, exceto a dos reis
e a dos sacerdotes. Fora d.ad.a para Os seus aposentos cobriram-se de tapeçarias vermelhas. Fram ver-
esposa ao filho de Ramsés, e sem
amá_lo, aceitava _o, paraser rainha. melhos os vidros das janelas; pelas colunas dos longos corredores en-
Era formosa, indomável, mas vítima
de uma do"ri, singular: a ne_ rolavam-se hastes de flores cor de sangue.
vrose da cor. O vermelho fascinava_a.
Descia às catacumbas iluminada por fogos encarnados, cortando a
Muito antes de ser a prometida do futuro grandiosa soturnidade daqueles enormes e sombrios edifícios, como
rei, chegava a cair em
convulsões ou delíquios ao ver flores
de romãzeiras,que não pudesse umâ nuvem de fogo que ia tingindo, deslumbradora e fugidia, os saÍ-
atingir, ou as listas encarnadas dos kalasiris
dos homens do povo. cófagos de pórfiro ou de granito negro.
A medicina egípcia consurtou as suas
teorias, pôs em prática todos Não lhe bastava isso; lssira queria beber e inundar-se em sangue.
os seus recursos, e curvou-se vencida
diante do mal. Não já o sangue das ovelhinhas mansas, brancas e submissas, que iam
Issira, entretanto, degolava as ovelhinhas
brancas, bebia_lhes o de olhar sereno pâra o sacrifício, mas o sangue quente dos escravos
sangue, e só plantava nos seus jardins
papoulas rubras. revoltados, conscientes da sua desgraça; o sangue fermentado pelo
Na aldeia em que nascera e em que
tinha vivido, Karnac, forrava de azedwe do ódio, sangue espumante e embriagador!
linho vermelho os seus aposentos; era
neres que era bebia em taças de Um dia, depois de assistir no palácio a uma cena de pantomimas
ouro o precioso líquido.
e arleguinadas, lssira recolheu-se doente aos seus aposentos; tinha a
Princesa e formosa, a fama levou_lhe
o nome ao herdeiro de um boca seca, os membros crispados, os olhos muito brilhantes e o rosto
Ramsés; e logo o príncipe, curioso,
seguiu para essa terra. extremamente pálido.
O seu primeiro encontro foi no templo. O noivo andava por longe a visitar províncias a caçar hienas.
Ele esperava_a no cen_
tro do enorme pátio, entre âs galerias de lssira, estendida sobre os coxins de seda, não conseguia adormecer.
corunas, ansiosamente.
Ela vinha no seu palanquim de seda,
coberta de pérolas e de púrpu_ Levantava-se, volteava no seu amplo quarto, desesperadamente, como
ra, passando radiante e indolente entre
as seiscentas esfinges que uma pantera ferida a lutar com a morte.
flanqueavam a rua.
Faltava-lhe o ar; encostou-se a uma grande coluna, ornamentada
Dias depois morria o pai de rssira,
úrtimo descendente dos faraós, com inverossímeis figuras de animais entre folhas de palmeira e de
após a sua costumada refeição de
reite e mer. o príncipe Ramsés sori- lódão; e ai, de pé, movendo os lábios secos, com os olhos cerrados e o
citou a mão da órfã e fê-la transp oÍtar
parao palácio rear, em Tebas. corpo em febre, deliberou mandar chamar um escravo.
Abeleza de rssira deslumbrou a corte;
a sua artivez fê-la respeitada A um canto do quarto, estendida no chão, sobre a alcatifa, dormia
e temida; a paixão do príncipe rodeou-a
de prestígio e a condescen- a primeira serva de Issira.
dência do rei acabou de lhe dar toda
a soberania. A princesa despertou-a com a ponta do pé.
