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Como engolir a pilula? > Eric Laurent Como engolir a pilula no interior do discurso da psicanalise? A questo concerne ao conjunto dos membros da Associagao Mundial de Psicandlise. Como engoli-la quando o.discurso psicanalitico veio é luz em um campo que dispunha de poucos medicamentos, pouco eficazes € de muito pouca incidéncia? . Durante um longo tempo, a relactio da psicandlise com o medicamento se situau como uma relagio de exterioridade, Freud contudo conheceu em vida, no final de sua vida, uma primeira revolugSo terapéutica. Nos anos trinta, as terapias de choque, derivadas das novas descobertas sobre o sistema nervoso, aplicavam-se as psicoses. 0 que se experimentava mresse campo era o eletrochoque ¢ o choque por coma insulinica concebido pelo vienense Sakel. 0 préprio Freud recebeu, em andlise de formagao, o introdutor dos métodos de Sakel nos USA, Joseph Wortis. Mas a revolucdo terapéutica que conhecemos, aquela do medicamento, s6 comecou no fim dos anos cinqienta. Ela viu a irtupgSo da clorpromazina, que inaugurou a série dos neurolépticos. No inicio dos anos sessenta, 2 imipramina inaugurava a série dos antidepressivos. Em sequida, as benzodiazepinas — preseritas como ansioliticos sem marcantes efeitos aparentes — permitiram uma grande difuséo do medicamento psicotr6pico para além das categorias dda psicose, Assistimos ao mesmo tempo a generalizagao do uso de hipnéticos e ao reencontro do velho litia, Atualmente, as “geraghes" de antidepressivos succssivas intraduziram definitivamente 0 medicamento no status de abjeto cientifico efémero. Esse statiss temporal transitério confere uma dignidade as objetos produzidos pela ciéncia, Existem as “geracdes" de antidepressivos como existem as "geragdes” de computadores, Estamos, hoje, mergulhados no medicamento. Ele é onipresente em nosso campo. Transtorna a clinica. Define ideais de eficdcia, transforma as instituigdes médieas, triunfa sobre 2 tradigao € os significantes-mestres. Ele & objeto de demandes neurdticas, de exigéncias psicdticas e de usos perversos. E ot de perseguicdo e de rejeigdo. Ele se instala, expan especialmente bem, coma em casa dele, em nosso nosso mestre? 8 & ligue #0 -obrit-2002 Se ele tem o dom da ubiqiidade, jé nao estaria entao, ld, antes queo soubéssemos, mas sob outras formas? £ claro que a natureza farmacocinética do efeito do medicamento no se depreende de nossa disciplina; ignoravamos, entretanto, a dimensdo do medicamento? Freud situou 0 analista_como representante do pai na transferéncia, garantia da adequacao das palavras a pulsao pela interpretago psicanalitica, Foi mais tarde, na geragao dos anos 30 — aquela que nomeamos como a dos pés-freudianos — que_o psicanalista apareceu como objeto, Deram-se varias versbes disso. Para Mélanie Klein, mde genial, apareceu como o seio magnifico, Michal Balint, médico inspirado pela demanda da cocaina, Ele sempre acentuou a importancia dos anestésicos ¢ das drogas para uma dada sociedade. O mal-estar na civilizagdo nos da ‘9 testemunho em sua obra. Mas a verdadeira_ relagdo de Freud ao agalma do medic: mento se [é em seu sonho da “injegdo de Irma’. E uma relagdo epistémica. Ele procura © poder de cura da trymethylamina e se depara com sua férmula. N&o hd outra palayra que a palavra, ou no hd outra letra que a letra, diz Lacan, inspirando-se na formula mulgumana. Nao € 0 medicamento como objeto epistémico que iremos primeiramente abordar. Eo medicamento como objeto libidinal, sob_ quatro formas distintas. As dimensoes libidinais do objeto _medicamento: histérica, colocou-se a si mesmo como pharmakan, o placebo, 0 "mais de vida", o medicamento reparador. Para ele, particular-“anestésico, mente preocupado.com a eficécia terapéutica, como a tradicao hiingara na psicanélise, é 0 psicanalista que se presereve a si 0. Ele é ‘© medicamento escandido no dispositivo, é a revelag8o que Balint quis transmitir aos médicos clinicos: ‘Antes de tudo, 0 medicamento é vocé !" A panactia éramos nds, € nds nia. 0 sabiamos. Longe de eliminar a dimensso do medicamento — nds jamais 0 haviamos