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Francisca Júlia e Júlio da Silva

Alma Infantil
(Versos para uso das escolas)

(Recitativos, monólogos, diálogos,


comédias escolares, brincos infantis, hinos)
Alma infantil

Nada de certo há que exceda


Em primor e perfeição
O ninho do beija-flor A esse ninho de algodão
Forrado de paina e seda.

Mal ocultos no frouxel


Edmeia, certa manhã,
Os ovos olha e examina:
Indo ao pomar, sorrateira,
Têm a casquinha tão fina
Para colher à macieira
Como a uva moscatel.
A apetecida maçã,
Que vivo desejo a abraça
Entre dois galhos franzinos
De o ninho poder furtar!
Ocultos, viu — que primor!-
Mas deixa-o em seu lugar
Um ninho de beija-flor
E volta enfim para casa.
Com dois ovos pequeninos.
“Se o furtar, — pensa — que dor,
Chegou-se mais para o ver,
Que angustiosa agonia
E, porque não visse ainda
Há de sofrer todo o dia
Coisa tão fina e tão linda,
O pobre do beija-flor!”
Bateu palmas de prazer.

2
Alma infantil

E foi-se, deixando o ninho, A aranha e a mosca


Sem de leve lhe tocar,
Naquele mesmo lugar
Onde o fez o passarinho. Uma aranha, a muito custo,
Com cuidado tece e enleia
Assim procede o cristão Os fios da sua teia
Que dos seus atos se preza. Entre os galhos de um arbusto.
E Edmeia, a par da beleza,
Tem muito bom coração. Da teia fina entre as pautas
Oculta a um canto se ajeita
E fica encolhida á espreita
Das borboletas incautas.

Parece a teia um adorno


Entre os dois galhos tecido;
Um besouro, num zumbido,
Anda revoando-lhe em torno.

3
Alma infantil

Pensa a aranha: “A presa é boa.” E à filha diz que receia,


E o besouro descuidado Receia muito essa aranha
Quase às vezes é apanhado, Que as pobres moscas apanha
Mas bate as asas, e voa. Nos fios da sua teia.

Pousada num galho, acima, “— Não vás lá, filha querida,


A mosca esperta acompanha Quem te fala e te aconselha
Com a vista os gestos da aranha, Sou eu, que sou mosca velha.
Mas dela não se aproxima. Não vás lá, que estás perdida.”

A mosca é velha, e, à cautela, Dado o conselho, anuncia


Diz estas coisas consigo: Que em voo ligeiro parte
“Aquela aranha é um perigo, A buscar em outra parte
Não me chego perto dela”. O sustento do seu dia.

Receosa da armadilha, Pensa porém a mosquinha


Soltando o voo, abre a asa Possuir também olho esperto:
E volta depressa à casa Quer ver a aranha de perto,
A prevenir sua filha; E da teia se avizinha.

4
Alma infantil

“— Que linda casa em que vives” A aranha então, num disfarce,


Diz ela. “Parece loura Atira o laço em que enrosca
No raio de sol que a doura, As seis perninhas da mosca,
Parece uma obra de ourives! Que tenta em vão escapar-se.

“Minha casa é sem abrigo, Presas as patas, vencida,


De construção muito tosca Triste, enquanto a morte espera,
Palavra de honra de mosca, Lembra-lhe o que a mãe dissera,
Quisera viver contigo! Chorando de arrependida:

“Creio bem que não te negas “Foge da aranha, filhinha,


A viver em sociedade Quem te fala e te aconselha
Com a minha estreita amizade Sou eu, que sou mosca velha.”
Como excelentes colegas.” Infortunada mosquinha!

Curiosa, em voo erradio, Se é inútil o teu intento,


Vencida enfim de quebranto, Se é baldado o teu esforço,
Ela aproxima-se tanto Que vale agora o remorso?
Que prende as patas num fio. Que vale o arrependimento?

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Alma infantil

Pronto sempre a dar esmola,


De olhos meigos e alma boa,
O garoto e o mestre-escola Que delicada pessoa
O mestre-escola!

A mãe de Alfredo sofria Pelas ruas da cidade,


Dissabores e torturas Todo trêmulo, o bom velho
Por causa das travessuras Só distribuía conselho
Que ele fazia. E caridade.

Sujo, magro, o fato roto, Aos ricos, de grande aspecto,


Ignorante e analfabeto, Ou á pobre e humilde gente,
Ele era um tipo completo A todos dava igualmente
Do mau garoto. O seu afeto.

Era de índole travessa, Alegre, risonha a face,


De gostos ruins e caprichos Andava com o passo incerto.
Deixava até nascer bichos Ninguém havia decerto
Pela cabeça. Que o não amasse.

6
Alma infantil

Porém Alfredo, que andava


Enchendo a mãe de amarguras
Pelas muitas travessuras Crueldade de Joãozinho
Que praticava,
Para que a turma dos demais o aplauda,
Na rua, um dia, se atreve Logo ao sair da escola o mau Joãozinho
A enfiar debaixo da gola Prende uma pedra a cauda
Do fraque do mestre-escola De um pobre cachorrinho.
Um rabo-leve.
E protestando, a rir, contra o socorro
Por causa de tal gracejo Que os meninos ao cão querem levar,
O velho, num gesto amigo, Escorraça o cachorro,
Deu-lhe o devido castigo, Que se põe a gritar.
Dando-lhe um beijo.
E de dor a gritar, corre e dispara;
Desde então o valdevinos, Mas um homem que passa, a muito custo
O vadio transformou-se, Cerca o animal, que pára,
De mau que era, no mais doce Todo a tremer de susto.
Dos meninos.

7
Alma infantil

Tira-lhe a pedra, e, enquanto o pequenino “Por isso não devemos maltratá-los


Cão ali fica a olhar, calmo e feliz, Por dever de cristãos,
Ao perverso menino Antes, porém, dar-lhes carinho e amá-los
Estas palavras diz: Como a nossos irmãos.”

“Quem maltrata animais, meu filho, e goza


Com estas dores alheias,
Pratica uma ação feia e criminosa
Como as mais criminosas e mais feias.

“Só maltrata animais essa má gente


Que é perversa e feroz;
O animal, como nós, as dores sente,
Ou mais talvez do que as sentimos nós.

“Ouve: disse uma vez Santo Agostinho,


Que à terra veio a consolar as dores,
Que os animais, filhinho,
São os nossos irmãos inferiores.

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Alma infantil

O relógio Professora e discípulo


Preso à parede, sozinho lá, MARIA
Alvo dos olhos de toda gente,
Minutos e horas, eternamente, (Dando-se ares graves, o gesto pausado
Alma do tempo, batendo está. como convém ás velhas professoras, para
Joãozinho, que está sentado.)
Na intimidade de todo lar
Se as alegrias são verdadeiras, Vejamos se sim ou não
As horas correm, voam ligeiras Ao menos hoje, que vida!
Para a ventura não demorar. Trouxeste a lição sabida.
Vamos lá, dize a lição.
Gelam os risos, e quando enfim
Dor ou tristeza nos olhos chora, JOÃOZINHO
Calmo, o relógio pára e demora,
(De olhos fitos na cartilha, soletrando:)
A hora parece que não tem fim.
B, a, bá.

9
Alma infantil

MARIA É uma vergonha sem par,


Que cada vez mais estranho,
Adiante! Ver homem do teu tamanho
Que nem sabe soletrar.
JOÃOZINHO
Meu filho, e bem contra mim,
B, é, bé.
Bem contra as normas que sigo,
MARIA Vou lançar mão do castigo.
Levanta os braços!
O menino que é vadio
Não tem vergonha nem brio. (Joãozinho obedece, choroso)

(Num gesto de cólera) Assim!

Ergue-te! Fica de pé! (Joãozinho, porém, logo que levanta os


braços, deixa-os cair e esconde neles o rosto,
(Joãozinho, obediente, põe-se de pé, os fingindo que chora. Maria, comovida, corre a
olhos baixos, em atitude de confusão e receio). abraçá-lo, arrependida do gracejo.)

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Alma infantil

Estás chorando? Por quê?


Não chores, não tenhas medo;
Não é castigo, é brinquedo. Voz dos animais

JOÃOZINHO - O peru, em meio à bulha


De outras aves em concerto,
(mostrando a carinha entre maliciosa e risonha) Como faz, de leque aberto?
- Grulha.
Que é brinquedo já se vê.
- Como faz o pinto, em dia
De chuva, quando se interna
Debaixo da asa materna?
- Pia.

- Enquanto alegre passeia


Girando em torno do ninho,
Como faz o passarinho?
- Gorjeia.

11
Alma infantil

- E de intervalo a intervalo - Que faz o gato, que espia


Quando a manhã se levanta, Uma terrina de sopa
No quintal que faz o galo? Que fumega sobre a copa?
- Canta. - Mia.