O seu porte majestoso, o seu olhar,
ora de veludo, ora de fogo, mas Uma hora mais tarde, um escravo, obedecendo-lhe, estendia-lhe o
sempre impenetrável e sempre dominador,
impunham-na à obediên- braço robusto, e ela, arregaçando-lhe ainda mais a manga já curta do
cia e ao servilismo dos que a cercavam.
kalasiris, picava-lhe a artéria, abaixava rapidamente a cabeça, e sugálva
t'otrr sôíi'cg«t prazer o sangue muito rubro e guente!
o escravo passou assim da dor ao desmaio e A tarde foi caindo lentamente o azul do céu esmaecia; as estrelas
do desmaio à morte;
vendo-o extinto, Issira ordenou gue iam pouco e pouco aparecendo, e o Nilo estendia-se cristalino e pálido
o removessem dali e adormeceu.
Desde entâo entrou a dizimar entre a verdura aregra da folhagem. Fez-se noite. lmóvel no dorso da
escravos, como dizimára overhas.
Subiam queixas ao rei; mas Ramsés, já esfinge, lssira olhavapara o espaço enegrecido, com os olhos úmidos,
velho, cansado e fraco, pa-
recia indiferente a tudo. as narinas dilatadas, a respiração ofegante.
ouvia com tristeza os ramentos do povo, Pensava na volta a Karnac, no seu futuro repentinamente extinto,
fazendo-lhe promessas
gue não r ealizav a nunca. nesse glorioso arnanhâ gue se cobrira de crepes e que lhe parecia agora
Não queria desgostar a futura rainha interminável e v azio! Morto o noivo, nada mais tinha a fazer na corte.
do Egito: temia-a. Guardava
a doce esperança da imortalidade Ramsés dissera-Ihe:
do ,"., ,orrl". E .rr;;;;rtalidade,
lssira poderia cortá-la como a um
frágil fio de ."b"r". ;;;;osa e ar- - lde para as vossas terras; deixai-me só...
tiva, guando ele, Ramsés, morress", lssira debruç ou-se da janela
"la,
por vingança, fascinaria a tal - tudo negro! Sentiu rumor no quar-
ponto os quarenta juízes do julgamento to, voltou-se. Era a serva que lhe acendera a lârnpada.
dos *orror,qrr" .1., procede-
riam a um inquérito fantástico dos Olhou fixam ente para a luz; a cabeça ardia-lhe, e procurou repou-
atos do finado, apagando-lhe
nome em todos os monumentos, o
dizendo ter _ul .r_plido os seus sar. Deitando-se entre as sedas escarlates do leito, com os olhos cerra-
deveres de rei! dos e as mãos pendentes, viu, em pensamento, o noivo morto, esten-
Não! Ramsés não oporia a sua força dido no campo, com uma ferida na fronte, de onde brotava em gotas
à vontade d,a netade um fa.
raó! Que a maldita casta dos espessas o seu belo sangue de príncipe e de moço.
sangue fosse sorvido com avidezpela"r.rrro, desaparecesse, que todo o seu A visão foi-se tornando cada vez mais clara, mais distinta, quase
boca rosada fr"s." dr;;;.r,
Que lhe importava, e gue era isso em reração à perpetuidade" palpável. Soergrrendo-se no leito, encostada ao cotovelo, lssira via-o,
do seu
nome na história? positivamente, a seus pés. O sangue já se não desfiava em gotas, uma
As queixas rolavam a seus pés, a uma, como peguenas contas de coral; caía às duas, às guatro, às seis,
como ondas marulhosas e amargas;
ele sofria-lhes o embate, mas deixava_as avolumando-se, até gue saía em borbotões, muito vermelho e forte;
passar!
Issira, encostada à mão, olhava lssira sentia-lhe o calor, aspirava-lhe o cheiro, movia os lábios secos,
aind,a pela janelaaberta para a
ci-
dade de Tebas, esprendidamente
iluminada pero sor, quando um sa- buscando-lhe a umidade e o sabor.
cerdote lhe foi dizer, em nome
do rei, gue viera da provínci" ,rrrra A insônia foi cruel. Ao alvorecer, chamando a serva, mandou vir
notícia de ter morrido o príncipe " um escravo
desastrosamente.
