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DITIRAMBOS DE DIONÍSIO

FRIEDRICH NIETZSCHE

Tradução de Paulo César de Souza

Desejando prestar à
humanidade um favor sem
limites, ofereço-lhe meus
ditirambos. Deposito-os nas
mãos do poeta de Isoline, o
maior, o primeiro dos sátiros que
hoje vive — e não apenas hoje...
Dionísio.
para si mesmo uma presa,
isso — pretendente da Verdade?...
Somente louco!
Somente poeta! Somente louco! Somente poeta!
Falando somente coisas coloridas,
No ar desanuviado,
falando a partir de máscaras de tolo,
quando o consolo do orvalho já se
subindo por mentirosas pontes de
estende sobre a terra,
palavras,
invisível, também não ouvido
por arcos-íris de mentiras,
— pois calçados leves tem o
entre falsos céus
orvalho consolador,
vagueando, deslizando —
como todos os que suavemente
somente louco! somente poeta!
consolam —
tu recordas então, recordas, Isso — pretendente da Verdade?...
ardente coração, Não calmo, hirto, liso, frio,
como uma vez tinhas sede tornado imagem
de lágrimas celestes e de orvalhos, pilar de Deus,
crestado e fatigado, não erguido diante de templos,
enquanto nas trilhas de erva seca guardião da porta de um Deus:
maliciosos olhares do sol vespertino não! hostil a essas estátuas de
corriam ao teu redor por entre virtude,
árvores negras, em todo ermo mais em casa do que
ofuscantes olhares do sol em brasa, em templos,
de alegre maldade. cheio de capricho de felino
a saltar por toda janela
“Pretendente da Verdade —
zás! para todo acaso,
tu?” — assim zombavam eles —
farejando em cada floresta virgem,
“Não! Somente poeta!
que corras em florestas virgens
um bicho, ardiloso, de rapina,
entre bestas de jubas coloridas
insinuante,
pecaminosamente sadio e belo
que tem de mentir,
e colorido corras
que ciente, voluntariamente
com ávidos beiços,
tem de mentir,
feliz-zombeteiro, feliz-infernal,
ávido de presa,
feliz-sanguinolento,
disfarçado de cores,
para si mesmo um disfarce,
corras rapinando, deslizando, dilacerar o deus no homem
mentindo... como o carneiro no homem
e rir dilacerando —
Ou como a águia, que
isso, isso é a tua ventura,
longamente,
ventura de uma pantera e águia,
longamente olha, hirta,
ventura de um poeta e louco!”...
nos abismos,
No ar desanuviado,
em seus abismos...
quando já a foice da lua
— oh, como eles se encaracolam
entre rubores purpúreos
para baixo, para dentro, em cada vez
verde se insinua e invejosa,
mais fundas profundezas!
— inimiga do dia,
— Então, de repente, em vôo direto,
a cada passo secretamente
em súbito arremesso
ceifando pendentes redes,
cair sobre cordeiros,
de rosas, até caírem
bruscamente para baixo, voraz,
pálidas, noite abaixo:
cobiçando cordeiros,
assim caí eu mesmo uma vez
irritado com todas as almas de
de minha loucura da verdade,
cordeiro,
de meus anseios diurnos,
ferozmente irritado com tudo o que
cansado do dia, doente da luz
olha
— caí para baixo, para a noite,
virtuosamente, como ovelha,
para a sombra,
de lã crespa,
queimado e sedento
estupidamente, com benevolência
de uma verdade
de leite de ovelha...
— lembras-te ainda, lembras-te,
Portanto, ardente coração,
aquilinos, de pantera como tinhas sede então? —
são os anseios do poeta, que eu esteja banido
são teus anseios sob milhares de toda verdade! Somente louco!
de disfarces, Somente poeta!...
ó louco! ó poeta!...
O deserto cresce: ai
daquele que abriga
Tu, que olhaste o homem desertos...
como deus e como carneiro —,
Ah! dúvida.
Solene! Pois venho da Europa,
um começo digno! que é mais cética do que todas
africanamente solene! as mulheres casadas.
digno de um leão Que Deus melhore isso!
ou de um rugidor macaco moralista... Amém.
— mas nada para vós,
Eis-me aqui sentado
amigas graciosíssimas,
neste pequenino oásis,
a cujos pés, a mim,
como uma tâmara,
um europeu sob as palmeiras,
castanha, inteiramente doce,
me é dado sentar. Selá.
gotejante de ouro,
Realmente maravilhoso! ávida da boca redonda de uma
Eis-me aqui sentado, garota,
próximo ao deserto e já mais ainda, porém, de virginais
novamente longe do deserto, gélidos, brancos como neve,
e em nada ainda devastado: cortantes
pois engolido dentes que mordem: pois deles está
por este pequeno oásis sedento
— que agora mesmo abriu, o coração de todas as tâmaras
bocejante, quentes. Selá.
sua boca encantadora,
Semelhante, por demais
a mais cheirosa de todas as bocas:
semelhante
e então caí nela,
aos ditos frutos do Sul
dentro, através — entre vós,
aqui me acho deitado, cercado
amigas graciosíssimas! Selá.
pela dança e pelo jogo
Salve, salve aquela baleia, de pequenos besouros alados,
se ela tratou bem assim como de ainda menores
seu hóspede! — entendeis mais bobos e maldosos
minha erudita alusão?... desejos e pensamentos —
Salve o seu ventre, sitiado por vós,
se ele foi mudas, apreensivas
um ventre-oásis tão agradável gatas-meninas
como este: algo que ponho em Dudu e Zuleika
— circum-esfingeado, para pôr perna?
numa palavra muitos sentimentos — esquecendo então,
(— que Deus me perdoe esse quer-me parecer,
pecado de linguagem!...) a outra perna?
— aqui estou sentado, Pelo menos em vão
farejando o melhor ar, busquei a ausente
verdadeiramente ar de paraíso, jóia gêmea
ar leve e claro, listrado de ouro, — isto é, a outra perna —
ar bom como jamais caiu da Lua, na sagrada vizinhança
terá sido por acaso de sua graciosíssima, formosíssima
ou por petulância? saia em leque, esvoaçante e
como contam os velhos poetas. brilhante.
Mas eu, questionador, ponho isso Sim, se quereis, belas amigas,
em questão, acreditar inteiramente em mim: ela a
pois venho da Europa, perdeu...
que é mais cética do que todas as
Hu! Hu! Hu! Hu! Huh!
mulheres casadas.
Que Deus melhore isso! Amém. Foi-se,