- Quando a galinha deseja - Com a barriga farta e cheia


Chamar os pintos que aninha, Que faz o burrinho quando
Como é que faz a galinha? Se está na grama espojando?
- Cacareja. - Orneia.

- Dentre a espessura da silva,


- A rã, quando a noite baixa,
Enquanto as roscas desdobra,
Que faz ela a toda hora
Zangada, que faz a cobra?
Dentre os limos em que mora?
- Silva.
- Coaxa.
- Para sinal de rebate,
- E quando as narinas incha,
Aviso, alarme ou socorro,
Cheio de gosto e regalo,
Como é que faz o cachorro?
Como é que faz o cavalo ?
- Late.
- Rincha.

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Alma infantil

- Para que as mágoas embale - A pomba, que grãos debulha,


Quando tresmalha, sozinha, Como faz, batendo as asas
Que faz a branca ovelhinha ? Sobre o telhado das casas?
- Bale - Arrulha.

- Em fugir quando porfia - A voz tremida do grilo


À garra e aos dentes do gato, Que vive oculto na grama,
Como faz o pobre rato? A trilar, como se chama?
- Chia. - Trilo.
- De pé, se a boca descerra
Mas, escravos das paixões
E alta levanta a cabeça,
Que os fazem bons ou ferozes,
Que faz a cabra travessa?
Os homens têm suas vozes
- Berra.
Conforme as ocasiões.
- Cheia a boca da babuge
Do milho bom que rumina,
Que faz o boi na campina?
- Muge.

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Alma infantil

O meu retrato
“Fez meu retrato tão bem!
“Aquele retrato lá: Bonito, olhar atrevido.
O corpo, as pernas, o braço, Enfim, muito parecido,
Sou eu mesmo traço a traço, Que nenhum defeito tem.
Tão parecido ele está.
“O meu retrato está lá:
“Acham bonito? talvez... Meu todo falado e escrito,
O nariz é um pouco chato... Tão bonito, tão bonito,
Mas, que importa? é o meu retrato; Que mais bonito não há.
Foi o vovô quem o fez.
“Vovô... que bom coração!
“Vovô... Que bom coração! Tudo o que ele tem reparte,
Tudo o que ele tem reparte, E sabe fazer com arte
E sabe fazer com arte Retratinhos a carvão.”
Retratinhos a carvão.

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Horas melhores A bela Corina

Quais são os melhores gozos, “Com seu claro e lindo rosto


Os preferíveis a tudo? E altivo porte, Corina
Para os que são estudiosos É a mais formosa menina
É o estudo. Em que os olhos tenho posto.

Qual o instante de alegria “O ouro melhor, em novelos,


Que de risos vem mais cheio? Os mais ricos fios de ouro
Para a criança vadia, Valem menos do que o louro
O recreio. Brilhante dos seus cabelos

“Não há nenhuma que a exceda


Em elegância e aparatos;
São caros os seus sapatos
E as meias curtas de seda.

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Alma infantil

“Ninguém dela se avizinha, “E se ela é muito aplicada,


A escola inteira a aborrece: Vive a estudar e a ler tudo,
Em cada gesto parece Não é gosto pelo estudo,
Ter o orgulho de rainha. É orgulho apenas, mais nada.

“Pois apesar de tão bela, “Um dia a mestra à menina


Sempre elegante e bem posta, Pediu que se levantasse,
A professora não gosta, E diante de toda a classe
Nenhum de nós gosta dela. Assim lhe disse : — Corina,

“Aos pobres olha de cima; Desprezível é a vaidade


A todos a fala nega; Quanto é bela a singeleza;
É uma péssima colega Só tem valor a beleza
De quem ninguém se aproxima. Que ao lado está da bondade.”

“Tem modos aborrecidos,


Tem sempre um gesto insolente
E um receio de que a gente
Lhe vá sujar os vestidos.

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Alma infantil

Que o papai e a mamãe sua


Descalços e braços dados,
A menina feia Andavam embriagados
Cambaleando na rua.
“Mamãe, a menina Paula
Arrasta a perna, coxeia; “Não há porém um instante
Ela decerto é a mais feia Em que a não veja, aplicada,
De todas que vão á aula. Sobre os livros debruçada;
É muito boa estudante.
“Tem fala tati-bi-tate,
Olhos tortos de caolha ; “Dentre as meninas instruídas,
Tem o nariz, mamãe, olha: Mais adiantadas da classe
Vermelho como um tomate. Não há uma que lhe passe:
Tem sempre as lições sabidas.
“Disse-me um dia Arabela,
Falando dela a respeito, “Por isso os pais, a chorar
Que a Paula é assim desse jeito De ventura e de alegria,
Porque era ébrio o pai dela; Juraram à Paula um dia
Nunca mais se embriagar.”

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Alma infantil

Dos seus turvados olhos clara e mansa


Uma lagrima rola.
Caridade Desce a rua, sorrindo, uma criança
A caminho da escola.
Ao canto de um portal, em abandono,
Um pobre cão vadio Tem no rostinho uma expressão de glória
Chora talvez a ausência do seu dono, E de intensa alegria.
Tiritando de frio. É que traz, bem sabidas, na memória
As lições desse dia.
Prostrado está de fome e de cansaço;
Apagada, sumida, Pára ao ver o animal, que se ergue e acorda;
Só lhe resta no olhar choroso e baço E com muito carinho
Uma pouca de vida Põe-se a alisar-lhe á mão rosada e gorda
Os pelos do focinho.
Esse olhar meigo e bom reflete e pensa.
E a pensar continua Nota com mágoa que o cãozinho chora
Na dolorosa e amarga indiferença De fome, com certeza:
Dos passeantes da rua. A alegria que tinha muda agora
Em desgosto e tristeza.

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Alma infantil

E tão triste se sente, e de tal modo, O patinho


Que, delicada e meiga,
Lhe chega aos dentes o seu lanche todo O pintainho do pato,
De pão, queijo e manteiga. Galante, amarelo e novo,
Mal saiu da casca do ovo
Agora o cão se anima e se repasta Busca as águas do regato.
E todo o lanche come:
Já não tem fome, que esse lanche basta Todo ele, tão lindo e louro,
Para matar-lhe a fome. Enquanto nas águas bóia,
Tem a graça de uma jóia
Ri-se a criança por ter tido ensejo Feita em ouro.
De fazer essa esmola,
Embora hoje, sem pão, manteiga e queijo,
Tenha de ir para a escola.

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Alma infantil

Parece até caçoada,


Mas não sei porque razão
A boneca de Paulina As bonecas que me dão
Nunca prestam para nada;
Como ficaste contente
Ontem quando tia Rita Não são lindas como as tuas,
Essa boneca bonita São feias e aborrecidas,
Te veio dar de presente! Duas ou três, mal vestidas,
E as outras mais, andam nuas.
“Parece gente, parece!
Tem a vista arregalada, “As poucas que às vezes ganho
Mas se a colocas deitada Não têm feitio de moça,
Fecha os olhos e adormece. São tortas, feitas de louça,
Pequenas, deste tamanho.
“Pois hoje, pela manhã,
(Não te zangues que te diga) “Porque motivo? Por quê?
Ao tocar-lhe na barriga, É com certeza, Paulina,
Disse a boneca: mamãe. Porque, sendo eu pequenina,
Valho menos que você.

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Alma infantil

“Mas isto é muito ofensivo,


Não é tal, não pôde ser; O pão
Sabes? quer-me parecer
Que adivinhei o motivo:
“— Eu até hoje inda estranho
“É porque soube a titia
Porque é que o papai dizia:
(E a titia sabe tudo.)
“Só trabalho para o ganho
Que tu gostavas do estudo
Do meu pão de cada dia.”
E eu sou um pouco vadia.
“E pode ser isto exato?
“Isso não me desconsola,
Papai só trabalha então
Porque de agora em diante
Para ganhar o seu pão,
Serei tão boa estudante
Quando o pão é tão barato?
Como as melhores da escola.”
“Decerto o papai é avaro;
Desse modo quer portanto
Fazer crer que o pão é caro
Pra que não se coma tanto.

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Alma infantil

“Verdade é que ele não mente... “O pão é tudo: o agasalho,


Mas tantas coisas não há A luz, a casa, a comida,
Que faz e diz o papai O pão é o próprio trabalho,
Só para brincar com a gente? A própria essência da vida.

“Que diz a mamãe? Desejo “Esse pão de que te falo


Que me decifre o mistério: É nosso pão, meu amor,
Papai falou por gracejo Que tem tanto mais valor
Ou disse tal coisa a sério?” Quanto mais custa a ganhá-lo.”

“— Muito a sério. Nem podia


De outra maneira falar,
Pois vive-se a trabalhar
Para o pão de cada dia.

