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LINGUAGEM DA MÚSICA CONTEMPORÂNEA DE CONCERTO EM CONTEXTO

Eli-Eri Moura

Há inúmeras discussões em torno de linguagem musical. Na visão de Suzanne Langer,


fundamental para a existência de uma linguagem seria sua natureza discursiva, própria da
linguagem verbal, o que excluiria a música. Outros filósofos e semiólogos discutem se música
é ou não signo e comunicação – e de que maneira. Para teóricos da música, a linguagem é
identificada com estilo, tratamento dos materiais musicais, os próprios materiais, técnicas,
processos composicionais e sistemas sonoros, com os quais, na verdade, se intercambia. Um
exemplo é a referência à “linguagem tonal” (para uma música apoiada no sistema tonal)
versus “linguagem não-tonal” (para uma que faz uso de um sistema diferente). Há ainda
visões a partir da comunicação social que excluem qualquer noção de linguagem fora do
sistema tonal. Adentrar essa discussão está fora do escopo deste trabalho. No entanto, para
referenciar as idéias aqui expostas, partiremos de um conceito do ponto de vista do
compositor.
Linguagem musical é a própria música como interface entre uma rede de referências
culturais, uma rede de significados/conteúdos (um campo de diferentes realidades ao qual a
música nos remete) e microuniversos sonoros artificiais (coletivos ou particulares), com os
quais o compositor trabalha geralmente em um nível pré-composicional. Nesse nível, o
compositor lida com fatores de força existentes nas relações entre componentes sistêmicos
(que envolvem diversas funções e relações entre os parâmetros musicais), estabelecendo
normatizações que, influindo na caracterização dos agentes catalisadores da sintaxe e do
discurso musicais, terminam por afetar de uma forma específica os aspectos estruturais,
formais, melódicos, harmônicos, texturais e tímbricos de sua composição. Em geral, esses
microuniversos são suportados por um leque de determinantes ambientais (acústicos),
cognitivos e biológicos.
Nesse sentido, toda e qualquer música detém uma linguagem que participa do processo
comunicativo e, conseqüentemente, da produção sociocultural e histórica. Em nossa exposição,
tangenciaremos aspectos desse processo que dizem respeito especificamente a tópicos como
compreensibilidade da linguagem, nacionalismo e identidade cultural, inseridos na cadeia de
produção, circulação e consumo.
Ainda nessa acepção, consideramos a música como uma linguagem universal (ou quase),
mas exibindo tipos diferentes de acordo com lugar e período, da mesma forma como a
linguagem verbal, enquanto fator lingüístico, é considerada universal, mas emerge através de
diferentes idiomas, dependendo do tempo e do espaço. Isso é porque, transcendendo
verbalização e oralidade, a linguagem musical tem a capacidade de instaurar uma cadeia de
relações sonoras que se fecha até certo ponto na sintaxe, mas permanece aberta em seus
aspectos semânticos (seus conteúdos e significados).
Além disso, contribuindo para tal universalidade, é qualidade precípua da música abrigar
multiplicidades sintáticas simultaneamente. Assim afirma Lucia Santaella:

[...] a música é uma linguagem que, além das sintaxes similares às da língua,
também trabalha com as sintaxes da simultaneidade, sintaxes harmônicas, texturais,
espessas, homólogas às sintaxes das linguagens plásticas, visuais. A construção de
cada acorde em si já se constitui em uma sintaxe, relações sintáticas da
simultaneidade, enquanto as progressões harmônicas que determinam a passagem de
um acorde a outro no tempo, constitui-se em uma seqüencialidade de tipo especial,
obedecendo às leis determinadas pela construção. Enfim, a harmonia como uma rede
de transições, progressões, modulações desenha uma sintaxe das espessuras, da
profundidade, dos relevos.

A autora ainda distingue como sendo compartilhadas pela música uma sintaxe do
movimento, tipicamente narrativa – em função das diversas direcionalidades encontradas nos
campos melódico, harmônico e textural, e correlativas sensações de expectativa,
desenvolvimento e resolução – e uma sintaxe diagramática, homóloga à da poesia – por conta
das repetições, paralelismos, variações, espelhamentos, etc., próprios do discurso musical.