Respirando este belíssimo ar, foi-se para sempre

com narinas dilatadas como taças, a outra perninha!

sem futuro, sem lembranças, Que pena por essa outra perninha

eis-me aqui sentado, adorável!

graciosíssimas amigas, Onde — estará ela, chorosa e

e olho a palmeira, abandonada,

como, igual a uma dançarina, essa perninha solitária?

ela se curva, se dobra e nos quadris Talvez com medo de um furioso,

se retorce amarelo monstro-leão de juba

— fazemos o mesmo, se olhamos dourada? ou talvez já esburgada,

muito tempo... roída — lamentável! ai! ai! roída!

tal como uma dançarina que, Selá.

quer-me parecer, Oh, não choreis,


já por tempo demais, corações meigos!
perigosamente Não choreis, ó
sempre se manteve apenas numa só corações de tâmaras! peitos de leite!
Ó saquinhos de coração de alcaçuz! incandescente,
Sê um homem, Zuleika! Coragem! e mastiga — seu mastigar é sua
Coragem! vida...

Não chores mais, Não esqueças, ó homem totalmente


pálida Dudu! curtido pela volúpia:
— Ou seria este o lugar tu és — a pedra, o deserto, és a
de algo mais forte, morte...
que fortifique o coração?
Última vontade
uma sentença consagrada?
uma solene exortação?... Morrer assim
como o vi morrer um dia —,
Ah! Arriba, dignidade!
o amigo que divinamente lançou
Sopra, sopra de novo,
coriscos e olhares à minha sombria
fole da virtude!
juventude:
Ah!
— petulante e profundo, na batalha
Rugir mais uma vez,
um dançarino —,
rugir moralmente,
entre guerreiros o mais jovial,
rugir como leão moral ante as filhas
entre vencedores o mais difícil,
do deserto!
um destino se erguendo sobre seu
— Pois o bramido da virtude,
destino,
ó graciosíssimas garotas,
firme, reflexivo, “preflexivo” —:
é mais do que tudo
tremendo por ter vencido,
ardor de europeu, voracidade de
exultando porque venceu morrendo
europeu!
—:
E aqui estou eu,
mandando enquanto morria,
como europeu
— e mandou que destruíssem...
não posso agir de outra maneira,
valha-me Deus! Morrer assim