deixado — nds a recobrimos na seu conjunto. Eramos coextensivos do medicamento. Podemos dar-uma verséio mais moderna desta concepgio. A transferéncia faz produzir as endorfinas porque dé prazer ao sujeito, Este se droga em sessio. Freud ignorava essa satisfagdo obtida do analista-objeto? Freud mesmo, em cuja época se conhecia, na farmacopéia das doengas mentais, sobretudo 65 anestésicos mais brutais, comecou por buscar novas substancias, E um dos inventores 0 pharmakon E certo que para Freud, como para nds, 0 medicamento se apresentou de maneira inseparével de seu avesso, a substancia téxiea. Para Freud como para Platao, lido por Derrida, 0 remédio se descobre bem rapido como um mal. Em Fedro, 0 deus Thamous se dirige a Thoth, 0 inventor da escritura. Esse remédio, “dispensando os homens de exercer sua meméria, produzira o esquecimento; eles buscardo fora, nos caracteres estrangeiros, € nao dentro, ¢ gragas a si mesmos, o meio de se relembrar [..] nao € para a memaria, & ‘muito mais para o procedimento de recordar que voeé encontrou um remédio", Pharmakon designa na mesma palavra oremédio eo mal. Freud captau desde o inicio essa dimensdo, quanda nao apreciou, em seu justo valor, a dimenséo do hébito no uso da camo engotir e pitwla? | Erie tourent | cocaina, Néo é esta a sua primeira percepgao do para além do principio do prazer? O sujeito procura a homeostase ¢ 0 bem-estar do. organismo ¢ encontra a terrivel habito, 0 aumento das doses, a dependéncia..0_ -medicamento € sempre susceptivel de se tornar veneno, Pelo habito € necessidade do novo, faz aparecer uma espécie de automaton natural da repeti¢do no organisma. Coma assinalava Valery, que se cuidava ‘muito, “o profano organisma aprecia 0 novo; cenfastia-se, mas em alguns anos da medicagio reinante, recusa curar-se se néo 0 interessamos em excitacdes inéditas'. 0 medicamento faz aparecer, por sua dimensso biolégica propria, um aspecto desses, que tem a ver com a dimensao do inconsciente “transbiolégico". Q._ medicamento_tem estranhas relagées com a repeticao. Se 0 encantramas onipresente em rosso campo, nao ¢ pelo fato de que seja tao consonante com este parasita do organismo que é 0 inconsciente? Nao esta como em sua casa, no corpo, pela falha no organismo, da qual testemunha 0 inconsciente? A apeténcia subjetiva vem alojar-se ai. Seo téxico nos introduzem um ‘a mais! do medicamento que interessa ao sujeito, ha outta dimensao do medicamento que se depreende ainda mais da libido. E 0 fendmeno chamado placebo. Uma substncia néo eficaz biologicamente pode enganar o organismo um certo tempa, em certas afeccdes. 0 placebo 0 efeito placebo ¢ freqiientemente interpretado como uma espécie de sugestio impura, inseparavel do medicamento. A experiéncia parece autorizar uma vontade de subtrair a dimenséo subjetiva como artefato 1 Ea mancira menos interessante de situar 0 problema. Ela reduz a légica que af se esconde. E preciso tratar o placebo como uma articulagao do verdadeiro ¢ do falso no corpo. Para nos fazer percebé-la, Frangois Dagognet dé, de inicio, um matema simples: (x = a -y) © 0 comenta assim: "a prova subtrativa que autoriza 0 uso do placebo peca por seu infeliz ‘substantivismo’. Inspira a ilusdo de que a equago do {x = a - y] vai nos eentregar, finalmente, o medicamento em sua nudez © em sua autenticidade"? Para além dessa iluséo, ele elogia a conduta ldgica pela qual se faz uso do falso para atingir 0 verdadeiro, Por autro lado, ele ressalta que: “o que estraga essa prova farmacoldgica so as conclusdes abusivas que os experimentadores créem poder tirar: imaginam ter expulsado do medicamento suas franjas de indeterminacao, haver arrancado toda contingéncia, haver mesmo eliminado as névoas psicoterdpicas que embaracam seu realismo ¢ suas claras definigées. 0 remédio — tema para a filosofia das ciéncias bialdgicas € nosso Ieitmotiv — 86 € probabilidade, de nenhum modo realidade € menos ainda necessidade, Seu poder é da ordem do possivel e do eventual, € nunca do indubitavel. [..] 