É importante perceber que, a partir do início do Século XX, com a implosão do tonalismo,
predominante desde o Século XVIII, ocorre não somente um crescimento da complexidade
sintática em todos os seus níveis, mas de forma expandida a todos os parâmetros musicais –
lembrando que, no tonalismo, a sintaxe se centrava, sobretudo, nas alturas. A saturação da
linguagem predominante serve de estopim para uma verdadeira ‘corrida’ entre compositores
com o objetivo de desenvolver ou reinventar a linguagem musical, não muito diferente das
outras ‘corridas’ do século – tecnológica, armamentista, espacial, etc. Numa rápida sucessão, a
linguagem desdobra-se em variantes, constituindo novas linguagens. Tal transformação é um
dos fatores a contribuir para a estratificação que, no decorrer do século, polariza a música
entre vários segmentos, entre os quais o popular e o erudito (ou música de concerto). Por um
lado, a música, agora caracterizada como contemporânea, em direção a uma complexidade
cada vez maior, termina por se confinar, a partir da segunda metade do Século XX, às
universidades e academias, difundida entre pares acadêmicos e entre aqueles fluentes nos
complexos códigos musicais – em geral, os próprios músicos. Além dos fatores inerentes à
própria evolução da linguagem, a estratificação é incrementada pelo desenvolvimento
tecnológico que passou a permitir a gravação e a transmissão à distância do som. Com o disco
e com o rádio, alguns segmentos da música que continuam a usar a velha linguagem
referenciada pelo sistema tonal tornam-se mercadoria/produto de massa com grande apelo
econômico, como a canção popular urbana e o rock. Outros segmentos que surgem, como o
jingle, a vinheta, a trilha sonora para novelas de rádio e TV, música para cinema, etc.,
permeiam diferentes tipos e níveis de linguagem.