Amém! como o vi morrer um dia: vencendo,


destruindo...
O deserto cresce: ai daquele que
abriga desertos! Entre aves de rapina

Pedra range na pedra, Quem aqui quer descer,


o deserto engole e estrangula. como rapidamente
A imensa morte observa, parda e
a profundeza o traga! Ainda há pouco caçador de Deus,
— Mas tu, Zaratustra, rede para fisgar toda virtude, flecha
amas ainda o abismo, do mal! —
fazes como o abeto? — Agora —
por ti mesmo caçado,
Ele finca raízes
presa de ti mesmo,
onde o próprio penhasco
em ti mesmo penetrado...
treme ao olhar a profundeza —,
ele hesita à beira de abismos onde Agora —
tudo em volta quer precipitar-se: solitário contigo,
em meio à impaciência do cascalho “a dois” no próprio saber,
selvagem, do regato a despencar entre cem espelhos,
pacientemente tolerante, falso ante ti mesmo,
duro, entre cem recordações
calado, incerto,
solitário... cansado de toda ferida,
frio de todo gelo,
Solitário!
estrangulado em teu próprio laço,
Mas quem ousaria
Conhecedor de si!
ser hóspede aqui,
Carrasco de si!
ser teu hóspede?...
Uma ave de rapina talvez, Por que te amarraste
que se apega aos cabelos do firme com o laço de tua sabedoria?
sofredor em maldosa alegria, Por que atraíste a ti mesmo
com louca risada, ao paraíso da velha serpente?
risada de ave de rapina... Por que te insinuaste, rastejaste para
dentro de ti — de ti?...
Por que tão firme?
— ela zomba cruel: Agora um doente,
é preciso ter asas quando se ama o vítima do veneno da serpente;
abismo... agora um prisioneiro
é preciso não pendurar-se como tu, que tirou a pior sorte:
pendurado! — trabalhando curvado na própria
mina,
Ó Zaratustra,
em ti mesmo escavado,
cruel Nimrod!
a ti mesmo perfurando,
desajeitado, teso, um cadáver —, Conhecedor de si!...
assoberbado por cem fardos, Carrasco de si!...
sobrecarregado de ti,
O sinal de fogo
um Sabedor!
um Conhecedor de si! Aqui, onde entre mares cresceu a

o sábio Zaratustra!... ilha,


pedra de sacrifício repentinamente
Buscaste o fardo mais pesado:
erguida,
e encontraste a ti —,
aqui acende Zaratustra, sob um céu
não te despojas de ti...
negro,
Espreitando, seus fogos das alturas —
agachado, sinal de fogo para navegantes
alguém que não mais fica de pé! desnorteados,
Ainda terás a forma de tua tumba, ponto de interrogação para os que
Espírito deformado!... têm resposta...

E há pouco ainda tão orgulhoso, Esta chama de ventre


nas muletas do teu orgulho! esbranquiçado —
Ainda há pouco o eremita sem Deus, a frias distâncias vão as labaredas
convivendo com o Demônio, de sua cobiça,
o escarlate príncipe de toda altivez!... dobrando o pescoço para alturas
sempre mais puras —
Agora
uma cobra que verticalmente se
— entre dois Nadas
ergue, impaciente:
encurvado,
este sinal eu coloquei à minha frente.
um ponto de interrogação,
um mudo enigma — Minha própria alma é esta chama:
um enigma para aves de rapina... insaciável de distâncias novas seu
quieto ardor lança ela para o alto.
— elas já te “solverão”,
Por que fugiu Zaratustra dos bichos
já têm fome de tua “solução”,
e dos homens?
já esvoaçam em torno de ti,
Por que furtou-se de repente a toda
seu enigma, em torno de ti,
terra firme?
enforcado!
Seis solidões já conhece ele —, mas
Ó Zaratustra!...
o próprio mar não lhe era solitário o
bastante, O ar corre alheio e puro.
a ilha deixou-o subir, no monte ele se Não me olha de soslaio e
tornou chama, sedutoramente a noite?...
buscando agora uma sétima solidão Mantém-te forte, meu bravo coração!
lança ele o anzol por sobre a cabeça. Não perguntes: por quê?

