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ANÁLISE OLHOS D’ÁGUA

Sobre a autora

Maria da Conceição Evaristo de Brito nasceu em Belo Horizonte, em 1946. De origem humilde, migrou
para o Rio de Janeiro na década de 1970. Graduada em Letras pela UFRJ, trabalhou como professora da rede
pública de ensino da capital fluminense. É Mestre em Literatura Brasileira pela PUC do Rio de Janeiro, com
a dissertação Literatura Negra: uma poética de nossa afro-brasilidade (1996), e Doutora em Literatura
Comparada na Universidade Federal Fluminense, com a tese Poemas malungos, cânticos irmãos (2011), na
qual estuda as obras poéticas dos afro-brasileiros Nei Lopes e Edimilson de Almeida Pereira em confronto
com a do angolano Agostinho Neto.
Participante ativa dos movimentos de valorização da cultura negra em nosso país, estreou na literatura
em 1990, quando passou a publicar seus contos e poemas na série Cadernos Negros. Escritora versátil, cultiva
a poesia, a ficção e o ensaio. Desde então, seus textos vêm angariando cada vez mais leitores. A escritora
participa de publicações na Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos. Seus contos vêm sendo estudados em
universidades brasileiras e do exterior, tendo, inclusive, sido objeto da tese de doutorado de Maria Aparecida
Andrade Salgueiro, publicada em livro em 2004, que faz um estudo comparativo da autora com a americana
Alice Walker. Em 2003, publicou o romance Ponciá Vicêncio, pela Editora Mazza, de Belo Horizonte.
Com uma narrativa não-linear marcada por seguidos cortes temporais, em que passado e presente se
imbricam, Ponciá Vicêncio teve boa acolhida de crítica e de público. O livro foi incluído nas listas de diversos
vestibulares de universidades brasileiras e vem sendo objeto de artigos e dissertações acadêmicas. Em 2006,
Conceição Evaristo traz à luz seu segundo romance, Becos da memória, em que trata, com o mesmo realismo
poético presente no livro anterior, do drama de uma comunidade favelada em processo de remoção. E, mais
uma vez, o protagonismo da ação cabe à figura feminina símbolo de resistência à pobreza e à discriminação.
Em 2007, sai nos Estados Unidos a tradução de Ponciá Vicêncio para o inglês, pela Host Publications. Vários
lançamentos são realizados, seguidos de palestras da escritora em diversas universidades norte-americanas. Já
sua poesia, até então restrita a antologias e à série Cadernos Negros, ganha maior visibilidade a partir da
publicação, em 2008, do volume Poemas de recordação e outros movimentos, em que mantém sua linha de
denúncia da condição social dos afrodescendentes, porém inscrita num tom de sensibilidade e ternura próprios
de seu lirismo, que revela um minucioso trabalho com a linguagem poética.
Em 2011, Conceição Evaristo lançou o volume de contos Insubmissas lágrimas de mulheres, em que,
mais uma vez, trabalha o universo das relações de gênero num contexto social marcado pelo racismo e pelo
sexismo. Em 2013, a obra antes citada Becos da memória ganha nova edição, pela Editora Mulheres, de
Florianópolis, e volta a ser inserida nos catálogos editoriais literários. No ano seguinte, a escritora
publica Olhos D’água, livro finalista do Prêmio Jabuti na categoria “Contos e Crônicas”. Já em 2016, lança
mais um volume de ficção, Histórias de leves enganos e parecenças.
Nos últimos anos, três de seus livros, que continuam recebendo novas edições no Brasil, foram
traduzidos para o Francês e publicados em Paris pela editora Anacaona. Em 2017, o Itaú Cultural de São Paulo
realizou a Ocupação Conceição Evaristo contemplando aspectos da vida e da literatura da escritora. No
contexto da exposição, foram produzidas as Cartas Negras, retomando um projeto de troca de
correspondências entre escritoras negras iniciado nos anos noventa. Em 2018, a escritora recebeu o Prêmio de
Literatura do Governo de Minas Gerais pelo conjunto de sua obra.

Conceição Evaristo por Conceição Evaristo

Sou mineira, filha dessa cidade, meu registro informa que nasci no dia 29 de novembro de 1946. Essa
informação deve ter sido dada por minha mãe, Joana Josefina Evaristo, na hora de me registrar, por isso
acredito ser verdadeira. Mãe, hoje com os seus 85 anos, nunca foi mulher de mentir. Deduzo ainda que ela
tenha ido sozinha fazer o meu registro, portando algum documento da Santa Casa de Misericórdia de Belo
Horizonte. Uma espécie de notificação indicando o nascimento de um bebê do sexo feminino e de cor parda,
filho da senhora tal, que seria ela. Tive esse registro de nascimento comigo durante muito tempo.
Impressionava-me desde pequena essa cor parda. Como seria essa tonalidade que me pertencia? Eu não atinava
qual seria. Sabia sim, sempre soube que sou negra.
Quanto a ela ir sozinha, ou melhor, solitária para o cartório me registrar é uma dedução minha tirada de
alguns fatos relativos à vida de meu pai. Aliás, de meu pai conheço pouco, pouquíssimo.
Em compensação, sei um pouco mais, daquele que considero como sendo meu pai. Dele sei o nome
todo. Aníbal Vitorino e a profissão, pedreiro. Meu padrasto Aníbal, quando chegou a nossa casa, minha mãe
cuidava de suas quatro filhas sozinha. Maria Inês Evaristo, Maria Angélica Evaristo, Maria da Conceição
Evaristo e Maria de Lourdes Evaristo. Bons tempos, o de nós meninas. Minha mãe se constituiu, para mim,
como algo mais doce de minha infância. O que mais me importava era a sua felicidade. Um misto de desespero,
culpa e impotência me assaltava quando eu percebia os sofrimentos dela. Minha mãe chorava muito, hoje não.
Tem uma velhice mais tranqüila. Meu padrasto completou 86 anos e vive ao lado dela.
Depois das quatro meninas, minha mãe teve mais cinco meninos, meus irmãos, filhos de meu padrasto.
A ausência de um pai foi dirimida um pouco pela presença de meu padrasto, mas, sem dúvida alguma,
o fato de eu ter tido duas mães suavizou muito o vazio paterno que me rondava. Aos sete anos, fui morar com
a irmã mais velha de minha mãe, minha tia Maria Filomena da Silva. Ela era casada com Antonio João da
Silva, o Tio Totó, viúvo de outros dois casamentos. Não tiveram filhos. Fui morar com eles, para que a minha
mãe tivesse uma boca a menos para alimentar. Os dois passavam por menos necessidades, meu Tio Totó era
pedreiro e minha Tia Lia, lavadeira como minha mãe. A oportunidade que eu tive para estudar surgiu muito
da condição de vida, um pouco melhor, que eu desfrutava em casa dessa tia. As minhas irmãs enfrentavam
dificuldades maiores.
Mãe lavadeira, tia lavadeira e ainda eficientes em todos os ramos dos serviços domésticos. Cozinhar,
arrumar, passar, cuidar de crianças. Também eu, desde menina, aprendi a arte de cuidar do corpo do outro.
Aos oito anos surgiu meu primeiro emprego doméstico e ao longo do tempo, outros foram acontecendo. Minha
passagem pelas casas das patroas foi alternada por outras atividades, como levar crianças vizinhas para escola,
já que eu levava os meus irmãos. O mesmo acontecia com os deveres de casa. Ao assistir os meninos de minha
casa, eu estendia essa assistência às crianças da favela, o que me rendia também uns trocadinhos. Além disso,
participava com minha mãe e tia, da lavagem, do apanhar e do entregar trouxas de roupas nas casas das patroas.
Troquei também horas de tarefas domésticas nas casas de professores, por aulas particulares, por maior
atenção na escola e principalmente pela possibilidade de ganhar livros, sempre didáticos, para mim, para
minhas irmãs e irmãos.
Conseguir algum dinheiro com os restos dos ricos, lixos depositados nos latões sobre os muros ou nas
calçadas, foi um modo de sobrevivência também experimentado por nós. E no final da década de 60, quando
o diário de Maria Carolina de Jesus, lançado em 58, rapidamente ressurgiu, causando comoção aos leitores
das classes abastadas brasileiras, nós nos sentíamos como personagens dos relatos da autora. Como Carolina
Maria de Jesus, nas ruas da cidade de São Paulo, nós conhecíamos nas de Belo Horizonte, não só o cheiro e o
sabor do lixo, mas ainda, o prazer do rendimento que as sobras dos ricos podiam nos ofertar. Carentes de
coisas básicas para o dia a dia, os excedentes de uns, quase sempre construídos sobre a miséria de outros,
voltavam humilhantemente para as nossas mãos. Restos.
Minha mãe leu e se identificou tanto com o Quarto de Despejo, de Carolina, que igualmente escreveu
um diário, anos mais tarde. Guardo comigo esses escritos e tenho como provar em alguma pesquisa futura que
a favelada do Canindé criou uma tradição literária. Outra favelada de Belo Horizonte seguiu o caminho de
uma escrita inaugurada por Carolina e escreveu também sob a forma de diário, a miséria do cotidiano
enfrentada por ela.
Em minha casa, todos nós estudamos em escolas públicas. Minha mãe sempre cuidadosa e desejosa que
aprendêssemos a ler, nos matriculou no Jardim de Infância Bueno Brandão e no Grupo Escolar Barão do Rio
Branco, duas escolas públicas que atendiam a uma clientela basicamente da classe alta belorizontina. Ela optou
por nos colocar nessas escolas, distantes de nossa moradia, embora houvesse outras mais perto, porque já
naquela época, as escolas situadas nas zonas vizinhas às comunidades pobres ofereciam um ensino
diferenciado para pior.
Foi em uma ambiência escolar marcada por práticas pedagógicas excelentes para uns, e nefastas para
outros, que descobri com mais intensidade a nossa condição de negros e pobres. Geograficamente, no Curso
Primário experimentei um “apartaid” escolar. O prédio era uma construção de dois andares. No andar superior,
ficavam as classes dos mais adiantados, dos que recebiam medalhas, dos que não repetiam a série, dos que
cantavam e dançavam nas festas e das meninas que coroavam Nossa Senhora. O ensino religioso era
obrigatório e ali como na igreja os anjos eram loiros, sempre. Passei o Curso Primário, quase todo, desejando
ser aluna de umas das salas do andar superior. Minhas irmãs, irmãos, todos os alunos pobres e eu sempre
ficávamos alocados nas classes do porão do prédio. Porões da escola, porões dos navios. Entretanto, ao ser
muito bem aprovada da terceira para a quarta série, para minha alegria fui colocada em uma sala do andar
superior. Situação que desgostou alguns professores. Eu, menina questionadora, teimosa em me apresentar
nos eventos escolares, nos concursos de leitura e redação, nos coros infantis, tudo sem ser convidada,
incomodava vários professores, mas também conquistava a simpatia de muitos outros. Além de minhas
inquietações, de meus questionamentos e brigas com colegas, havia a constante vigilância e cobrança de minha
mãe à escola. Ela ia às reuniões, mesmo odiando o silêncio que era imposto às mães pobres e quando tinha
oportunidade de falar soltava o verbo.
Ao terminar o primário, em 1958, ganhei o meu primeiro prêmio de literatura, vencendo um concurso
de redação que tinha o seguinte título: “Por que me orgulho de ser brasileira”. Quanto à beleza da redação,
reinou o consenso dos professores, quanto ao prêmio, houve discordâncias. Minha passagem pela escola não
tinha sido de uma aluna bem-comportada. Esperavam certa passividade de uma menina negra e pobre, assim
como da sua família. E não éramos. Tínhamos uma consciência, mesmo que difusa, de nossa condição de
pessoas negras, pobres e faveladas.
Durante toda a primeira infância, até ali por volta dos 10 ou 11 anos, morou conosco, em um quartinho
à parte, um tio materno, Osvaldo Catarino Evaristo. Esse meu tio havia servido à pátria, lutado na Itália, na
Segunda Guerra Mundial. Ao retornar ao Brasil, lhe foi oferecido um cargo de servente na Secretaria de
Educação. Ao longo dos anos ele estudou, desenvolvendo seus dons de poeta, desenhista e artista plástico. E,
mais do que isto, foi sempre um consciente questionador da situação do negro brasileiro. Repito sempre que
a ele devo as minhas primeiras lições de negritude.
Ao terminar o Primário, fiz um Curso Ginasial cheio de interrupções e, a partir dos meus 17 anos, vivi
intensamente discussões relativas à realidade social brasileira. Foi quando me inseri no movimento da JOC,
(Juventude Operária Católica) que, como outros grupos católicos, promovia reflexões que visavam
comprometer a Igreja com realidade brasileira. Entretanto, as questões étnicas só entrariam objetivamente em
minhas discussões na década de 70, quando parti para o Rio de Janeiro.
Em 73, com ajuda de amigos, imigrei para o Rio de Janeiro, antigo Estado da Guanabara, depois de ter
feito concurso naquele mesmo ano, para professora primária. Eu havia terminado o Curso Normal no Instituto
de Educação de Minas Gerais, em 71. Tinha sido um período particularmente difícil para minha família e
outras que estavam sofrendo com um plano de desfavelamento, que nos enviava para a periferia da cidade.
Ao distanciarmos do centro de Belo Horizonte, não tínhamos nada, a não ser uma pobreza maior. Então, com
um diploma de professora nas mãos e sem qualquer possibilidade de dar aulas em Belo Horizonte, parti de
“mala e cuia” para o Rio de Janeiro. Entrar para a carreira de magistério, naquela época, dependia de ser
indicado por alguém e as nossas relações com as famílias importantes de Belo Horizonte estavam marcadas
pela nossa condição de subalternidade. Aliás, nesse sentido, gosto de dizer que a minha relação com a literatura
começa nos fundos das cozinhas alheias. Minha mãe, tias e primas trabalharam em casas de grandes escritores
mineiros ou nas casas de seus familiares. Digo mesmo que o destino da literatura me persegue...
Gosto, entretanto, de enfatizar, não nasci rodeada de livros, do tempo/espaço aprendi desde criança a
colher palavras. A nossa casa vazia de bens materiais era habitada por palavras. Mamãe contava, minha tia
contava, meu tio velhinho contava, os vizinhos e amigos contavam. Tudo era narrado, tudo era motivo de
prosa-poesia, afirmo sempre. Entretanto, ainda asseguro que o mundo da leitura, o da palavra escrita, também
me foi apresentado no interior de minha família que, embora constituída por pessoas em sua maioria apenas
semi-alfabetizadas, todas eram seduzidas pela leitura e pela escrita. Tínhamos sempre em casa livros velhos,
revistas, jornais. Lembro-me de nossos serões de leitura. Minha mãe ou minha tia a folhear conosco o material
impresso e a traduzir as mensagens. E eu, na medida em que crescia e ganhava a competência da leitura,
invertia os papeis, passei a ler para todos. Ali pelos meus onze anos, ganhei uma biblioteca inteira, a pública,
quando uma das minhas tias se tornou servente daquela casa-tesouro, na Praça da Liberdade. Fiz dali a minha
morada, o lugar onde eu buscava respostas para tudo. Escrevíamos também, bilhetes, anotações familiares,
orações...
Na escola eu adorava redações do tipo: ”Onde passei as minhas férias”, ou ainda, “Um passeio à fazenda
do meu tio”, como também, “A festa de meu aniversário”. A limitação do espaço físico e a pobreza econômica
em que vivíamos eram resolvidas por meio de uma ficção inocente, único meio possível que me era
apresentado para viver os meus sonhos. Se naquela época eu não tinha nenhuma possibilidade concreta de
romper com o círculo de imposições que a vida nos oferecia, nada, porém freava os meus desejos. Eu menina,
dona de uma tenaz esperança e de uma sabedoria precoce, reconhecia que a vida não poderia ser somente
aquele pouco que nos era oferecido. Se muito de minha infância pobre, muito pobre, me doía, havia felicidades
também incontáveis. As margaridas, as dálias e outras flores de nosso pequeno jardim. As frutas nos pés a
matar a nossa fome. Os bolinhos de comida que mãe amassava com as mãos e enfiava em nossas bocas. As
bonecas de capim ou bruxas de panos que nasciam com nome e história de suas mãos. O céu, as nuvens, as
estrelas, sinais do infinito que minha e mãe e tia nos ensinaram a olhar e a sentir. E desse assuntar a vida, que
foi ensinado por elas, ficou essa minha mania de buscar a alma, o íntimo das coisas. De recolher os restos, os
pedaços, os vestígios, pois creio que a escrita, pelo menos para mim, é o pretensioso desejo de recuperar o
vivido. A escrita pode eternizar o efêmero...
Nesse sentido, o que a minha memória escreveu em mim e sobre mim, mesmo que toda a paisagem
externa tenha sofrido uma profunda transformação, as lembranças, mesmo que esfiapadas, sobrevivem. E na
tentativa de recompor esse tecido esgarçado ao longo do tempo, escrevo. Escrevo sabendo que estou
perseguindo uma sombra, um vestígio talvez. E como a memória é também vítima do esquecimento, invento,
invento. Inventei, confundi Ponciá Vicêncio nos becos de minha memória. E dos becos de minha memória
imaginei, criei. Aproveitei a imagem de uma velha Rita que eu havia conhecido um dia. E ainda desses
mesmos becos, posso ter tirado de lá Ana e Davenga. Quem sabe Davenga não era primo de Negro Alírio? E
por falar em becos da memória, voltei hoje de manhã à Rua Albita. Outra. Dali só reconheci a terra. Sim a
terra, o pó, o barranco sobre o qual está edificado o “Mercado Cruzeiro”, no final da rua. Observei que a
edificação do prédio conservou na base, parte do barranco sem cimentá-lo. Pude contemplar o solo, base da
base da construção. Em um ponto qualquer daquele espaço, literalmente está enterrado o meu umbigo. Sem
que ninguém percebesse alisei o chão e catei alguns fragmentos. Tive um desejo louco de tocar as minhas
mãos com a boca. Era ali que a minha mãe desenhava o sol para chamá-lo à terra, quando tempo estava
encharcado de chuva e as nossas latas vazias de alimento. Mas abaixo está a escultura de dois homens. Eles
estão com os braços abertos, meio suspensos, com os gestos largos, insinuando que estão a caminhar em frente.
Pensei: se eles derem uns poucos passos chegarão à torneira pública, em que apanhávamos água e as
lavadeiras, como minha mãe e tia, desenvolviam seus trabalhos.
O pequeno monumento que foi erguido, não em memória aos antigos e primeiros da área, se chama
“Otimismo”. Não sei por que pensei em nossos mortos, em todas as pessoas que viveram ali. E agradeci à vida
o momento que estou vivendo agora. Impliquei com nome dado à escultura e fiquei curiosa. Qual seria o
motivo daquela estátua? E porque o nome “Otimismo”? Outros nomes e sentidos me vieram à mente. Um
deles insiste: resistência, resistência, resistência...
Escrevo. Deponho. Um depoimento em que as imagens se confundem, um eu-agora a puxar um eu-
menina pelas ruas de Belo Horizonte. E como a escrita e o viver se con(fundem), sigo eu nessa escrevivência
a lembrar de algo que escrevi recentemente:
“O olho do sol batia sobre as roupas estendidas no varal e mamãe sorria feliz. Gotículas de água
aspergindo a minha vida-menina balançavam ao vento. Pequenas lágrimas dos lençóis. Pedrinhas azuis,
pedaços de anil, fiapos de nuvens solitárias caídas do céu eram encontradas ao redor das bacias e tinas das
lavagens de roupa. Tudo me causava uma comoção maior. A poesia me visitava e eu nem sabia...”
Conceição Evaristo
Depoimento no I Colóquio de Escritoras Mineiras
Belo Horizonte, Maio de 2009