22
Alma infantil

Exame escolar
Infância e velhice
MARIA
“A mamãe estende o braço...
(Porque a mamãe é tão boa!) (Sentada na cadeira da professora, que se
E a gente tropeça a toa, ausentou, às demais crianças, que a ouvem,
A cada passo. atentas e silenciosas)
“Anos depois, quando a gente Fiquem todos sossegados.
É grande já, sem cautela Agora vejamos quais
Marcha bem ao lado dela, Os que estão mais preparados
Valentemente. Para os exames finais
“E mais tarde, passo a passo, É uma vergonha sem par,
Com delicada ternura Um triste e feio vexame
É a mamãe que se segura Ser reprovado no exame
Em nosso braço.” Ou numa prova escolar.

23
Alma infantil

Neste solene momento MARIA


Vou proceder á inspeção
Do grão de adiantamento Bem.
Em que estão.
(Indicando o segundo)
(Indicando com o dedo a primeira das meninas)
E o menino Raimundo
A menina Felisberta Então me dirá também
De uma maneira gentil Quantas partes tem o mundo.
Dirá sobre a descoberta
RAIMUNDO
Do Brasil.
Cinco partes.
FELISBERTA
MARIA
Segundo opinião aceita,
A descoberta, tal qual, Muito bem.
Em mil quinhentos foi feita
Por Pedro Alvares Cabral. (Apontando para outra menina)

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Alma infantil

Quais são elas, dona Aspasia, DOLORES


Segundo a geografia?
Não sei.
ASPASIA
MARIA
São África, Europa, Ásia,
América e Oceania. (indignada)

MARIA Tu não sabes nada!


Vais passar pelo vexame
Muito bem. De ter nota má no exame.

(À outra) (Anunciando a toda a classe)

Dona Dolores A Dolores, reprovada!


Vai dizer as principais,
As mais ricas e maiores
Cidades e capitais.

25
Alma infantil

A filha do carpinteiro Ao peito aperta com os pequenos braços


O cachimbo do pai, num gesto doce;
Diz-lhe coisas de amor e dá-lhe abraços
Como se aquilo uma boneca fosse.
Deixa-se estar em casa a fazer planos
O carpinteiro João, porque é domingo. Que alegria fulgura em seu olhar!
Perto, a filha mais nova, de dois anos, E ri-se a criancinha, e ri-se, enquanto
Põe-se então a brincar com seu cachimbo. O carpinteiro João, sentado a um canto,
Se põe, triste, a chorar.
Chama-se Eulália. É um anjo que, sem asa,
Faz entrever o céu no olhar brejeiro;
É o encanto, o prazer daquela casa,
É o consolo do pobre carpinteiro.

Vê-la tão nuazinha faz-lhe pena;


E ao pranto amargo o velho mal resiste
Porque não tem bonecas a pequena,
E sem boneca uma criança é triste.

26
Alma infantil

Berceuse da boneca “Bonequinha, bonequinha,


Nenê, a rede embalando, Tão lourinha,
Quer provocar a soneca Porque ficas a sorrir,
À sua linda boneca Sem dormir?”
Nuns versos que vai cantando

“Bonequinha, bonequinha,
Tão lourinha,
Porque ficas a sorrir,
Sem dormir?

“A tua rede balanço


No vai-e-vem;
Os olhos fecha de manso,
Que o sono vem.

27
Alma infantil

Bom coração, alma boa,


Sensível, meigo no trato.
O presente de Mário É da inocência o retrato,
É a mesma graça em pessoa.
Com os colegas em palestra
Soube o pequenino Mario Ora, uma vez, em palestra
Da data do aniversário Com os colegas, soube Mario
Da sua querida mestra. Da data do aniversário
Da sua querida mestra.
É da turma dos menores;
Quatro anos só; em altura A mestra, seguramente,
Passa apenas da cintura Merece presentes finos;
Dos seus colegas maiores. Ele, como outros meninos,
Queria dar-lhe um presente.
Com a graça que tem e aquele
Ar de candura na face, Mas qual? que joia ele tinha
É o Mario o encanto da classe: Ou coisa enfim que valesse
Não ha quem não goste dele. O que ela, a mestra, merece,
Se é tão pobre a mamãezinha?

28
Alma infantil

A mestra é mocinha e é bela. Faz a cara um pouco torta


Entra a fazer com empenho E não se parece nada
Com seu lápis de desenho Com a cara da retratada...
Um lindo retrato dela. Mas Mario pouco só importa,

(Porque ele, se na leitura Acha até boa a pintura,


Anda um pouquinho atrasado, Tão parecida e catita!
Tem um gosto acentuado Ficaria mais bonita
Para o desenho e a pintura; Se lhe pusesse moldura.

E tanto que, n’aula, Mario E com carinho e cuidado


As do estudo horas felizes Cola o retrato dileto
Passa a rabiscar narizes No caixilho de pão preto
Nas margens do abecedário...) De um velho espelho quebrado.

Com tijolinhos de tinta Que lindo está! Dá-lhe um beijo,


Da professora o retrato E um traço torto endireita.
Um tanto ou quanto gaiato Que semelhança perfeita
Em poucos minutos pinta. Com... um mono de realejo!

29
Alma infantil

Muito risonho e contente,


No dia do aniversário
À mestra oferece Mário, O Guloso
Num embrulho, o seu presente.

Recebe-o a moça. Que festa! (A gulodice é imprudente.)


Que semelhança de traço! O gato, com a vista acesa,
E dá-lhe, com um grande abraço, Olhava em cima da mesa
Muitos beijinhos na testa. Um copo de leite quente.

A mestra, numa alegria, Namorou-o com meiguice;


Acha a pintura tão bela! E, como o leite é gostoso,
Mais parecida com ela Teve apetite o guloso...
Do que uma fotografia! (É imprudente a gulodice.)

Chegou-se bem de mansinho.


(A gulodice é imprudente)
E o leite, que estava quente,
Queimou-lhe todo o focinho!

30
Alma infantil

O dedinho de mamãe II

Um mendigo de sacola
I Pediu-me um tostão de esmola
Que lhe dei esta manhã.
Um dia d'estes, á tôa, Em si de alegre não coube;
À irmãzinha, que é tão boa, E pensam que ela o não soube?
Torci as orelhas... pois Soube de tudo a mamãe.
A mamãe, que estava ausente,
Soube tudo infelizmente, Não sabem porque? São manhas
Poucos minutos depois. Do dedinho tagarela
Que lhe conta as artimanhas
Não sabem por quê? São manhas Que faço na ausência dela.
Do dedinho tagarela
Que lhe conta as artimanhas
Que faço na ausência dela

31
Alma infantil

III Mimi
Mas notem bem: quando digo I
Dedinho, dedinho amigo
Que sabe as coisas tão bem, Mimi deveras implica
(Escutem atentamente) Com gente que faz barulho
Refiro-me unicamente É toda cheia de orgulho,
Ao dedinho que ela tem. Parece pessoa rica.

Porque meu dedo... essa é boa! É uma gatinha a Mimi,


É um dedo que anda no ar, Como as outras, que tem patas
É um dedinho muito á toa Porque é da raça das gatas.
Que nada sabe falar. Mas linda assim nunca vi.

Apesar de ser mansinha,


Dotada de Índole boa,
Ela é a vaidade em pessoa,
O orgulho feito gatinha.

32
Alma infantil

Mas tem o grande defeito


De fazer-se aborrecida
Mimi não gosta de pó: Logo que esteja servida,
Só se deita e se repimpa Com o apetite satisfeito.
Em cadeira muito limpa,
A um canto da sala, só. A um canto então, silenciosa,
Com muito jeito e carinho
E sempre só, ali fica Põe-se a alisar o focinho
Longe de todo o barulho, Com a patinha cor de rosa.
Muito estufada de orgulho
Como uma pessoa rica. Às vezes, quando passeia,
Tem a vaidade esquisita
II Própria de moça bonita
Que despreza a gente feia.
A Mimi quando presente
Cheiro de pão com manteiga, Quietinha, caseira e mansa,
Faz-se logo muito meiga, Nunca os seus pés delicados
Muito amiguinha da gente. Andaram pelos telhados
Com as gatas da vizinhança.

33
Alma infantil

Mimi toda se alvoroça,


Toda se arrepia e assanha;
Vive a fazer sentinela De medo a boca arreganha
Sempre ao sobejo dos pratos; E os pelos da cauda engrossa.
Não caça ratos; dos ratos
Tem um medo, que se pela! Ao vê-la, o cachorro late,
Enquanto a gatinha estufa,
III Se abaixa, se alteia e bufa
Com receio do combate.
Sobre um canteiro de giesta
Em quente e fofo conchego Foge de um salto e se abriga,
A Mimi dorme em sossego Medrosa, em cima do muro.
Sua acostumada sesta. (Em cima é lugar seguro
Pra quem tem medo de briga.)
Dorme, de um jeito tão lindo,
Um sono quieto e profundo; Medrosa assim nunca vi:
Mas pelo portão do fundo Tudo assusta a pobrezinha;
Entra um cachorro, latindo. Não há no mundo gatinha
Mais medrosa que Mimi.

