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"Lembro-me da noite sem lua, quando debaixo "Mas a vida é mesmo isto. Irmão é aquele que
. do cajueiro disse sim, ao homem dos meus sonhos. te abraça, na desgraça. Do outro lado da fronteira,
O régulo de Matutuíne, meu pai, disse não a esse encontrei um desconhecido que me deu o conforto,
pobre, sem gado para lobolar a filha do rei. Ao meu repouso e dinheiro para prosseguir a marcha. Entrei
homein ultrajado não restou outra alternativa senão num comboio. A criança enfraquecida deixou de cho-
procurar o lenitivo das mágoas do CHltrolado da fron- rar. O corpinho frágil incendiou-se num fogo húmido
teira, em .Johannesburg, deixando-me o ventre seme- mais abrasante que o calor de Dezembro para logo a
ado. Nos nove meses de gesta, minha alma em suplí- seguir arrefecer mais do que todas as madrugadas.
cio consumiu facadas. Quinze dias depois do nasci- Enquanto o comboio vence a distância, os passageiros
mento da criança, o meu pai disse: fora desta casa". conversam, riem, a criança apaga-se, faça alguma
coisa. Deus dos milagres! O que será de mim, sozinha,
Relato de manga verde com sal, arrepiante,
num país estranho, com uma criança morta nos bra-
excitante, cativando a atenção de todos os olhos e
ços? Ventre meu, abre-te, quero devolver este ser à sua
ouvidos. Vamos, conta-nos tudo, Maria, pareciam in-
origem. Apelo do desespero. Mas onde reside o poder
citar as vozes em silêncio.
dos homens, se nem as parcelas do próprio corpo
"Supliquei clemência à humanidade; recorri à obedecem ao seu comando? Abandonei o comboio.
amizade. Em vão. A amizade abraça a riqueza que é Abri caminho com golpes rápidos dos cotovelos entre
beleza, e não a tristeza que é leprosa. Amor verdadeiro a multidão de negros caminhando para os cantos mais
só a terra dá, quando no fim da jornada ela diz: repou- recônditos dos guettos. Meus olhos inquietos procu-
sa nos meus braços por toda a eternidade. Amarrei a ravam uma lixeira, uma vala, uma corrente de água,
capulana bem firme; com o bebé bem seguro nas esgotos, um lugar qualquer, para desfazer-me do meu
costas, jurei: os empecilhos que obstam a minha estra- 1~lf(lo.Trágica peregrinação! Chorava pelo amor que
da serão removidos pela minha mão. Chegarei a me fazia chorar; pela terra mãe que deixei; pelo casa-
.Johannesburg, minha terra de promissão. Abandonei mento conveniente que recusei; pelo funeral digno
a casa no ritual dos galos cerrando as cortinas que a minha filha teria, com lágrimas e cânticos, e eu,
vesperais. Segui o rasto do cruzeiro do sul, caminhei a visitar a sepultura, levando em cada dia um ramo de
dias, e noites suficientes para contar todas as estrelas t10res multicolores bem aconchegadas no peito, com
do firmamento". poses de noiva que nunca fui. De repente o coração
Retalhos da vida, revolteando as entranhas de pulsou: uma moita cruzou o horizonte dos meus
quem as escuta. Atenção! O que aqui se conta, está a olhos. Ser;\ ali, será ali, o cemitério da minha filha, e
acontecer agora!, em qualquer parte do mundo. E tu à noite, bandos de corvos deliciar-se-iio com o corpo
bailas, Maria, o streep-tease das batucadas da tua frágil do meu rebento, ai!..."
amargura que a embriaguez revolveu-te a língua. Tapas os olhos arrepiada, fremes de dor. Maria,
Desatas o lenço e a capulana. Da blusa já levantada, o relato ultrapassa o limiar de uma recordação. É uma
espreitam os seios surrados de mil beijos, desfraldas revivência, um quadro bem evidente nos arquivos da
as cortinas dos teus segredos, és indecente, Maria! t la memé ria, e nós I~ã~ largamos um só suspiro,
.,. ~~~ ..~~~.
., Da Oralidade ti Escrita 133
132 o Couto Moçambicallo