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BOOZ ADORMECIDO Triunfa, ao despertar da aurora, a juventude

e sai da noite o sol, como de uma vitória.


Deitara-se Booz, à fadiga prostrado.
Na eira, ao labor da ceifa andara todo o dia; "Mas velho, tremo assim com a bétula ao vento.
fez o leito depois no sítio costumado. Sou viúvo, sozinho: o céu já se fez turvo.
Dos alqueires de trigo ao pé Booz dormia. Para a cova, meu Deus, como um boi que, sedento,
para a água a testa pende, eu a minha alma curvo".
Possuía o ancião a mais farta cultura
de cevada e trigais, uma riqueza enorme; Assim falou num sonho extasiadamente
e contudo a sua alma era simples e pura, a Deus volvendo o olhar que o sonho escurecia:
e a sua consciência à justiça conforme. e como o cedro à base uma rosa não sente,
Booz uma mulher a seus pés não sentia.
Lembrava a sua barba um argentado arroio
de abril. Não sendo avaro o bom velho, se via Viera ter ali Rute, uma boabita,
acaso uma infeliz a respigar no joio: E reclinada junto a Booz, tendo o seio
acaso uma infeliz a respigar no joio: nu quedou-se, a esperar daquele que dormita
- "Deixem cair, um pouco, as espigas…" dizia. e há de acordar, o ardor de um breve bruxuleio.

Nunca esse homem trilhou por oblíquos caminhos. Não sabia Booz que uma mulher estava
E era consigo sempre a cândida pureza. ali perto. Nem Rute o que Deus lhe queria…
Vestiam-no de branco a probidade e os linhos. Das abróteas aflante o eflúvio se evolava
E os seus sacos de grãos, abria-os à pobreza. e a aura da noite no ar de Galgalá fluía.

Booz era o bom chefe a quem os demais louvavam. Nupcial era a sombra augusta e majestosa.
Dava a mancheia os bens que uma alma terna expande Voavam anjos entre o céu e a gleba rasa,
E as mulheres, Booz mais do que a um moço, olhavam, pois que às vezes se via, a errar na noite umbrosa
Pode o jovem ser belo: é belo o velho, e grande. qualquer cousa de azul que parecia uma asa.

Pois o velho, que ao berço originário tende, Surdas, ao respirar de Booz, como fosse
Deixa o que passa aqui pelo que eterno dura. igual o ritmo, na erva as fontes mal se ouviam.
Se uma chama no olhar da mocidade esplende, Passava então o mês em que a Natura é doce
nos olhos do ancião a luz é que fulgura. Das colinas ao cimo os lírios se erigiam.

Ora, entre os seus, Booz, nessa noite, dormia. Rute cismava, e Booz dormia: a campainha
Das medas, como junto a algum escombro estranho, dos rebanhos vibrava: a relva, toda escura.
Perto, um caifeiro de outro lado se estendia. Do firmamento, imensa, uma bondade vinha.
Deitavam-se. E isto foi pelos tempos de antanho. Iam beber, nessa hora, os leões a planura.

Por chefe, os de Israel a um sábio veneravam. Ur e Jerimadé a longe repousavam.


E a terra, onde surpreso o homem, jornada finda Profundo e negro, o céu. Brilhando no ocidente,
tremia ao ver os pés de monstros que a marcavam, Entre as flores da treva – os astros que apontavam –
aquosa do dilúvio estava, e mole ainda. Rute olhava, a subir fino e claro o Crescente:

Tal qual Jacó dormiu, como Judite, outrora, e imaginava, o rosto entre os seus véus sombrios,
sob as folhas Booz jazia. De repente, que deuses, que segador do sideral tesouro
sobre a sua cabeça abriu o céu, a essa hora; abandonara assim, à luz do eterno estio,
e eis que um sonho baixou então, à sua frente. sobre o estrelado campo, aquela fouce de ouro.
(Trad. de Eduardo Guimaraens)
E esse sonho foi tal, que um carvalho gigante DEUS SONHA
viu Booz do seu ventre erguer-se – e o azul tocava.
Por ele ia uma raça, a escalá-lo anelante: O dia acorda. Deus, por uma fresta
cantava embaixo um rei, no alto um deus expirava, Das nuvens a espreitar, ri-se. A floresta,
O campo, o inseto, o ninho sussurrante,
E Booz murmurou com a voz da sua alma: A aldeia, o sol que tinge a serrania…
"- Poderá ser, Senhor, se há tanto que me abstenho? Tudo isso acorda, quando acorda o dia
Por oitenta anos conto uma existência calma, No fresco banho de ouro do Levante.
não possuo um só filho, e já mulher não tenho.
Deus sonha. Vasa os olhos d'água; pica
"Aquela que dormiu comigo, nesta vida, As artérias da terra; os lis fabrica,
pelo vosso trocou, ó Senhor, o meu leito; E da matéria sonda o fundo ovário.
sinto que lhe pertenço, e tenho-a a mim unida Pinta as rosas de branco e de vermelho,
sempre, ela semiviva e eu a meio desfeito. E faz das asas vis do escaravelho,
A surpresa do mundo planetário.
"Pois vai nascer de mim uma raça? Ó virtude!
Posso eu gerar, e ter de uma tal prole a glória? Homens! As férreas naus de velas largas
Monstros revéis, formidolosas cargas, Ninguém há de colher a flor que eu tenho n'alma!
Do bruto oceano arfando as insolências
Extenuando os ventos, e nos flancos. Podeis com a asa bater, tentando, sem efeito,
Largo enxame a arrastar de flocos brancos A taça derramar em que me dessedento:
De escuma, e raios e fosforescências… Do que cinzas em vós há mais fogo em meu peito;
E, em mim, há mais amor que em vós esquecimento!
Os estandartes de arrogantes pregas; (Trad. de Álvaro Reis)
As batalhas, os choques, as refregas: DEPOIS DA BATALHA
Náuseas de fogo de canhões sangrentos:
Feroz carnificina de ferozes Meu pai, aquele herói de riso sempre aberto
Batalhões – bando espesso de albatrozes Seguido de um "hussard" que estimava, decerto,
De asa espalmada e aberta aos quatro ventos… Mais que os outros, por ser um bravo ante a metralha,
Percorria, a cavalo, após uma batalha,
Comburentes, flamívomas bombardas, O campo do combate envolto pelo véu
Ígnea selva de canos de espingardas, Da noite; nisto um ruído a escuridão rompeu:
Estampidos, estrépitos, clangores, Era um belo espanhol do exército vencido
E, bêbedo de pólvora e fumaça, Que, à beira do caminho, exânime, vencido
Napoleão que galopando passa, Gemia agonizante, exausto e sem socorro,
Ao rufar de frenéticos tambores E que a custo dizia: "Água! Água que eu morro!"
Meu pai magoado, estende ao seu "hussard", então,
A guerra, o saque, as convulsões, o espanto; E diz-lhe: - "Toma lá, dá-lha ao pobre ferido".
Sebastopol em chamas, de Lepanto De repente, no instante em que o "hussard", pendido,
A vau de lanças e clarins repleto… O ia socorrer, ele, um tipo de mouro
Homens! Tudo isso, enquanto recolhido Que inda agarrava a arma, arremessa um pelouro.
Deus sonha, passa e soa ao seu ouvido À fronte de meu pai, exclamando: "caramba!"
Como o rumor das asas de um inseto! Tão perto lhe zune o tiro, que descamba
(Trad. de Raimundo Correia) O chapéu, e o cavalo acua e se retrai.
OH! NÃO INSULTEIS… "Vá, dá-lhe de beber, embora!" diz meu pai.
(Trad. de Silva Ramos)
Oh! não insulteis nunca uma mulher perdida!
Quem sabe qual o transe em que ela foi vencida?
Quem sabe se foi longo o seu combate rude,
Entre as mil privações soprou com violência,
Quem já viu a mulher, que prendia a inocência
Nas pequeninas mãos cruzadas sobre o seio,
Não ir no turbilhão, gritando, com receio?…
Tal a gota de chuva, - pérola da rama: -
Brilha ao passar do vento, oscila e cai na lama!

A culpa é nossa; é tua, ó rico! É do teu ouro!


Mas, no lodo é que o mar esconde o seu tesouro…
Para que o pingo d'água erga-se da poeira,
Com o vivo esplendor e a limpidez primeira,
Já que as transformações se operam p'ra melhor,
Dai-lhe um raio de sol! Dai-lhe um raio de amor!
(Trad. de Múcio Teixeira)
A AMOR
Pois que a beber me deste em taça transbordante,
E a fronte no teu colo eu tenho reclinado,
E respirei da tu'alma o hálito inebriante,
- Misterioso perfume à sombra derramado;

Visto que te escutei tanto segredo, tanto!


Que vem do coração, dos íntimos refolhos,
E tive o teu sorriso e enxuguei o teu pranto,
- A boca em minha boca e os olhos nos meus olhos;

Pois que um raio senti do teu astro, querida,


Dissipar-me da fronte as densas brumas frias,
Desde que vi cair na onda da minha vida
A pétala de rosa arrancada aos teus dias…

Posso agora dizer ao tempo, em seus rigores:


- Não envelheço, não! Podeis correr, sem calma,
Levando na torrente as vossa murchas flores

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