Os anos recentes apresentam, mundialmente, um contexto de pluralismo e ecletismo


dominado por uma imensa variedade de linguagens musicais (e decorrentes estilos, métodos,
técnicas), que envolvem um sem-número de fusões, rupturas, mutações e continuidades. A
vanguarda, o experimentalismo, o novo pelo novo, característicos das décadas de 1960 e
1970, ficaram rapidamente datados, embora haja sempre os que insistam nessas linhas.
Ironicamente, obras de Cage e companhia, principalmente de seu período aleatório, não
fazem muito sentido em ser apresentadas nos dias de hoje a não ser como itens de museu,
que precisam ser explicados e contextualizados historicamente. Não poderia ser de outra
forma, dada a irrelevância dos aspectos sintáticos e a ênfase de estéticas muito particulares
(várias delas de contestação) em tais obras. Imagine o quão anacrônico é hoje procurar
chamar a atenção ou mesmo chocar uma platéia através da apresentação de 4’33’’, de Cage,
ou das peças da série Music, de LaMonte Young, por exemplo.
Mesmo os protagonistas de novidades como serialismo total, aleatorismo, minimalismo,
massas sonoras, etc., retornaram a procedimentos mais convencionais ou procuraram pontos
de fusão entre os diversos caminhos. Foi o caso de Boulez, Stockhausen, Berio, Reich, Glass,
Lutoslawski. Alguns deram guinadas espetaculares, realizando o retorno em um contexto
referencialista, dentro do chamado pós-modernismo, como Kagel, Schnittke, Zimmermann, ou
num contexto assumidamente neotonal, neo-românico, como Del Tredici, Pärt, Penderecki,
Górecki, Andriessen.
O Brasil reflete essa situação de pluralismo e ecletismo. Se já fomos anacrônicos no
passado, em fases em que as músicas de nossos compositores exibiam procedimentos
importados já desgastados, também já produzimos uma música de vanguarda autenticamente
brasileira, no final da década de 1960, quando compositores do movimento Música Nova se
envolveram com a poesia concreta dos paulistas Haroldo de Campos, Augusto de Campos e
Décio Pignatari. Mesmo os compositores desse movimento fizeram o recuo a linguagens mais
acessíveis, como Gilberto Mendes, com sua metalinguagem musical que transpõe fronteiras
temporais e espaciais. Outros voltaram a trilhar caminhos que são desdobramentos de uma
estética apregoada por Mário de Andrade, como foram os casos de Santoro, de Kaplan (dentro
de um universo intertextual), de Marlos Nobre, e de vários outros.
Diferente de qualquer outro período da história da música, o presente momento permite
que o compositor desfrute de uma liberdade composicional sem precedentes, liberdade que
abarca decisões que podem ir desde a concepção do próprio som à criação, a partir das mais
diversas premissas, de elaborados cosmos sonoros individuais e particulares.
Notoriamente, o avanço tecnológico da informação nas últimas décadas e a crescente
facilidade de acesso a ela foram fatores primordiais à chegada desse patamar. A informação,
podendo ser rapidamente multiplicada e consumida, não somente ajudou a esgotar e exaurir
linguagens musicais emergentes. Ela tornou possível o desencadeamento de novas relações e
fragmentações temporais e espaciais, indeléveis em nossos CDs, DVDs, iPods. Para o
compositor, em tal ambiente, nada mais natural, então, que superpor, contrapor, fundir e
transpor os espaços e tempos acessíveis, projetando em suas obras múltiplas metalinguagens
de um chamado mundo pós-moderno. Antigas polaridades do pensar composicional tornam-se
arcaicas: antigo-novo, tradição-renovação, conteúdo-forma, ocidental-oriental, nacional-
universal. Assim, fica propiciado também o reencontro entre o erudito e o popular.
Outra questão importante é o avanço que a música faz – com as novas linguagens – na
multiplicação de suas temporalidades. Se nos três séculos em que durou o tonalismo, a música
