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Da Oralidade ti Escrito 129

Alguém folheia um jornal velho.


- Veja isto, compadre. Duas crianças aban-
donadas pelas mães.
As Cicatrizes do Amor
A dona de casa deixa de farfalhar, estampa
olhos no jornal machucado tentando identificar os
Paulina Chiziane rostinhos dos infelizes.
- O que lhes aconteceu?
- Alguém as deitou fora. As mulheres estão
doidas.
- São efeitos do PRE - respondeu o outro. - Se
Diabos me levem se não estou bem nesta roda- os pais comprarem o leite para os meninos, não sobra
da de mulheres sentadas na areia e os homens nas nada para os copos. Não há dúvida. A maldade grassa
cadeiras. Todas as gargantas regam-se na fonte do nos dias que passam.
uputo que tlui aos borbotões. O ambiente confortável - A maldade nasceu antes da humanidade. A
é de gente humilde, sincera, andrajosa e descalça. culpa cabe às mães mas é de toda a sociedade -
A brisa suleste brinca no chapéu dos cajueiros. sentenciou a mulher.
Os corpos exsudados pelo verào deliram com os - Não fuja da verdade, comadre, que a culpa
beijos das brisas. O céu nublado transfere o cinzento está com as mulheres. O que dizes é suruma da bebe-
feio para a transparência do Índico. Corvos em deira, estás embriagada, sim.
revoada grasnam agouros que ninguém liga. Quem A voz de limão do homem duro era palha seca
entra na caserna de Maria, bebe alegrias e esquece o na fogueira tosca.
resto. É verdade, sim. Neste campo de deslocados na - O que vocês não sabem - disse Maria - é que
Inhaca, o povo triste recria felicidade. cada nascimento tem uma história e cada acção, uma
Uma mosca bailando ao vento, despista-se, cai razão. Na minha juventude cometi o mesmo crime, ou
no meu copo e debate-se louca. Que azar! melhor, ia cometê-lo. Tudo por causa desse amor
- Que sorte! A mosca dá sorte, menina! amargura, amor escravatura, que transtorna, que en-
feitiça, fazendo do amante a sombra do amado.
Sorte? Sorte, sim senhora, confirmam os sorri-
Maria entristece. Ergue os olhos para o céu na
sos. Com a ponta da unha removi a intrusa, vazei o
súplica do silêncio. A mente recua na trajectória clis-
copo num trago, não ia a sorte volatilizar-se.
tante, mais veloz que a estrela cadente. Baixa os olhos
Semicerrei as pálpebras sorvendo a delícia da- para a terra infértil, salpicada de ervas tisnadas.
quele paraíso de miséria. O UPULO é bom e a bebida
O vulcio da recordação explodiu narrativas;
fresca; a música é dos pássaros e o calor dos sorrisos.
as lavas caíram como soco nas gargantas abafando
As mãos de todos espalmam-se em apertos vigorosos,
os acordes, calem-se todas as bocas, a comadre é
frenéticos, com saudações de boas-vindas, compadre, que fala! A voz de Maria fez-se ouvir elas profundezas
vai um copo, não vai?
de tgmro
130 o CO/lIa MoçalllhiClIIIO Da Oralidade dEscrita 131

"Lembro-me da noite sem lua, quando debaixo "Mas a vida é mesmo isto. Irmão é aquele que
. do cajueiro disse sim, ao homem dos meus sonhos. te abraça, na desgraça. Do outro lado da fronteira,
O régulo de Matutuíne, meu pai, disse não a esse encontrei um desconhecido que me deu o conforto,
pobre, sem gado para lobolar a filha do rei. Ao meu repouso e dinheiro para prosseguir a marcha. Entrei
homein ultrajado não restou outra alternativa senão num comboio. A criança enfraquecida deixou de cho-
procurar o lenitivo das mágoas do CHltrolado da fron- rar. O corpinho frágil incendiou-se num fogo húmido
teira, em .Johannesburg, deixando-me o ventre seme- mais abrasante que o calor de Dezembro para logo a
ado. Nos nove meses de gesta, minha alma em suplí- seguir arrefecer mais do que todas as madrugadas.
cio consumiu facadas. Quinze dias depois do nasci- Enquanto o comboio vence a distância, os passageiros
mento da criança, o meu pai disse: fora desta casa". conversam, riem, a criança apaga-se, faça alguma
coisa. Deus dos milagres! O que será de mim, sozinha,
Relato de manga verde com sal, arrepiante,
num país estranho, com uma criança morta nos bra-
excitante, cativando a atenção de todos os olhos e
ços? Ventre meu, abre-te, quero devolver este ser à sua
ouvidos. Vamos, conta-nos tudo, Maria, pareciam in-
origem. Apelo do desespero. Mas onde reside o poder
citar as vozes em silêncio.
dos homens, se nem as parcelas do próprio corpo
"Supliquei clemência à humanidade; recorri à obedecem ao seu comando? Abandonei o comboio.
amizade. Em vão. A amizade abraça a riqueza que é Abri caminho com golpes rápidos dos cotovelos entre
beleza, e não a tristeza que é leprosa. Amor verdadeiro a multidão de negros caminhando para os cantos mais
só a terra dá, quando no fim da jornada ela diz: repou- recônditos dos guettos. Meus olhos inquietos procu-
sa nos meus braços por toda a eternidade. Amarrei a ravam uma lixeira, uma vala, uma corrente de água,
capulana bem firme; com o bebé bem seguro nas esgotos, um lugar qualquer, para desfazer-me do meu
costas, jurei: os empecilhos que obstam a minha estra- 1~lf(lo.Trágica peregrinação! Chorava pelo amor que
da serão removidos pela minha mão. Chegarei a me fazia chorar; pela terra mãe que deixei; pelo casa-
.Johannesburg, minha terra de promissão. Abandonei mento conveniente que recusei; pelo funeral digno
a casa no ritual dos galos cerrando as cortinas que a minha filha teria, com lágrimas e cânticos, e eu,
vesperais. Segui o rasto do cruzeiro do sul, caminhei a visitar a sepultura, levando em cada dia um ramo de
dias, e noites suficientes para contar todas as estrelas t10res multicolores bem aconchegadas no peito, com
do firmamento". poses de noiva que nunca fui. De repente o coração
Retalhos da vida, revolteando as entranhas de pulsou: uma moita cruzou o horizonte dos meus
quem as escuta. Atenção! O que aqui se conta, está a olhos. Ser;\ ali, será ali, o cemitério da minha filha, e
acontecer agora!, em qualquer parte do mundo. E tu à noite, bandos de corvos deliciar-se-iio com o corpo
bailas, Maria, o streep-tease das batucadas da tua frágil do meu rebento, ai!..."
amargura que a embriaguez revolveu-te a língua. Tapas os olhos arrepiada, fremes de dor. Maria,
Desatas o lenço e a capulana. Da blusa já levantada, o relato ultrapassa o limiar de uma recordação. É uma
espreitam os seios surrados de mil beijos, desfraldas revivência, um quadro bem evidente nos arquivos da
as cortinas dos teus segredos, és indecente, Maria! t la memé ria, e nós I~ã~ largamos um só suspiro,
.,. ~~~ ..~~~.
., Da Oralidade ti Escrita 133
132 o Couto Moçambicallo