0 erta substancialista que nao deixaremos de denunciar, 0 falso realismo ressurge com a esperanca de uma subtracdo que revelaria um real terapéutica sem equivoco. [..] & impossivel desembaragar essas poténcias de_sua contingéncia, de uma certa indeterminag3o. Se a primeira adverténcia condena sem apelagdo o ceticismo, a segunda afasta a erenca ontolégica"2 Nessa perspectiva, o placebo ndoé para ser utilizado de maneira subtrativa. Ele revela Patorras¢ plistos Clique N01 -obri-2002 simplesmente que todo medicamento é insepardvel de uma ago subjetiva, Uma substéncia ativa e que cura é ainda mais placebo do que a outra, o placebo inativo, artificial. "Uma substéncia que cura induz sua propria erenca nela mesma". 0 placebo, de fato, deve nos separar da iluséo substancial. {Nao ha possibilidade de separar o medicamento de seu sujeito. 0 sonho da \ pureza bioquimica ¢ uma iluséio, mas 0 sonho do isolamento da crenga no medicamento (como sugestéo também o€. 0 “mais de libido” Oefeito libidinizante do medicamento, sua esperanga de condensagao de um "mais de vida" esta presente desde as primeiras manifestagdes da farmaconéia, Ela € extraida no somente das plantas, mas dos corpos. *O mundo humano € animal, sem exclusividade, entra na farmadcia; aproximadamente todos os animais encontram lugar na farmacopéia; & impossivel designar um 6rga0 ou uma excregéo que nao tenha sido utilizada’* Digamos que os enxertos de drgdas foram de inicio fantasmaticos, antes de serem efetivos € operantes. 0 organismo tenta recuperar sua parte vivente. Em, nosso campo, & com os medicamentos da libido que essa dimensdo se manifesta, Nessa categoria podemos reagrupar ‘que no inicio apareceu como uma extensao dos horménios. Essas sao as primeiras ubstancias quimicas cujos efeitos exercem 2 distancia’. A palavra vem do grego ormao, “excito”, mas & distancia. 0 modelo comunicacional, em biolagia, que descreve a agao de uma substéncia em termos de linguagem, de mensagem, de céddigo, mensageiro e receptor, generalizou o que estava primeiramente centrado no hormonis € seu aspecto “revitalizante" al. @ horménio era mensagem de vida. 2 ‘medicamento se designa ai como um outre engodo diferente do placebo, Ele pode enganse © sujeito em sua relacao com o *sentime: de vide Quando o sujeito perde a sequranc de uma relacao harmoniosa com a vide, quando perde seu corpo libidinal, © antidepressivo se afirma capaz de enviar uma mensagem enganosa. Interferindo sobre a mensagem de dor, através de um novo gozo, ele a altera, Ele se afirma capaz. de fazer esquecer a infelicidade do sujeito. Ele o faz bem melhor que o Alcool, antidepressivo © ansialitico de amplo espectro, reconhecido por Freud para produzir 0 esquecimento pelo acesso a um gozo imediato que libera da mundo Para além da extensio do modelo comunicacional, os horménias, em seu sentido proprio, interessam-nas, sobretudo, pela inibigéa que o cantraceptivo realiza, Isso permitiré isolar a relago do sujeito com o “sentimento de vida". Separando procriagao e ato sexual, os contraceptivos tém tido 0 papel de analisadores espectrais do desejo de filho. Eles o isolaram camo tal, separado de qualquer outra vontade. As procriagoes assistidas, como segunda poténcia, separaram a possibilidade da obtencao da erianga do desejo sexual. E possivel abter a crianca de moda mecanico, téenico, qualquer que seja © desejo em jogo. A crianca pode, entéo, apresentar-se como objeto de demanda cate de exigéncia, Antes era dessa forma, mas as dimensaes do desejo, da demanda, da exigéncia € da necessidade estavam misturadas na contingéneia da procriagdo. & camo engolie a pilnio? | Eric Caurent | © medicamento que operou uma verdadeira Sragao dessas diferentes dimensbes. Ele poe, =ssim, em dia, novas patologias que, sem ele, 20 teriam aparecido, Um verdadeiro efeito- sujeito é entdo praduzido. E preciso inscrever nesse mesmo registro os medicamentos da estimulagéo direta da erecéo no hamem, como o Viagra, © seu equivalente para as mulheres, que ainda se procura. Esses n&o sao medicamentos da libido, mas analisadores a libido. Uma vez que a erecdo ou a sccregio foram adquiridas, é preciso poder st-las de maneira satisfatoria. Digamos que os medicamentos da libido revelam ¢ escondem ao mesmo tempo a relagéo do sujeito com ofapetite de viver:) O anestésico Lacan desenvolveu a posicao do medicamento em nosso campo, falando aos psiquiatras, em 1967, a partir de uma outra familia de usos da medicamento. Ele diz: "A csiguiatria entra na medicina geral a partir da sequinte base: que a medicina geral entra, ela mesma, inteiramente, no dinamismo. farmacéutico. Evidentemente, produzem-se ai coisas novas: obnubila-se, modera-se, tempera-se, interfere-se ou modifica-se.."