exibiu predominantemente uma temporalidade linear, baseada nas relações de passado e
futuro entre eventos musicais, a partir do século XX várias das novas linguagens têm sua
razão de ser justamente na exploração de temporalidades não lineares, que enfatizam mais o
ser do que o devir, mais o presente do que as relações efêmeras de passado e futuro. É
quando se explora de forma plena a identidade entre tempo e música, a qualidade da música
em manipular o próprio tempo. Parafraseando o “tempo relatado”, de Paul Ricoeur, é a
música, num nível mais profundo do que mitos e cronologias, tornando-se uma mediação
simbólica para o homem como tempo incorporado, na tentativa de superar a desproporção
entre o tempo cósmico e o tempo vivido.
Imagino que ainda passaremos algum tempo neste pluralismo. Eu não consigo
vislumbrar, neste momento, um direcionamento musical específico tão forte que domine uma
boa parte dos compositores, como acontecia no passado, quando escolas ou movimentos
composicionais bem caracterizados eram identificados, tendências e correntes estilísticas
apregoadas. Pelo menos não até que novos parâmetros musicais sejam descobertos e
utilizados, como foi o caso das massas sonoras usadas como agentes do discurso musical, que
revolucionaram a música a partir da segunda metade do século XX. Quem sabe?, parâmetros
envolvendo novos tipos de escuta, de percepção, holofonia (não no sentido da técnica de
gravação, mas de algo relacionado à elaboração de texturas musicais)...
No atual contexto, de ‘liberdade composicional’ sem precedentes, as diretrizes do fazer
musical tendem a ser ampliadas, demandando reflexões que extrapolam tradicionais
discussões estruturalistas e cognitivas da música, e incluem temas interdisciplinares de uma
agenda contemporânea envolvendo questões concernentes à circulação e ao consumo, além da
produção. É suposto que tais questões, fechando o círculo, influenciem de alguma forma as
linguagens adotadas pelos compositores.
No campo da produção, uma dessas questões diz respeito ao que é freqüentemente
apregoado como a atual “tendência” ser aquela que engloba e aceita todas as tendências,
todas as linguagens, tudo e todos, sendo todas as posições válidas. Isso num sentido que
transcende os ideais estéticos do pós-modernismo, propiciando o uso de “velhas” linguagens
não como metalinguagens, mas num patamar de ordem primária. Penso que tal situação
simplesmente reflete a atual realidade de imensa diversidade de mídias que exigem linguagens
musicais específicas (do jingle publicitário à música acusmática, da música incidental à música
abstrata). Tal realidade, até, força o compositor muitas vezes a desenvolver o que chamo de
“camaleonismo” composicional, necessário para atender as mais diversas demandas do
mercado. Nesse contexto, é interessante notar que reações ainda surgem quando
determinados espaços são transgredidos por linguagens nos quais tradicionalmente se
tornaram alheias. Um exemplo bem específico é a presença em eventos como a Bienal de
Música Brasileira Contemporânea (como visto este ano) de peças franca e abertamente tonais,
escritas não num contexto de metalinguagem ou mesmo de new tonality, mas num âmbito em
que a apreciação tem por base aspectos de ordem primária mesmo, relacionados à progressão
harmônica, condução melódica, equilíbrio formal, etc. Vários questionamentos podem ser
levantados: situações como essa implicariam uma banalização das linguagens musicais? Até
que ponto pode ser considerada como reação a movimentos como o da new complexity,
implicando, portanto, em um suposto “refrescamento musical”? O que dizer de implicações
práticas que envolvem até mesmo o meio acadêmico? Seria, assim, válida uma tese de
doutorado em composição que simplesmente reeditasse ou refizesse os caminhos de uma
sinfonia de Brahms ou uma cantata de Bach? São questões abertas para discussão.

