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Conceição Lima

Conceição nasceu em 1961 na ilha


de São Tomé, em São Tomé e
Príncipe, país africano de língua
portuguesa que se tornou
Biografia
independente de Portugal em 1975,
após 500 anos de colonização. Ela
cresceu em meio às lutas políticas
pela independência de seu país.
Formada pelo King’s College de
Londres, Conceição é jornalista e
trabalha para a BBC de Londres.
Até o momento, publicou dois
livros de poesia: O Útero da Casa,
Livros em 2004, e A Dolorosa Raiz do
Micondó, de 2006. Este último foi
agora editado no Brasil pela
Geração Editorial.
O micondó, ou imbondeiro, é uma
árvore considerada sagrada por
muitos povos africanos. Espécie de
baobá, é conhecida como árvore da
Análise vida, devido à sua incrível
longevidade, que chega a seis mil
anos. Portanto, em muitas
comunidades, as gerações passam
e as árvores sagradas permanecem,
assistindo a tudo.
Sóya
Há-de nascer de novo o micondó —
belo, imperfeito, no centro do quintal.
À meia-noite, quando as bruxas
povoarem okás milenários
e o kukuku piar pela última vez
na junção dos caminhos.
Sobre as cinzas, contra o vento
bailarão ao amanhecer
ervas e fetos e uma flor de sangue.
Rebentos de milho hão-de nutrir
as gengivas dos velhos
e não mais sonharão as crianças
com gatos pretos e águas turvas
porque a força do marapião
terá voltado para confrontar o mal.
Lianas abraçarão na curva do rio
a insónia dos mortos
quando a primeira mulher
De A dolorosa raiz do micondó lavar as tranças no leito ressuscitado.
Reabitaremos a casa, nossa intacta morada.
Análise “Sóya” significa “lenda”. No poema, a
árvore é uma referência de futuro e de
esperança.
O vendedor
Os olhos vagalumem como pirilampos
no encalço dos fregueses
Do fio que é a mão esvoaçam
sacos de plástico
precários, multicores balões
A Feira do Ponto é o seu pátio.
Ao fim do dia, parcimonioso,
devolve a bolsa das moedas a um adulto
e recupera a idade.

De A dolorosa raiz do micondó


Toda a poesia de Conceição Lima é
Análise marcada pela realidade de seu país.
Observe a descrição breve e precisa
que ela faz de uma cena de trabalho
infantil em “O vendedor”.
A lenda da bruxa
San Malanzo era velha, muito velha.
San Malanzo era pobre, muito pobre.
Não tinha filhos, não tinha netos
Não tinha sobrinhos, não tinha afilhados
Nem primos tinha e nem enteados
Ela era muito pobre e muito velha
Muito velha e muito pobre era.
Era velha, era pobre san Malanzo
Pobre e muito velha
Velha e muito pobre
Era velha e pobre
Era pobre e velha
Velha pobre.
Pobre velha
Velha
Pobre
De A dolorosa raiz do micondó Feiticeira.
Do mesmo modo, “A Lenda da Bruxa”
Análise apresenta uma personagem de rua, a
velha san Malanzo, tida como
feiticeira. Em São Tomé e Príncipe,
“san” quer dizer senhora.
Diferentemente do que ocorreu em
Angola e Moçambique, não houve
Características
guerra em São Tomé e Príncipe. Mas
certamente a luta armada nos
territórios insurretos ganhou
reverberação nas ilhas são-tomenses,
na forma de repressão e humilhações.
A mão
Toma o ventre da terra
e planta no pedaço que te cabe
esta raiz enxertada de epitáfios.
Não seja tua lágrima a maldição
que seqüestra o ímpeto do grão
levanta do pó a nudez dos ossos,
a estilhaçada mão
e semeia
girassóis ou sinos, não importa
se agora uma gota anuncia
o latente odor dos tomateiros
a viva hora dos teus dedos.

De A dolorosa raiz do micondó


O tema de humilhação e opressão é
tratado quando o poema faz um
Análise convite a plantar, construir, seguir em
frente, tomando como ponto de
partida uma semente marcada pela
dor e pelo sofrimento.
Características
Por fim, vem uma sátira aos
burocratas em “Certos Pequenos
Tiranos”.
Certos pequenos tiranos
A certos pequenos tiranos
comove-os o enigma na pétala de uma orquídea
e o langor da linha na palma da própria mão.
Algures, um estranho brinquedo falece
na secretária onde existem.
Por vezes articulam breves sentenças
e estão sempre em atritos com o mesmo orçamento.
Mas crêem no amparo de feitiços e amuletos
e segregam uma teia de invencível apatia
que tolhe as impressoras, as portas dos armários
e contrai as linhas das quatro paredes.

De A dolorosa raiz do micondó


Porque os emociona a própria bondade
tomam por amor a vénia dos vassalos
os pequenos tiranos
que publicam altos amigos como títulos de jornal
e distribuem grãos de favor como quem outorga um foral.
São meticulosos no arrumar dos papéis
pois na simetria das coisas enterram a luz das ideias.
Mortifica-os a idade, são hipocondríacos
e só por distracção morrerão em África.
Dói a doçura da savana espezinhada nesses pequenos tiranos
A pátria em seus ombros é divisa, cartão de visita
No borrão do carimbo dispara a AKA que nunca empunharam.

De A dolorosa raiz do micondó


O poema fala daqueles
personagens que são figuras
Análise
universais: corruptos, traficantes
de influência, emotivos e até
carinhosos, quando lhes convém.
Certamente não são espécimes
existentes apenas em São Tomé.
Glossário
• calema – onda forte
• palayê – vendedora
• san – senhora
• sóya – conto, lenda, fábula
• oká – árvore associada a forças maléficas
• kukuku – coruja
• marapião – árvore a cuja madeira se atribui propriedades exorcizantes
• ússua – dança de pares, similar à quadrilha
• zêtê d’ochi – azeite doce
• tempi – não encontrei significado
• ubaga tela – suponho seja “panela de barro”; ubaga é panela, tela é terra
• calulu – prato típico de São Tomé e Príncipe
• mlajincon – manjericão
• luchan – lugarejo, aldeia

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