Conceição Evaristo recebeu os seguintes prêmios:


• Prêmio Camélia da Liberdade (2007);
• Prêmio Ori (2007);
• Prêmio Jabuti (2015).
Em 2018, Conceição Evaristo tentou ser a primeira mulher negra a ingressar na Academia Brasileira de
Letras. Mas, apesar do apoio popular, que gerou dois abaixo-assinados com milhares de assinaturas, os
membros da ABL decidiram não eleger a escritora para ocupar a cadeira número 7, que tem como patrono o
escritor abolicionista Castro Alves (1847–1871).

Características da obra de Conceição Evaristo


As obras de Conceição Evaristo fazem parte da literatura contemporânea brasileira e apresentam as
seguintes características:
• protagonismo feminino;
• realidade e valorização da cultura afro-brasileira;
• crítica sócio-histórica;
• caráter memorialístico;
• prosa lírica;
• elementos do cotidiano;
• personagens socialmente marginalizados;
• temática da injustiça social;
• questões de gênero e etnia;
• denúncia de discriminação racial.
Obras de Conceição Evaristo
• Ponciá Vicêncio (2003).
• Becos da memória (2006).
• Poemas de recordação e outros movimentos (2008).
• Insubmissas lágrimas de mulheres (2011).
• Olhos d’água (2014).
• Histórias de leves enganos e parecenças (2016).
• Canção para ninar menino grande (2018).

Frases de Conceição Evaristo


A seguir, vamos ler algumas frases de Conceição Evaristo, retiradas de entrevista publicada no Correio do
Povo, em 2021:
“Conheço mulheres negras cheias de sonhos e de competência que trabalham, trabalham, trabalham e ficam
pelo caminho.”
“A pobreza no Brasil tem cor.”
“É muito mais fácil para um sujeito branco pobre ascender do que para um sujeito negro pobre.”
“A sociedade brasileira e as suas instituições são racistas.”
“O homem negro brasileiro, em determinadas situações, equipara-se ao branco na hora de exercer o
machismo.”
“Homens e mulheres negros estão sempre em situação de suspeição.”
“O fato de eu ser escritora e ter um doutorado não me deixa imune ao racismo brasileiro.”

ANÁLISE CONTO A CONTO

O livro Olhos D`água é um retrato da vida de Conceição Evaristo que, através de memórias, aborda uma
literatura crítica e engajada, evidenciando a realidade periférica de minorias. o foco de seu interesse na
população afro-brasileira abordando, sem meias palavras, a pobreza e a violência urbana que a acometem:
“Ultimamente na favela tiroteios aconteciam com frequência e a qualquer hora”, lemos em “Zaíta esqueceu
de guardar os brinquedos”. Sem sentimentalismos facilitadores, mas sempre incorporando a tessitura poética
à ficção, os contos de Conceição Evaristo apresentam uma significativa galeria de mulheres – Ana Davenga,
a mendiga Duzu-Querença, Natalina, Luamanda, Cida, a menina Zaíta. Ou serão todas a mesma mulher,
captada e recriada no caleidoscópio da literatura, em variados instantâneos da vida? Diferem elas em idade e
em conjunturas de experiências mas compartilham da mesma vida de ferro, equilibrando-se na “frágil vara”
que, lemos no conto “O Cooper de Cida”, é a “corda bamba do tempo”. Na verdade, essa mulher de muitas
faces é emblemática de milhões de brasileiras na sociedade de exclusões que é a nossa. Frágil vara, corda
bamba, fios de ferro, ferro de passar, a dança das metáforas as enlaça e retronstrói a vida de pessoas
despossuídas a qual expressa, apesar de tudo, uma vitalidade própria que o texto de Conceição insiste em
celebrar: “Era tudo tão doce, tão gozo, tão dor!”, sintetiza “Ana Davenga”. Os contos, assim, equilibram-se
entre a afirmação e a negação, entre a denúncia e a celebração da vida, entre o nascimento e a morte:
“Brevemente iria parir um filho. Um filho que fora concebido nos frágeis limites da vida e da morte.”
(“Quantos filhos Natalina teve?”).
No livro estão presentes mães, muitas mães. E também filhas, avós, amantes, homens e mulheres – todos
evocados em seus vínculos e dilemas sociais, sexuais, existenciais, numa pluralidade e vulnerabilidade que
constituem a humana condição. Sem quaisquer idealizações, são aqui recriadas com firmeza e talento as duras
condições enfrentadas pela comunidade afro-brasileira. A abrangência de tal problemática ultrapassa, decerto,
o mundo negro, assim como transcende o dia de hoje. Os contos, sempre fincados no fugidio presente, abarcam
o passado e interrogam o futuro.
01- OLHOS D`ÁGUA

“Minha mãe sempre costurou a vida com fios de ferro”


“A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos
e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície”.

Nesse conto, a partir de memórias, a autora expõe sua vivência e a figura da mãe, bem como de outras
mulheres do núcleo familiar que, de certa forma, possuem grande representatividade. Uma pergunta enfática
durante todo o conto “De que cor eram os olhos da minha mãe?” evidencia uma simbologia a respeito da
presença materna e as características específicas dessa figura, bem como a importância dos laços familiares.
Durante a leitura do conto, é possível perceber ainda uma relação de ancestralidade, a repetição de
histórias, principalmente quando essas se tratam de minorias; os olhos da mãe (os quais remetiam a tristeza,
pobreza, fome, infelicidade...) também representavam os olhos da filha, simbologia exposta no final do conto
pela neta.
O conto aborda ainda elementos culturais, a exemplo da religião de matriz africana, “A cor dos olhos
de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos
para quem contempla a vida apenas pela superfície”., “Oxum” é um termo que vem da língua iorubá, tendo
como origem o nome do rio Osun, localizado no sudoeste da Nigéria. Não por coincidência, Oxum é
considerada dona das águas doces tanto no Candomblé quanto na Umbanda (religião na qual é sincretizada
com Nossa Senhora da Conceição, santa católica). A orixá representa o poder feminino através do arquétipo
da mulher elegante e amorosa, mas também inteligente, determinada, persistente, desinibida e senhora da
fertilidade. Esse último aspecto inclusive lhe associa à maternidade, já que é considerada a protetora do feto
durante o processo de gestação, além de possuir forte afeição por crianças. Outros aspectos que relacionam-
se com ela são a riqueza, o amor, a prosperidade, a beleza e a sensualidade.

“E também, já naquela época, eu entoava cantos de louvor a todas nossas ancestrais, que desde a África
vinham arando a terra da vida com as suas próprias mãos, palavras e sangue. Não, eu não esqueço essas
Senhoras, nossas Yabás, donas de tantas sabedorias. Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?”

TEMAS
• ANCESTRALIDADE
• FOME
• DESIGUALDADE SOCIAL
• POBREZA
• A CONDIÇÃO DA MULHER E MÃE NA SOCIEDADE
• RELIGIOSIDADE
• LAÇOS FAMILIARES
• INFÂNCIA

O trecho do conto "OLHOS D'ÁGUA" apresenta uma riqueza de temas filosóficos e sociológicos que
merecem uma análise aprofundada. Vamos abordar cada um dos temas mencionados:
• Ancestralidade: O conto faz referência às tradições e memórias culturais que são transmitidas de
geração em geração. A conexão com a ancestralidade é um tema importante na filosofia, pois levanta
questões sobre a identidade, a influência do passado nas escolhas do presente e a noção de
pertencimento a uma linhagem cultural.
• Fome e Pobreza: A menção à tristeza, pobreza e fome nos olhos da mãe destaca questões sociais
cruciais. A fome e a pobreza são desafios que muitas comunidades enfrentam e levantam questões
filosóficas sobre a justiça, a distribuição de recursos e a responsabilidade da sociedade em relação aos
menos favorecidos.
• Desigualdade Social: O conto sugere que a mãe enfrentou desigualdades sociais que afetaram sua vida
e a de sua filha. A desigualdade social é um tema central na sociologia, explorando as disparidades de
poder, riqueza e oportunidades na sociedade.
• Condição da Mulher e Mãe na Sociedade: A figura da mãe é central no conto, e ele aborda a condição
das mulheres e mães na sociedade. Isso pode ser analisado à luz da filosofia feminista e da sociologia
de gênero, explorando questões de opressão, papéis de gênero e lutas por igualdade.
• Religiosidade: A referência à religião de matriz africana e à orixá Oxum introduz o elemento da
religiosidade. A religião é uma parte importante da identidade cultural e levanta questões filosóficas
sobre crenças, espiritualidade e pluralismo religioso.
• Laços Familiares: O conto destaca a importância dos laços familiares, particularmente entre mães e
filhas. A filosofia da família explora a natureza desses laços, seu impacto na identidade individual e a
ética das relações familiares.
• Infância: A narradora menciona cantar cantos de louvor às ancestrais desde a infância. A filosofia da
infância considera a natureza da infância, a formação da identidade e o papel da educação.

O trecho do conto "OLHOS D'ÁGUA" é rico em simbolismo e metáforas que podem ser analisadas sob
múltiplas lentes filosóficas e sociológicas. Ele ressalta a importância de olhar além das aparências superficiais
para compreender a complexidade das experiências humanas e as interconexões entre história, cultura e
sociedade.

02- ANA DAVENGA

“Os noticiários depois lamentavam a morte de um dos policiais de serviço. Na favela, os companheiros de
Davenga choravam a morte do chefe e de Ana, que morrera ali na cama, metralhada, protegendo com as
mãos um sonho de vida que ela trazia na barriga.”
“Em uma garrafa de cerveja cheia de água, um botão de rosa, que Ana Davenga havia recebido de seu
homem, na festa primeira de seu aniversário, vinte e sete, se abria.”

O conto evidencia um cenário de violência e a fonte de sobrevivência de grupos minoritários. A condição


da mulher preta e a própria condição daqueles que não possuem escolhas, em uma sociedade marcada por
segregação, caracterizam-se como pontos críticos na narrativa. A verossimilhança aponta ainda para uma
sociedade patriarcal e reafirmada em estigmas sociais, o título do conto, por exemplo, ratifica essa visão, uma
vez que denota ideia de posse; a protagonista, após se juntar com Davenga, adota inclusive um outro nome,
vivendo por influência do homem. A pesar de Ana ser caracterizada, inicialmente, como uma mulher livre,
inteligente, conhecedora de sua realidade; aceita a condição de subordinação (percebe-se nesse ponto uma
caracterização romântica da personagem). Além disso, a crítica política “Pois é, doutor, a vida não tá fácil!
Ainda bem que tem homem lá em cima como o senhor defendendo a gente, os pobres. — Era mentira. —
Doutor, eu votei no senhor. — Era mentira também. — E não me arrependi. Veio visitar a família? Eu também
tou indo ver a minha e quero levar uns presentinhos. Quero chegar bem-vestido, como o senhor.” (momento
do assalto), elementos eróticos ( algo comum nas obras de Evaristo, a qual aborda também características
naturalistas) – a partir do personagem Davenga e da própria caracterização de Ana “Quando Davenga
conheceu Ana em uma roda de samba, ela estava ali, faceira, dançando macio.” -, o tráfico, a violência
policial, o racismo estrutural, a maternidade (com um desfecho que chama a atenção do leitor, por ser trágico
e evidenciar a interrupção da gravidez e da maternidade – algo ainda muito romantizado na sociedade), a
condição de miséria e incerteza da vida, tudo isso faz parte do universo de temáticas da narrativa.
Há também simbologias adotadas por Evaristo (características que devem ser analisadas em todos os
contos). “Em uma garrafa de cerveja cheia de água, um botão de rosa, que Ana Davenga havia recebido de
seu homem, na festa primeira de seu aniversário, vinte e sete, se abria.”

A rosa simboliza a perfeição, o amor, o coração, a paixão, a alma, o romantismo, a pureza, a beleza,
a sensualidade, o renascimento; e, de acordo com sua cor, pode simbolizar a lua (branca), o sol (amarela)
ou o fogo (vermelha). Universalmente, essa flor complexa e aromática representa o símbolo do amor e
da união, famosa por sua beleza e seu perfume. Não obstante, o desabrochar do botão da rosa simboliza
o segredo e o mistério da vida.

O conto aborda ainda questões direcionadas ao feminicídio e crítica religiosa: Maria Agonia reagiu. Vê
só se ela, crente, filha de pastor, instruída, iria deixar tudo e morar com um marginal, com um bandido?
Davenga se revoltou. Ah! Então era isso? Só prazer? Só o gostoso? Só aquilo na cama? Saiu dali era
novamente a Bíblia? Mandou que a mulher se vestisse. Ela ainda se negou. Estava querendo mais. Estava
precisando do prazer que ele, só ele, era capaz de dar. Saíram juntos do motel, a certa altura, como sempre,
ele desceu do carro e caminhou sozinho. Não havia de ser nada. Tinha alguém que faria o serviço para ele.
Dias depois, a seguinte manchete aparecia nos jornais: “Filha de pastor apareceu nua e toda perfurada de
balas. Tinha ao lado do corpo uma Bíblia. A moça cultivava o hábito de visitar os presídios para levar a
palavra de Deus”.

