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Eugénio de Andrade, in Aquela Nuvem e

Outras O burro de Loulé

Era um burro muito burro,


Adivinha ou melhor, era pateta,
pois vinha de Loulé,
Não é galo nem galão, sem ser coxo nem perneta,
nem padre nem sacristão: sempre, sempre sobre um pé.
é um animal esquisito,
entre peru e pavão,
tem barbas ruivas de milho, O Pastor
tem olhos de crocodilo,
rabo de rato ou de cão, Pastor, pastorinho,
ão ão ão! onde vais sozinho?

Vou àquela serra


O gato buscar uma ovelha.

Onde está o gato? Porque vais sozinho,


Dentro do sapato? pastor, pastorinho?
Anda atrás do pato
ou caiu no pote? Não tenho ninguém
Anda no jardim que me queira bem.
à roda do pudim.
Dó si dó ré mi Não tens um amigo?
Deixa-me ir contigo.

Um, dois, três


O lagarto
Um, dois, três.
lá vai outra vez Vejam que janota
o gato maltês o lagarto vem!
a correr atrás Parece um ministro.
da franga pedrês, Irá a Belém?
talvez a mordesse
apenas no pé, Vem do costureiro?
o sítio ao certo Vem de trabalhar?
não sei bem qual é Que pergunta tola:
(quatro, cinco, seis), vem só de almoçar.
ou só lhe arranhasse
a ponta da crista, E que bem comeu
e talvez nem isso, o nosso janota!
seria só susto, Quem seria o parvo
ou nem sequer mesmo que pagou a conta?
foi susto nenhum:
sete, oito, nove,
para dez falta um. Canção de Leonoreta

Borboleta, borboleta,
Verão flor do ar,
onde vais, que me não levas?
Caracol, caracol, Onde vais tu, Leonoreta?
onde vais com tanto sol?
Vou à loja do Senhor Adão, Vou ao rio, e tenho pressa,
comprar um girassol; não te ponhas no caminho.
Com tanto Sol Vou ver o jacarandá,
ninguém aguenta o Verão. que já deve estar florido.
Adeus, adeus, caracol,
tens razão, Leonoreta, Leonoreta,
sem guarda-sol que me não levas contigo…
ninguém aguenta este sol.
Gatos Velho, velho, velho
chegou o Inverno.
Gato dos quintais,
Gato dos portões,
Gato dos quartéis, A formiga
Gato das pensões.
Sete palmos, sete metros,
Vêm da Índia, da Pérsia, anda a formiga por dia
De Ninive, Alexandria. (sete palmos a correr,
Vêm do lado da noite, sete metros devagar),
Do oiro e rosa do dia. só para lamber o mel
que lentamente escorria
Gato das duquesas, quer da boca quer do pão,
Gato das meninas, quer dos dedos do Miguel.
Gato das viúvas,
Gato das ruínas.
Andorinha
Gatos e gatos e gatos.
Arre, que já estamos fartos! Era uma andorinha branca
que me batia à janela
e contente anunciava
Canção da Joaninha que chegara a primavera,
ou era eu que sonhava?
A Lisboa, vamos a Lisboa.
Joaninha voa, voa.
Faz de conta
Num cavalo baio
ou num alazão, vamos a Lisboa. - Faz de conta que sou abelha.
Joaninha voa, voa. - Eu serei a flor mais bela.

Num cavalo de Alter - Faz de conta que sou cardo.


ou do Turquestão, vamos a Lisboa. - Eu serei somente orvalho.
Joaninha voa, voa.
- Faz de conta que sou potro.
Num cavalo de pau - Eu serei sombra em agosto.
ou num garanhão, vamos a Lisboa.
Joaninha voa, voa. - Faz de conta que sou choupo.
- Eu serei pássaro louco,
Ah, que bom, que bom, que bom;
Voa, voa, vamos a Lisboa. pássaro voando e voando
sobre ti vezes sem conta.

O Inverno - Faz de conta, faz de conta.

Velho, velho, velho


chegou o Inverno. A rosa e o mar

Vem de sobretudo, Eu gostaria ainda de falar


vem de cachecol, da rosa brava e do mar.
o chão por onde passa A rosa é tão delicada,
parece um lençol. o mar tão impetuoso,
que não sei como os juntar
Esqueceu as luvas e convidar para um chá
perto do fogão, na casa breve do poema.
quando as procurou, O melhor é não falar:
roubara-as o cão. sorrir-lhes só da janela.

Com medo do frio,


encostou-se a nós: Aquela nuvem
dai-lhe café quente,
senão perde a voz. - É tão bom ser nuvem,
ter um corpo leve,
e passar, passar. Percebi então
- Leva-me contigo. que não vinha bem.
Quero ver Granada. Que desgosto teve?
Quero ver o mar. Com quem se bateu?
- Granada é longe, Disputas de gatos
o mar é distante, em pleno janeiro?
não podes voar. Ou foi antes cão
- Para que te serve que o filou primeiro?
ser nuvem, se não Nada perguntei
me podes levar? por delicadeza,
- Serve para te ver. mas que fora coça,
E passar, passar. da rija, da boa,
da que deixa mossa
para a vida toda,
Frutos isso bem se via.

Pêssegos, peras, laranjas, Queria ajudá-lo,


morangos, cerejas, figos, não só por carinho:
maçãs, melão, melancia, custa tanto vê-lo
ó música de meus sentidos, metido na fossa
pura delícia da língua; da melancolia!
E para acabar
deixai-me agora falar quase me atrevia
do fruto que me fascina, a pedir que guardem
pelo sabor, pela cor, muito bem guardado
pelo aroma das sílabas: tudo isto em segredo.
tangerina, tangerina. E muito obrigado.

Rosa
Não quero, não
É uma rosa amarela.
Uma rosa de verão. Não quero, não quero, não,
Sempre uma rosa em botão ser soldado nem capitão.
estava posta à janela.
Quem mora naquela casa Quero um cavalo só meu,
certamente que sabia seja baio ou alazão,
quanto essa rosa em botão, sentir o vento na cara,
seja branca ou amarela, sentir a rédea na mão.
perfuma todo o verão.
Não quero, não quero, não,
ser soldado nem capitão.
Romance de D. João
Não quero muito do mundo:
Foi-se D. João, quero saber-lhe a razão,
foi à sua vida, sentir-me dono de mim,
sem dificuldade ao resto dizer que não.
saltou pelo muro,
não voltou senão Não quero, não quero, não,
quando ao outro dia ser soldado nem capitão.
já fazia escuro.
Vinha enfarruscado,
partida a viola, Cavalos
o boné ao lado,
rasgado o calção Uma canção de cavalos
e a camisola. me pede o Miguel que escreva:
Fiz-lhe uma carícia, cavalos de sol sedentos,
não me respondeu, mansos cavalos de seda.
foi-se encafuar Cavalos bebendo a sombra
perto do borralho verde e rosa das palmeiras
arrastando o pé. ou bailando nas areias
com as luzes derradeiras.
Cavalos de romanceiro
disparados como setas
em terras da minha terra
ou só na minha cabeça.
Cavalos de sol sedentos,
mansos cavalos de seda:
uma canção de cavalos
me pede o Miguel que escreva.

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