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Ponciá Vicêncio (2003)

Conceição Evaristo
Conceição Evaristo nasceu em Belo
Horizonte, em 1946. De origem humilde, foi
para o Rio de Janeiro na década de 1970.
Graduada em Letras, trabalhou como
professora da rede pública carioca. É Mestre
em Literatura Brasileira e Doutora em
Literatura Comparada. Participante ativa dos
movimentos de valorização da cultura negra
em nosso país. Escritora versátil, cultiva a
poesia, a ficção (romance e conto) e o
ensaio.
Sequência das ações
As ações se desenvolvem em um povoado de trabalhadores
descendentes de antigos escravos, chamado Vila Vicêncio, e numa cidade grande,
não nomeada. A época não é bem definida, mas se sabe que o avô da protagonista,
muito velho, fora escravo. A obra não é dividida em capítulos, mas em parágrafos
que apresentam a história de Ponciá Vicêncio desde menina até a idade adulta. A
narrativa em terceira pessoa mostra a trajetória de Ponciá e, ao mesmo tempo,
apresenta flashbacks da vida da protagonista, de sua família e de seu povo.
Ao mesmo tempo que a história de Ponciá é contada, duas outras histórias iam
sendo escritas para se unirem no final: a história de Luandi, irmão de Ponciá, e a de
Maria, mãe de ambos.
A narrativa inicia fazendo referência à infância de Ponciá,
quando temia o arco-íris, pois “diziam que
menina que passasse por debaixo do arco-íris virava menino”. Vivia na
roça, gostava de ser menina e de brincar no milharal. “Um dia, nessa
brincadeira, viu uma mulher alta, muito alta que chegava até o céu”. Era
uma “mulher transparente”. Quando contou para a mãe, a mãe falou
para o pai cortar o milharal, e Ponciá nunca mais viu a mulher
transparente. Outra lembrança muito marcante da infância era Vô
Vicêncio, o primeiro
homem que conhecera (“guardava mais a imagem dele do
que do próprio pai” – “ela pouco via o pai, pois ele trabalhava lá nas terras dos
brancos”). “Vô Vicêncio era muito velho. Andava encurvadinho com o rosto quase no
chão. Era miudinho como um graveto. (...) Vô Vicêncio faltava uma das mãos e vivia
escondendo o braço mutilado para trás.
Ele chorava e ria muito.” Quando o avô morreu, ela era ainda criança de
colo. Naquele dia, ouviu o pai falar para a mãe que “Vô Vicêncio
deixava uma herança para a menina”. Quase um ano após a morte de avô, Ponciá
começou a andar: “andava com um dos braços escondido às costas e tinha a mãozinha
fechada como se fosse cotó”.
Ponciá fora criada praticamente sozinha, vivendo com a mãe. Tinha um irmão,
com quem pouco brincava, pois este acompanhava o pai no trabalho da roça. Ficava
muito tempo na beira do rio, onde pegava barro para moldar objetos que aprendia
com a mãe: panelas, potes e bichinhos de barro. “Um dia ela fez um homem baixinho,
curvado, magrinho, graveto e com um bracinho cotó para trás (...) Como Ponciá
Vicêncio havia guardado todo o jeito dele na memória?”. Mais tarde, passaram a dizer
que ela “se parecia muito com ele em tudo, até no modo de olhar. Diziam que ela,
assim como ele, gostava de olhar o vazio”.
Observações complementares

1. Enfoque do problema de discriminação de raça, de gênero e de classe.


2. Apesar da apresentação de personagens periféricos, da miséria e da violência que
os atinge, muitas vezes a realidade aparece de forma poética.
3. Presença da cultura africana: Angorô (divindade que tem a aparência da cobra-coral
e, por representar o contato do mundo terreno com o espiritual, remete ao arco-
íris); Nêngua Kainda (contadora de histórias e porta-voz da tradição); utensílios e
arte/artesanato de barro.
4. Criação de palavras compostas: pensamentos-lembranças, corpo-pernas, homem-
barro, lágrimas-risos, risos-lamentos, choro-gargalhadas, coragem-covardia, voz-
menina, manhã-menina, presença-ausência, vozes-irmãs, realidade-sonho, antes-
agora-depois-e-do-depois-ainda, passado-presente-e-o-que-a-de (vir), etc.
5. Uso do discurso indireto livre, ou seja, apresentação de falas ou pensamentos da
personagem, permitindo que o narrador em terceira pessoa se aproxime da
personagem. Exemplo:
“Se eram livres por que continuavam ali? Por que, então, tantos negros e negras na
senzala? Por que todos não se arribavam à procura de outros lugares e trabalhos?”
6. A fragmentação do discurso e a mistura do passado com o presente
podem representar um meio para recuperar a memória dos
descendentes de escravos, bem como a história destes, sabidamente
incompleta de registros. Segundo Denise Almeida Silva, aparecem com
grande frequência “verbos como ‘lembrar’, ‘recordar’, ‘rememorar’ ou
expressões poéticas como ‘guardar a imagem’, ‘veio-lhe a imagem’ ou
‘pensamentos-lembranças’” ...

7. A trajetória de Ponciá é repleta de situações de sofrimento, sobretudo a partir do


momento que decide ir para a cidade. Na sua infância, Ponciá trazia esperanças em
relação ao futuro, embora também houvesse lembranças tristes, como a morte do
pai e a história trágica do avô. Tanto a vida da protagonista como suas memórias
familiares são, de certa forma, ligadas à memória coletiva de seu povo. Em outras
palavras, é o papel da memória na reconstrução da identidade cultural.
Vale destacar a belíssima análise de
Denise Almeida Silva:

“No romance Ponciá Vicêncio, é central a interrogação de como


seres objetificados e dominados, habitantes de uma comunidade
de ex-escravos supostamente libertos, mas dependentes ainda do
senhor branco, podem assumir a posição de sujeitos. Embora a
partir de situação triplamente marginal – mulher, negra e pobre
– a protagonista, Ponciá Vicêncio, desenvolve perspectiva crítica
a partir da reavaliação de sua trajetória vital, e encontra na arte
o meio de empoderamento que lhe permite expressar os silêncios
e as afirmações que conformam sua identidade e a de sua
comunidade negra marginal.”
8. Ponciá e irmão, em diferentes momentos, partem em busca de nova vida na cidade;
já a mãe parte em busca “não se sabe de quê”, mas todos têm na sua casa, em Vila
Vicêncio, a referência espacial, o lugar de retorno, o ambiente seguro. Outro
elemento essencial em sua vida é o rio, também o local onde Ponciá buscava o
barro para fazer seus objetos, sua arte.
9. Quando vai à Feira de Arte
Popular na companhia do
Soldado Nestor, fica emocionado
ao reconhecer os objetos feitos
pela mãe e pela irmã e, mais do
que isso, tem orgulho de ver os
nomes num cartão identificando-
as como artistas. Ironicamente,
não sabe quem é o dono dos
objetos, um tal de Dr. Aristeu
Pena Forte Soares Vicêncio. Aqui,
o branco figura em segundo
plano, e o papel de destaque é
reservado para o negro.

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