34
Alma infantil

Muita gente há cujo fato


Ou rosto tornado feio
Bichano Não tem a limpeza e asseio
Que tem o pelo do gato.
Bichano, o lindo gatinho,
Sobre a almofada sentado, Menina ou rapaz, aquele
Vive a limpar com cuidado Que a todo asseio se nega,
O gracioso focinho. É um desprezível colega:
Os outros têm nojo dele.
E não sei como ele pôde,
Se não tem mãos como a gente, Tão lavado tem o pelo,
Tão bem lavar-se e, contente, Tão limpo traz o focinho!
Alisar o seu bigode! É do asseio este gatinho
O mais perfeito modelo.
A espuma, o algodão, o pano
De linho ou a neve pura Bichano, imóvel e mudo,
Não excedem na brancura Em bola fofinha e alva
À brancura de Bichano. Destaca no verde malva
Da almofada de veludo.

35
Alma infantil

O galo
Quem não escova o seu fato,
Quem não se lava a capricho Passo lento, olhar profundo,
Vale menos do que um bicho, Valente, brioso e grave,
Merece menos que um gato. O galo é a mais linda ave
Dentre todas que há no mundo.

Um pé adiante, outro atrás,


Bico aberto, o galo canta;
Tem a glória na garganta
E nas esporas que traz.

O galo é sempre o primeiro


A anunciar as auroras.
Repara bem: tem esporas
E é por isso cavaleiro.

36
Alma infantil

Coroa tem e de lei, De cabeça levantada,


Coroa em fôrma de crista Altivo sobre o poleiro,
Que ganhou numa conquista: Ele é o rei do galinheiro
Por isso julga-se rei. E o cantor da madrugada.

Pendentes até ao peito,


Vermelhas, grandes e belas,
Tem barbas que são barbelas Vivem todos sob a lei
Que lhe dão muito respeito. E ordens que o galo decreta
Soldado, músico e poeta,
Com que delicado amor Pastor, cavaleiro e rei!
Ele defende e acarinha
Ora o pinto, ora a galinha
Com seu gesto protetor!

37
Alma infantil

Ociosidade Irmã Cecília


O vadio que, sem o pão buscar,
Fica à espera que o pão ás mãos lhe venha,
Por mais fé que em Deus tenha É irmã de caridade a irmã Cecilia;
Deus não o há de ajudar. Dos leitos do hospital sentada á beira,
Assim passa, risonha, a vida inteira:
Luta, trabalha pois; preciso é
Não tem pai, não tem mãe, não tem família.
Entrar nas lutas do trabalho rude:
Para que Deus te ajude Não tem abrigo ou lar, ternura ou teto,
Não te basta ter fé. Nem mão que á sua mão se abra e se estenda,
Nem no mundo, tão grande, a que se prenda,
Elo de amor ou vinculo de afeto

À gente triste as lagrimas consola;


Onde chora a miséria, está presente;
Os seus amigos são a pobre gente
Que a mão lhe estende a receber a esmola.

38
Alma infantil

Sua família é o lar onde anda aflita Aspirações


A dor e a fome, a lágrima e a orfandade,
É toda gente enfim que necessita
Dos socorros da sua caridade.
Se o sol de inverno eu fosse,
Amoroso e macio,
Aqueceria com o meu raio doce
As criancinhas que tivessem frio.

Se fosse a brisa, que erra


Solta, cheirosa e pura,
Levaria, a correr de terra em terra,
Aromas e frescura.

Se fosse a flor, que cresce


Com tão lindo recato,
Gostaria que um crente me colhesse
Para me pôr no altar, como um ornato.

39
Alma infantil

Se fosse astro ou estrela, O Ébrio


Que brilha no céu puro,
Daria direção à branca vela
Que vai incerta pelo mar escuro. Ruth e Maria estão-se rindo, e ambas
Alegres porque um ébrio ali na rua
Se nuvem fosse, iria Com grandes gestos faz sermões á lua,
Aos que têm sede e mágoas Mal podendo-se ter nas pernas bambas.
Dar a imensa alegria
Das minhas águas. — “Coisa engraçada um ébrio!—diz Maria—
Sempre está rindo, sempre está contente.
Tanto desejo cesse, Um bêbado faz rir a toda gente;
Que não posso sequer Não conheço ninguém que se não ria.”
Pagar à minha mãe, como merece,
Todo o infinito bem que ela me quer. Ri-se de um ébrio aquele que não tem
Dó nem piedade da desgraça alheia;
Mas quem vive da fé com a alma cheia
Não se ri das desgraças de ninguém.

40
Alma infantil

Quando à escola vai então,


Entra insolente na sala
Joãozinho o medroso De chapéu e de bengala,
Cigarro aceso na mão.

Na sala ou na rua, em prosa


João, sem vergonha nenhuma, Com seus colegas maiores,
Perante todos, em face Dá-se uns ares protetores
De outros colegas da classe, De pessoa mais idosa.
Acende o cigarro e fuma.
Mas o valente de truz,
Entra na sala a falar De voz grossa e de olhar duro
Num tom de voz muito grosso, Tem medo do quarto escuro,
E pensa já ser um moço Não pode dormir sem luz.
Com direito de fumar.
Que vale tanto arremedo
Entanto, valha a verdade, De valentia gabola,
Não passa de um pirralhito Se é o mais medroso da escola,
Magro, pequeno e bonito Se de tudo ele tem medo?
Com seus dez anos de idade.

41
Alma infantil

Visita massadora
Na cama, até à manhã,
Cheio de um terror enorme,
Dizem todos que ele dorme
Muito agarrado á mamã. D. CECÍLIA

(entrando na sala onde está dona Rita,


cumprimentando-a cerimoniosamente)

Boas tardes, dona Rita.

D. RITA

(correndo a abraçá-la, falando torrencialmente


como costuma fazer a gente massadora)

Oh! Viva! Bem-vinda seja!


Já não há mais quem a veja!
Que inesperada visita!

42
Alma infantil

Que, sol que faz! Uma brasa! D. RITA


Sol dos trópicos... Mas, diga,
Que bons ventos, minha amiga, De bondes sempre me arredo.
A trouxeram a esta casa? Causam-me horror. Muita gente
Tem morrido ultimamente
Tem passeado por onde? Debaixo das rodas... Credo!
Está cansada e suarenta...
Ora! porque não se senta? Pois, filha, que Deus me ajude!
Ando a pé é mais barato.
(Indica-lhe uma cadeira) Faz-se um passeio pacato...
E o bem que faz é saúde!
Veio a pé?
Andar a pé revigora.
D. CECÍLIA A mim, ao marido e à filha
Em bondes ninguém nos pilha.
(sentando-se)
E faça o mesmo a senhora.
Não, vim de bonde.

43
Alma infantil

Que é que lhe ensina a experiência A fazenda que hoje se usa


Senão cautela e cuidado? É mais ligeira, mais fina;
Prudência não é pecado; Demais, a cor não combina
Ninguém peca por prudência. Com a fita que tem na blusa.

(Observando as roupas de dona Cecília com E o laço que traz ao lado


curiosidade) Não deve ser assim posto.
Mas não discuto; é seu gosto,
Agora vejo, é verdade! O meu é mais apurado.
Traz uma linda toilette;
É simples, não compromete... Esta manga... é uma estreitura
É própria da sua idade... Em que o seu braço mal cabe;
Quem isso cortou não sabe
(Examinando com atenção, já um pouco Patavina de costura.
desdenhosa)
E o nome da costureira?
É largo demais na roda...
Está, permita dizei-o, D. CECÍLIA
De mal gosto este modelo
E um pouco fora da moda. Chama-se...

44
Alma infantil

D. RITA D. RITA

(atalhando-a) (sem a deixar falar)

Não, não conheço. Já sei, baratinho,


E o preço?... Já sei o preço, Porque há lojas de armarinho
É de aprendiz barateira. Que vendem muito barato...

O pano é bom, mas rustido; D. CECÍLIA


Não presta. Não lhe aconselho
Que compre tecido velho, (levantando-se, impaciente já e de mal humor)
E é tão velho esse tecido!
Eu já me vou, dona Rita.
Quanto lhe custou o fato?
D. RITA.
D. CECÍLIA
Pois, já? Tão cedo ! Ora, gente!
Custou ... Quando terei novamente
A honra da sua visita?

45
Alma infantil

Não seja tão preguiçosa. Pois, dona Cecilia,


Oh! Quanto me rejubila Gosto imenso dos seus modos...
O fino prazer de ouvi-la... Meus cumprimentos a todos,
É um encanto a sua prosa! Meus respeitos à família.

Nem sei onde está morando... D. CECÍLIA

(Dona Cecília, que insiste em ir-se embora, (aparte, saindo, depois de despedir-se com um
profundamente aborrecida, estende-lhe a mão) gesto seco de cabeça)

É tão cedo ! Não se esqueça, Que seca! Já estava em brasa!