Um tema eternamente relacionado à música brasileira que influenciou e influencia a


linguagem é, sem dúvida, o nacionalismo. É interessante perceber que, em diferentes graus,
um fator de “recontextualização” sempre acompanhou o evolver da música nacional. Com o
termo recontextualização refiro-me, num sentido amplo, à maneira como compositores lidam
com materiais e procedimentos estilísticos e sintáticos alheios às suas linguagens próprias e
específicas.
Como se sabe, as primeiras idéias de uma música com identidade nacional apareceram
no final do século XIX. Em concomitância com interesses políticos em incrementar a soberania
brasileira, a idéia foi liberar a música da dominação européia com uma linguagem que, ao
mesmo tempo, refletisse a realidade do povo e fosse compreendida pelas pessoas. As peças
resultantes foram caracterizadas principalmente pelo uso de temas melódicos da música
popular urbana e de origem africana, tratados de acordo com métodos harmônicos e
polifônicos europeus. Nestor Canclini diz que, reduzindo o étnico ao típico, a cultura dominante
recontextualizou a música do povo e atribuiu a essa música um novo significado em função dos
seus próprios interesses. Já na Semana de Arte Moderna de 1922, Mário de Andrade propôs
estágios para a criação de uma linguagem musical simultaneamente brasileira e moderna que
também implicavam diferentes tipos de recontextualização, indo desde a adoção fiel de
melodias folclóricas até uma música que refletisse o inconsciente nacional, aquela que seria
verdadeiramente nacionalista em espírito – caso da música de Villa-Lobos.
Em 1946, o manifesto Música Viva, envolvendo os compositores Koellreutter, Guerra-
Peixe, Edino Krieger e Cláudio Santoro, entre outros, introduziu no País as teorias de
Schoenberg. O manifesto atacava um “falso nacionalismo... que exalta sentimentos de
superioridade nacional e encoraja tendências egocêntricas e individualistas...” e invocava uma
música mais “universal”. Assumindo o papel de defensor dos valores brasileiros contra o Grupo
Música Viva, o nacionalista Camargo Guarnieri publicou em 1950 a “Carta Aberta aos Músicos e
Críticos do Brasil”, na qual ele chamou as idéias de Koellreutter de “formalistas e infiltração
antibrasileira” e se referiu à música dodecafônica como “refúgio para compositores medíocres”.
Por essa época, a fonte da ‘música nacional’ ainda era a cultura popular. A diferença é que os
elementos originais constituintes dessa cultura já haviam passado pelo processo de
mestiçagem, um processo de transformação dos elementos estrangeiros (principalmente da
África) em autênticos e identificáveis produtos brasileiros. Ironicamente, na metade da década
de 1950, Guarnieri se viu lado a lado com seus antigos “inimigos”, que também eram
membros do Partido Comunista Brasileiro, quando estes receberam uma orientação do Partido,
por assim dizer, para aderir a uma música nacional. Como afirma Mounsey, o Partido,
simpático à luta da então União Soviética contra os Estados Unidos na Guerra Fria, tornou-se o
defensor dos valores nacionais brasileiros: na sua visão, nacionalismo parecia ser a única
resposta às intenções imperialistas norte-americanas. Implicado aqui é o começo de um novo
ciclo de recontextualização. Para um país em uma posição anacrônica, muito atrás dos últimos
desenvolvimentos da linguagem musical, os novos procedimentos foram tão alienígenas
quanto os elementos anteriores retirados da cultura africana e nativa – embora esses
procedimentos fossem agora pertinentes apenas à música de concerto.
Envolvidos nestes embates, nossos compositores ficaram afastados dos últimos avanços
e desenvolvimentos da linguagem musical até os anos de 1960 e 1970 (sendo Villa-Lobos um
caso discutível). É interessante notar, no entanto, que de forma coletiva e inconsciente os
compositores brasileiros, ironicamente, terminaram por participar do processo de renovação da
linguagem musical contemporânea, antecipando determinados procedimentos, atitudes e