O conto apresenta uma narrativa intensa que pode ser analisada a partir de várias perspectivas filosóficas
e sociológicas:

• Violência e Sobrevivência: O conto retrata um ambiente de violência nas favelas, onde Ana e seu
parceiro, Davenga, estão envolvidos em atividades criminosas. A sobrevivência em condições de alta
criminalidade levanta questões filosóficas sobre o desespero humano e a moralidade, bem como
questões sociológicas sobre as raízes da criminalidade nas comunidades marginalizadas.
• Condição da Mulher: A narrativa destaca a condição da mulher negra em uma sociedade marcada por
segregação e desigualdade de gênero. Ana, a princípio, é retratada como uma mulher independente,
mas depois aceita a subordinação a Davenga. Isso levanta questões filosóficas sobre a autonomia
feminina e a influência do patriarcado, enquanto sociologicamente destaca as lutas das mulheres negras
por igualdade.
• Estigmatização e Identidade: O título do conto, que sugere uma ideia de posse sobre Ana, reflete a
estigmatização social das mulheres em relacionamentos abusivos. A sociologia estuda como os
estigmas afetam a identidade das pessoas e suas interações sociais.
• Política e Mentiras: O conto inclui uma crítica política com personagens fingindo apoiar o governo
por conveniência. Isso levanta questões sobre a honestidade na política e como as pessoas podem ser
levadas a acreditar em mentiras. A filosofia política explora a ética da liderança e a responsabilidade
do governo para com seus cidadãos.
• Erotismo e Naturalismo: O conto apresenta elementos eróticos e sensuais na relação entre Ana e
Davenga, algo comum nas obras de Carolina Maria de Jesus, que frequentemente adotou uma
abordagem naturalista para retratar a vida nas favelas. O erotismo pode ser estudado na filosofia da
sexualidade e da moralidade.
• Racismo Estrutural: A narrativa também aborda o racismo estrutural, exemplificado pela reação de
Maria Agonia ao relacionamento de sua filha com Davenga. Isso levanta questões sobre a
discriminação racial e a resistência da comunidade negra. A sociologia do racismo explora como o
racismo está incorporado nas instituições e nas interações sociais.
• Feminicídio: O conto aborda o feminicídio, com a tragédia da morte de Ana, que estava grávida. Isso
levanta questões filosóficas sobre a violência de gênero e a misoginia, bem como questões sociológicas
sobre as raízes do feminicídio na sociedade.
• Crítica Religiosa: O conto inclui uma crítica à religião, destacando como a fé pode ser usada de forma
hipócrita e seletiva. Isso pode ser analisado filosoficamente à luz da crítica à religião e da liberdade
religiosa.

Em resumo, "ANA DAVENGA" é uma narrativa densa que aborda uma série de questões sociais e
humanas complexas, e sua análise pode ser enriquecedora a partir de diversas perspectivas filosóficas e
sociológicas. Carolina Maria de Jesus, como autora, utiliza essa história para lançar luz sobre a vida nas favelas
e as muitas camadas de desafios enfrentados por suas personagens.

ANOTAÇÕES
03- DUZU-QUERENÇA

Outro conto que evidencia a questão da ancestralidade. Duzu é uma mulher preta que, desde a infância,
enfrenta diferentes tipos de violência; sem ter conhecimento de uma vida digna, na infância, passa fome, é
deixada em um bordel (ainda que o pai desejasse uma vida melhor para a filha e se iludisse com a ideia de que
Duzu conseguiria estudar e mudar sua realidade.), conhece precocemente a vida sexual e da prostituição.
Durante a narrativa, é possível perceber características deterministas pregadas por Hippolyte Taine ( pensador
francês, adepto do positivismo, que defendia o entendimento do comportamento humano por três fatores
determinados: a raça, o meio e o momento. A raça é o conjunto das características hereditárias imprimidas
pela família às gerações seguintes.); além de algumas teorias freudianas direcionadas à sexualidade (“E foi no
entrar-entrando que Duzu viu várias vezes homens dormindo em cima das mulheres. Homens acordados em
cima das mulheres. Homens mexendo em cima das mulheres. Homens trocando de lugar com as mulheres.
Gostava de ver aquilo tudo. Em alguns quartos a menina era repreendida. Em outros, era bem-aceita.”). O
fragmento evidencia, também, características naturalistas voltadas para o ID, para a libido.

“Duzu morou ali muitos anos e de lá partiu para outras zonas. Acostumou-se aos gritos das mulheres
apanhando dos homens, ao sangue das mulheres assassinadas. Acostumou-se às pancadas dos cafetões, aos
mandos e desmandos das cafetinas. Habituou-se à morte como uma forma de vida.” Uma vida marcada por
violência, infelicidade e sem perspectiva de mudança (ainda que esse desejo seja evidenciado pela menina
Querença e outro Neto que queria ser guarda penitenciário para dar fuga ao pai).

“Com a morte de Tático, Duzu ganhou nova dor para guardar no peito. Ficava ali, amuada, diante da
porta da igreja. Olhava os santos lá dentro, os homens cá fora, sem obter consolo algum. Era preciso
descobrir uma forma de ludibriar a dor. Pensand nisto, resolveu voltar ao morro. Lá onde durante anos e
anos, depois que ela havia deixado a zona, fora morar com os filhos. Foi retornando ali que Duzu deu de
brincar de faz de conta. E foi aprofundando nas raias do delírio que ela se agarrou para viver o tempo de
seus últimos dias.” O conto é finalizado nesse momento de delírio, e a menina Querença aparece com o desejo
de mudança em uma sociedade “na qual não é permitido nem o sofrer”.
TEMAS

O conto que descreve a vida de Duzu é rico em elementos filosóficos e sociológicos, pois aborda uma
série de questões relacionadas à condição humana, à sociedade e à influência de fatores deterministas. Vamos
analisar esses pontos em mais detalhes:
• Determinismo e Influências Sociais: O conto reflete a influência de determinantes sociais na vida de Duzu.
Desde a infância, ela enfrenta violência, exploração e falta de oportunidades. A alusão ao pensamento de
Hippolyte Taine, que enfatizava a importância da raça, do meio e do momento na formação do
comportamento humano, destaca como as condições sociais moldaram a vida de Duzu. A sociologia
frequentemente explora a influência do ambiente social no desenvolvimento das pessoas.
• Sexualidade e Psicanálise: A descrição das experiências precoces de Duzu na vida sexual e na prostituição
pode ser analisada à luz da psicanálise de Sigmund Freud. As teorias freudianas sobre a libido e o
inconsciente estão presentes na narrativa, especialmente na descrição das atividades no bordel. Isso
levanta questões filosóficas sobre a sexualidade humana e como experiências traumáticas podem afetar o
psiquismo.
• Violência e Desigualdade: A narrativa destaca a violência, tanto física quanto psicológica, que Duzu
enfrenta ao longo de sua vida. Isso está relacionado à desigualdade social e de gênero, já que ela é vítima
de cafetões e cafetinas. Essa é uma preocupação central na sociologia, que estuda as estruturas de poder
e as relações de gênero na sociedade.
• Morte e Desespero: A personagem Duzu vive uma vida marcada pela miséria, violência e falta de
perspectiva de mudança. O conto descreve como ela se acostuma à morte como parte de sua existência.
Essa situação levanta questões filosóficas sobre o significado da vida em um contexto de sofrimento
constante.
• Delírio e Fuga da Realidade: O conto termina com Duzu mergulhando no delírio como uma forma de
escapar de sua realidade. Isso pode ser interpretado como uma tentativa de encontrar consolo em um
mundo que lhe negou muitas oportunidades. A filosofia da mente explora o papel do delírio e da ilusão
na experiência humana.
• Desejo de Mudança: O conto também apresenta o desejo de mudança representado pela personagem
Querença. Ela busca uma realidade diferente, uma sociedade onde o sofrimento não seja permitido. Isso
destaca a esperança e o anseio por um mundo melhor, que é uma questão filosófica essencial.
No geral, o conto aborda questões profundas relacionadas à desigualdade social, à violência de gênero,
ao impacto do ambiente na formação das pessoas e à busca por significado e consolo em um mundo de
adversidades. Ele nos convida a refletir sobre como as circunstâncias de nascimento e as condições sociais
moldam as vidas das pessoas e sobre a importância do desejo de mudança e esperança em meio ao desespero.

04- MARIA

Maria: mulheres da ficção, mulheres da realidade


No início do conto, a narrativa em terceira pessoa traz à cena uma situação pela qual passa a personagem
Maria. Assim, a partir das informações inicias, já conseguimos compreender aspectos da vida da protagonista,
como a classe social a que ela pertence, sua profissão e a relação com os filhos.
“Maria estava parada há mais de meia hora no ponto de ônibus. Estava casada de esperar. Se a distância
fosse menor, teria ido a pé. Era preciso mesmo ir se acostumando com a caminhada. Os ônibus estavam
aumentando tanto! Além do cansaço, a sacola estava pesada. No dia anterior, no domingo, havia tido festa na
casa da patroa. Ela levava para casa os restos. O osso do pernil e as frutas que tinham enfeitado a mesa.
Ganhara as frutas e uma gorjeta. O osso a patroa ia jogar fora. Estava feliz, apesar do cansaço. A gorjeta
chegara numa hora boa. Os dois filhos menores estavam muito gripados. Precisava comprar xarope e aquele
remedinho de desentupir o nariz. Daria para comprar também uma lata de Toddy. As frutas estavam ótimas e
havia melão. As crianças nunca tinham comido melão. Será que os meninos gostavam
de melão?” (EVARISTO, 2016, p. 39-40)

No trecho supracitado, percebe-se que a cena inicial do conto já denuncia a difícil condição de vida
enfrentada por Maria, a qual, sabe-se, é também uma condição cotidianamente vivida pelas classes populares:
as cansativas horas perdidas à espera do transporte público para ir ou vir do trabalho e o pesado custo que a
tarifa da passagem pode representar para aqueles que têm um orçamento tão pequeno. Além disso, consegue-
se saber que Maria tem como profissão ser empregada doméstica, pois a ela pertencem agora os restos de
comida da festa acontecida na casa de sua patroa no dia anterior, o que evidencia o abismo econômico e social
entre a família da protagonista, pertencente a uma classe popular, e a família da patroa, provavelmente
composta por brancos e pertencente a uma classe média alta.
“O que representa o trabalho para as famílias das classes populares? Ora, dentro de nossa sociedade
capitalista com seu processo de mais-valia, sabemos que aqueles pertencentes às camadas mais baixas da
sociedade trabalham pela sobrevivência de suas famílias, ao passo que a venda de seu labor, muitas vezes,
representaoenriquecimento das famílias donas dos meios de produção. A profissão de Maria – empregada do
méstica – foi um trabalho desregulamentado por muitos anos em nosso país e ainda é marcado pela exploração,
visto que, principalmente nos grandes centros, ainda é tão comum que essas mulheres trabalhem períodos
integrais para famílias ricas e morem em pequenos quartos de empregada, representativos das senzalas
contemporâneas. Assim como Maria, quantas outras mulheres, negras e pobres da sociedade atual estão
nessa condição? Não por acaso bell hooks diz: “aprendi com minha própria experiência que trabalhar por
salários baixos não libertava mulheres pobres da classe trabalhadora da dominação [...]” (2018, p. 63).
Ainda, pode-se ver no trecho citado que, apesar do cansaço, Maria estava se sentindo feliz e poderia
cuidar da alimentação e da gripe de seus dois filhos menores, o que nos leva a refletir sobre a protagonista em
sua condição materna, sendo aquela que cuida da família, que não mede esforços para a criação dos filhos e
sonha para sua prole uma condição de vida melhor no futuro. Nesse sentido, é inescapável em nossa mente
a lembrança dos diários de Carolina Maria de Jesus, ao registrar em sua literatura a luta diária para criar sua
família, demonstrando que a maternagem, para a mulher, negra, pobre e favelada representa, antes de tudo,
um grande desafio movido pelo amor aos seus.
Em uma segunda cena do conto, quando Maria já se encontrava dentro do transporte pelo qual tanto
esperou, surge uma surpresa: ela se encontra com um homem, pai do primeiro de seus 3 filhos, pelo qual tinha
sido apaixonada. Neste momento da narrativa, podemos depreender da leitura informações sobre o passado
da vida da protagonista, como o tempo em que se dividiu em barraco na favela com aquele que acabara de
reencontrar por acaso no ônibus depois de anos de abandono, o relacionamento amoroso que tivera com ele e
a feliz descoberta da gravidez do primeiro filho.
Ao entrar, um homem levantou lá de trás, do último banco, fazendo um sinal para o
trocador. Passou em silêncio, pagando a passagem dele de Maria.
Ela reconheceu o homem. Quando tempo, que saudades! Como era difícil continuar a
vida sem ele. Maria sentou-se na frente. O homem assentou-se ao lado dela. Ela
se lembrou do passado. Do homem deitado com ela. Da vida dos dois no barraco. Dos
primeiros enjoos. Da barriga enorme que todos diziam gêmeos, e da alegria dele. Que
bom! Nasceu! Era um menino! E haveria de se tornar um homem. Maria viu, sem
olhar, que era o pai do seu filho. Ele continuava o mesmo. Bonito, grande, o olhar
assustado não se fixando em nada e em ninguém. Sentiu uma mágoa imensa. Por
que não podia ser de outra forma? Por que não podiam ser felizes? E o menino, Maria?
Como vai o menino? Cochichou homem. Sabe que eu sinto falta de vocês? Tenho um
buraco no peito, tamanha a saudade! Tou sozinho! Não arrumei, não quis mais
ninguém. Você já teve outros... outros filhos? A mulher baixou os olhos como que
pedindo perdão. É. Ela teve mais dois filhos, mas não tinha ninguém também! Homens
também? Eles haveriam de ter outra vida. Com eles tudo haveria de ser diferente.
Maria, não te esqueci! Tá tudo aqui no buraco do peito... (EVARISTO, 2016, p. 40)
É interessante observar a descrição do homem como um sujeito bonito e grande o que demonstraria
virilidade e masculinidade, características essenciais a figura do macho dentro do patriarcado. Contudo, ao
mesmo tempo, o ex-homem de Maria é caracterizado como um homem de olhar assustado, o que nos remete
à fragilidade e à vulnerabilidade, aspectos geralmente tão distantes do imaginário da figura do macho dentro
desse mesmo discurso patriarcal. Evaristo, dessa forma, confere, na narrativa, uma complexa humanização
para esse sujeito que, ao mesmo tempo que possui seus privilégios por ser homem, sofre em demasia numa
sociedade racista e classista, na qual ele é constantemente subalternizado. Esse homem, ainda, ao indagar
Maria sobre os filhos e a vida da família que ele havia abandonado, demonstra se sentir arrependido, pois
sente saudades e diz ter um buraco no peito, o que nos permite pensar sobre a difícil vida enfrentada pelo
homem-personagem. A narrativa transcorre como uma breve conversa entre Maria e o seu ex-homem, cujo
nome nós nunca ficamos sabendo. Contudo, em meio à intranquilidade e ao barulho do ônibus, a protagonista
do conto não consegue ouvir bem os cochichos de seu ex-companheiro. Dessa forma, cabia-
lhe somente tentar adivinhar os assuntos sussurrados pelo pai de seu primeiro filho. Faz-se importante notar
que, nesse momento da história, o enredo toma um ritmo mais acelerado e tumultuado, o que imprime
na leitura uma sensação de angústia.

Ela, ainda sem ouvir direito, adivinhou a fala dele: um abraço, um beijo, um carinho no filho.
E logo após, levantou rápido sacando a arma. Outro lá atrás gritou que era um assalto. Maria
estava com muito medo. Não dos assaltantes. Não da morte. Sim da vida. Tinha três filhos. O
mais velho, com onze anos, era filho daquele homem que estava ali na frente com uma arma
na mão. O de lá de trás vinha recolhendo tudo. O motorista seguia a viagem. Havia o silêncio
de todos no ônibus. Apenas a voz do outro se ouvia pedindo aos passageiros que entregassem
tudo rapidamente. O medo da vida em Maria ia aumentando. Meu Deus, como seria a vida dos
seus filhos? Era a primeira vez que ela via um assalto no ônibus. Imaginava o terror das pessoas.
O comparsa de seu ex-homem passou por ela e não pediu nada. Se fossem outros os assaltantes?
Ela teria para dar uma sacola de frutas, um osso de pernil e uma gorjeta de mil cruzeiros. Não
tinha relógio algum no braço. Nas mãos nenhum anel ou aliança. (EVARISTO, 2016, p. 41).