a má lição. Antídoto para a vigarice: vigarice e meia.


"Mergulhei na moita, paraíso ilícito. Os amantes
Um dia a velhaca embriagou-se demasiado. Roubei-
também lá estavam, protegendo os abraços dos o-
lhares indiscretos, e eu nem os vi, empenhada que lhe todos os valores e desapareci. Como uma pena
voando ao vento, balancei de poiso em poiso, contor-
estava na minha tarefa secreta. Adeus, fruto do prazer
nando vilas, cidades, até alcançar o objecto da minha
e dor; amor de fervor, adeus! Abandonava o lugar em
aventura: o meu homem!"
passos de fuga; o casal qu~ me espiava lançou gritos,
alarmando os transeuntes que me rodearam. Uma - E depois?
velhota enxotou os curiosos, levou-me à sua casa para - Ah, a vida é um jogo de ntchuva: cheio aqui,
tratar da criança. Nem com isso desisti dos meus inten- vazio ali. Conheci a verdadeira felicidade ao lado do
tos. A latrina da casa era mesmo ideal para a consuma- meu marido.
ção do meu acto. Esperei que a velhota adormecesse. - E a criança?
Em vão. Era mais vigilante que todos os anjos da
- É aquela ai i, e já me deu dois netos.
guarda. O sono venceu-me. No sonho vi a ininha
Porque escondes os olhos, Maria? Talvez te
pequena já crescidinha, rindo em gargalhadas rasga-
envergonhes dos teus actos, talvez te arrependas do
das nos braços do pai. O choro da criança interrom-
teu relato, ou mesmo te revoltas contra a sociedade
peu o meu sonho, transportando-me para o novo
que te conduziu aos caminhos da tragédia. As
sonho desta vez bem mais real: a criança sorria, ven-
cicatrizes do amor rasgaram as crostas e jorraram um
cendo a agonia. Deus dos milagres, respondeste às
líquido sangue que escorre pelas curvas das tuas
minhas súplicas, obrigado. Os espíritos do mar ven-
pálpebras.
ceram o mal, amém! Pelo sinal da Santa Cruz".
A filha em quest;io, preparou a flecha que
Eu, pecador, me confesso. Sorvi a taça do abo-
disparou certeira.
minável, fluindo/da garganta da autora. Com o simples
relancear da vista tentei penetrar no secreto de cada - Mãe, eras capaz de jogar-me na fóssa, a mim?
alma. Afinal quem somos nós? Em quantos vendavais - Perdoa-me, querida. Eu não queria dizer nada.
nos espiraiamos até galgar o degrau do presente? Apenas gostaria que os seres humanos tivessem mais
Agora pergunto, Maria: que razües te levam a desven- humanidade, amor e fraternidade.
dar os aposentos da miséria ao público, estampando Na caserna de Maria há uma mulher que chora,
a vergonha e a desonra no rosto dos teus filhos? e os soluços sincronizam com a makw;lyela das pal-
Bailas, Maria, agora completamente desnuda. meiras. Os corvos em revoada grasnam agouros, as
As tuas curvas são ardentes, confirmam os homens, nuvens já abalaram e o sol voltou a abrasar. As águas
mas as tatuagens que exibes são as mais secretas e as do fndico balançam com mais força sob o domínio do
mais sagradas do teu mundo. vento sul. No coração da noite haverá tempestade.
"E depois caí nas mãos de uma farsante que me Outubro /989
obrigou a trabalhar para ela, com ameaças de denún-
cia por violação da fronteira. Seis meses durou a pri-
são bem como o nlano de evasão. Maldição! Aprendi
~--- '. "'-'n "'.-/l~Hlca IT[folt'u I,Q•• &-'10 .••••.•

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