* 0s termos obnubilagdo © maderacdo situam 0 medicamento psicotrépico a partir da familia das anestésicos, Em um texto mais antigo, Lacan fazia a equivaléncia entre 0 Edipo e uma dose de anestésico. Poderlamos ainda reformula-la como o primeiro paradigma do gozo em Lacan. 0 Edipo permite 2 “significantizacao", a neutralizagao do gozo. Nesse sentido, ele é sublimagéo ou anestesia. Foi também esse ponto que Jacques-Alain Miller escolheu para destacar: “Os medicamentas sio formas de anestésicos. Eles no curam, mas eles permitem travalhar com pacientes decididlos" E biologicamente verdade, jé que 0 primeiro neuroléptico, 2 clorpromazina, foi produziso a partir de um anestésico. Essa descoberta se deu na grande aventura moderna da expansao dos anestésicos e das intervengdes ciruirgicas. "Nao se pode encontrar, na farmacopéia, substancias mais herdicas nem mais reyolucionarias: os procuredores de iluso, os neuréticos, como. acontece freqiientemente, os toxicdmanos haviam finalmente revelado o meio de obter uma espécie de ‘esquizofrenia fisiolégica’, um método para ‘desreglizar’ 0 organismo inteito"? A essa epopéia que transformou as praticas cirdrgicas, é preciso acrescentar os hipnoticos. Os medicamentos do sono, operando uma desconexéo do sonhiador € do sono ou do pesadelo, operaram ainda um efeito-sujeita, uma difragio da necessidade, da demanda e do desejo. 0 medicamento, tomado nesse sentido, articula a substéneia com uma « dimensao nova da demanda. E assim que, na conferéncia de 1966 enderecada aos médicos, Lacan chama a atencao do médieo sobre sua relagdo com a demanda, para além de sua fungdo de distribuidor do medicamento: "0 mundo cientifica derrama por entre suas dos um numero infinito do que ele pode produzir coma agentes terapéuticos novos, quimicas ou biolégicos, que ele coloca disposicao do pibblico, € ele demanda ao médico, como a um agente distribuidor, de 0s colocar & prova"? So mosuvemo00e Coma engalir @ pitule? | Eric Laurent | © medicamento que operou uma verdadeira difracdo dessas diferentes dimensOes. Ele poe, assim, em dia, novas patologias que, sem ele, nao teriam aparecido. Um verdadero efeito- sujeito € entdo produzido. E preciso inscrever nesse mesmo registro 05 medicamentos da estimulagio direta da erecdo.no homem, coma o Viagra, ¢ seu equivalente para as mulheres, que ainda se procura. Esses no sao medicamentos da libido, mas analisadares da libido. Uma vez que a erecdo ou a secregao foram adquiridas, é preciso poder usa-las de maneira satisfatéria. Digamos que os medicamentos da libido revelam e escondem ao mesma tempo a relagio do sujeito com opetite de viver:) 0 anestésico Lacan desenvolveu a posigao do medicamento em nosso campo, falando aos psiquiatras, em 1967, a partir de uma outra familia de usos do medicamenta, Ele diz: “A psiquiatria entra na medicina geral a partir da seguinte base: que a medicina geral entra, ela mesma, inteiramente, no dinamismo farmaceutico, Evidentemente, produzem-se af coisas novas: obnubila-se, modera-se, tempera-se, interfere-se ou modifica-se.."* Os termos obnubilagdo © moderacao situam o medicamento psicotrépico a partir da familia dos anestésicos, Em um texto mais antigo, Lacan fazia a equivaléncia entre 0. Edipo e uma dose de anestésico, Poderiamos sinda reformulé-la como o primeiro paradigma do gozo em Lacan. 