Nesse trecho da narrativa, em que se configura uma terceira cena, ao analisar alguns aspectos relevantes,
primeiramente, podemos perceber o sofrimento de Maria devido à situação de um assalto sendo realizado pelo
próprio pai de um dos seus filhos, aquele seu ex-homem que, naquele momento, segurava uma arma na mão.
Se, por um lado, os demais passageiros do ônibus temiam a morte e/ou o roubo, a protagonista do conto só
pensava na criação de seus filhos, em um gesto preocupado de quem conhece as dificuldades da vida e sabe o
que é criar sua prole sem o pai. Secundariamente, vemos um agravamento de emoções dentro de Maria porque
se justifica pelo fato de seu ex-companheiro ser um dos responsáveis pelo assalto dentro do ônibus. Nesse
sentido, ele representa, ao mesmo tempo, o assaltante responsável pelo pânico no ônibus e o homem com
quem um dia ela dividir a sua vida, a qual se atualiza em sua memória por meio de seu primeiro filho, fruto
da relação entre os dois.
O assalto, como uma situação naturalmente violenta, poderia nos levar, assim como comumente
acontece na sociedade, a desenvolveu um sentimento de asco, medo e repugnância com relação aos assaltantes.
Entretanto, sabendo da condição de vida do ex-homem de Maria e seus comparsas no que tange à
discriminação sofrida diariamente por eles devido ao racismo e a as dificuldades no mercado de trabalho, seja
pela falta de qualificação seja pela cor da pele, somos convidados a refletir se esses personagens questionamos:
será que o assalto foi uma escolha ou uma necessidade? Assim um encadeamento narrativo arrebatador, chega-
se à quarta cena do conto:

Alguém gritou que aquela puta safada conhecia os assaltantes. Maria assustou-se. Ela não
conhecia assaltante algum. Conhecia o pai do seu primeiro filho. Conhecia o homem que tinha
sido dela e que ela ainda amava tanto. Ouviu uma voz: Negra safada, vai ver que estava
de coleio com os dois. Outra voz ainda lá do fundo do ônibus acrescentou: Calma gente! Se el
a estivesse junto com eles, teria descido também. Alguém argumentou que ela não tinha
descido só para disfarçar. Estava mesmo com os ladrões. Foi a única a não
ser assaltada. Mentira, eu não fui e não sei porquê. Maria olhou na direção de onde vinha a
voz e viu um rapazinho negro e magro, com feições de menino e que relembrava vagamente o
seu filho. A primeira voz, a que acordou a coragem de todos, tornou-se um grito:
Aquela puta, aquela negra safada estava com os ladrões! o dono da voz levantou e sim
caminhou em direção à Maria. A mulher teve medo e raiva. Que merda! Não conheci assaltante
algum. Não devia satisfação a ninguém. Olha só, a negra ainda é atrevida, disse o homem,
lascando um tapa no rosto da mulher. Alguém gritou: lincha! Lincha! lincha!... Uns passageiros
desceram e outros voaram em direção à Maria. O motorista tinha parado o ônibus para defender
a passageira: Calma, pessoal! Que loucura é esta? Eu conheço esta mulher de vista. Todos os
dias, mais ou menos nesse horário, ela toma o ônibus comigo. Está vindo do trabalho, da luta
para sustentar os filhos... Lincha! Lincha! Lincha! Maria punha sangue pela boca, pelo nariz e
pelos ouvidos. A sacola havia arrebentado e as frutas rolavam pelo chão. (EVARISTO, 2016,
p. 41-42).

Ao atingir o clima da narrativa, a quarta cena do conto narra de que forma acontece a tragédia que
acometeu a protagonista. Após os assaltantes deixarem o ônibus, Maria então surpreendida pelo
comportamento do restante dos passageiros, porque começaram a ofendê-la. Nesse contexto, merece relevo o
fato de que as palavras, puta, negra e safada foram xingamentos utilizados para acusar a protagonista do conto
dizendo que ela fazia parte do assalto ocorrido, o que evidência, sociolinguisticamente, que a revolta e a
vontade que alguns passageiros tiveram de violentar Maria passava, além do fato de seu ex-companheiro ter
se sentado ao seu lado no ônibus antes do assalto, pelas questões de gênero raça e classe. Maria, naquela
situação, para além da suspeita do seu envolvimento no assalto, foi acusada por ser mulher, por ser negra, por
ser pobre, fatores que interseccionalmente, é um responsáveis por seu lugar na sociedade, uma doméstica que
lutava para criar seus próprios filhos sozinha. Desta forma, por mais que Maria dissesse que não tinha nada a
ver com assalto ou que o motorista tentasse a defender, a personagem já estava condenada por tudo o que o
seu corpo representa para uma sociedade machista, racista, classista, que, através de estereótipos, discriminar
mulheres, negros e pobres, ao colocá-los em lugares subalternos. Assim, para além da violência simbólica
sofrida por Maria a partir de vários injustos xingamentos e acusações, a personagem, através das mãos de
quem a discriminou, é linchada até a morte, eu também o sofrimento de uma violência física. Portanto, na
ficção, se analisarmos a história do conto no que tange às dificuldades enfrentadas por Maria devido à sua
condição de mulher, negra pobre mãe doméstica, logo pensaremos também nas Marias do mundo real, que
veem a vida sim por tão cruelmente sobre si sobre os seus. Dessa forma, a escrita de Evaristo constrói uma
mulher na ficção uma experiência que, infelizmente, muito diálogo com as mulheres da realidade do nosso
país, ao evidenciar como as opressões de gênero, raça e classe podem causar dor, violência e sofrimento aos
grupos subalternizados.

TEMAS:
• INJÚRIA RACIAL
• FOME
• VIOLÊNCIA
• RACISMO ESTRUTURAL
• INFÂNCIA
• DIREITOS TRABALHISTAS
• EMPREGADAS DOMÉSTICAS
• “JUSTIÇA” COM AS PRÓPRIAS MÃOS / EXERCÍCIO ARBITRÁRIO DAS PRÓPRIAS RAZÕES
• A CONDIÇÃO DA MULHER NA SOCIEDADE BRASILEIRA

O conto "Maria" de Conceição Evaristo é uma poderosa crítica social e filosófica que nos convida a
refletir sobre as complexas interseções de gênero, raça e classe na sociedade brasileira. A história de Maria
serve como um espelho para muitas mulheres que enfrentam desafios semelhantes na vida real, e a narrativa
revela as injustiças sistemáticas que persistem em nossa sociedade.
A personagem de Maria representa a luta das famílias das classes populares, onde o trabalho é uma
necessidade para a sobrevivência, mas muitas vezes não proporciona condições dignas de vida. A profissão de
empregada doméstica, retratada no conto, é um exemplo de um trabalho historicamente desvalorizado e
explorado, no qual as mulheres muitas vezes trabalham longas horas, enfrentam más condições de trabalho e
recebem salários baixos. A exploração econômica que Maria enfrenta é um reflexo da desigualdade estrutural
que persiste no Brasil.
Além disso, a maternidade de Maria é um aspecto fundamental da história. Ela é retratada como uma
mãe que está disposta a enfrentar todas as dificuldades para cuidar de seus filhos. Essa representação destaca
como as mulheres nas classes populares muitas vezes desempenham um papel central na criação de suas
famílias, apesar das adversidades. A maternidade de Maria também ilustra como o amor e a dedicação materna
são forças poderosas que transcendem as dificuldades sociais.
A cena do assalto no ônibus revela a complexidade das condições de vida dos personagens, incluindo o
ex-companheiro de Maria. Ele, assim como seus comparsas, é apresentado como um homem complexo, cuja
vida foi moldada por uma sociedade que o marginaliza. Essa cena nos leva a questionar se a criminalidade é
uma escolha ou uma resposta à falta de oportunidades. A violência e a criminalidade são sintomas de
problemas mais profundos em nossa sociedade, como o racismo, o machismo e a desigualdade.
A reação dos passageiros do ônibus, que acusam Maria de estar envolvida no assalto apenas com base
em estereótipos raciais e de gênero, expõe as injustiças e preconceitos arraigados em nossa sociedade. Maria
é vítima não apenas da violência física, mas também da violência simbólica e do linchamento moral. Essa
cena chocante nos força a confrontar a maneira como as pessoas são julgadas e tratadas com base em sua
aparência e posição social, muitas vezes resultando em injustiças graves.
O conto de Conceição Evaristo é uma obra poderosa que nos lembra da urgência de abordar as questões
de gênero, raça e classe em nossa sociedade. Ele nos desafia a refletir sobre como as estruturas de poder e
preconceito afetam as vidas das pessoas, especialmente daquelas que estão nas margens da sociedade. Além
disso, nos faz questionar a validade de nossos julgamentos superficiais e nos lembra da importância de empatia
e compreensão em face das dificuldades enfrentadas por indivíduos que lutam para sobreviver em um mundo
desigual.
O conto "Maria" de Conceição Evaristo aborda diversas temáticas sociais e políticas, fazendo uma crítica
profunda à realidade brasileira. A história de Maria está intrinsecamente relacionada a várias questões
relevantes:
• Injúria Racial e Racismo Estrutural: A injúria racial é evidente na forma como os passageiros a acusam
com base em sua raça e a ofendem com xingamentos raciais. Maria é vítima de racismo estrutural,
onde sua cor de pele e classe social a colocam em uma posição de desvantagem e suspeita.
• Fome: A fome é uma preocupação constante para Maria, uma mãe solteira que luta para alimentar seus
filhos. Ela recolhe restos de comida da festa da patroa e se preocupa em comprar alimentos para seus
filhos. Isso reflete a insegurança alimentar enfrentada por muitas famílias de baixa renda.
• Violência: A narrativa descreve a violência física sofrida por Maria quando os passageiros a lincham.
Além disso, a cena do assalto no ônibus é um exemplo de violência que afeta não apenas as vítimas
diretas, mas também as comunidades marginalizadas.
• Infância: A presença dos filhos de Maria destaca a luta das mães para criar seus filhos em meio às
adversidades. A infância é apresentada como uma fase vulnerável e delicada da vida, especialmente
quando os recursos são escassos.
• Direitos Trabalhistas e Empregadas Domésticas: A profissão de Maria como empregada doméstica é
uma representação das condições precárias e da falta de regulamentação dos direitos trabalhistas
enfrentados por muitas trabalhadoras domésticas no Brasil. Isso também se relaciona com o racismo
estrutural, uma vez que a maioria das empregadas domésticas no Brasil é composta por mulheres
negras.
• "Justiça" com as Próprias Mãos / Exercício Arbitrário das Próprias Razões: O linchamento moral e
físico de Maria no ônibus é um exemplo de justiça com as próprias mãos, onde as pessoas tomam
medidas arbitrárias e violentas com base em suspeitas infundadas. Isso destaca a falta de um sistema
de justiça adequado e a vulnerabilidade das pessoas mais marginalizadas.
• A Condição da Mulher na Sociedade Brasileira: A história de Maria reflete a luta das mulheres,
especialmente as mulheres negras e de baixa renda, na sociedade brasileira. Ela é vítima de múltiplas
formas de opressão, incluindo machismo, racismo e exploração econômica. Sua experiência representa
as lutas enfrentadas pelas mulheres em uma sociedade que muitas vezes não valoriza seu trabalho e
dignidade.

Em suma, o conto de Conceição Evaristo aborda uma série de questões sociais interconectadas que
afetam a vida de Maria e de muitas pessoas marginalizadas no Brasil. Ele serve como uma crítica contundente
à desigualdade, ao racismo e à injustiça social, enquanto destaca a resiliência das mulheres como Maria, que
lutam para sobreviver e cuidar de suas famílias em um ambiente hostil.

05- QUANTOS FILHOS NATALINA TEVE?

Conceição transforma o corpo e a sexualidade da protagonista no lócus discursivo, na medida em que


explora a sua relação com a maternidade, associando-a, por um lado, à violência psicológica e física e, por
outro, à idealização do maternal.
Dentro de uma perspectiva feminista, o discurso no conto “Quantos filhos Natalina teve?”, estabelece
uma base concreta por meio da relação entre linguagem e poder, de pronto percebida na pressão psicológica
exercida pela mãe sobre Natalina, quando esta, ainda uma menina (ia fazer 14 anos), engravida pela primeira
vez. Depois da tentativa de aborto, com a ingestão de chás, Natalina foge de casa, porque a mãe pretende levá-
la à Sá Praxedes, a velha parteira e aborteira do morro onde moram. Medo, ódio e vergonha são os sentimentos
que a acompanham, na ânsia por livrar-se do nenê, “aquele troço, aquela coisa mexendo dentro dela” (ênfase
acrescentada, p. 43).
Natalina pertence a uma família, embora miserável, estruturada tradicionalmente: mãe (empregada
doméstica), pai e sete filhas. A mãe, porém, também chama o nenê (feto) de “troço” e uma “coisa”, ao
demonstrar que, a cada nova gravidez sua, quer “se ver livre daquilo” (p. 44). Os sintomas da violência,
comprovados pela escolha vocabular, estão presentes desde o começo da vida nos becos das favelas no de uma
mulher ser feliz” (p. 46). Não Natalina: ela quer, ao contrário da expectativa masculina e da sociedade
em geral, um filho “só seu” (p. 43).
Na terceira gravidez, em que Natalina é contratada pelo casal para quem trabalha, para fazer um filho
com o patrão, devido à esterilidade da patroa, ela ainda não consegue seu intento. A criança nasce “fraca e
bela”, mas sobrevive (p. 48). Natalina sente-se aliviada, na medida em que é esquecida pelo casal. Somente
sua quarta gravidez é que “não lhe deixava em dívida com pessoa alguma” (p. 48). Na primeira, deve a Bilico,
o namoradinho, a descoberta dos prazeres do sexo; na segunda, sente-se devedora da “inteireza de Tonho” (p.
48) e, na terceira, se “condoeu da mulher que almejava sentir o útero se abrir em movimento de flor-criança”,
por isto doa “sua fertilidade para que outra pudesse inventar uma criação” (p. 48-9).
Nessas passagens, Conceição veste a linguagem de cores líricas, acentuando o contraste chocante com
as cenas da quarta gravidez de Natalina. Há uma moldura, construída sobre a técnica do flashback,
estruturando o conto, isto é, no primeiro parágrafo, uma terceira pessoa narradora, nos apresenta a
protagonista na gravidez desejada:
Natalina alisou carinhosamente a barriga, o filho pulou lá de dentro respondendo o carinho. Ela sorriu
feliz. Era a sua quarta gravidez e o seu primeiro filho. Só seu. De homem algum, pessoa alguma. Aquele filho
ela queria, os outros não. Os outros eram como se tivessem morrido pelo meio do caminho (p. 43).
Tal informação terá continuidade no último parágrafo do conto – “O filho de Natalina continuava
bulindo na barriga da mãe” (p. 49) - quando ela rememora os momentos em que engravidou: o resultado de
um estupro e de um assassinato, atos extremos de violência. Por volta de meia-noite, dois homens chegam em
seu barraco, a dominam com força e perguntam por seu irmão. Ela não entende, pois nunca teve irmão!!! Com
os olhos vendados e de mãos amarradas, eles a colocam num carro: um dos homens, o que está no banco de
trás ao seu lado, desce e o do volante segue com ela para dentro de um mato. Ele “puxou-a violentamente
jogou-a no chão”... desamarrou suas mãos, exigiu que lhe fizesse carinho e violentou-a: “Ele gozou feito
cavalo enfurecido em cima dela” (p. 50). Retirou-lhe a venda, mas ela não conseguiu ver seu rosto; apenas
sentiu a arma dele caída no chão: “o tiro foi certeiro” (p. 50). Natalina fugiu e Guardou tudo só para ela. A
quem dizer? O que fazer? Só que guardou mais do que o ódio, a vergonha, o pavor, a dor de ter sido violentada.
Guardou mais do que a coragem da vingança e da defesa. Guardou Brasil. O discurso, afirma Fairclough
(2001) , é a linguagem imbuída de ideologias, que externaliza o seu funcionamento social; é uma forma de
ação, de constituição e de posicionamento do sujeito.
Neste viés, apesar de Natalina viver em um núcleo familiar completo, não hesita em abandoná-lo,
especialmente devido ao medo da velha, que “come crianças” (p. 45). A “menina-mãe” dá seu primeiro filho
a uma enfermeira e na sua segunda gravidez, ela rejeita a proposta de casamento de Tonho, que leva a criança
para ser criada em sua terra natal, longe dali, porque Natalina “... não queria família alguma. Não queria filho”
(p. 46). Tonho nunca vem a entender sua recusa, “diante do que ele julgava ser o modo mais do que a satisfação
de ter conseguido retomar a própria vida. Guardou a semente invasora daquele homem. Poucos meses depois,
Natalina se descobre grávida (p.50).
E, Natalina se sente feliz!
De acordo com Débora Figueiredo, em “Os discursos públicos sobre o estupro e a construção social de
identidades de gênero” (2006), “O estupro ainda é um crime cercado por uma aura de sigilo, provavelmente
por envolver, do ponto de vista da vítima, sentimentos como vergonha, culpa, medo e dor...” (p. 210). Estes
são os sentimentos de Natalina após ter sido estuprada. Entretanto, em oposição, em nenhum momento ela se
ressente por ter feito justiça com suas próprias mãos. Esta cena em conjunção com a violência da mãe contra
Natalina, ao forçá-la a praticar aborto e a violência de Natalina contra os filhos das três primeiras gravidezes,
representada pelo ódio que sentia deles, conduzem um discurso simbólico acerca da maternidade.
Uma teoria da maternidade, argumenta DuPlessis (1978, p. 8) deve começar pela relação inextricável da
maternagem com a morte; porque a maternidade liga-se ao céu e ao inferno; à fala e ao silêncio, toda vez que
se examina a maternidade no mesmo paradigma que a sexualidade. Quando se trata da violência contra as
mulheres, esta, segundo Rich e Millett (in CHODOROW, 1989, p. 93-4) é simplesmente descrita, mas não
oposta, porque a causa é o regime patriarcal.
DuPlessis (1978) reforça o seu próprio argumento anterior bem como o de Rich, ao explicitar que
Motherhood is culture ́s sacred cow. When women criticize it, they are challenging all institutions, that have
axiomatic status, institutions which appear natural. Woman as mother translates into woman/nonquestioner;
woman/nature; woman/sufferer; woman/madonna. So motherhood is the key role, the keystone in the
patriarchal arch. For it is also the site of the wresting of power from 4 women.ThisisRich ́sargument (p.9).
Nancy Chodorow, porém, trabalha para proteger as mulheres e para pesquisar a origem e as causas de
tal violência. Natalina, contudo, auto-consciente, desvencilha-se das armadilhas contidas nas fantasias e
noções culturais dominantes e viola os limites não só da passividade e da dependência feminina, como também
do papel da aceitação dócil. Seu corpo não é dócil, nem maleável por injunções exteriores: não represa sua
sexualidade, além de romper com o discurso social que torna inseparável a imagem da “verdadeira mulher”
com a da mãe. O entendimento de que não existe o tão decantado ́instinto ́ materno, de Simone de Beauvoir
(1980), desde 1949, repetida de certa forma 5 por Elizabeth Badinter, em Um amor conquistado: o mito do
amor materno, em 1985 , e 6 O conflito: a mulher e a mãe, de 2010 , parece ser senão dominante, um dos
temas mais representativos de “Quantos filhos Natalina teve?”.
Um dos aspectos mais salientes neste conto recai no fato de que Conceição em nenhum momento coloca
Natalina no papel de vítima, fugindo deste modo da generização, do sexismo. Neste conto de Conceição
também emergem fantasias e expectativas acerca da/o maternidade/maternar e sexualidade (CHODOROW,
1989, p. 84). Enquanto algumas teóricas (Rich e Rossi, cf. CHODOROW, 1989, p. 84) localizam uma das
bases do empoderamento das mulheres na posse de seus corpos maternos, Chodorow vê uma forma de
agressão primária na relação da mãe com a criança, da criança com a mãe, da mãe-como-ciança contra sua
própria mãe.
A maternidade mantém uma íntima relação com a destruição e a morte. Uma das fantasias da onipotência
materna, decantadas por Chodorow (1989), é que a mãe-vítima cria uma criança-vítima. No conto, entretanto,
Natalina demonstra, inicialmente, ter uma índole passiva: ao sinal da violência da mãe contra ela, ela não
retruca; simplesmente se retira do cortiço. Nas outras gravidezes também, ela se sente devedora de alguém,
mas nunca vítima. Quando, finalmente torna-se, na realidade, uma vítima de estupro, Natalina reverte toda a
situação e suas circunstâncias, em liberação. Sua passividade não se confirma, quando se defende do
estuprador. Neste ato e espaço discursivo, pois lugar de produção, se entrelaçam significações atravessadas,
paradoxalmente, por início e fim, uma vez que “Um filho” ali “fora concebido” ...“(n)os frágeis limites da
vida e da morte” (p. 50).
Natalina rompe o horizonte de expectativa da sociedade no que diz respeito à fantasiosa e idealizada
imagem da mãe perfeita. A relação mãe-criança é marcada pelo ódio, para apenas na quarta gestação, a
protagonista ver recuperado o amor, a figuração mais próxima ao denominado amor materno incondicional.
Resultado de um ato não só criminoso, como essencialmente odioso, o estupro exigiu-lhe uma resposta: - o
assassinato de seu estuprador, que funciona no plano discursivo como um grito de liberdade. Em Of woman
born (1976, p. 292), Adrienne Rich, citada por Chodorow (1989, p. 83), diz que “We need to imagine a world
in which every woman is the presiding genius of her own body”7. Para tal, é necessário que ocorra a liberação
da maternidade das repressões da tecnologia patriarcal e, neste mundo novo, as mulheres, além de criarem
novas vidas, terão condições de alterar a existência humana.