Recebeu a princesa com ânimo
forte tão inesperada nova. Enrolou- Mas o escravo não foi. Ramsés atendia enfim ao seu povo,
se num grande véu e foi beijar
a mão do verho Ramsés. proibindo à egípcia a morte dos seus súditos. Um sacerdote foi
o rei estava só; a sua fisionomia mudara, aconselhá-la.
náo paraa dolorosa expres-
são de um pai sentido pela perda
de um frlho, mas para um modo
de - Cuidado ! A justiça do Egito é severa, e vós já não sois a fu-
audaciosa e inflexível autoridade; tura rainha...
Aceitou com fnezaa condorência de
lssira, aconselhando-a a que se lssira despediu-o.
retirasse para seus domínios em
Karnac.
A egípcia voltou aos seus aposentos, Perseguia-a a imagem do noivo, coberto de sangue. A proibição do
e foi sentar_r.l"or"ti* no
dorso de uma esfinge de granito rosado, rei revoltava-a" acendendo-lhe mais a febre do encarnado.
â um canto do salão.
rÚltu L[r[g DE ffLl{El[fl

Como na véspera, o sol entrava gloriosamente pelo aposento, atra- "@ry*e"


vés dos vidros de cor. A princesa mordia as suas cobertas de seda, tor-
cendo-se sobre a púrpura do manto. De repente levantou-se, trans- A VALSA
figurada, e mandou vir de fora braçadas de papoulas, que espalhou da
sobre o leito de púrpura e ouro...
Depois, sozinha, deitou-se de bruços, esticou um braço e picou-o
FOME
bem fundo na artéria. O sangue saltou vermelho e quente.
A princesa olhou num êxtase para aquele fio coleante que lhe es-
corria pelo braço, e abaixando a cabeça uniu os lábios ao golpe.
Quando à noite a serva entrou no quarto, absteve-se de fazerbaru-
lho, acendeu a lâmpada de rubis, e sentou-se na alcatifa, com os olhos
espantados para aquele sono da princesa, tão longo, tão longo...

r903

um sussurro de
o pianista Hippolyto entrou na sala' houve
Quando as moças es-
Era preciso romper aquela monotonia,
contentamento.
tavam mortas Por dançar' hirto e as
ensebada' com o pescoço
Dentro de uma '"'n" t""ta a largos passos'
ele dirigia-se paÍa o piano
grandes mãos balançantes'
e o queixo muito agudo'
cortando o caminho
com as narinas ditatadas
como uma proa de navio
virad apatao porto deseiado'
e com tão
tão magro' ia tão amarelo
Houve quem risse; ele era dessas se-
pretos' que uma senhora' uma
viva chama nos olhinhos a
espirituosa' t de Íazet comparações' perguntou
nhoras "-ig"
"-jt::- de vestir de homem aquela
teria tido o esquisito gosto
tocha funerária? o peito
rapaz gordo' metido a literato' com
l,trgo o interrogado '
garclôn ia inracttlacla' rcsPondctt
:
llrlritkr l)()r Ll lll'l
*
A fbrnc. Iroi a fomc clue lhe
cnvr
e rhe amarrou ao pescoço,
com *.oüil:l.;:::ffiil;l':rr".I:;; e fiz-lhc a nrinha súplica com tal ardor que ele accclcu trônrulo, lrrrrrra
ela' a maligna' o raria entrar
;:ITi,#:::,tu a
""'" 'rro bursuês
minha senhora e ami-
ansiedade febril, titubeando:
ga, aqulo 0,"
",:;fi';llll}i;j,'lTill",ro, - }i,á, seis meses que nâo toco, desde que ela morreu... sabel não
tenho piano, não frequento casas de música. Cavo a vida por outros
"-i"áTl''aqueles,roa.,r"*.r,;;;:ffi i##Ii::::';;:';::r:', modos.... mas estou com saudades, muitas saudadesÍ
Não se escandalize e repare-lhe Tinha a boca seca, senti-lhe o hálito ardente; convidei-o para to-
- a nodosidade dos dedos.
varentes, mar um chope.
formidáveis, não? pois
vai r*, ,or"_
Oelo teclado como uma ponta
asa pela superfície
de um rago' Hào a" de - Não; tenho medo, respondeu-me. Estou com fome.