0 Edipo permite a “significantizagao’,a neutralizagao_ do gozo. Nesse sentido, ele é sublimagao ou anestesia. Foi também esse ponto que acques-Alain Miller escolheu para destacar: “Os medicamentos sdo formas de anestésicos, Eles no curam, mas cles permitem trabalhar com pacientes decididos'® E biologicamente verdade, jé que 0 primeira neuroléptico, a clorpromazina, foi produzido a partir de um anestésico. Essa descoberta se deu na grande aventura moderna da expansao dos anestésicos e das intervengdes cirdrgicas, "Néo se pode encontrar, na farmacoptia, substéncias mais herdicas nem mais revoluciondrias: as procuradores de ilusio, os neurdticos, como acontece freqdentemente, os toxicémanos haviam finalmente revelado 0 meio de obter uma espécie de ‘esquizofrenia fisiolagica’, um método para ‘desrealizar’ 0 organismo inteiro"™ A essa epopéia que transformou as praticas ciringicas, é preciso acrescentar os hipndticas. Os medicamentos do sono, operando uma desconexdo do sonhador ¢do sonho au do pesadelo, operaram ainda um efeito-sujeito, uma difragdo da necessidade, da demands ¢ do desejo. © medicamento, tomado nesse sentido, articula a substdncia com uma « dimensao nova da demanda. £ assim que, na conferéncia de 1966 enderecada aos médicos, Lacan chama a atengdo do médico sobre sua relacdo com a demanda, para além de sua fungio de distribuidor do medicamento: *O mundo cientifico derrama por entre suas mos um nimero infinite do que ele pade produzir como agentes terapéuticos novos, quimicos ou bioldgicos, que ele coloca & disposigdio do publica, e ele demanda aa médico, como a um agente distribuidor, de oscolacar a prova"s _redutivel as normas da boa pratic Clique N601 -ebrit-2002 Lacan lembra ao médico seu lugar étieo, que é de se situar a partirda "demand: Essa dimensdo étiea, que acompanha necessariamente o medicamento, néo € _ Ela se enderega a0 sujeito presente no tdxico, no placebo, no medicamento da libido ou no anestésico, A sombra do sujeito, seu desejo, seu gozo — circunscritos av vacdbulo demanda quando se endereca ao rédico — sto bem 0 que esta em jogo nas relagdes do medicamento com 0 corpo, pois "um corpo é alguma coisa que é feita para gozar, gozar de si mesmo"? Lacan lembra ao médico seu dever ético a partir dos poderes do medicamento, aparato que assinala a irrupgdo da medicina na ciéncia, 0 medicamento & extraido da linguagem pela Ciéncia, mas é 0 sujeito que o reintroduz na estrutura, 0 sujeito do medicamento, aquele que o acompanha como sua prépria sombra, efetua a reinscrigéo do medicamento nas categorias do dito, Nao é um mestre, é um das significantes-mestres de nossa civilizagao. medicamento tomado nas categorias do dito. 0 simbético ‘A primeira_maneira como o medicamento se articula ao simbdlico é quando cle é objeto da demanda, Demanda de obté-lo ou demanda de ser dele privado, Isso € especialmente verdadeiro na demanda de desmame.”® Somente os psicanalistas kleinianos sabem a forga dessa demanda, E preciso distinguir, assim, na demanda, a demanda de um objeto que deve ocasionar uma resposta imaginaria ou a demanda imaginaria de um objeto simbslico negativizado. A demanda pode ainda transformar-se em exigéncia de uma repetigao exata, de uma fixagdo da medicagdo em uma pura repeti¢go automatica. O objeto da demanda sai, entéo, de sua dimens&o simbélica, Podemos separar a exigéncia de um objeto imaginario da exigéncia de um objeto real,” ou ainda da recusa real do objeto. Como dizia um sujeito parandico, exigindo um tratamento sem medicagéo: “Eu néo sou um individuo perigoso ou atingido por um mal incuravel; eu sofro simplesmente por minha prépria ignoréncia das regras € das leis que regem nossa sociedade”. A. segunda_maneira_como_o medicament se articula ao simbélico ¢ pelos significantes que o nomeiam. Ainda que ele seja produto da ciéncia, o medicamenta nfo pode prescindir de um(nome)é uma parte integrante da industria farmacéutica a invengdo de um name que permitir a penetragdo do medicamento e sua aceitacdo. 0 medicamento ressoa por seu nome. Citei, hd muito tempo, 0 caso de um sujcito histérico, em plena onda de fervor ansiolitico, que considerava “preferir os medicamentos em if (ele) aos medicamentos em homme (nomem)". Tratava-se de preferir o Melleril 20 Valium’, De fato, tratava-se de fazer passar ‘© homem ao seu estatuto de terceira pessoa, de néo-pessoa. A terceira maneira corresponde ao. fato de que o remédio ¢ inseparavel do Outro como tal. 0 remédio antigo era inteiramente tomadd na linguagem. Desde 0 pensamento selvagem e os trabalhos de Claude Lévi- Strauss, apreendemos a que ponto 2 linguagem e seus tropos, metafora & metonimia, séo instrumentos de classificagaio da natureza e de suas propriedades. 