TEMAS

• ROMANTIZAÇÃO DA MATERNIDADE
• ABORTO
• BARRIGA DE ALUGUEL
• QUESTÕES TRABALHISTAS
• ABUSO SEXUAL
• ASSÉDIO MORAL
• QUESTŌES FAMILIARES
• EDUCAÇÃO SEXUAL

"Quantos Filhos Natalina Teve?" é um conto que faz parte do livro "Olhos D'água" da escritora brasileira
Conceição Evaristo. Este conto é uma narrativa breve, porém poderosa, que aborda questões relacionadas à
maternidade, às dificuldades da vida e à força interior de uma mulher chamada Natalina.
O conto é narrado na primeira pessoa, com Natalina contando sua própria história. Ela começa relatando
como teve seu primeiro filho ainda muito jovem, quase como se a maternidade tivesse sido imposta a ela. Os
filhos vêm em sequência, sem que ela tenha tido escolha ou controle sobre isso. O título, "Quantos Filhos
Natalina Teve?", sugere a ideia de uma repetição constante, quase automática, de eventos semelhantes em sua
vida.
Conforme a narrativa se desenrola, percebemos que a vida de Natalina foi cheia de desafios e
dificuldades. Ela enfrenta a pobreza, a falta de recursos e a ausência de apoio. Seus filhos crescem em
condições difíceis, e ela precisa lutar constantemente para garantir a sobrevivência deles.
No entanto, apesar das adversidades, Natalina é uma mulher forte e resiliente. Ela é capaz de encontrar
beleza e amor em meio à dificuldade. A maternidade é retratada como uma parte essencial de sua identidade,
e ela ama seus filhos incondicionalmente, mesmo que tenha enfrentado tantos obstáculos ao longo do caminho.
O conto "Quantos Filhos Natalina Teve?" aborda temas como a maternidade, a pobreza, a força interior
e a resiliência. Ele também destaca a importância de reconhecer e valorizar as histórias das pessoas que vivem
em condições difíceis e as lutas que enfrentam no dia a dia. Conceição Evaristo usa sua narrativa para dar voz
a uma mulher que, apesar de todas as adversidades, encontra beleza e amor em sua jornada como mãe.
Neste contexto, podemos relacionar ao conto "Quantos Filhos Natalina Teve?"
• Maternidade imposta: O conto inicia com Natalina tendo seu primeiro filho muito cedo, como se a
maternidade tivesse sido imposta a ela. Isso pode ser interpretado como uma reflexão sobre a falta de
controle que muitas mulheres têm sobre suas próprias vidas reprodutivas, especialmente em contextos
de pobreza e falta de acesso à educação sexual e métodos contraceptivos. A história de Natalina
questiona a ideia de escolha na maternidade e destaca como algumas mulheres são forçadas a se
tornarem mães em circunstâncias difíceis.
• Repetição e rotina: O título sugere uma repetição constante de eventos em sua vida - "Quantos Filhos
Natalina Teve?" Isso pode ser interpretado como uma alusão à monotonia e à falta de oportunidades
de melhoria em sua situação. A narrativa também pode refletir a realidade de muitas mulheres que
enfrentam a constante responsabilidade de criar uma família em condições desfavoráveis.
• Resiliência e amor materno: Mesmo diante das dificuldades, Natalina é retratada como uma mulher
forte e resiliente. Ela ama seus filhos incondicionalmente e encontra beleza nos pequenos momentos
da maternidade. Isso destaca a capacidade das mães de superar obstáculos e encontrar alegria e amor
em meio à adversidade.
• Luta contra a pobreza: A história de Natalina também destaca a pobreza como uma das principais lutas
em sua vida. Ela enfrenta dificuldades econômicas constantes para garantir a sobrevivência de sua
família. Isso é uma crítica social que chama a atenção para as desigualdades econômicas e a falta de
acesso a recursos que muitas pessoas enfrentam.
• Dar voz aos invisíveis: Conceição Evaristo, ao contar a história de Natalina, dá voz a uma mulher que,
de outra forma, poderia ser ignorada ou esquecida pela sociedade. O conto revela a humanidade e as
experiências ricas dessa personagem, destacando a importância de reconhecer e valorizar as histórias
das pessoas que vivem em situações desafiadoras.

No geral, "Quantos Filhos Natalina Teve?" é um conto que aborda temas universais como maternidade,
resiliência, pobreza e amor familiar. Ele é uma obra literária que oferece uma janela para a vida de uma mulher
comum e suas lutas, e, ao fazê-lo, faz uma crítica social sutil, questionando a injustiça e a desigualdade que
muitas vezes permeiam a vida das pessoas em comunidades marginalizadas. Podemos relacionar a análise do
conto aos temas mencionados:

▪ Romantização da Maternidade: O conto não romantiza a maternidade, pois mostra a experiência de


Natalina como mãe em circunstâncias difíceis e muitas vezes imposta. Isso destaca a importância de
não idealizar a maternidade, reconhecendo que para algumas mulheres, ela pode ser desafiadora e não
uma escolha livre.
• Aborto: O conto não aborda diretamente o tema do aborto, mas ao retratar Natalina tendo filhos em
sequência, pode sugerir a falta de acesso a serviços de planejamento familiar e contraceptivos, que são
fatores que podem contribuir para situações de gravidez indesejada.
• Barriga de Aluguel: O conto não faz menção direta à barriga de aluguel. No entanto, ao abordar a
maternidade forçada e as circunstâncias difíceis da vida de Natalina, ele pode levantar questões sobre
a exploração de mulheres em situações de vulnerabilidade, o que é relevante no contexto da barriga de
aluguel.
• Questões Trabalhistas: A narrativa sugere que Natalina vive em condições de pobreza e luta
constantemente para sustentar sua família. Isso pode ser relacionado a questões trabalhistas, como a
falta de empregos estáveis e bem remunerados, que são desafios comuns para muitas famílias de baixa
renda.
• Abuso Sexual e Assédio Moral: Embora o conto não aborde diretamente esses temas, a narrativa de
Natalina levanta questões de poder e controle em sua vida, uma vez que parece ter tido pouco controle
sobre sua maternidade. A falta de escolha e controle sobre sua própria vida reprodutiva pode ser vista
como uma forma de abuso de poder.
• Questões Familiares: O conto aborda questões familiares, pois Natalina é a figura central da história e
sua relação com seus filhos é um elemento central da narrativa. A história destaca como as
circunstâncias da vida afetam as dinâmicas familiares.
• Educação Sexual: O conto não menciona a educação sexual, mas ao mostrar a maternidade imposta e
a falta de acesso a contraceptivos, ele destaca a importância da educação sexual abrangente para
capacitar as pessoas a fazer escolhas informadas sobre sua vida reprodutiva.

O conto "Quantos Filhos Natalina Teve?" aborda indiretamente vários dos temas mencionados,
destacando como a falta de controle sobre a maternidade, a pobreza e as dificuldades da vida podem afetar as
mulheres e suas famílias. Ele serve como uma reflexão sobre as complexidades das questões relacionadas à
maternidade, saúde reprodutiva e igualdade de gênero.

06- BEIJO NA FACE

O enredo mostra a história de Salinda, uma mulher casada que passa a viver um amor secreto com outra
mulher, que se fortalece com o tempo. A personagem principal simboliza os sentimentos da mulher aprisionada
na armadilha de um relacionamento despótico. Infeliz no casamento, busca refúgio em um amor estereotipado,
mas com cumplicidade familiar (na figura da tia de Salinda). A protagonista sofre ameaças constantes do
marido e, por medo de perder os filhos, leva o relacionamento abusivo ainda por muito tempo. O drama da
mulher homossexual negra no conto é evidente, misturando-se à ideia e responsabilidade da maternidade.
"O Beijo na Face" é um conto que faz parte do livro "Olhos D'água" de Conceição Evaristo, uma
renomada escritora brasileira. A história gira em torno da vida de Salinda, uma mulher casada que, ao longo
do tempo, inicia um relacionamento amoroso secreto com outra mulher. Esse relacionamento cresce e se
fortalece gradualmente, tornando-se um refúgio para ela em contraste com seu casamento infeliz e opressivo.
A personagem principal, simboliza a mulher aprisionada em um relacionamento despótico, destacando
os sentimentos de aprisionamento e sofrimento que muitas mulheres enfrentam em situações de abuso. Salinda
se sente infeliz em seu casamento e, por medo de perder a custódia de seus filhos, tolera o relacionamento
abusivo por um longo período de tempo.
A história aborda a dualidade dos sentimentos de Salinda, pois ela busca refúgio em um amor que é
estereotipado pela sociedade, mas que oferece cumplicidade e apoio familiar, principalmente por meio da
figura de sua tia. Esse amor se torna uma válvula de escape para a protagonista, permitindo que ela encontre
algum tipo de felicidade e afirmação pessoal em meio a um casamento infeliz e um ambiente familiar
opressivo. O conto também aborda questões relacionadas à identidade, raça e orientação sexual, uma vez que
Salinda é uma mulher negra e homossexual. A autora utiliza a história de Salinda para explorar as
complexidades das experiências das mulheres negras em relação à maternidade e aos desafios que enfrentam
em uma sociedade que muitas vezes as marginaliza.
Em resumo, "O Beijo na Face" é um conto de Conceição Evaristo que retrata a luta de uma mulher negra
e homossexual em um relacionamento abusivo, destacando as questões de identidade, raça e maternidade, ao
mesmo tempo em que explora a busca por amor e felicidade em meio a circunstâncias difíceis. "O Beijo na
Face" é uma narrativa que ilustra a vida de Salinda, uma mulher que vive uma realidade de opressão em seu
casamento. O relacionamento dela com o marido é descrito como despótico, o que significa que ele é
autoritário, controlador e muitas vezes abusivo. Esse relacionamento opressivo a deixa infeliz e desesperada
por uma forma de escape.
No entanto, Salinda encontra refúgio e consolo em um relacionamento secreto com outra mulher. Esse
relacionamento é mantido em segredo, mas com o tempo se fortalece, tornando-se uma fonte de felicidade e
realização para Salinda. Ela sente uma conexão profunda e cumplicidade com essa outra mulher, o que a faz
questionar sua vida e seu casamento.
A relação secreta de Salinda representa uma forma de resistência e busca por liberdade em meio a um
casamento abusivo. Ela encontra apoio e cumplicidade em sua tia, uma figura familiar que a compreende e a
apoia em sua jornada. Essa relação entre tia e sobrinha destaca a importância do apoio familiar como uma
fonte de força e apoio em momentos difíceis.
A protagonista enfrenta ameaças constantes do marido, o que a mantém em um estado de medo e
insegurança. Ela teme perder a custódia de seus filhos, o que a leva a suportar o relacionamento abusivo por
mais tempo do que deveria. Esse aspecto do conto ilustra a complexidade das relações abusivas, onde as
vítimas muitas vezes se sentem presas e incapazes de sair devido a diversas razões, como medo, dependência
emocional ou preocupações com os filhos. Além disso, o conto aborda questões mais amplas de identidade e
representatividade. Salinda é uma mulher negra e homossexual, e a narrativa destaca as lutas que as mulheres
negras enfrentam em sociedades que frequentemente as marginalizam. A autora, Conceição Evaristo, usa a
história de Salinda para explorar as complexidades das experiências das mulheres negras, especialmente
quando se trata de relacionamentos, maternidade e sexualidade.
"O Beijo na Face" é uma história que explora temas profundos, como opressão, abuso, identidade,
resistência e busca por liberdade. Salinda é uma personagem complexa que representa a luta de muitas
mulheres que enfrentam relacionamentos abusivos, enquanto também destaca as complexidades das
experiências das mulheres negras em relação à maternidade e à identidade.
A personagem no texto "O Beijo na Face" de Conceição Evaristo, expressa vários problemas sociais e
questões profundas, incluindo:
• Relacionamento Abusivo: Salinda enfrenta um relacionamento conjugal abusivo, o que demonstra o
problema social da violência doméstica. Isso ressalta a necessidade de lidar com o abuso e fornecer apoio às
vítimas.
• Identidade e Orientação Sexual: Salinda é uma mulher homossexual em um contexto social que muitas
vezes marginaliza as pessoas LGBTQ+. Isso levanta a questão da discriminação e do preconceito em relação
à orientação sexual.
• Maternidade e Responsabilidade: Salinda é mãe e, por medo de perder a custódia de seus filhos, ela
continua no casamento abusivo. Isso destaca a pressão que as mães enfrentam em relação à maternidade,
incluindo a necessidade de proteger seus filhos em situações difíceis.
• Família e Apoio: A relação de Salinda com sua tia representa a importância do apoio familiar em
momentos de dificuldade. Isso enfatiza como as dinâmicas familiares podem desempenhar um papel
significativo na vida das pessoas, tanto como fonte de conforto quanto de conflito.
• Racismo e Discriminação Racial: Salinda é uma mulher negra, e o conto sugere que ela enfrenta
discriminação racial e desafios relacionados à sua identidade étnica. Isso aborda a questão mais ampla do
racismo e das lutas enfrentadas por pessoas negras na sociedade.
Portanto, o texto "O Beijo na Face" aborda uma série de problemas sociais, incluindo violência
doméstica, discriminação com base na orientação sexual e na raça, pressões sociais relacionadas à maternidade
e o impacto das relações familiares na vida das pessoas. Esses temas são explorados por meio da história de
Salinda, o que torna o conto uma obra poderosa e reflexiva sobre as complexidades das experiências humanas.