traços característicos do pós-modernismo. Isso porque, numa situação periférica, foi
simplesmente natural para esses compositores usar a grande variedade de elementos
estrangeiros bem como linguagens musicais externas ao seu dispor como matéria-prima para
criar uma música que transcende fronteiras e, muitas vezes, abraça contradições. Esse
ecletismo, em vez de um problema, foi assumido por eles como um traço fundamental de uma
identidade Latino-Americana, que vai além da recontextualização de referências regionais.
Nem uniforme nem homogênea, essa identidade é plural e heterogênea, com múltiplas
alternativas.
Sem dúvida, a realidade atual quanto a uma abordagem de uma música com
características nacionais é outra, diferente daquela do século XX. Numa reação natural ao atual
fenômeno da globalização, mas, sem o “complexo do colonizado” e sem ranços
antiimperialistas, uma enorme produção de música regionalmente contextualizada ocorre em
nossos dias. Essa é uma música que se origina a partir da interação com elementos de uma
cultura local, mas que, em geral, transcende o simples apelo do exótico ou a tentativa de
evocar ou expressar atitudes nacionalistas e ideológicas. No máximo, preocupa-se em
implementar uma contextualização geográfica, em favorecer (através da ênfase na identidade
cultural) uma visão do mundo culturalmente diversa, múltipla, em vez de uma visão estreita,
plana e globalizada. Tal contexto propicia as questões: a linguagem musical pode ser pensada
como fator de identificação/diversidade cultural? É realmente possível haver uma linguagem
regional/nacional?
Na tentativa de concretizar uma música com identidade, contextualizada, muitos
compositores, na verdade, utilizam linguagens já conhecidas e normatizadas e incrementam-
nas com os diversos elementos regionais, através de citação, evocação, manipulação,
estilização, etc. Nesse tipo de música, componentes do background musical, geralmente
pertencentes a práticas harmônicas estabelecidas, suportam elementos de superfície
(melódicos e rítmicos), os quais são ajustados para receber os traços característicos da
manifestação musical local. Essa é uma abordagem em que música tem uma orientação do
universal em direção ao regional. Nesse caso, não há, de fato, a criação de uma linguagem
específica, uma vez que, em geral, os determinantes culturais agem apenas na superfície
musical. Em minha opinião, esse é um caminho já exaurido.
Outra maneira diz respeito à aplicação de referências locais no sistema composicional de
base transformando/criando uma nova sintaxe, e, portanto, uma nova linguagem. Nesse
caminho, há uma interação (com elementos de uma cultura local) passível de ocorrer de forma
estrutural, permeando os diversos níveis hierárquicos das composições e dos seus processos
de criação. Nessa interação, os ingredientes culturais estão na base, no início do processo
composicional, influenciando a escolha da matéria prima, dos procedimentos e das estruturas,
e funcionando como um fator causal. Nesse sentido, Bartók, um compositor que unificou num
nível pré-composicional e estrutural sua tonalidade expandida com a música tradicional
húngara, é uma referência. Em seu caso, há uma direção distinta: uma transcendência do
regional para o universal. Paradoxalmente, esse caminho pode resultar numa música menos
identificável quanto a suas origens, uma vez que, a partir da posição inicial e básica, os traços
da cultura local em sua forma bruta podem sofrer transformações que terminam por afetar os
elementos e aspectos mais internos e inerentes dos materiais per se. Eles podem, assim,
emergir em diferentes níveis hierárquicos da música, apresentando formas variadas, nem
sempre explícitas ou identificadas com os macroelementos da cultura referencial. Apesar disso,
e talvez até por isso, em minha opinião, é uma trilha que ainda pode ser bastante explorada,
principalmente se a associação envolver, de forma estrutural, não apenas alturas e ritmos,
mas também outros parâmetros, a exemplo de timbre, textura, densidade e registro.