0 pensamento selvagem determina o remédio. » ERA KP OM Pw roe nw Tea Come eagalir a pitule? | Erie Laurent | 0 medicamento moderno se inscreve, cle também, no Outro, mas de outra forma, Por sua elabaragao de saber, pela legislago Se sua distribui¢ao, pelos agenciamentos de sua reparticao, pela responsabilidade Sequele que prescreve, o medicamento é tomado nas mais finas redes simbilicas do ‘Qutro. Eem torno do medicamento, de seus poderes, de-seus imperativos, de sua cxperimentacdo, que se colocaram em ago 5 ‘comités de ética" em seu sentido préprio, ‘sestemunhando essa dimensdo insepardvel = sco da substancia. exatamente o que sssoitava Lacan, em 1966, em um contexto ‘ede se ignoravam ainda as conseqiiéncias = tirer de uma ética para além da zontologia. Confirma-se, assim, que o ‘=edicamento, em sua concepcao moderna, “0 se define coneretamente sendo por seu =>pre90"."" 0 medicamento moderno no ‘== reduzem nenhum casoa uma substincia, E ssspordvel da definigéo de suas regras de © por isso ele convoca, para além dela, posigdo ética. imaginario © medicamento se aloja no imagindrio seus “efeitos de significagdo". Podemos mente situd-los pelo que esperamos Sos expectativas dos efeitos atribuidos gsicotropicos seja pela sujeito, seja por ue o presereve. A psicologia do ego aborda seus efeitos 1c2c0 por sua verséo “egdica”. Opde mento que permite “uma retomada role de si" aquele que é vivide como “Serinuigdo invalidante”. Se a tomada do -ento é vivida como uma submisséo e's pode provocar nos homens uma rofunda sobre sua masculinidade ou, ainda, uma série de inquietudes concerninda 8 imagem corporal. Para além dos efeitos “egoicos’ de autonomia ou de dependéncia, trata-se, sobretudo, de efeitos de significacao flica: 0 medicamento restaura o ser falico ou provoca um efeito de castragéo. 0 imaginddo nao é somente falico. Ele nao se refere somente a intumese€ncia da forma que ela retém, 0 imaginario pode assim se restaurar pelo medicamento, sob a forma de um objeto a imaginario tomado do Outro para completar 0 sujeito._ Insereveria nesse registro imaginério uma grande parte do que € conveniente chamar de psiquiatria cosmética, que recabre todas as demandas de extensdo do campo do bbem-estar e da felicidade, para além da estrita indicagdo terapeutica, Eu havia situado os problemas que ela levanta em um primeiro relatorio frente a assembléia-geral da AMP, em 1994, E uma parte do relatério Psicandtise, Estado, Sociedade. Podemos fazer ainda outras lstas dos’) efeitos de significagdo: 0 medicamento- ) apaziguador, 0 medicamento-que-acaba-\, com-a-festa, 0 medicamento-sancdo, 0, medicamenta-exclusdo, 0 medicamento- | suporte 2 Talvez seja preciso determo-nos sabre esta ittima oposiggo: medlicamento-inclusso/ medicamenta-exclusao do Outro, para nos aproximarmos dos efeitos reais do medicamento. Nos os abordaremos pelos efeitos de alienagao ou de separagao do Outro. O real Nao nos precipitemos em dizer que efeito real do medicamento é 0 efeito farmacocinético, Este seria 0 real no sentido da quimica. Ele é real no sentido do “retorno clique neo} -ebrit-2002 E 2 no real", Vamos abordé-lo primeiro pelo efeito de nominagdo no real. Quatro exemplos precisaraa esse ponto, Os dais primeiros se referem aos téxicos; os dois outros, aos medicamentos como tais. Um sujeita psicdtico se droga eletivamente com éter. O mito familiar diz que seu pai, camponés, foi espoliado da heranga a que ele tinha direito. As terras das «quais foi privado o pai fazem retorno no éter* do qual nao se pode privar o filho. Um segundo sujeita escolhe eletivamente a cocaina. Ele tem poucas lembrangas de seu pai, Uma marcada pela felicidade. Trata-se das visitas 4 grafica do pai, onde a trituradora soltava nuvens de po branco. Osdois outros me foram contados, ese referem ao