07- LUAMANDA

O conto analisado, Luamanda, traz a protagonista-título experienciado relações afetivas com outros
corpos, seu questionamento pulsante sobre as significações do amor e sua trajetória em cinco décadas de
aprendizado intermitente sobre o seu estar no mundo. Acompanhamos a personagem num longo processo de
reconhecimentos e redescobertas de si, percurso que revela uma discussão sobre a autorrepresentação da
mulher negra e sua sexualidade na literatura.
Investigar as condições históricas responsáveis pela coisificação dos corpos negros e, em especial, do
corpo da mulher negra, representa uma atitude fundamental para a compreensão das estruturas sociais que
moldam as experiências coletivas dessas mulheres. Experiências, essas, transfiguradas em formas fixas e
pejorativas. Analisar a estereotipização desses corpos no contexto da literatura, portanto, representa tensionar
as estruturas sociais de reprodução da discriminação articulada de raça e gênero.
A literatura, portanto, fomentou no imaginário modelos idealizados de identidades femininas. No
tocante às representações construídas de mulheres negras e mestiças, por escritores e poetas brancos, houve a
manutenção das imagens distorcidas dos seus corpos e comportamentos, bem como a reprodução de
determinados estereótipos também no campo simbólico.
Se, por um lado, a literatura hegemônica criou o mito do bom-selvagem, de alma pura, para negligenciar
o genocídio dos povos indígenas no Brasil, por outro lado desenhou a figura do negro sem alma, para justificar
a expiação do seu lugar de sujeito. Assim, personagens como a mucama Lucinda, de Vítimas Algozes (1869);
Bertoleza, de O cortiço (1890); e tia Anastácia, do Sítio do Pica-pau Amarelo (Reinações de Narizinho, 1920),
reiteram o discurso escravocrata sobre a mulher negra.
Narrado em terceira pessoa e recorrendo ao discurso indireto livre, o conto apresenta, cheio de ternura,
as trajetórias e amores da personagem-título, “Luamanda, Lua, guerreira, mulher”(EVARISTO, 2014, p.60).
A protagonista é detentora dos direitos do seu corpo e o reconhece como objeto de prazer – do seu prazer,
evidentemente – e de sua liberdade. A narrativa transcreve, em tons de memória, os diferentes enlaces
amorosos da personagem vividos em suas quase cinco décadas de existência, perfazendo a sua conexão com
a lua em momentos de gozo-prazer. Personagem recorrente em diferentes mitologias, a lua é responsável pelo
movimento das marés, interfere na agricultura, e nas crenças dos povos.
Era a lua mostrar-se redonda no céu, Luamanda na terra desminliguia todinha.[...] Levava a mão ao peito
e sentia a pulsação da vida desenfreada, louca. Taquicardia. Tardio seria, ou mesmo haveria um tempo em que
as necessidades do amor seriam todas saciadas? (EVARISTO, 2014, p. 60-61).
Em algumas lendas de origem africana, a lua representa o princípio do feminino, está vinculado a
fertilidade e os poderes ocultos do feminino. Assim, a representação da lua no conto é carregada de
simbolismos míticos atrelados a uma memória ancestral negra, tema fortemente presente na escrita de
mulheres negras, e que revela, já de início, uma configuração diferente sobre essa mulher e a relação de
cumplicidade que ela estabelece com esse corpo. A leitura do desejo do corpo-Luamanda (a “Lua” “manda”)
segue as intempéries da lua: O coração de Luamanda coçou e palpitou, embora a cara a lua nem estivesse
escancarada no céu. Não fazia mal, a lua viria depois. E veio, várias vezes. Lua cúmplicie de barrigaslua de
Luamanda. Vinha para demarcar o tempo da mulher e expulsar, em lágrimas ammnióticas e sangue, os filhos:
cinco. (EVARISTO, 2014, p. 61).
A relação estabelecida entre a protagonista e a lua dá o tom da narrativa: assim como a lua, a mulher
desdobra-se em faces. E o seu corpo reflete um discurso de ancestralidade, recuperando o mitológico de
perspectiva afrocentrada, tema recorrente na literatura de Conceição. O corpo-lua segue uma lógica diferente
da perspectiva ocidental tanto de tempo quanto de compreensão dos desejos do corpo da mulher. As luas
cúmplices dos seus gozos são também luas que marcam o início e o fim do período de gestação no “buraco-
céu aberto no seu corpo” (EVARISTO, 2014, p.61).
Enquanto uma tradição cristão-ocidental criou uma narrativa do pecado, o corpo em Luamanda
representa a comunhão da personagem com o mundo a sua volta, e isso é desenhado com um olhar positivo.
Recobrando os discursos hegemônicos construídos sobre os corpos das mulheres negras, observamos que a
sexualidade dessas mulheres foi redimensionada para caber nos estereótipos racistas: seu corpo, enquanto
produto para satisfação do outro, não representava um espaço de escolha. Enquanto as representações
hegemônicas falam da mulher negra como objeto de prazer do homem branco, cheia de lascívia, o conto de
Evaristo revela uma mulher sujeito do seu corpo. Assim, o corpo-afeto de Luamanda respira indagações não
normativas ou simplistas, mas cobertas de significados outros: o que é o amor para ela. Observa-se o tema do
amor sempre foi caro às mulheres negras, pois essas sempre foram não-sujeitos das relações afetivas.
Retomando Sales (2011, p. 81): “Corpos femininos negros que falam de amor à vida e do amor ao outro, do
erotismo, da identidade feminina, do sentir-se mulher negra e do sentido da própria existência em uma
sociedade racista e sexista”.
No decorrer da narrativa, acompanhamos seus primeiros gozos, suas paixões, as barrigas-luas, sua
maturidade, o ápice de seu encontro com um igual corpo: Depois, tempos depois, Luamanda experimentava
o amor em braços semelhantes aos seus. [...] E quando se sentiu coberta por pele, poros e pelos semelhantes
aos seus, quando a sua igual dançou com leveza a dança-amor com ela, saudade alguma sentiu, vazio algum
existiu, pois todas as fendas do seu corpo foram fundidas nas femininas oferendas da outra. (EVARISTO, p.
2014, p.61)
Luamanda, uma mulher autoconsciente do seu corpo e das belezas que ele podia proporcionar, debate o
signo da sexualidade negra. Construída sob a representação exclusiva da heterossexualidade, a imagem da
mulher, quando não era ignorada, era destituída de outras vivências sexuais. A personagem relata a tensão
pelo medo da falta do falo, contudo, no envolvimento dos corpos, revela-se que nada falta. Esse discurso
denuncia a perspectiva falocentroica da sexualidade normativa, pois, a necessidade do falo é o que constitui
nessas narrativas a atividade sexual. A narradora descontrói a representação fantasiosa do imaginário sobre as
experiências sexuais entre mulheres.
Mas não apenas de felicidades vive Luamanda. A protagonista é violada por um homem que não aceita
o término do relacionamento e precisa cuidar do corpo e aprender, com paciência, aguardar o tempo da cura:
“Foi um tempo em que precisou exercitar a paciência com o seu próprio corpo. Trancada em si, ou melhor,
aberta para si mesmo, com as mãos espalmadas e leves imaginava lenitivos carinhos” (EVARISTO, p.63).

TEMAS
• RECONHECIMENTO E IDENTIDADE
• A CONDIÇÃO DA MULHER PRETA
• REPRESENTATIVIDADE
• SEXUALIDADE
• MACHISMO
• VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

A análise sociológica do conto "Luamanda" do livro "Olhos D'água" oferece uma oportunidade valiosa
para explorar a representação da mulher negra e sua sexualidade na literatura, ao mesmo tempo em que destaca
a importância de considerar as condições históricas que contribuíram para a objetificação dos corpos negros,
em particular, o corpo da mulher negra. Através dessa análise, podemos identificar várias questões e temas
relevantes que permeiam a literatura e a sociedade brasileira.
• Experiência da mulher negra: O conto "Luamanda" coloca em foco a experiência da protagonista-título
como uma mulher negra, destacando suas lutas, relacionamentos e busca por compreender o
significado do amor. A história retrata seu percurso de autoconhecimento ao longo de cinco décadas,
o que espelha as experiências reais de muitas mulheres negras na sociedade brasileira.
• Desconstrução de estereótipos: O conto se propõe a desconstruir estereótipos negativos e fixos
associados às mulheres negras, mostrando que elas são seres complexos com desejos, anseios e uma
busca por identidade e autoafirmação. Isso desafia as representações negativas que a literatura
hegemônica muitas vezes perpetuou no passado.
• Relação entre literatura e sociedade: A análise destaca a influência da literatura na construção de
identidades e estereótipos. Escritores e poetas brancos desempenharam um papel significativo na
perpetuação de representações distorcidas das mulheres negras, o que, por sua vez, teve impactos na
forma como essas mulheres eram percebidas na sociedade.
• Condições históricas: A discussão sobre as condições históricas que levaram à objetificação dos corpos
negros, em especial das mulheres negras, é crucial para compreender como estruturas sociais de
discriminação racial e de gênero se manifestam na literatura e na sociedade em geral. A exploração do
mito do "negro sem alma" e seu uso para justificar a exploração e marginalização de pessoas negras é
um exemplo de como a literatura pode ser usada como uma ferramenta para sustentar opressões. A
análise também ressalta as tensões entre raça e gênero na literatura e na sociedade. As mulheres negras
frequentemente enfrentam discriminação tanto por sua raça quanto por seu gênero, e essas duas formas
de opressão estão interligadas.

Em resumo, a análise sociológica do conto "Luamanda" do livro "Olhos D'água" demonstra como a
literatura pode ser uma ferramenta importante para questionar e desafiar representações estereotipadas e
opressivas das mulheres negras. Além disso, ela destaca a necessidade de se compreender as condições
históricas que moldaram tais representações e como elas perpetuam desigualdades sociais. Essa análise
convida à reflexão sobre a importância da literatura na desconstrução de preconceitos e na promoção de uma
compreensão mais profunda das experiências das mulheres negras no Brasil.
O conto "Luamanda" do livro "Olhos D'água" está profundamente relacionado a uma série de temas e
questões sociais, destacando-se, entre outros, o reconhecimento e identidade, a condição da mulher preta,
representatividade, sexualidade, machismo e violência contra a mulher. Vamos analisar como o conto aborda
cada um desses tópicos:
• Reconhecimento e Identidade: O conto segue a jornada de Luamanda ao longo de cinco décadas,
durante as quais ela passa por uma série de experiências que a levam a refletir sobre sua própria
identidade e seu lugar no mundo. Sua busca por significado e autoconhecimento é uma exploração
profunda da formação da identidade, tanto em relação a sua raça quanto ao seu gênero.
• A Condição da Mulher Preta: Luamanda é uma protagonista preta e mulher, e o conto aborda as
complexidades de sua experiência, destacando as interseções entre a discriminação racial e de gênero
que ela enfrenta ao longo de sua vida. A história revela os desafios e obstáculos únicos que as mulheres
negras enfrentam em uma sociedade marcada por preconceitos e estereótipos.
• Representatividade: Ao contar a história de Luamanda, o conto contribui para a representatividade das
mulheres negras na literatura. Muitas vezes, essas vozes são marginalizadas ou ausentes na narrativa
literária dominante, e a inclusão de personagens como Luamanda é fundamental para dar visibilidade
a essas experiências.
• Sexualidade: Luamanda passa por uma jornada de autodescoberta em relação à sua própria
sexualidade. O conto aborda as questões de desejo, intimidade e relacionamentos em uma sociedade
que frequentemente restringe a expressão da sexualidade das mulheres, especialmente das mulheres
negras. Isso destaca a importância de permitir que as mulheres tenham autonomia sobre suas escolhas
sexuais e de relacionamento.
• Machismo: O conto não apenas retrata a experiência de Luamanda, mas também aborda o machismo
que permeia a sociedade em que ela vive. A personagem enfrenta discriminação e desigualdade de
gênero ao longo de sua vida, e o conto expõe as injustiças e desafios que as mulheres enfrentam em
uma sociedade patriarcal.
• Violência Contra a Mulher: Embora o conto possa não se concentrar exclusivamente na violência
contra a mulher, ele lança luz sobre a importância de abordar essa questão. A discriminação e a
desigualdade de gênero que Luamanda enfrenta também podem ser vistas como formas de violência
simbólica e estrutural que afetam as mulheres em suas vidas cotidianas.

Em resumo, o conto "Luamanda" de "Olhos D'água" é uma narrativa rica que aborda uma série de
questões sociais, incluindo reconhecimento e identidade, a condição da mulher preta, representatividade,
sexualidade, machismo e a violência contra a mulher. Através da história de Luamanda, o conto oferece uma
janela para a compreensão das complexidades das experiências das mulheres negras no Brasil e desafia
estereótipos e preconceitos arraigados na sociedade.
ANOTAÇÕES!
08- O COOPER DE CIDA