-" agradecer tê-ro trazido cá...
- Mais wa razã.o para ires tocar à casa da minha tia, respondi-
- Ah foi o senhor...
Fui eu; por um acaso... lhe. Lá matarás a fome a peru trufado e as saudades do piano num
- Imagine que fui ontem
encarregado de
contratar o pianista para excelente Bechsteín.
afesta, e que só hoje,
à última hora, me lem_ Se não fosse tão tarde... Tens casaca?
brei da incumbência!
- sempre o mesmor Aquele
senhor então, veio remediar - Não tenho nada.
uma farta.,.
- E preencher uma lacuna'
Com duas paravras vou - Há ali umas casas que alugam disso. Apressa-te; às dez horas deve
sar-se por ele. Tinham_me fazê-rar-nteres- romper a primeira valsa e já são oito. Toma o dinheiro paÍa a casaca; co-
dito que o Hippolyto, chama_se
vendera o piano há cerca Hippolyto, merás lá em casa. Foi tudo o que eu disse, à pressa, pensando em ir pre-
d" .rrra seis meses, para fazero
irmã' única pessoa da famíria enterro à patar-me também. E ele arranjou-se, não sei em que guarda-roupa, mas
que lhe rest ava aind.a,e
penúria com outras complicações... que morreu de com uma brevidade que me espanta, visto que eu começava a temer...
conheci -a, eraum Iírio; tanto este Sim, com dinheiro no bolso, emvez da casaca ele tinha razôes de esfo-
outra era de cristal. Amavam-se
;j:ff;'Jmosa .o-o ,rr,.r r,, meado paru dar preferência aumiantar de restaurante. Não the parecel
d o d o,
", r ",,,*.li'o : :H:',t T;;:l',;il,"r?:,il ; il" l ll ;;
toda orgurhosa daquele irmão' Através
ji; - Parece. Vê-se que gosta mais de contentat aalma do que de sa-
tisfazer o estômago.
do seu corpo diáfano, como
que se lhe via a arma iruminada
e radiante. Era muito branguinha, - Artista. Depois da primeira valsa vou fazê-lo cear... Por Deus!
muito branquinha... pobre pequena! adoro estas organizaçõesÍ
O"ra" gue ela morreu sumiu_se
Hippolyto. Naturalr o Tem um certo sabor, a sua história; mas agora diga-me com
-
rartanâooqui,"-ol'r1,,;fi frangueza, não receia gue esse senhor heroico nos toque uma marcha
um homem não há amor
ffi :::";[::::ffiHff il'JT*; fúnebre em vez de uma contradança? Olhe para ele!
tão doce com d;";;;;;;";";"
maior
assim de "vi
saudade possa deixar... perdi -Easenhorari-se!
Hippolyto scutava-se. As abas da casaca pendiam-lhe murchas e
desabituado, rão
na ocasião mesmo em que
-l
tornei a rembrar ."ij:;;11 ffi::,XT#I, amarrotada.s, cor-l1o as duas asas de urubu doente. As suas mãos triguei-
eu me esbaforia atrás de
a soirée da minha tia, um pianista para ras, que o excrcício do teclado desenvolvera, cairam sobre o marfim
encontrei_o cabisbaí
dos botins. prr..", do piano nunt i{csto ávido, de posse. O busto ossudo e longo arque-
-
-. um s anro ; r**r", T;:HH:1f.1iffi,1tr iou-lhe nunr soltrço abafado e duas lagrimazinhas ardentes subiram-
lhe aos olhos írirlos. Ninguém as viu; todo dentro de si, ele escutavil,
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