De vez em quando apareça... Esta mulher tem topete
Então já vai? Até quando? Para saber ser cacete!
Não volto mais a esta casa!
D. CECÍLIA
(Sai)
Até...

D. RITA

(interrompendo-a)

46
Alma infantil

“— Nem cinco, nem seis, nem sete;


Estás faltando à verdade.
Cinco anos A idade, filhinha, a idade
Não se promete.

Gostas de mentir às vezes;


“— Ó mamãe, não é verdade Mas espera que, inteirinhos,
Que eu já tenho completinhos, Os cinco anos completinhos
Inteirinhos, Virão daqui a dois meses.”
Os meus cinco anos de idade?”
“— Tão cedo não vêm então;
“— Cinco anos completos, não. Faltam-me tantas semanas...
Diz a mamãe sem enfado. Estou vendo que me enganas.
Espera mais um bocado Dois meses é muito, não?”
Que os teus cinco anos virão.”
“— Dois meses é quase nada,
“— Tu sabes bem que não brinco, Mas a mamãe te promete
Mas tu num dia como este Que parecerás ter sete
Me prometeste Se fores bem comportada.”
Que eu logo teria cinco.”

47
Alma infantil

Deus Um anjinho de trombeta


Batendo as asas num voo
Com seu trabalho ajudou-o
“— Mamãe, eu li uma vez Na construção do planeta.
No catecismo que estudo
Que as coisas, a terra, tudo, Deus fez a noite e a manhã,
Que tudo foi Deus quem fez. O anjo fez o mar imenso...
Pelo menos assim penso;
Dizem que é a pura verdade Não tenho razão, mamã?”
O que o catecismo ensina;
Que tudo é obra divina, “— Tu não passas de um tolinho.
Obra da sua vontade. Tudo só por Deus foi feito;
Só Deus, meu filho, é perfeito,
Acho difícil, porém, Só Deus é grande, filhinho.”
Que Deus, embora perfeito,
Tenha o Céu e a Terra feito
Sem auxílio de ninguém.

48
Alma infantil

No circo de cavalinhos Em elos, em arco, em trancas,


Havia flores e fitas,
E muitas coisas bonitas
Uma vez aos três filhinhos, De endoidecer as crianças.
Eufrosina, Alberto e Edgard
A mamãe pôde levar Juntinhos os três, e ao lado
A um circo de cavalinhos. A mãe, sentaram-se então
Para assistir à função
Aplausos, vivas, risadas Que já tinha começado.
Um contentamento novo!
A massa enorme do povo A mãe e seus três filhinhos,
Enchia as arquibancadas. Edgard, Eufrosina e Alberto,
Gostaram muito, decerto,
Entraram os três, e rente Do circo de cavalinhos.
A mamãe seguia atrás.
Oh! Quantos bicos de gás!
Meu Deus, que porção de gente!

49
Alma infantil

Que menino ou que menina Disse Alberto, de contente,


Disso não goste, talvez (Dos três Alberto é o maior)
Muito mais que aqueles três, Que não há vida melhor
Edgard, Alberto e Eufrosina? Que a vida daquela gente.

A mamãe tapou a vista Tudo aquilo é brincadeira


Vendo a voadora no espaço; E travessura, por certo:
Edgard gostou do palhaço, Os outros dois, como Alberto,
Alberto, do equilibrista. Pensavam de igual maneira.

Para Eufrosina um regalo, Disse Edgard: “ — Que alegria


Um delicioso prazer A vida inteira passar
Ver a menina a correr Só a rir, só a brincar,
Ao galope do cavalo! Como essa gente fazia!”

Mas o clown, com seu jaleco Mas a mamãe, em segredo,


Tão curto e calças tão largas, Baixando a voz, então disse
Ia gingando de ilhargas Que era uma grande tolice
Que parecia um boneco. Chamar àquilo brinquedo.

50
Alma infantil

Na aparência divertida,
Livre de mágoas e dor,
Aquela luta é a pior O relógio da torre
Das demais lutas da vida;

Que era uma existência triste


Sob os castigos e os ralhos, O RELÓGIO
Uma vida de trabalhos (Uma menina, no meio do recreio, fazendo de
Como pior não existe. relógio, canta:)

Sou o relógio que marca


As horas que vêm e vão;
A minha voz soa e corre
De cima daquela torre.
Dig, dão

O CORO

(As crianças, em círculo, segurando-se pelas mãos,


aproximando-se e afastando-se)

51
Alma infantil

O RELÓGIO

Pois dessa torre em que moras, Se o ponteiro vai andando,


Contando as horas, Dig, dão!
Dize-nos pois que horas são? Já no campo trabalhando
Os lavradores estão.
O RELÓGIO
O CORO
Dig, dão!
Deve-se pois começar
É manhã cedo. Já estão O trabalho a qualquer hora;
Cantando fora dos ninhos Comecemos desde agora
Crianças e passarinhos... A trabalhar.
Dig, dão!
O RELÓGIO
O CORO
Meu ponteiro marca e anima
Como o gorjeio tão lindo As horas que vêm e vão.
Que as aves soltando vão, O sol já vai alto em cima..
As nossas almas subindo Dig, dão!
Para o céu também estão.
52
Alma infantil

O CORO

Não é hora de escutar Manhã de inverno


Histórias da carochinha
Que só à noite a avozinha
É que nos pôde contar.
Manhã muito fria. Um bando
O RELÓGIO Passou de aves assustadas.
Adriano e a mãe, de mãos dadas,
As horas correndo vão, Passeavam, conversando.
O ponteiro já vos chama
Para o sossego da cama.. À terna mamãe, que o ouvia,
Dig, dão! O pequenino Adriano,
Que tem pouco mais que um ano,
O CORO Estas perguntas fazia:

O ponteiro já nos chama, “— Porque é que a avezinha esperta


Fica o resto pra amanhã. O frio, mamãe, não sente,
Vamos beijar a mansa Se ela vive sem coberta
E toca a pular pra cama. Feita de lã, como a gente?

53
Alma infantil

— Olha, mamãe, olha aquela!


Quem sabe se no seu pio
Diz ela que sente frio? Paula
Que pena que tenho dela!”

Diz a mãe: “— Não, meu filhinho,


Deus, que é tão bom e perfeito, Há muitos dias que a Paula
Fez tudo muito bem feito: Voltar à escola receia
Não deu frio aos passarinhos; Porque tinha dito na aula
Que a mestra era velha e feia.
-Deu-lhes as penas de cores
Variadas e diferentes, A um colega, que a escutava,
Que são macias e quentes Disse ainda mais, disse tudo:
Como a lã dos cobertores.” Que da mestra não gostava,
E muito menos do estudo.

Quem no estudo não se esforça


E acha a escola aborrecida,
Mais tarde não terá força
Para os trabalhos da vida.

54
Alma infantil

Quem não estuda se afeia; Primavera


Tudo o que faz lhe sai falho;
Será pobre para a ideia,
Inútil para o trabalho.
Bem cedo, mal rompe o dia,
Quem aos mestres não respeita, Já estão gorjeando as aves
Não necessita estudar; Os seus pipilos suaves
É uma pessoa imperfeita Em desusada alegria.
Que devemos desprezar.
Vasto, o campo se descobre,
Ondula, se estende e perde,
Todo verde, todo verde
Da nova relva que o cobre.

De toda banda invadidos


E cheios estão os ares
Do perfume dos pomares
E dos jardins florescidos.

55
Alma infantil

Às aves erriça a pluma,


Varre os ares e os refresca As duas sábias
O sopro da brisa fresca (Imitação do francês)

Que tudo beija e perfuma. I


A natureza se esmera BERTHA
Em galas e enfeites novos;
Ri o sol, brotam renovos... Com esses risos não me enganas;
E' a risonha primavera Sofri desgostos e embaraços,
Queimei deveras as pestanas
Que bem cedo acorda os ninhos, Para estudar estes compassos.
As flores perfuma, enfolha
As arvores, folha a folha, CLARA
Onde cantam passarinhos.
O meu estudo foi insano,
Trago-o presente na memória;
E conto no exame de história
Um prêmio bom no fim do ano.

56
Alma infantil

Concedo-te de boa vontade o prêmio de música, o gosto, a digestão e o apetite. Que dizes a isso,
porque eu terei o prêmio de História. Clara?