Em O cooper de Cida, porém, parece haver uma inflexão. Não se percebe nenhuma referência específica
às características étnico-raciais de Cida ou das demais personagens. A condição de negritude parece ceder
lugar à experiência temporal, compartilhada por tantas outras Cidas no Brasil atual. Cidas negras ou brancas,
todas elas mulheres imersas em vivências temporais múltiplas que as constroem e reconstroem ao mesmo
tempo em que elas as experimentam consciente ou inconscientemente.
Conceição Evaristo, com grande maestria, desenvolve em seu conto um espaço de transição de sensações
que dão conta da multiplicidade rítmica do tempo, contribuindo assim para a construção de sentido no texto,
por meio dos usos da linguagem que manipula. Uma vez que Cida era uma mulher que corria contra o tempo
em todos os âmbitos de sua vida, seja a corrida matinal rotineira, seja ao correr os olhos pelo jornal ou quando
corria de um cômodo a outro de sua casa, sempre com pressa (EVARISTO, 2014, p. 52). Na opção(?) pelo
movimento célere, Cida resolveu mudar-se de uma cidade interiorana, de “onde para viver não havia pressa”,
para uma cidade grande, lugar onde o ritmo urbano se assemelha à urgência que a personagem sentia em viver
(EVARISTO, 2014, p. 53-54).
A protagonista vivia breves amores e rápidos gozos. Quanto aos estudos, interessava somente aqueles
de curta duração. Entretanto, em determinada manhã, contrariando sua rotina, viu-se caminhando lentamente
pelo calçadão em frente ao mar carioca. Durante sua caminhada observava o mar, as pessoas, sentia seu corpo,
e os estímulos do ambiente, sentia a areia em seus pés, sentia-se presente ali, naquele instante. Ao caminhar,
a mente da mulher veloz, passou a refletir sobre como vivera até então – sempre acelerada, e sem sentir o
mundo ao seu redor. Naquele momento, ela ousou se indagar sobre a realidade das pessoas com quem
compartilhava a praia em atividades matinais: pensou sobre suas possíveis condições de vida, sobre o ritmo
das suas existências, questionando-se com deslumbre o que permitia alguns deles se deleitarem no mar em
pleno gozo, como se o tempo que a controla não fosse senhor deles também.
Imersa em pensamentos rebeldes, que ousavam inquirir a qualidade do tempo que experimentava, por
analogia, Cida “perde a hora”. Por estar imersa no movimento das ondas do mar – mar tropical que outrora
seduzira o historiador Fernand Braudel, permitindo-o avançar em suas reflexões sobre o tempo histórico
(BRAUDEL, 2014), Cida, aquela mulher comum, igual a tantas outras, que jamais havia considerado tais
questões, vê-se parada, na praia, observando os ritmos das ondas do mar, sua mecânica de movimento. Dali
em diante, algo mudaria: Cida deixou o colega esperando, decidiu não ir ao trabalho naquele dia.
As metáforas expressas no texto nos fazem perceber, como que “através dos olhos de Cida”, ela
experimenta o tempo, em seu cotidiano. Para ela, o tempo transita entre a contradição de ser precioso – a
ponto de não querer desperdiçá-lo por ser “curto e raro” – e algoz – por fazê-la instável correr “sobre a corda
bamba, invisível e opressora do tempo” (EVARISTO, 2014, p. 52-53). Era pela chave da indecisão entre o
movimento dual e pendular de um tempo tirano e veloz, mas que deveria ser a qualquer custo agarrado, que
Cida inicialmente se percebia imersa na historicidade.
Como dito, a personagem percebe na manhã atípica, além do próprio tempo, o tempo do outro. É pela
analogia que suscita alteridade que Cida passou a enxergar-se como apressada em relação aos outros e às
outras coisas. Ao ser tomada pela sensação de poder interrogar o tempo, a personagem de Conceição Evaristo
permite aos leitores vislumbrar os contornos daquilo que entendemos por heterocronias. Por meio do que
seriam sensações e experiências individuais de uma mulher que vive na cidade – numa grande cidade
brasileira, como é o caso do Rio de Janeiro atual – a autora nos coloca diante da descoberta e da consciência
da existência de múltiplos tempos pela sua personagem.
Por mais que Cida se refira a um tempo no singular, ela experimenta, mesmo que inconscientemente,
talvez, a multiplicidade que é implícita à dimensão temporal. Em seu caso, pensar sobre múltiplos tempos não
é simplesmente algo simbólico, é de fato compreender que o tempo que tanto nos referimos no singular, na
verdade deveria ser assimilado no plural. Quando a personagem indaga sobre o tempo do outro, nota que
ambos vivenciam tempos diferentes. Esse fato, torna-se perceptível quando a mãe de Cida, ao contrário da
filha, preferia o ritmo lento da cidade pequena do interior, de onde vinha, quando comparado ao vivenciado
no Rio de Janeiro, onde, na opinião da mãe, não era agradável a velocidade com a qual os carros se
movimentavam.
É possível perceber que no conto em questão, há mecanismos de sincronização do tempo adotados pela
personagem. Ajustar-se ao horário do ônibus ou metrô, ao trabalho, ao horário do banco. Era nesse influxo
que Cida vivia mergulhada na temporalidade opressora do aqui e agora neoliberal. Nada de gastar o tempo
curto e raro. É preciso correr, para chegar antes, conseguir a vaga, o lugar ao sol, pegar a fila pequena no
banco, encontrar a lavanderia aberta, testemunhar a metade da missa (EVARISTO, 2014, p. 42).
Mulher essa que diante da instabilidade da vida do trabalho e do presente hiper-acelerado, molda-se às
intempéries passadias tão brevemente quanto o ponteiro do relógio que guiava seu dia. Porém, como aponta
Turin, tal experiência temporal traz consigo a impossibilidade mesma de viver o futuro enquanto projeto,
enquanto horizonte de expectativas efetivas. O futuro neoliberal é vislumbrado apenas de forma breve, quase
instantânea. Nele, se apresenta de modo claro, o que na narrativa de Conceição Evaristo, ao falar de Cida,
vemos a partir de metáforas: “Corria contra ela própria, não perdendo e não ganhando nunca” (EVARISTO,
2014, p. 54).
A personagem Cida instiga-nos a pensar o horizonte de expectativa que ela experimenta. Cida possuía
um ritmo de “trabalho, trabalho, trabalho” e quanto aos “Cursos, estudos somente aqueles que
proporcionassem efeitos imediatos”. Interessava mais aprender algo em 6 meses do que levar anos para tal.
Sendo então incapaz de projetar-se no futuro, de formular planos a longo prazo, prendendo-se ao imediato, ao
agora. Além de ser possível vislumbrar o seu espaço de experiência, a partir do modo como ela se relaciona
com o seu passado, pois a personagem ao pensar “Como era mesmo a sua cidade natal? Não sabia bem.
Lembrava-se, entretanto, que as pessoas eram lentas” (EVARISTO, 2014, p. 52-53).
É notável a elaboração de ritmos temporais por Conceição Evaristo com a própria escrita, ao usar a
linguagem para expressar em palavras as sensações evidentes nas experiências temporais da personagem: “Ela
estava andando, parando, andando, parando, parando” ou “Andavam, falavam e viviam de-vagar-zi-nho”. Os
trechos que, no conto servem para mostrar a movimentação urbana da personagem, ou para enfatizar a lentidão
que era vivenciara em sua cidade natal, nos permite entrar em sincronia com as experiências da própria
personagem – quem sabe, não suscitam em nós a necessidade de interrogar nossos tempos também!
O tempo no qual Cida “corria sobre a corda bamba, invisível e opressora” é “uma convenção que fixa
as referências em que se exprime a vivência do ontem, do hoje e do amanhã, sob as condições de entendimento
de permanência e da mudança no cotidiano”. Mesmo sendo tido por Cida, como precioso e necessário, esse
tempo acelerado acaba sendo interpretado também como um tempo medido como negativo, instável, opressor
ou injusto. No conto, Evaristo nos lembra isso ao dizer que a personagem constata a necessidade de sempre
estar em alerta diante da “corda bamba do tempo, varal no qual estava estendida a vida, era frágil, podendo se
romper a qualquer hora” (EVARISTO, 2014, p. 54).
Durante o percurso que fazia, no dia em que parou para interrogar o tempo, à medida que Cida afastava-
se do calçadão e dirigia-se à areia, fazia emergir a descontinuidade temporal, devido a trajetória de estar presa
à sua experiência de constante cooper (corrida) e se permitir naquele dia desacelerar os passos. Essa
dessincronização, em resumo, está alinhada ao significado daquilo que entendemos por heterocronias
(SALOMON, 2018, p.15). Deste modo, compreende-se que a partir desse acontecimento, marco na vida de
Cida, que “A multiplicidade temporal está fundada na própria pluralidade das experiências e de perspectivas
a partir das quais os homens elaboram reflexivamente o tempo”, expondo que o conceito de temporalidade
está atrelado ao sujeito, dado que o tempo é criação humana (SALOMON, 2018, p. 30).
É importante notar que, somente após desacelerar o ritmo temporal em que vivia, Cida viu o mar que
contornava o calçadão de seu cooper matinal. Mesmo caminhando pelo calçadão em frente à praia todas as
manhãs, é perceptível como experimentava essa correria, quando alega sentir o peito e ver que era uma mulher
e não uma máquina programada para correr desenfreada. Durante a leitura do conto, temos a sensação de que
a corrida era uma fuga da rotina anestesiante: “Ela era uma desportista natural. Corria o tempo todo querendo
talvez vazar o minguado tempo do viver”.
As reflexões sobre o tempo surgem a partir da observação que Cida faz do movimento das ondas, onde
questionava como o mar conseguia realizar os mesmos atos, de fazer e desfazer sempre. Insere-se aqui o tempo
da natureza, e o questionamento volta-se a ela, pois assim como o mar, ela também repetia os mesmos atos
durante semanas, meses, anos. Além do que à medida que caminha, vai percebendo que por mais que ela esteja
imersa em uma vida corrida, deixava de perceber-se nesse processo.
É possível vislumbrar os tempos heterogêneos suscitados pelo texto de Evaristo a partir do momento em
que a personagem, ao observar o nadador, sente a curiosidade de saber sobre o tempo dele. Nessa cena, a
personagem, ao indagar “Como uma pessoa em plena terça-feira, às seis e cinquenta e cinco da manhã, podia
estar tão tranquilamente brincando no mar? Deve ser extremamente rico, viver de juros”, logo, surge um desejo
de “saber do tempo dele, barganhar momentos, pedir um tempo emprestado talvez” (EVARISTO, 2014, p.
54). Afinal, por meio do exercício de alteridade, diante da própria descrição de sempre estar habituada a
deparar-se (sem reparar) a várias pessoas caminhando pelas calçadas. O quão diferente não seria alguém
naquele horário estar mergulhando no mar, sem preocupações com o porvir? E “viver de juros”, como é
questionado, seria relacionado a investimentos ou apenas uma parte do nicho metafórico construído a partir
dessa relação com um tempo que cobra as pessoas de formas específicas? Como a protagonista reflete,
Ou o tempo não se media com moeda, ou as horas, os dias, os anos não seriam medidas justas de tempo.
Ela estava com vinte e nove anos. Pouco? Muito? Medir, comparar, aquilatar os anos em relação a que?
Haveria um tempo outro amortecido no coração do tempo? (EVARISTO, 2014, p. 55). E teria o tempo todo
esse poder sobre as pessoas, ou outras variáveis devem ser consideradas? Após o momento de ruptura com
sua rotina, Cida sente a necessidade de retornar a seus antigos hábitos. Ao contrário do habitual, a personagem
retorna à sua casa andando lentamente e durante o trajeto observava a beleza que a rodeava – diante de um
viver sem respiro, desacelerar é positivo. Cida passa a sentir um desejo de “se lançar no mar à procura de algo
que ela não encontrava cá fora”, mas havia lembrado que já era tarde, e que era necessário voltar à rotina.
Finalmente, ao chegar ao seu destino, diz ao colega que a aguardava que aquele dia não iria ao trabalho,
o amigo estranha sua atitude e ela pensa consigo “Tinha comprometido, extrapolado o tempo. O que havia
acontecido? Não, não tinha acontecido nada. Não tinha sido assaltada. Apenas demorara mais, muito mais do
que o costume. Se distraíra, esquecera das horas” (EVARISTO, 2014, p. 55).
A narrativa se encerra com a personagem alegando que daria um tempo a si mesma, mas dizendo tão
baixo que soava como uma prece, como se, mais do que uma decisão a dessincronização era um desejo, uma
promessa.

TEMAS:
• IMEDIATISMO SOCIAL
• A MULHER E O TEMPO
• A URGÊNCIA DE VIVER

A análise social do conto "O cooper de Cida," de Conceição Evaristo, revela a maneira como a autora
aborda a experiência temporal da personagem Cida em um contexto urbano contemporâneo. Embora o conto
não faça referência explícita a características étnico-raciais, ele oferece uma exploração profunda da vivência
temporal de uma mulher, o que tem implicações sociais importantes.
• Pressão Temporal: Cida é apresentada como alguém que vive em constante corrida contra o tempo.
Sua vida é caracterizada por um ritmo acelerado, onde a pressa e a urgência são predominantes. Isso
reflete a pressão temporal e a necessidade de adaptação às demandas da vida urbana contemporânea,
que frequentemente exige velocidade e eficiência.
• Mudança de Ambiente: Cida muda-se de uma cidade interiorana para uma grande cidade, onde o ritmo
urbano é mais acelerado. Essa mudança reflete as transformações sociais e culturais que ocorrem à
medida que as pessoas migram das áreas rurais para os centros urbanos, onde o tempo é percebido de
maneira diferente devido às exigências do estilo de vida urbano.
• Reflexões sobre a Vida: O conto revela como Cida, em um momento de pausa, começa a questionar
sua própria relação com o tempo e a vida. Ela passa a notar a diferença entre sua própria pressa e o
ritmo mais lento das pessoas ao seu redor. Isso sugere a importância de uma reflexão pessoal sobre a
qualidade da vida em uma sociedade marcada pelo culto à pressa.
• Heterocronias: O conto explora o conceito de heterocronias, que se refere à coexistência de diferentes
tempos e ritmos na sociedade. Cida percebe que o tempo não é uniforme para todos e que as pessoas
vivenciam tempos diferentes com base em suas circunstâncias e perspectivas. Isso destaca a
complexidade da experiência temporal em uma sociedade diversa.
• Natureza e Tempo: A observação do mar e de seu constante movimento leva Cida a questionar a
natureza do tempo. Ela se depara com a ideia de que o tempo pode ser percebido de maneira mais
fluida e natural, em contraste com a urgência imposta pela vida urbana. Isso enfatiza a importância de
reconectar-se com a natureza e questionar as convenções temporais da sociedade.
• Futuro e Projeto de Vida: O conto também aborda a incapacidade de Cida de projetar-se no futuro e
formular planos a longo prazo. Sua vida é caracterizada por uma ênfase no presente imediato, o que
pode ser interpretado como uma consequência da pressão temporal e da instabilidade do mundo do
trabalho contemporâneo.

Em resumo, "O cooper de Cida" de Conceição Evaristo oferece uma análise social perspicaz da
experiência temporal de uma mulher em uma sociedade urbana contemporânea. Ele destaca como o tempo é
percebido de maneira diferente por indivíduos e como a pressão temporal, a migração para centros urbanos e
a busca por eficiência afetam nossa relação com o tempo e a qualidade de vida. Essa análise social oferece
insights sobre as complexidades da experiência humana em um mundo cada vez mais marcado pela aceleração
e pela pressão temporal.

O conto "O cooper de Cida" de Conceição Evaristo aborda de maneira notável as relações entre a mulher,
o tempo, o imediatismo social e a urgência de viver. Aqui está a relação entre esses elementos:
• A Mulher e o Tempo: Cida, a protagonista do conto, é uma mulher que representa uma abordagem
específica à relação entre a mulher e o tempo. Ela é retratada como alguém que vive em constante
pressa, buscando eficiência imediata e imersa na correria da vida urbana. Essa caracterização é
emblemática da maneira como muitas mulheres enfrentam a pressão temporal na sociedade
contemporânea, em que frequentemente são sobrecarregadas com múltiplas responsabilidades e
expectativas. Cida não tem tempo para contemplar e apreciar o presente; ela está sempre focada no
imediatismo de suas atividades.
• A Urgência de Viver: O conto aborda a urgência de viver, mas de uma perspectiva crítica. Cida vive
em um estado de urgência constante, mas essa urgência é mais uma imposição social do que uma
escolha pessoal. Ela corre contra o tempo em sua rotina diária, sempre com pressa para cumprir prazos,
chegar a compromissos e atender às demandas da vida na cidade. No entanto, ao observar o mar e as
pessoas desfrutando do momento presente, Cida começa a questionar essa urgência. Ela passa a refletir
sobre a qualidade de sua vida, percebendo que a urgência constante a impede de viver plenamente e
desfrutar das coisas simples da vida.
• Imediatismo Social: O imediatismo social está presente em toda a narrativa, representado pela pressão
para realizar ações de forma rápida e eficaz. Cida está imersa nessa dinâmica, vivendo uma vida na
qual o tempo é percebido como um recurso escasso e precioso. Ela busca resultados imediatos em seu
trabalho, estudos e relacionamentos, refletindo uma mentalidade imediatista típica da sociedade
contemporânea. No entanto, o conto questiona essa mentalidade ao sugerir que o imediatismo social
pode impedir as pessoas de viver plenamente e apreciar a riqueza da experiência humana.

Em suma, "O cooper de Cida" estabelece uma conexão intrincada entre a mulher, o tempo, o imediatismo
social e a urgência de viver. Ele explora como a pressão temporal afeta a vida das mulheres, levando à
necessidade de constantemente correr contra o relógio e como, por vezes, essa urgência pode impedir uma
apreciação mais profunda do presente e a reflexão sobre o significado da vida. O conto destaca as
complexidades da experiência feminina em uma sociedade que muitas vezes prioriza o imediatismo e a
eficiência em detrimento da conexão com o tempo e o próprio eu.