Navegantes desnorteados! 2.
Destroços de velhos astros!
Dia de minha vida!
Vós, mares do futuro! Céus o sol se põe.
inexplorados! — A lisa maré
a tudo o que é solitário lanço agora já está dourada.
meu anzol: O rochedo respira quente:
dai resposta à impaciência da acaso a felicidade ao meio-dia
chama, dormiu sobre ele a sua sesta? —
agarrai para mim, o pescador dos Em luzes verdes
altos montes, o pardo abismo lança brincando
minha sétima, derradeira solidão! felicidade para cima.

O sol se põe Dia de minha vida!


a noite se aproxima!
1.
Já teu olhar brilha meio apagado,
Não terás sede por muito tempo, já desce de teu orvalho o gotejar das
coração queimado! lágrimas,
Está no ar uma promessa, já corre quieta sobre mares
de bocas desconhecidas me vem um brancos a púrpura de teu amor,
sopro, tua última hesitante ventura...
— a grande frescura está
3.
chegando...
Jovialidade dourada, vem!
Meu sol pairou quente sobre mim no
tu, o mais secreto,
meio-dia:
mais doce antegozo da morte! —
eu saúdo vossa chegada,
Percorri eu rápido demais meu
ventos súbitos,
caminho?
frescos espíritos da tarde!
Apenas agora, com os pés já
cansados,
teu olhar me alcança ainda, Tu, caçador por trás das nuvens!
tua felicidade me alcança ainda. Derrubada por teus relâmpagos,
tu, olhar escarninho que me olhas da
Em volta apenas ondas e jogo.
escuridão!
O que um dia foi pesado afundou em
Assim me acho deitada,
azul esquecimento —
torço-me, retorço-me,
ocioso está agora meu barco,
atormentada por todos os martírios
tormenta e viagem —
eternos, golpeada por ti, caçador
como esquece ele isso?
crudelíssimo,
Desejo e esperança afogaram-se,
tu — deus desconhecido...
lisos estão alma e mar.
Golpeia mais fundo!
Sétima solidão!
Golpeia mais uma vez!
Nunca senti mais perto de mim a
Traspassa, traspassa este coração!
doce segurança,
Por que este martírio com setas de
mais quente o olhar do sol.
pontas rombudas?
— Não arde ainda o gelo de meus
Por que olhas novamente, ainda não
cumes?
cansado do tormento humano,
Prateada, leve, um peixe, nada
com maliciosos, divinos olhos
agora para fora a minha canoa...
relampejantes?
O lamento de Ariadne Não queres matar, apenas

Quem me aquece, quem me ama martirizar, martirizar?

ainda? Para que martirizar — a mim, ó

Dai-me mãos quentes! malicioso, desconhecido deus?

Dai-me braseiros para o coração! Ah! aproxima-te furtivamente nessa


Estendida, arrepiada, como um meia-noite?...
semimorto a quem se aquecem os Que queres?
pés, Fala!
sacudida, ai!, por febres Tu me pressionas, me oprimes,
desconhecidas, ah! já perto demais!
tremendo ante setas agudas e Ouves-me respirar, espreitas meu
gélidas, coração,
perseguida por ti, pensamento! ó ciumento!
Inominável! Oculto, Terrível! — mas ciumento de quê?
Fora! Fora! Ah! E me martirizas, tolo que és,
Para que a escada? martirizas meu orgulho?
Queres entrar nele, Dá-me amor — quem me aquece
no coração, penetrar, penetrar em ainda? Quem me ama ainda?
meus mais secretos pensamentos? Dá-me mãos quentes,
Desavergonhado! dá-me braseiros para o coração,
Desconhecido! Ladrão! dá a mim, à mais solitária,
Que queres roubar? a quem o gelo, ai!, sétuplo gelo
Que queres espreitar? ensina a ansiar por inimigos,
Que queres obter com torturas, até por inimigos, dá, sim, rende,
torturador! Deus-carrasco! crudelíssimo inimigo,
Ou devo eu, como um cão, espojar- rende-te — a mim!...
me diante de ti?
Foi-se! Fugiu até ele,
Devotada, fora de mim de
meu único companheiro,
entusiasmo acenar-te amor — com a
meu grande inimigo,
cauda?
meu desconhecido,
Em vão! meu deus-carrasco!...
Fura mais!
Não!
Espinho crudelíssimo!
volta!
Não um cão — apenas tua caça sou
Com todos os teus martírios!
eu, caçador crudelíssimo!
Tua mais orgulhosa prisioneira, Todas as minhas lágrimas