BERTHA Estribilho cantado por ambas

Obrigada pela tua generosidade. O meu exame Isto parece até feitiço;
surpreendeu a todos, porque eu expliquei tudo em Vai muito além da nossa idade;
quatro palavras. Julga tu: O examinador perguntou- Mas, seja dito sem vaidade,
me: “— Quantas espécies de notas há?” Há brancas, Sei muito mais do que tudo isso.
pretas, amarelas; umas redondas, outras longas,
outras curvas, ora em forma de bolinhas, de círculos Tanto saber é, na verdade,
ou de apagador de velas; tudo isso misturado com Impróprio enfim da nossa idade.
suspiros, volver de olhos, acordes de piano e A sala aplaudiu
trinados de garganta. “— Pois bem. Como se indica Delirantemente,
o andamento de um trecho musical?” Pelas Beijos ganhei de toda gente
indicações: forte, fortíssimo, largo, piano, stacato, Que aos meus exames assistiu.
larghetto, tremolino, etc. “— Quantas espécies há de
compassos?” Há-os de quatro tempos, que é o mais
longo, de três, de dois, de um, de nenhum, segundo

57
Alma infantil

II Rolhas, Freixo de Espada à Cinta e Calinópolis. “—


Quem foi o vencedor das Trebisondas?” Napoleão.
CLARA E os seus admiradores, para lhe perpetuarem o
nome, ergueram-lhe uma estatua tão colossal que
De História o exame foi brilhante:
por baixo das suas pernas podiam passar
Fi-lo tão bem, verdade seja,
folgadamente embarcações à vela de cascas de noz.
Que outras alunas, nesse instante,
Que dizes a isso, Bertha?
Ficaram pálidas de inveja.
Estribilho
Ficaram todas como loucas,
E que espetáculo engraçado Isto parece até feitiço,
Ver-lhes nas caras e nas bocas etc, etc.
Tanto despeito disfarçado!
III
O examinador perguntou-me:”—Quem destruiu
a cidade de Jerusalém?” Gedeão. “— Quem foi o BERTHA
fundador de Roma?” Foi Alexandre o Grande,
aquele que inventou as luvas para curar o defluxo Conheço as contas de cabeça,
das mãos. O filho do rei de Roma construiu por sua Sei aritmética de cor.
vez várias cidades: Cascos de Então, então que dizes dessa?
Ainda vou ter prêmio melhor.

58
Alma infantil

CLARA

Digo-te, Bertha, sem audácia, CLARA


Que em ciências químicas eu sei
Todo e qualquer principio ou lei E eu! Ficaram de boca aberta quando me
Como um aluno de farmácia. ouviram discorrer sobre leis físicas. Eu dizia-lhes...
(Dirigindo-se ás pessoas presentes) exatamente
BERTHA como lhes vou dizer, minhas senhoras. Ponham aos
ombros, em dia de verão forte, uma pesada capa de
Perguntaram-me primeiramente: “Que é lã e não se espantem se ficarem suando em bicas. Se
adição?” É a conta por pagar, está claro. “—Que é provarem com a língua a sopa que está fervendo,
subtração?” Ora! quando Nenê me furta do bolso ficarão com a língua queimada. Se tomarem banhos
uma bala de coco, fez uma subtração. “—Que dizes de mar, hão ficar molhadas, com certeza. Se lhes
às raízes quadradas?” Digo que isso é um absurdo, fizerem cócegas no nariz, atchim! hão de espirrar
porque as raízes podem ter todas as fôrmas, mas seguramente. É esta a ordem natural das coisas, são
quadradas, nunca! “-Que são frações?” Os vidros do estes os princípios gerais da física. Aposto em como
armário que a gente quebra por travessura; são Arquimedes ou Pascal não o diriam melhor.
frações os estilhaços. “— Que entendes por tábua de
Pitágoras?” É aquela em que Pitágoras lavava a sua
roupa branca. E assim por diante!

59
Alma infantil

Estribilho cantado por ambas


Passarinho imprudente
Isto parece até feitiço;
Vai muito além da nossa idade; Num recanto de telhado
Mas, seja dito sem vaidade, Um galante tico-tico
Sei muito mais do que tudo isso. Com o trabalho do seu bico
Tinha o seu ninho formado.
Tanto saber é, na verdade,
Impróprio enfim da nossa idade. Cheio de zelos e ciúmes,
A sala aplaudiu Ei-lo, vaidoso e garrido,
Delirantemente, Rondando o grupo querido
Beijos ganhei de toda gente
Dos seus filhotes implumes.
Que aos meus exames assistiu.
Rondando-o a todo momento,
O amoroso passarinho
Só se afastava do ninho
Para ir buscar alimento.

60
Alma infantil

Porém, certa madrugada Um deles, menos prudente.


De vento, de frio e bruma, O mais crescido e mais alto,
Precisando fazer uma Sai do seu canto, num salto,
Viagem mais prolongada, Quando a mãe estava ausente.

Recomendou com cautela Asas abertas, ligeiro,


Aos pequenos tico-ticos Em movimentos de doido
Que não pusessem os bicos Correu o telhado todo
Para fora da janela. Para o seu voo primeiro.

(Cautelas, ordens, carinhos, A manhã fresca tentou-o;


São coisa que logo cansa Soprou-lhe as plumas a aragem
A imprudência da criança E num gesto de coragem
E os nervos dos passarinhos...) Se atira, desfere o voo...

61
Alma infantil

Paira no ar, meio assustado, A boneca sensata


Mal se equilibra e sustenta,
E numa queda violenta
Cai no chão, ensanguentado.
Estando a Eliza travessa
E morreu, o coitadinho, Com a bonequinha na mão,
Por não ouvir o conselho Alisando-lhe a cabeça
Que o tico-tico mais velho Com ar de repreensão,
Lhe dera, ao deixar o ninho.
Disse-lhe, um pouco magoada:
“— Mas é impossível, que seca!
Trazer-te mais asseada,
Como outra qualquer boneca!

“Tua blusa encarnadinha,


Que te ficava tão bem,
Olha como está sujinha,
Que feias manchas que tem!

62
Alma infantil

“A saia, as mangas... Que seca!


Estou deveras zangada.
Vou comprar outra boneca “Se não fosses descuidada,
Que seja mais asseada.” Não te causaria seca:
Seria tão asseada
Mas a pobre bonequinha Como outra qualquer boneca.”
Respondeu-lhe, e com razão:
“— Não posso, dona Elizinha, Todos somos assim feitos:
Aceitar essa lição. Nos outros, de quem falamos
Quase sempre censuramos
“Suja não gostas de ver-me, Os nossos próprios defeitos.
Por isso fazes alarme;
Posso eu, acaso, mexer-me?
Posso a mim mesma lavar-me?

“Se me vês suja, Elizinha,


Suja da cabeça ao pé,
A culpa enfim não é minha,
A culpa é tua, não é?

63
Alma infantil

Rosinha e o mendigo Ela, que estava contente,


A mágoa já não contem.
(Só o mau é que não sente
Rosinha, de ar prazenteiro, Prazer de fazer bem.)
Na face uns tons de carmim,
Vai indo em passo ligeiro “— Como levo na cestinha
A caminho do Jardim. Um delicado jantar,
A metade, diz Rosinha,
Nisto, um pobre, no caminho, Vou já ao velhinho dar.”
À menina estende a mão,
Roto, descalço, velhinho, Ao pobre, então, que a abençoa,
Com uns olhos de compaixão. Quase tudo, tudo deu.
Como Rosinha foi boa!
Mas a boa da Rosinha Que bom coração o seu!
Nota que em casa esqueceu
A bonita carteirinha
Que sua mamãe lhe deu.

64
Alma infantil

Utilidade da chuva “Tu mesma estás a chorar,


Cheia de raiva e de queixa,
Enquanto a chuva caía Porque a chuva não te deixa
Batendo contra a janela, Ir á rua passear.
À pequenina Arabela
A linda mamãe dizia: “Como a viva claridade
Do sol ardente, que brilha,
“— Esta chuva pertinaz, Esta chuva, minha filha,
Tão grossa, incômoda e espessa, Tem a mesma utilidade.
Talvez a ti te pareça
Que só prejuízos traz. “Às plantas, que, de calor,
Estão murchando, infelizes,
“De fato, ás vezes, atrasa Ela dá pelas raízes
De uma forma impertinente Vida, frescura e vigor.
O serviço dessa gente
Que vive fora de casa.

65
Alma infantil

Dia de Chuva
“Chove há três dias; por isso,
Até onde o olhar se perde
O campo todo está verde, Sendo forte a chuva, um dia,
E as plantas cheias de viço. A pequenina Arabela,
Triste, através da janela,
“Tanto à chuva, que jorrou, De si para si dizia:
Como ao sol, que os campos doura,
A tudo a Mão criadora “E esta chuva continua!
Docemente abençoou.” Para nada a chuva presta:
Quando chove, não há festa,
A gente não sai à rua.

“Cá por mim eu penso que erra


Quando diz a professora:
— Sem chuva não há lavoura,
Nem há vida sobre a terra.

66
Alma infantil

“Tolice! Se tudo alaga,


Não há quem não a reprove.
Eu acho que, quando chove, “É porque, de vez em quando,
Até a lavoura se estraga. A gente enfim se consola,
Porque deixa de ir á escola
“Chuvas!... Ou grossas ou finas, E fica em casa brincando.”
Encharcam o fato todo,
Sujam as botas de lodo...
E eu só tenho estas botinas.