enganche do sujeito psicético 20 medicamento, € prescrito a0 primeiro Zyprexa, Vento que ele ¢ fabricado pelo laboratério Lily, as duas asas? Ihe fazem imediatamente associat Lily a borboleta. Ele vé ai o signo de que sua virilidade seré atingida, Ele recusa tomé-1o. Um outro, perseguido pelos apelos importunos de um pai também psicotico, exige, quando "isso vai mal", tomar o Haldol. & Haloperidol, alld, nére ote (Al6, pai idolo), diz ele com ironia efeito de nominagéo no real esta para alem das significagdes imagindrias, Ha sistema de signos, ingua fundamental. “Esse sistema de signos evoca um sisterna de denominagao “bricalado’ pelo sujeito mesmo, a partir da série descontinua dos produtos oferecidos pela cigncia. Esses produtos Ihe permitem orientar-se em suas relagdes com 0 Outro e com 0 gozo, nisso que seu corpo enearna ou recusa”. 0 efeito real do medicamento € um efeito fora de sentido. E também aquele que se obtém pela droge que se libera do “casamento"® do hamem com seu gozo félico. Ai também € passagem fora do sentido. Um forgamento da barreira imposta por esse gozo. Pelo medicamento, o sujeito recorta seu organismo de um outro modo. Ele o recorta por esse instrumento de saber especifico que ¢ 0 medicamento. Se 0 significante corta 0 corpo sua maneira, o saber contida no medicamento corta-o de outta forma. Ele faz 0 sujeito conhecer um "goz0 desconhecido dele mesmo"; absolutamente desconhecido. Ele néo ¢ acessivel sendo por esse artefato. Antes que estivessem prontos os neurolépticos € antidepressivos, nao se sabia como gozar da serotonina au da dopamina, Mais precisamente, nds aprendemos @ gozar de zonas, de partes do corpo que estavam escondidas para n6s. Nao s6 gozamos do aumento ou da rarefagéo dos neuro- transmissores, mas podemos aprender a gozar de receptores muito diferentes. Os ~ receptores D2 ou D4, ligados as novas medicagées indicadas para a esquizofrenia, so campos de experiéncias novas que se oferecem a0 sujeto. 0 medicamento transborda, em principio, a indicagao terapéutica que Ihe confere um diagnéstico. Produto do saberé uma maquina, um instrumento de explaragao do corpo, Pelo medicamento, 0 sujeito € levado @ poder gozar de novas partes do corpo, A manipulagdo das doses por cada sujeito, a automedicagao com a ajuda de um outro, consistindo numa negociagao prescritiva, produzem um gozo normatizado proprio a cada um. € uma pratica da norma auto-erdtica, 020 do asta arta co ber eo 3,0 de um. 10"; o€ que se “da lais de ‘am do ro- ra Os vas so vem em the cre cio. loa aA a tro, iva, oa ica. Come engolir a pitale? | Eric tovrent | A crenga de cada sujeito em seu sintoma atualiza-se ai de maneira crucial. Medicamento psicatrépico e clinica 0 efeito desse medicamento sobre a estrutura da evolugdo clinica € dificil de apreciar. Lacan dizia, em 1967: “Néo sabemos de jeito nenhum o que modificamos, nem, alids, para onde iréo esas modificagdes". Essa indicagao permanece sempre clinicamente pertinente. Certamente podemos responder que, no nivel dos neurotransmissores, sabemos melhor quais sistemas sio ativados ou inibidos. Podemos, entéo, defender 0 emprego de navas moléculas, mais testadas, em sua farmacocinética, em detrimento das antigas. Toda questao permanece sendo a da ligagdo clinica da evolugo dos delirios com a uso do medicamento, E preciso distinguir a evolugao do sujeito que se apdia no discurso analitico daquele que nele no toma apoio. Se partirmos da orientagdo que da Jacques- Alain Miller: “o medicament permite trabalhar com sujeitos decididos’, & preciso notar que nem todos os sujeitos que se enderecam aos psicanalistas esto decididos, Alguns estao. A invencdo significante prépria que opera para cles deve ser estabelecida em cada caso. 0 tomar medicamento aparece como peripécia momentanea no curso de uma longa elaboracdo. Quando se descreve a evolugdo da relagdo do fendmeno delirante fora da andlise, pela simples entrevista clinica e o uso do medicament, os ensinamentos clinicos sao decepcionantes. A evolugio “a longo prazo", como se exprimem confortavelmente os especialistas dos fendmenos psicdticos, no se