ladrão por trás das nuvens... correm para ti

Fala, enfim! Oculto no relâmpago! e a última chama do meu coração

Desconhecido! fala! Que queres tu, arde para ti.

salteador, de — mim? Oh, volta, meu deus desconhecido!


Minha dor!
Como? Resgate? Quanto queres de
minha derradeira felicidade!...
resgate? Exige muito — assim quer
meu orgulho! e fala pouco — assim Um relâmpago. Dionísio torna-se

quer meu outro orgulho! visível em beleza esmeralda.

Ah! A mim — queres? a mim? a mim Dionísio:


— toda?...
Sê prudente, Ariadne!... Quem tem uma última coberta,
tens orelhas pequenas, tens minhas esconda-se!
orelhas: Para a cama, mimosos!
enfia nelas uma palavra prudente! —
Agora estrondeiam trovões sobre as
Não é preciso antes se odiar, para se
abóbadas,
amar?...
agora tremem as traves e paredes,
Eu sou teu labirinto...
agora cintilam relâmpagos
Fama e eternidade e verdades cor de enxofre —
Zaratustra amaldiçoa...
1.
2.
Há quanto tempo já está sentado
sobre o teu infortúnio? Esta moeda, com a qual todo o
Cuidado! Ainda chocarás um ovo, mundo paga,
um ovo de basilisco de tua fama — com luvas pego esta moeda,
demorada miséria. com nojo a calco sob o pé.

Por que Zaratustra vai furtivamente Quem quer ser pago?


ao longo do monte? Os venais...
Desconfiado, ulcerado, sombrio, Quem está à venda agarra com
há muito espreitando —, mãos gordas esse tilintar de cobre
mas subitamente um relâmpago, universal, a fama!
claro, terrível, um golpe do abismo
— Queres tu comprá-la?
em direção ao céu:
São todos venais.
— até ao monte lhe estremecem as
Mas oferece muito! faz tilintar a bolsa
entranhas...
cheia! — senão os fortaleces,
Onde ódio e raio tornaram-se um, senão fortaleces sua virtude...
uma maldição —,
São todos virtuosos.
nos montes habita agora a ira de
Fama e virtude — isso combina.
Zaratustra,
uma nuvem de tormenta ele segue Desde que existe mundo,

furtivo seu caminho. ele paga a tagarelice da virtude com


a tagarelice da fama —,
o mundo vive desse barulho...
Ante todos os virtuosos quero ser tua muda beleza —
devedor, como? ela não foge de meus
ser culpado de toda grande ofensa! olhares?
Ante todos os megafones da fama — Emblema da necessidade!
minha ambição se faz verme —, Tábua de eternas esculturas!
entre eles apetece-me ser o ínfimo... — mas tu bem o sabes! o que todos
odeiam, o
Esta moeda, com a qual todo o
que somente eu amo,
mundo paga,
que és eterna!
fama —
que és necessária!
com luvas pego esta moeda,
Meu amor inflama-se eternamente
com nojo a calco sob o pé.
apenas com a necessidade.
3.
Emblema da necessidade!
Silêncio! Supremo astro do ser!
Sobre as coisas grandes — eu vejo — que nenhum desejo alcança,
coisas grandes! — — que nenhum Não macula, eterno
deve-se calar ou falar com grandeza: Sim do ser, eternamente sou teu
fala com grandeza, Sim: pois te amo, ó Eternidade!
minha arrebatada sabedoria!
Da pobreza do mais rico
Olho para cima —
Dez anos se foram —,
lá estão rolando mares de luz:
nenhuma gota me alcançou,
ó noite, ó silêncio, ó ruído de mortal
nenhum vento úmido,
silêncio!...
nenhum orvalho de amor
Vejo um sinal —,
— uma terra sem chuva...
de longínquas distâncias
Agora peço à minha sabedoria que
desce lenta cintilante uma
não se torne avara nesta aridez:
constelação rumo a mim...
transborda tu mesma, goteja
4. teu orvalho,

Supremo astro do ser! sê tu mesma chuva para o deserto

Tábua de eternas esculturas! amarelado!