“A chuva só palmatória
Merece, para castigo.
Por isso é que eu sempre digo:
Com chuva não quero história.

“Entretanto, se é verdade,
Como a professora disse,
Que a chuva (mas que tolice!)
Tem alguma utilidade,

67
Alma infantil

CAMPAINHA
O tambor e a campainha
Como vai belo este dia!
A campainha já veio
Chamar-vos para o recreio,
TAMBOR Para as festas da alegria.

Vinde brincar, ó crianças! Vinde pois todas a mim!


O silêncio me incomoda. A minha nota é suave
Fazei depressa uma roda Como o trinado de um'ave
Pra começarem as danças. Dlin, dlin!

Como está linda a manhã! TAMBOR


Eu quero risos em coro
Ao som do rufo sonoro: Atroando sempre os ares,
Rata plan! Na guerra ou na paz louça,
Eu comando os militares:
Rata plan!

68
Alma infantil

CAMPAINHA CAMPAINHA E TAMBOR

E todos gostam de mim; Pois vinde todas a mim:


Encontram-me todo o dia Rata plan ! dlin, dlin !
Disposta para a alegria: Quer de noite ou de manhã:
Dlin, dlin Dlin, dlin! rata plan!

TAMBOR Amiguinhas, hoje em dia


Não há tristeza nem dor.
Todos se assustam comigo Campainha, viva a alegria!
Se o rebate de perigo Viva alegria, tambor!
Dou logo pela manhã: Vivamos em harmonia
Rata plan! E sempre em festas assim!
Rata plan! dlin, dlin!
CAMPAINHA

Alegre e sonoramente
Anuncío toda gente,
Trinando o sinal, assim:
Dlin, dlin !

69
Alma infantil

Sente-se. Primeiramente
Faço questão que me diga
Visita de cerimônia Onde se meteu a amiga
Que não mais visita a gente

D. ANNA
D. ANNA
(sentando-se)
(entrando em casa de D. Fifinha)
Em casa, dona Fifinha;
Dona Fifinha Bem sabe que sou caseira;
Como estou sem cozinheira,
D. FIFINHA
Sou eu que faço a cozinha.
(correndo a recebê-la, alegremente surpreendida)
É uma coisa aborrecida
Dona Anna! A comida feita fora:
Bons olhos a vejam! Viva! Vem pouca, não chega à hora,
Tem andado tão esquiva! E é sempre a mesma comida!
Não a vejo há uma semana.
D. FIFINHA
(Indicando-lhe uma cadeira)

70
Alma infantil

É sempre a mesma, e tão pouca! Nem me fale! Fico aflita


Feijão, repolho, o cozido, (E se é pecado, que peque!)
E o arroz tão mal escolhido Só de enxergar o moleque
Que até nos cresce na boca. Que entra em casa com a marmita

D. ANNA E o seu cozinheiro ?

E dia a dia piora! D. FIFINHA


Chego a perder o apetite
Só de pensar, acredite, É aquele
Nessas comidas de fora. Mesmo velho cozinheiro;
Não o troco por dinheiro,
D. FIFINHA Vale ouro o serviço dele.

Nem camarão, nem garopa. É um gosto ver-lhe a cautela,


O menu é sempre o mesmo ; O fino cuidado, o esmero
O prato fino é o torresmo, Com que ele prova o tempero,
E que lavagem, a sopa! O sal de cada panela.

D. ANNA Nem mau humor nem quizilia


Quando nas horas se atrasa.

71
Alma infantil

É uma pessoa da casa, Curioso: não tem um fio,


Já faz parte da família. Um só de cabelo branco.

Não digo seja um portento, D. ANNA


Mas tem hábitos pacatos;
Entende bem de alguns pratos, Ora, pouco importa a idade
Faz poucos, mas a contento. Se é forte para a cozinha.
Gabe-se, dona Fifinha,
D. ANNA Da sua preciosidade.

[Como se chama? D. FIFINHA

D. FIFINHA É um bem que se não despreza;


Não é cozinheiro, é ouro;
Pimenta. O meu Pimenta é um tesouro
A idade não sei ao certo; Que vale bem o que pesa.
É velho, anda ai por perto,
Pela casa dos sessenta...

Mas ainda forte. Homem franco, D. ANNA


Pessoa de muito brio.
(levantando-se para sair, compondo a “toilette”)

72
Alma infantil

Pois vou-me embora, ligeira;


Já se faz tarde: permita
Que dê por finda a visita. Na ausência da professora
Vou procurar cozinheira.

Já cozinho há uma semana,


E estou farta da cozinha. (Desordem e rumor na sala, acusando a ausência
da professora. Alfredo levanta-se, corre pé ante
(Despedindo-se, risonha) pé até á porta entreaberta por onde a
professora acaba de sair. As demais crianças
Passe bem, dona Fifinha.
estão sentadas às suas carteiras, risonhas,
D. FIFINHA alheias ao estudo. Algumas bocejam alto,
cansadas. Só Joaninha, em pé, diante da lousa,
(apertando-lhe a mão e indo acompanha-la até á muito estudiosa e aplicada, continua a fazer
porta) atentamente as suas contas.)
Pois até logo, dona Anna. MARIO
(D. Anna ainda faz um gesto de cabeça e sai) (a Alfredo que, à porta, está de atalaia á chegada
da professora)

73
Alma infantil

Ela já se foi, Alfredo ? (Voltando-se para a classe e anunciando, numa


pirueta:)
ALFREDO
Toca a brincar, criançada!
Ainda não. A professora
Ali está com uma senhora MARIO
Com quem conversa em segredo;
Parece-me que a consola, Não façam rumor, cuidado!
Tem ar de quem aconselha;
ALFREDO
A tal mulher é uma velha,
É aquela que pede esmola. Agora já pôde a gente
Respirar mais livremente.
A professora abraçou-a,
Ufa! que estava cansado!
Abre agora a carteirinha
E a esmola dá á velhinha. JOANINHA
A professora é tão boa!
(que esteve fazendo as suas contas, em pé diante da
A velha, toda curvada, lousa, contrariada com o barulho)
E a professora, sorrindo,
Lá vão indo, lá vão indo.

74
Alma infantil

Bonito! Que tal a graça?


Já nem sei a quanto monta
A soma total da conta... JOANINHA

(Voltando-se para a lousa, resignadamente) (sempre preocupada com a conta)

Mas é preciso que a faça Doze e doze, vinte e quatro,


E dois. Meu Deus, que preguiça!
LAURA
Vamos então a somar:
(para Eugenia, sua vizinha de carteira, E dois, vinte e seis. Que seca!
provocando-a com o cotovelo: Se estudo fosse boneca
Gostaria de estudar.
Que menina metediça
ANTONIA
MARIO
Oh! tola, pois com certeza,
(a Laura, alegremente) Sim, porque se o estudo fosse,
Por exemplo, um arroz doce
Vamos brincar de teatro?
Que se come à sobremesa,

75
Alma infantil

Eu cá, de muito bom grado, Foi-se a velhinha, sorrindo,


À hora certa e todo dia Com o corpo todo curvado.
À escola, pronta, viria, Agora tomem cuidado
Pra ganhar o meu bocado. Que a professora vem vindo.

LAURA (para Joaninha)

Eu cá comeria tudo. Joaninha, termina a conta!

EUGENIA JOANINHA

Eu também, porém se fosse (sempre séria, traçando os algarismos na lousa)


O estudo feito de doce,
Porque não gosto de estudo. Que venha, porque eu não brinco.
Dois e dois, quatro; e dois, cinco.
ALFREDO A soma está feita e pronta.

(que pela porta observa que a professora se


aproxima.)

76
Alma infantil

Venho aqui especialmente


Perante vossa excelência,
As duas bonecas
Para que hoje enfim me diga,
Me confesse com franqueza
(O caixeiro da loja acaba de colocar ao centro Porque é que assim me despreza?
da vitrine duas bonecas, uma de cera, dessas Que mal lhe fiz, minha amiga?
que fecham os olhos, vestida de uma camisola
de seda enfeitada de fitinhas vermelhas, e A BONECA DE CERA
outra de louça branca, quase nua na sua
(desdenhosa, com os olhos muito arregalados
camisola de chita ordinária.)
olhando para a rua, sem se dignar virar-se
A BONECA DE LOUÇA para a sua companheira de vitrine)

(olhando para a outra, com a humildade das Nenhum.


pessoas inferiores)
A BONECA DE LOUÇA
Bons dias, dona Inocência,
Nenhum?
Bons dias, fale com a gente

77
Alma infantil

A BONECA DE CERA Não quero causar-lhe seca,


Nem quero que se amofine,
Demais, acho, Mas bem sabe que em vitrine
Minha querida colega, Não se põe suja a boneca.
Que nenhum mal a nós chega
Quando ele vem tão de baixo... A senhora me maltrata
Com seu orgulho de moça,
A BONECA DE LOUÇA Porque sou feita de louça.