estabelece sem desacordo. Para alguns, toda a clinica esté desordenada, € € dificil encontrar a bela taxonomia do passado com suas especies ¢ seus génerps. A manutencdo do laco cam o semelhante, a reinsergio rapida perturbam 0 que isolamento asilar tinha contemplado em sua pureza. A posi¢o do terapeuta pode ser nostalgica ou ent&o, casando-se decididamente com seu tempo, pode considerar que @ tinica aproximactio possivel é fazer a taxonomia cfémera do DSM e deserever sindromes, cuja marca nao se pode acompanhar por mais de seis meses au um ano. Qutros, talvez mais perspicazes,® consideram quea obnubilacao ¢ efetiva, mas que ela nao altera o desenvolvimento das formas que a clinica classica isolou. Elas permanecem presentes entre nds, escondidas, subterraneas, aparecenda nos momentos de “recaidas" do sujeito, por ocasido do término do tratamento, de um acontecimento da vida ou de um mau encontro, programado ou nao em seu destino. 0 sujeita ¢ 0 Outro prosseguem sua canversacdo nas formas que a,modernidade autoriza, estruturada na veia da estrutura Termino aqui, no limite do que seria o objeto de uma investigagao auténoma. Ela incidiria nao sobre o medicamento, ras sabre a evolugio da clinica tal coma a psicandlise pode defini-la. Quando Lacan constatava, em 1967, que ndo havia mais invengdes clinicas desde a época de sua tese, ndo era para se situar na valorosa tropa dos “ultimos inventores, como houve aquela dos “éltimos moicanos’. Constatava que, naquela época, a Potlavros «pits Clique W°0)-obrit-2002 a clinica psiquidtriea foi profundamente subvertida pela clinica psicanalitica € pela ciéncia. A historia da clinica nao € mais unificdvel a partir desse momento. Ela se torna a historia da dispersdo dos sistemas clinicos, de sua fuga, de sua justaposigdo, em suma, de sua estratificagéo. Seria preciso fazer, nessa perspectiva, o resumo de clinica do “fim da clinica". A pratica do medicamento, uma pratica contingente Para além da oposiggo entre 0 medicamento-que-faz-falar eo medicamento- que-faz-calar, reconhegamos, no medicamento que “re-aliena"o sujeito no lugar do Outro, um elemento essencial do dispositive de apporole para osujeito psicdtico, E nesse dispositivo que cle poderd vir inscrever os signas que podertio, entdo, ser lidos, A psicandlise nao se opbe a prescrigao medicamentosa; ela pode fazer do poder contingente do medicamento um auxiliar da Fopparote. Nesse dispositivo, o psicanalista € um parceiro que tem a chance de responder. Ele podera_prescindir_ do medicamento com a candigdo de se servit dele de uma boa maneira. 0 aforisma taoista nos diz que quando the mostramos a lua com a dedo, o simplirio olha o dedo. O_ medicamento ¢ um dos significantes- mestres de nossa civilizagao. E 0 index de um modo de gozo. Resta ao psicanalista servir-se dele para fazé-lo designar a lua de nosso discuso, @ barra sobre o grande A, € fazé-lo de tal modo que o sujeito nao se hipnotize com esse index Tradugio: Sérgio de Mattos “NOTA DO EDITOR Publicado originaimente om AMP: Atisbos do Congresso de Buenos Aires, 14 de julho de 2000. REFERENCIAS BIGLIOGRAFICAS. 1. PLATON. Phe. tn: Quures, tome 2, Trad. Louis Robin, Paris: La Peiade, 19—, p.75 2. DAGOGNET, F La reison et ses remédes. Pars: PUR, 1964, p36, 3. DAGOGNET, f (2 raison et ses remédes. Patis: PUE 1964, ».36-37 44, DAGOGNET, F La raison et ses remédes. Pass: PUE 1964, p.74. 5. LACAN, J. Conférence sur la psychanalyse et la formation du psychiatre, 1967, Inédi. 6, GILIO, M-€. Interview de J.-A. Miler. in: Bapoort sur Jemédicament, p.51 7. DAGOGNET, F La saison et ses remédes, Pars: PUR, 1964, p.300. 8, LACAN, J. Psychanalyse et médicine. 1966, Iné 9, LACAN, J. Psychanalyse et méclcne, 19665, 0.42. Init, 10. Cf. RAPPORT, p.15, Pilulle et désir d'enfant, e p.21 para um sujeito psicético fixado peto medicamento a uma causa persecutéria de todos sous transtornos. 11. CE. RAPPORT, p16. 12. DAGOGNET, Fa raison et ses remdes. Paris: PUR, 1964, p.107, 13. CE. aintervengao de Lacan por ocasido da sessa0 do oncerramento das Jornadas de Cartéis da EFP, 1975.

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