Tu vens a mim? — Outrora mandei as nuvens


O que ninguém enxergou, afastarem-se de meus montes —
outrora falei “mais luz, ó escuras!”. ruins,
Hoje as atraio, para que venham: em toda profundidade já desceu.
fazei escuro ao meu redor com
Mas sempre, como a cortiça, sempre
vossos úberes!
nada de novo para cima,
— quero ordenhar-vos,
volteja como óleo sobre os mares
ó vacas das alturas!
pardos:
Sabedoria quente como leite,
por causa dessa alma chamam-me o
doce orvalho do amor
Feliz.
derramo eu sobre a terra.
Quem são pai e mãe para mim?
Fora, fora, verdades
Não é meu pai o príncipe
que olham sombriamente!
Abundância
Não quero ver em meus montes
e minha mãe o Riso silencioso?
verdades acres e impacientes.
O matrimônio desses dois não gerou
Dourada de riso
a mim, bicho enigmático,
chegue hoje a mim a verdade,
a mim, monstro de luz,
pelo sol adoçada,
a mim, esbanjador de toda
bronzeada pelo amor
sabedoria, Zaratustra?
— uma verdade madura colho
apenas da árvore. Hoje doente de ternura,
um vento de degelo,
Hoje estendo a mão
Zaratustra espera sentado,
para as madeixas do acaso,
espera em seus montes —
prudente o bastante para guiar,
em seu próprio sumo cozido
para iludir o acaso como uma
e tornado doce,
criança.
abaixo de seu cume,
Hoje quero ser hospitaleiro com o
abaixo de seu gelo, cansado e feliz,
que não é bem-vindo,
um criador em seu sétimo dia.
com o próprio destino não quero ser
espinhoso, — Silêncio!

— Zaratustra não é um ouriço. Uma verdade passa sobre mim


como uma nuvem —
Minha alma,
com invisíveis relâmpagos me
com língua insaciável,
atinge.
já lambeu em todas as coisas boas e
Por largas lentas escadas sobe até
mim sua felicidade: Dez anos se foram —
vem, vem, amada verdade! e nenhuma gota te alcançou?
nenhum vento úmido?
— Silêncio!
nenhum orvalho de amor?
É minha verdade!
Mas quem te havia de amar, ó rico
— De olhos hesitantes,
demais?
de tremores aveludados
Tua felicidade espalha secura ao
atinge-me seu olhar,
redor,
meigo, mau, um olhar de menina...
faz pobre de amor uma terra sem
Ela adivinhou a razão de minha
chuva...
felicidade,
ela me adivinhou — ah!, que estará Ninguém mais te agradece.
tramando? — Mas tu agradeces a quem recebe de
Purpúreo, um dragão espreita no ti:
abismo do seu olhar de menina. nisso te reconheço, ó rico demais,
ó mais pobre de todos os ricos!
— Silêncio!
Minha verdade fala! — Tu te sacrificas, atormenta-te a tua
riqueza —,
Ai de ti, Zaratustra!
tu te entregas, não te poupas,
Semelhas alguém que engoliu ouro: não te amas:
ainda te abrirão a barriga!... a grande tortura sempre te coage,

És rico demais, corruptor de muitos! a tortura dos celeiros cheios demais,

A demasiados tornas invejosos, a do coração cheio demais —

demasiados tornas pobres... mas ninguém mais te agradece...

A mim mesmo tua luz lança sombra Tens de fazer-te mais pobre,
—, tremo de frio: sábio não-sábio!
vai embora, ó rico, Se quiseres ser amado.
vai, Zaratustra, sai do teu sol!... Só se ama ao sofredor,

Queres dar, doar tua abundância, dá-se amor apenas ao faminto:

mas tu mesmo és o mais supérfluo! dá primeiro a ti mesmo, ó Zaratustra!

Sê prudente, ó rico! — Eu sou tua verdade...


Dá primeiro a ti mesmo, ó Zaratustra!

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