Se questões intrínsecas à linguagem musical que envolvem produção dizem respeito


diretamente aos compositores, questões da circulação envolvem em muito os intérpretes, e,
evidentemente, as questões de consumo o público. Acredito que, nesse círculo, veiculam fatos
e mitos. Uma reclamação dos compositores é a velha história de que a maciça maioria dos
programas de concerto no Brasil contempla apenas a música do passado (com linguagens
conhecidas e mais facilmente assimiláveis). Essa história é velha, mas é verdadeira. De fato,
preferência se deu e se dá à promoção de um repertório principalmente dos períodos barroco,
clássico e romântico. Olhando além dos nossos muros, há de se notar, no entanto, que em
alguns países essa situação começa a mudar. O mesmo repertório tem-se repetido tanto que
começa a se desgastar, enquanto a produção mais recente cresce quantitativamente, e
evidentemente, em algum momento, superará a antiga. Assim, nota-se cada vez mais
freqüentemente a presença de compositores consolidados da primeira metade do século XX
em programas até de grupos bastante tradicionais. Infelizmente, isso ainda está por acontecer
no Brasil. O argumento de alguns intérpretes e promotores é de que não há demanda por
parte do público para a música contemporânea. O argumento traz a questão básica: como
pode haver demanda se o público desconhece quase por completo qualquer repertório que
transcenda o da música convencional? O problema não é necessariamente porque as pessoas
não são expostas às novas linguagens. Essas estão até bem presentes em nosso cotidiano –
em filmes de cinema e TV, novelas, etc. –, embora sejam assimiladas, evidentemente, de
forma inconsciente. Para que o sejam de forma consciente, através da música de concerto,
difusão da música e preparação do público se tornam necessárias. As perguntas surgem: nós,
compositores, temos tido os meios, os agentes e mesmo a coragem de difundir com maior
agressividade nossa música?
A Internet revela-se como uma nova ferramenta para a difusão de novas linguagens
musicais, caso encontremos formas criativas de usarmos tal recurso. Por ser um meio mais
democrático (ou aparentemente mais democrático), com o qual se pode ter acesso imediato a
qualquer música, de qualquer lugar, sem depender da vontade, do gosto artístico e do
interesse comercial de quem manda nos mercados musicais, ela oferece possibilidades para o
abrandamento de problemas de acessibilidade.
Nessa difusão, também precisamos de muitos mais compositores atuantes, pois ainda
pecamos nos critérios quantitativos. Para se ter uma idéia, neste ano a Bienal de Música
Contemporânea Brasileira apresentou 89 compositores. Este é um número pequeno
considerando o contingente populacional do País e o grande número de compositores ativos
em outros países muito menos densos da Europa.
Outra questão diz respeito à compreensibilidade da música contemporânea, ao
argumento de o público não entender ou não conseguir assimilar as novas linguagens e,
assim, se afastar das salas de concerto, justificando a não inclusão desse repertório nos
programas. Acho que essa é uma questão bastante ambígua, com diferentes facetas. A
primeira consideração é que, numa dimensão neutra, as propriedades naturais da linguagem
musical, contendo elementos de significação em aberto e não fechados, e o potencial da mente
humana em criar relações com tais elementos, permitem a assimilação de qualquer música por
parte de qualquer ouvinte. Assim, em tese, um camponês do interior da Paraíba poderá
apreciar tanto um forró pé-de-serra quanto um concerto de Ligeti. O fator diferenciador é
justamente o nível da apreciação. Seu nível de escuta e de compreensão será evidentemente
menor do que daquele que é iniciado na linguagem de Ligeti. Ainda assim, no entanto,
relações musicais serão efetivadas em sua mente. Outra consideração são os ouvidos com
filtros apenas para a música com referências tonais desenvolvidos ao longo dos anos. Se o
ouvinte até desconhece que as linguagens musicais são múltiplas e não se resumem apenas ao
código do sistema tonal, torna-se difícil para ele apreciar qualquer outro tipo de música. Como
apreciar plenamente Atmospheres, de Ligeti, se durante toda a escuta fique a procurar
suportes em métricas regulares, melodias, progressões tonais que nunca emergirão? Como
sequer conseguir escutar HPSCHRD, de Cage, sem saber das implicações estéticas e
contextuais por trás da peça? Nesse sentido, as linguagens de compositores da Ars Antiqua,
como leonin e Perotin são tão fora deste mundo quanto as da música contemporânea. Vê-se
facilmente que todas essas questões passam pela problemática da educação, tão evidente, tão
óbvia, tão discutida, mas também tão permanente e onipresente. Não adentrando essa
discussão, apenas comento que a dimensão e o nível de tal problemática produziram uma
enorme massa de brasileiros que não tem ouvidos para apreciar plenamente música de
concerto, muito menos contemporânea.
Para concluir, gostaria de mencionar uma interessante experiência desenvolvida em João
Pessoa, Paraíba, em que alguns desses pontos se refletiram de forma notória. Visando
implantar a área de composição e atender uma significativa demanda de jovens ávidos em
adentrar no campo da criação musical, foi criado na Universidade Federal da Paraíba, em
2003, o COMPOMUS – Laboratório de Composição Musical. Cumprindo sua missão, o
Laboratório preparou o caminho para os cursos de Bacharelado e Mestrado em Composição
que hoje funcionam na Universidade.
Um dos principais eixos de enfoque do COMPOMUS conecta o ensino da composição (em
nível de extensão), parcerias com grupos intérpretes, realização de concertos com a produção
composicional dos alunos, e, quando possível, registro do trabalho em CD. Iniciando o trabalho
com cerca de 12 alunos, rapidamente uma expressiva produção de peças resultou dos cursos
de extensão. Trabalhando em equipe, esses alunos e seus professores articularam-se com
grupos instrumentais do Estado, em parcerias cujos termos se baseavam no seguinte: os
grupos realizariam oficinas de instrumentação com os alunos e executariam suas peças em
concerto em troca de novas obras compostas especialmente para seus integrantes.
Ultrapassadas as tradicionais barreiras com os músicos, que em alguns momentos se sentiram
desafiados em tocar peças de linguagens diversas, algumas com determinado nível de
dificuldade e complexidade, planejamos concertos com programas integralmente formados por
música contemporânea, numa experiência quase que inédita na cidade. Nossa grande surpresa
foi, e tem sido, o grande sucesso de público e de recepção desses concertos por pessoas que,
digamos assim, não foram preparadas para tal repertório. Hoje, numa ação inédita, pelo
menos no Nordeste, a Orquestra Sinfônica Jovem da Paraíba dedica um concerto inteiro de sua
temporada à execução das peças da Classe de Orquestração do COMPOMUS. Dentre outras
parcerias, destacamos as realizadas com a Camerata Arte Mulher e com o Sexteto Brassil de
Metais. Com o primeiro grupo, gravamos este ano um CD patrocinado pela UFPB, com peças
dos alunos, em atual fase de edição e mixagem. Com o Brassil, fizemos um dos concertos da II
Bienal de Música Brasileira Contemporânea de Mato Grosso, com peças de compositores do
COMPOMUS, e ganhamos este ano o edital do Programa Petrobras Cultural para a gravação de
um CD e realização de uma turnê pelo País. Sem se pretender modelo, a experiência
demonstra que é possível agir de forma articulada para que as diversas linguagens da música
contemporânea permeiem de forma eficiente as esferas da produção, da circulação e do
consumo.

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