A BONECA DE CERA
Não sei o que quer dizer,
Não lhe percebo o sentido . . Feita de louça barata.

A BONECA DE CERA
Gênero de pouco peso,
Se não ouves, limpa o ouvido Artigo que vale nada...
Para melhor entender. Aí tens agora explicada
A razão do meu desprezo.
A BONECA DE LOUÇA

78
Alma infantil

Compare os laços vermelhos Tu és o tipo, tal qual,


Que me fazem tão bonita Da boneca baratinha,
Com a camisola de chita Indústria reles, mesquinha,
Que mal te cobre os joelhos. De fabrico nacional,

Não valho só pelos laços Gênero de pouco peso,


Que tenho na camisola; Artigo que vale nada...
Repara: eu mexo com os braços Aí tens agora explicada
Porque sou feita de mola. A causa do meu desprezo.

Uso cabelo postiço,


Fecho os olhos e adormeço;
Só as bonecas de preço
É que sabem fazer isso.

A indústria elegante e nobre


Que na Europa nos fabrica
Nos destina à gente rica.
Somos a inveja do pobre.

79
Alma infantil

Hino ao Estudo

Estudai, estudai. Com o estudo


Os prazeres mais belos e sãos,
Hinos Paz e amor, ouro e glórias e tudo
Vós tereis ao alcance das mãos.

Estudai, pois o estudo é uma força


Sem a qual não se pode vencer;
Estudai; quem no estudo se esforça
Há de os frutos da glória colher.

Essa flor, que vale mais que um tesouro,


O saber, cultivai com amor:
Pois sem ele, que luz tem o ouro?
O ouro perde o seu próprio valor.

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Alma infantil

Quem estuda não teme os escolhos, A ignorância no mundo campeia


Que o saber a bom porto conduz; E erros só são os frutos que dá;
Quem na vida ao saber fecha os olhos, A ignorância é a cegueira da ideia,
Não tem olhos também para a luz. Que é a pior das cegueiras que há.

Quem na escola a cartilha amarrota Essa flor, que vale mais que um tesouro,
E, sorrindo, desdenha o saber, O saber, cultivai com amor:
Só espera na vida a derrota, etc, etc.
Pois na infância não quis aprender.

Essa flor, que vale mais que um tesouro,


O saber, cultivai com amor:
Pois sem ele, que luz tem o ouro?
O ouro perde o seu próprio valor.

Abençoai esse bem que deleita,


O minuto em que vós estudais,
Que esse instante que o estudo aproveita
Não se esquece na vida jamais.

81
Alma infantil

Pra a vitória da luta futura,


Pra as conquistas enfim do porvir,
Hino à Escola Só a escola é que ensina a segura
Direção que se deve seguir.
Sobranceiros, alheios a tudo,
O prazer, a alegria no olhar, Dai à escola a porção de carinho
Sobraçando os compêndios de estudo, E a de amor que vossa alma contém
Ide, filhos, à escola estudar. Os que seguem da escola o caminho
Seguirão o caminho do Bem.
Em caminho, ao rumor, ao barulho
Da cidade não deis atenção, Vinde à escola, pois ela é uma escada
Ocupada somente com o orgulho Que ao fastígio da glória conduz;
De levardes sabida a lição. A Se entrais nela com a ideia apagada,
Saís dela com um facho de luz
Vinde à escola, pois ela é uma escada
Que ao fastígio da glória conduz; À ignorância que pede uma esmola
Se entrais nela com a ideia apagada, A riqueza lhe dá do saber;
Saís dela com um facho de luz. Tem as portas abertas a escola:
Entre a escola quem quer aprender.

82
Alma infantil

Pobre ou rico, na mesma alegria


Reunidos aqui, dão-se as mãos
Enfim todos, em franca harmonia, Hino ao Trabalho
Em sincera igualdade de irmãos.

Vinde à escola, pois ela é uma escada


Que ao fastígio da glória conduz; Trabalhai, não visando que a glória
etc, etc. O renome vos doure, senão
Para o ganho também da vitória
Na esforçada conquista do pão.

Caminhai, porque tudo caminha,


Ide avante com o vosso dever;
Sem esforço, a vitória é mesquinha;
Se mesquinha, que vale vencer?

Se almejais um pousado futuro,


Trabalhai; é mister trabalhar.
Pão honesto, apesar de ser duro,
É o mais duro dos pães a ganhar.

83
Alma infantil

Obediência, atenção, disciplina, Trabalhar seja a vossa conduta,


Em partilha o pesado labor E sem perda de dia nenhum,
É o que vedes em cada oficina, Pois o mundo é oficina em que a luta,
E o operário banhado em suor. O trabalho é a partilha comum.

Sem trabalho tenaz não se alcança Se almejais um pousado futuro,


O repouso que dele provém; Trabalhai; é mister trabalhar.
Do trabalho é que brota a esperança, etc, etc.
Que é a ventura maior que se tem.

Se almejais um pousado futuro,


Trabalhai; é mister trabalhar.
Pão honesto, apesar de ser duro,
É o mais duro dos pães a ganhar.

Afastai-vos de quem se recusa


Com o trabalho a ganhar o seu pão:
Que há mais belo que a nodoa da blusa?
Mais tocante que o calo da mão?

84
Alma infantil

Terra ideal, de extensões infinitas,


Cheia de ouro e de amor, Terra ideal,
Hino à Pátria Que, amorosa e cativa, palpitas
Às caricias de um sol tropical,
Pátrio Céu, amplitude tranquila
De brilhante celagem azul, Pátria amada, onde a luz tanto brilha,
Céu da Pátria, onde fulge e cintila Esplendores são tantos os teus,
Toda noite o Cruzeiro do Sul, Que tu és a maior maravilha
Das que existem criadas por Deus.
Céu azul, onde a nuvem, que passa,
Coando a luz do luar, como um véu, A esta Terra, onde o engenho divino
Cora e ri toda cheia de graça... Esgotou seu poder criador,
Pátrio Céu, glória a ti, Pátrio Céu! Brasileiros, cantemos um hino,
Hino feito de glória e de amor.
A esta Terra, onde o engenho divino
Esgotou seu poder criador, Pátria amada, tão pródiga e rica,
Brasileiros, cantemos um hino, E de quem nenhum filho descrê,
Hino feito de glória e de amor. Pátria amável, a quem se dedica
Todo aquele que um dia te vê,

85
Alma infantil

Se ao teu brilho se juntam mais brilhos, Sumário


Como a um sol vem juntar-se mais sóis,
Agradece-o também aos teus filhos
Pelo afeto tornados heróis. O ninho do beija-flor .................................... 2

A esta Terra, onde o engenho divino A aranha e a mosca ...................................... 3


Esgotou seu poder criador, O garoto e o mestre-escola ............................. 6
etc., etc.
Crueldade de Joãozinho ................................. 7
O relógio ................................................... 9
Professora e discípulo ................................... 9
Voz dos animais ........................................ 11
O meu retrato ........................................... 14
Horas melhores ......................................... 15
A bela Corina ........................................... 15
A menina feia ........................................... 17
Caridade .................................................. 18

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Alma infantil

O patinho ................................................. 19 Irmã Cecília ............................................. 38


A boneca de Paulina.................................... 20 Aspirações ............................................... 39
O pão ...................................................... 21 O Ébrio ................................................... 40
Infância e velhice ....................................... 23 Joãozinho o medroso .................................. 41
Exame escolar ........................................... 23 Visita massadora ....................................... 42
A filha do carpinteiro .................................. 26 Cinco anos ............................................... 47
Berceuse da boneca..................................... 27 Deus....................................................... 48
O presente de Mário .................................... 28 No circo de cavalinhos ................................ 49
O Guloso.................................................. 30 O relógio da torre ...................................... 51
O dedinho de mamãe ................................... 31 Manhã de inverno ...................................... 53
Mimi ....................................................... 32 Paula ...................................................... 54
Bichano ................................................... 35 Primavera ................................................ 55
O galo ..................................................... 36 As duas sábias (Imitação do francês) .............. 56
Ociosidade................................................ 38 Passarinho imprudente ................................ 60

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Alma infantil

A boneca sensata ........................................ 62


Rosinha e o mendigo ................................... 64
Utilidade da chuva ...................................... 65
Dia de Chuva ............................................ 66
O tambor e a campainha ............................... 68
Visita de cerimônia ..................................... 70
Na ausência da professora............................. 73
As duas bonecas ......................................... 77
Hinos ...................................................... 80
Hino ao Estudo .......................................... 80
Hino à Escola ............................................ 82
Hino ao Trabalho ....................................... 83
Hino à Pátria ............................................. 85

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