09- ZAÍTA ESQUECEU DE GUARDAR OS BRINQUEDOS

O conto “Zaíta esqueceu de guardar seus brinquedos” inicia narrando a história de duas meninas gêmeas:
Naíta e Zaíta, que moravam na favela e constantemente sua mãe as ameaçava com raiva, quando as meninas
esqueciam de guardar seus brinquedos. A mãe de Zaíta estava cansada, trabalhava de doméstica, tinha trinta e
quatro anos e quatro filhos. Os mais velhos já estavam homens. O primeiro estava no Exército. Queria seguir
carreira. O segundo também, mas infelizmente estava no tráfico de drogas. O conto é importante para mostrar
como as crianças negras estão vulneráveis à violência, porque são inseridas dentro da favela, onde não há espaço
de uma vida tranquila para elas.
A mãe de Zaíta estava cansada. Tinha trinta e quatro anos e quatro filhos. Os mais velhos já estavam homens. O
primeiro estava no Exército. Queria seguir carreira. O segundo também. As meninas vieram muito tempo depois, quando
Benícia pensava que nem engravidaria mais. Entretanto, lá estavam as duas. Gêmeas. Eram iguais, iguaizinhas. A
diferença estava na maneira de falar. Zaíta falava baixo e lento. Naíta, alto e rápido. Zaíta tinha nos modos um quê de
doçura, de mistérios e de sofrimento.(EVARISTO, 2016, p.45)
Percebemos que, em meio ao convívio e a realidade, os irmãos de Zaíta, buscam destinos diferentes: um
procura melhora de vida no exército com dignidade, enquanto o outro busca uma vida no crime. A miséria cria
vulnerabilidade nos jovens negros, existindo em seus lares falta de saneamento básico, água potável, ou seja,
condições mínimas para a sobrevivência. Suas casas são construções precárias com riscos de enchentes e incêndios;
os bairros onde moram não têm transporte, sofrem preconceito por conta da discriminação racial. Enfim, os jovens
negros estão mais expostos a vulnerabilidades. Diante disso, as crianças acabam se tornando vulneráveis -um grupo
social, tornando seu modo de vida como “favelados”, sem direito a infância, a saúde, a educação, tornando, assim,
frágeis, a mãe precisa trabalhar o dia todo, deixando assim as crianças mais vulneráveis a violência.
Zaíta sai em busca de sua figurinha-flor que exala um lindo perfume, procura sua irmã Naíta, andando pelos
barracos vizinhos e se distancia de sua casa e não se preocupa se sua mãe vai brigar ou bater, por causa dos
brinquedos jogados no chão da casa, o seu maior desejo é encontrar sua figurinha. Infelizmente, em meio ao tiroteio
entre policiais e bandidos liderados pelo seu irmão, Zaíta é baleada e morre, sendo encontrada pela sua irmã Naíta
que pela sua inocência e medo diz: “Zaita, você esqueceu de guardar os brinquedos!". Entretanto, o conto mostra
essas crianças dentro de uma cena de desigualdade social, que impedem de viverem uma infância tranquila. As
gêmeas não percebem isso; mas não perceber, não quer dizer que isso não exista. Então, a realidade dura e genocida
se apresenta para elas, impedindo que a infância dessas crianças periféricas seja a mesma de outras crianças.
O título do conto nos faz pensar na inocência impossível de ser vivida em lares como os de Zaíta: ela não
morreu porque esqueceu de pegar os brinquedos; ela morre porque os lugares onde essas crianças vivem
são espaços de morte iminente e prematura. Darcy Ribeiro fala, no seu livro O povo brasileiro, que o Brasil
é uma máquina de moer gente. Podemos pensar nessa reflexão e associá-la, sobretudo, às periferias
brasileiras. Esses espaços onde a cidadania não chega vive uma outra experiência de Brasil.
A violência nas grandes cidades, principalmente nas favelas, traz um grande efeito NEGATIVO.
O conto reflete a realidade dos moradores e das crianças na favela que vivem na violência e insegurança,
trabalham muito e ganham pouco, retratando histórias de pessoas negras, pobres e sem oportunidade de uma vida
melhor. Dentro do conto, percebemos a mãe de Zaíta desesperada; pois, indo ao supermercado, gasta metade de
seu salário e não consegue comprar tudo, mostrando assim a desigualdade social. Podemos perceber que, na favela,
as pessoas negras têm que conviver com a violência, bala perdida, como a menina Zaíta, que teve sua vida e seus
sonhos perdidos em meio a violência, trazendo em si o mesmo destino que sua boneca teve. Evaristo descreve
muito bem o momento:
Zaíta seguia distraída em sua preocupação. Mais um tiroteio começava. Uma criança, antes de fechar
violentamente a janela, fez um sinal para que ela entrasse rápido em um barraco qualquer. Um dos contendores, ao notar
a presença da menina, imitou o gesto feito pelo garoto, para que Zaíta procurasse abrigo. Ela procurava, entretanto,
somente a sua figurinha-flor... Em meio ao tiroteio a menina ia. Balas, balas e balas desabrochavam como flores
malditas, ervas daninhas suspensas no ar. Algumas fizeram círculos no corpo da menina. Daí um minuto tudo acabou.
Homens armados sumiram pelos becos silenciosos, cegos e mudos. Cinco ou seis corpos, como o de Zaíta, no chão.
(EVARISTO,2016, p.48).
Percebe-se que a infância dessas crianças é baseada na sobrevivência, pois o ambiente em que se encontra
impede o direito de brincar ou de sonhar. Nota-se a inocência da criança no tiroteio e a crueldade do homem armado
e como Evaristo, sem perder a poesia poética, utiliza palavras para enfatizar a perda dessa infância e da vida,
mostrando a dor, o desespero, à frieza do traficante, e a vida que esses moradores da favela sofrem, com a
desigualdade social e a violência, que se tornou algo cotidiano dos moradores.
A maioria das crianças que moram na favela vão passar por dificuldades, onde terão suas vivências, suas
carências baseadas em seu meio social, vivem entre as balas da polícia e dos bandidos que entre eles proliferam. É
nesta sociedade injusta que crianças pobres e negras são criadas.

TEMAS:
• PRECONCEITO RACIAL
• MISÉRIA
• SEGREGAÇÃO E DESIGUALDADE
• VIOLÊNCIA POLICIAL
• TRÁFICO DE DROGAS
• INFÂNCIA
• SANEAMENTO BÁSICO
• TRÁFICO
• VIOLÊNCIA NAS FAVELAS E BALAS PERDIDAS

A análise social do conto "Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos" do livro "Olhos d'água" de
Conceição Evaristo revela uma representação vívida da realidade das crianças negras que vivem nas favelas e
enfrentam inúmeras adversidades sociais. Este conto ilustra a vulnerabilidade dessas crianças devido à sua
inserção em um ambiente marcado pela pobreza, violência e falta de oportunidades.
• Condições precárias: A descrição das condições de vida das personagens, em que a mãe trabalha
exaustivamente e mal consegue suprir as necessidades básicas, como alimentação e moradia, reflete a
realidade de muitas famílias de baixa renda. A falta de saneamento básico e a precariedade das
habitações contribuem para a vulnerabilidade dessas crianças.
• Escolhas dos irmãos mais velhos: O contraste entre o irmão mais velho que opta pelo Exército e o
outro envolvido no tráfico de drogas destaca as limitadas opções disponíveis para os jovens negros em
áreas de baixa renda. Essas escolhas são influenciadas por fatores socioeconômicos e evidenciam a
complexidade das trajetórias de vida desses jovens.
• Violência cotidiana: O conto ilustra vividamente a violência cotidiana que permeia a vida nas favelas,
com tiroteios frequentes e a presença de traficantes armados. A morte prematura de Zaíta, atingida por
uma bala perdida, demonstra como essas crianças estão sujeitas a riscos constantes que ameaçam suas
vidas e sua infância.
• Inocência perdida: A frase "Zaita, você esqueceu de guardar os brinquedos!" dita por Naíta após a
morte de sua irmã simboliza a perda da infância em meio a um ambiente tão hostil. As crianças são
forçadas a lidar com realidades cruéis desde cedo, o que rouba sua inocência e as impede de desfrutar
de uma infância típica.
• Desigualdade social: A história reflete a desigualdade social que persiste no Brasil, onde as pessoas
negras, especialmente aquelas que vivem em favelas, enfrentam barreiras significativas para acessar
educação, saúde e oportunidades econômicas. A falta de infraestrutura, discriminação racial e a
violência estrutural tornam a vida dessas crianças ainda mais difícil.

Conceição Evaristo usa a narrativa para lançar luz sobre a dura realidade que muitas crianças negras
enfrentam nas favelas brasileiras. O conto é um chamado à reflexão sobre a necessidade de abordar as questões
de desigualdade e violência estrutural que afetam a vida dessas crianças, além de destacar a importância de
criar oportunidades para uma infância mais segura e digna, independentemente de sua origem social ou racial.
O conto "Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos" de Conceição Evaristo está intrinsecamente
relacionado a várias das palavras e conceitos mencionados:
• Preconceito Racial: O conto explora o preconceito racial, já que as personagens são negras e vivem
em uma favela, onde enfrentam estigmatização e discriminação devido à sua cor de pele. O preconceito
racial é uma barreira que afeta suas oportunidades e qualidade de vida.
• Miséria: A miséria é um elemento central no conto, pois a mãe das gêmeas, Zaíta e Naíta, enfrenta
dificuldades para sustentar a família com seu trabalho de doméstica. A falta de recursos e a luta
constante pela sobrevivência são temas recorrentes.
• Segregação e Desigualdade: O conto destaca a segregação social e a desigualdade econômica que
afetam as crianças que vivem na favela. Elas estão separadas de uma vida mais próspera e enfrentam
barreiras sociais devido à sua origem.
• Violência Policial: A narrativa menciona tiroteios na favela, ilustrando a violência policial que
frequentemente ocorre nesses bairros de baixa renda. As crianças são expostas a essa violência, que as
coloca em risco constante.
• Tráfico de Drogas: O conto menciona que um dos irmãos das gêmeas está envolvido no tráfico de
drogas, mostrando como essa realidade é comum em comunidades de baixa renda. O tráfico é uma
alternativa que muitos jovens veem como uma saída, devido à falta de oportunidades.
• Infância: O conto destaca como a infância das gêmeas é afetada pela pobreza, violência e falta de
oportunidades. Elas não têm a chance de desfrutar de uma infância normal devido às circunstâncias
adversas em que vivem.
• Saneamento Básico: Embora não seja um tema central do conto, a descrição das condições de vida nas
favelas sugere a falta de saneamento básico, o que contribui para a miséria e a vulnerabilidade das
pessoas que lá residem.
• Tráfico: Além de mencionar o irmão envolvido no tráfico de drogas, o conto também faz referência à
presença de traficantes armados nas proximidades, o que adiciona uma camada de tensão e perigo ao
cenário.
• Violência nas Favelas e Balas Perdidas: A violência nas favelas, incluindo tiroteios e a morte de Zaíta
por uma bala perdida, é um elemento central da narrativa. Isso destaca como as crianças que vivem
nessas comunidades estão constantemente expostas a riscos e à violência que pode interromper
brutalmente suas vidas.

No geral, o conto de Conceição Evaristo utiliza esses temas e conceitos para ilustrar a difícil realidade
das crianças negras que crescem em favelas, enfatizando as questões de preconceito racial, miséria,
segregação, violência e a perda da infância devido às circunstâncias adversas em que vivem.

10- DI LIXÃO

“DI LIXÃO”: SEU LAR É A RUA

A questão da vulnerabilidade social é o tema central no conto “Di Lixão”. O conto relata a trajetória de
vida de um menino de rua durante um curto período de tempo, não especificado no conto. Há um narrador
onisciente em terceira pessoa que busca transmitir os pensamentos da personagem, levando o leitor a conhecer
a sua história por meio das suas memórias. Di Lixão divide um espaço na rua com um outro menino de rua,
chamado no conto de “companheiro de quarto-marquise” (p. 77), mas os dois não cultivam uma relação de
amizade. Em uma madrugada, Di Lixão acorda com dores na boca, com o rosto inchado devido ao que
provavelmente seja um tumor na gengiva. “O dente latejou espalhando a dor por todo o céu da boca”
(EVARISTO, 2015, p. 77). Aqui se verifica a dor, a doença e a solidão. Enfim, o sofrimento marcado pelas
desigualdades sociais, pois a personagem começa a refletir sobre a vida, sobre o relacionamento com a mãe...
“Ele era uma dor só. As dores haviam se encontrado. Doía o dente. Doíam as partes de baixo. Doía o ódio
(2015, p. 78). Di Lixão e o companheiro vivem na rua. Assim como eles, uma parcela significativa da
população brasileira não tem acesso à moradia e nem a tratamento de saúde. Essas desigualdades estão
diretamente relacionadas às questões socioeconômicas, étnicas e de gênero.
Enquanto sofre com as dores, Di Lixão relembra da mãe e se encolhe em posição fetal. Pela primeira
vez depois de tudo, se lembrou da mãe. Ainda bem que aquela puta tinha morrido! Ele sabia quem havia
matado a mulher. Tinha visto tudo direitinho. Na polícia negou que tivesse por perto, que suspeitasse de
alguém. Depois de três ou quatro idas à delegacia, os policiais acabaram por deixá-lo em paz. Ele sabia quem.
Pouco importava. Que deixassem o homem solto. Não gostava mesmo da mãe. Nenhuma falta ela fazia
(EVARISTO, 2015, p.78).
Observa-se que há um relacionamento conturbado com a mãe, pois ele lembra dos conflitos familiares
em decorrência da situação financeira, uma vez que a mãe se prostitui. Fica evidente o ressentimento do
menino pela profissão da mãe. A mãe por sua vez, apesar de em determinados momentos mostrar descaso com
o filho e também não saber informações sobre a paternidade de Di Lixão, tenta fazer “papel de mãe” ao
incentivar o filho a mudar de vida, sugerindo inclusive que ele mudasse de vida, como relembrado por Di
Lixão no conto “Não aguentava a falação dela: “[...] Di, eu nasci aqui, você nasceu aqui, mas dá um jeito de
mudar o seu caminho!” (EVARISTO, 2015, p.78). A relação assim é paradoxal, pois a mãe tentou, de sua
maneira, cuidar de Di Lixão, apesar de ele não perceber. Com a morte da mãe, o menino se vê sozinho e sem
casa. “Lá fora, o outro mundo também era uma zona” (EVARISTO, 2015, p. 78). Em sua agonia, devido às
complicações da infecção na gengiva e com a violência física (o companheiro havia dado um pontapé nas
partes baixas), ao sentir vontade de mijar, lembra que a mãe [...] lhe batia sempre por isso. Um dia, ela, numa
crise de raiva, ao ver o menino todo ensopado de mijo, puxou a bimbinha dele até quase arrebentar. E dizia
para ele aos berros que aquilo era para mijar, para mijar, mijar, mijar. (2015, p. 79). É nas lembranças com a
mãe que o protagonista agoniza e tem a certeza de um desfecho trágico: Apalpou, meio sem jeito e
envergonhado, as partes doídas. O dente latejou fundo no profundo da boca. Dor de dente matava? Não sabia.
Sabia, porém, que ia morrer, Mas isto também, como a morte da mãe, pouca importância tinha. Onde estava
o desgraçado do outro? Só não queria morrer sozinho. A violência física e psicológica se faz presente na curta
vida da personagem, que é um tema recorrente na narrativa de Conceição Evaristo. A violência física vem do
companheiro de quarto-marquise, quando Di Lixão cuspiu no rosto do menino. “Di Lixão acompanhou o gesto
raivoso do menino, levantando também. Numa fração de segundo recebeu um pontapé nas suas partes baixas”
(EVARISTO, 2015, p. 77).
A violência física também é relatada pela personagem ao se referir ao assassinato da mãe e também pelo
fato dela bater no menino em suas crises de raiva. A violência psicológica é decorrente das ameaças da mãe
pela sua incontinência urinária quando era pequeno e urinava nas calças e na sua iniciação sexual onde após
o ato o menino urinou-se todo. Estava agora agonizando e com vontade de mijar e lembrou-se das ameaças da
mãe. “Queria levantar e não podia. Ia soltar nas calças. Não podia fazer. A mãe, aquela puta, era bem capaz
de viver de novo e vir castigá-lo” (EVARISTO, 2012, p. 79).
Di Lixão também faz menção à preocupação da mãe para que ele tenha um futuro melhor. Apesar de
não demonstrar fortemente afeições maternais, ela o aconselha a estudar para ter uma vida diferente da dela.
“Di, vai para escola!” (EVARISTO, 2015, p. 78). Para ele, no entanto, estudar pouco adiantava, o que mostra
a falta de perspectivas de muitos meninos de rua, em situação como a da personagem. Para Mendes e Corrêa
(2020), as crianças em situação de vulnerabilidade social buscam encontrar nas ruas o desejo por liberdade,
autonomia e aventura, sem refletir as consequências e riscos destas escolhas. Como resultado, as crianças de
rua crescem sem a devida proteção e sem acesso à educação. Di Lixão vive na rua e não é possível delimitar
o tempo em que o menino se viu só e sem teto. Os espaços escolhidos pela autora para narrar a curta existência
da personagem são sugestivos e propositais. São favelas, morros, barracos, zonas de prostituição e as ruas que
são como lares para crianças. São os lugares destinados aos indivíduos marginalizados. A rua é o lugar que Di
Lixão elegeu para ser seu lar. A condição de órfão dá a liberdade que ele deseja, visto que a mãe em seu instinto
maternal desejava para o filho um futuro melhor que o dela que sempre viveu na pobreza, sem condições de
um trabalho digno e de uma casa para morar com o filho. O fato de ele ficar sem nenhum parentesco familiar
demonstra a condição da prostituição, onde muitas vezes a mãe não faz ideia de quem seja o pai de seus filhos.
Quanto ao pai não há menção no conto, ele é desconhecido para mãe e para o garoto. Essa problemática
é presente no conto e na vida real, já que, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), em 2019, 6,15% das crianças não tiveram o campo do nome do pai preenchido no seu registro,
totalizando nesse ano mais de 5,5 milhões de adultos sem reconhecimento paterno. Além disso, 12 milhões de
lares são mantidos apenas pelas mães e destas mais de 57% encontram-se abaixo da linha da pobreza (IBGE,
2019).
A maturidade precoce obriga Di Lixão a aprender viver sozinho nas ruas, enfrentado a violência e a
criminalidade. Em sua condição de abandono, sem receber ajuda de ninguém o menino adoece e morre sem
assistência médica. Agonizando no final da sua curta existência, seus últimos pensamentos são para a mãe e,
encolhido em posição fetal, tem uma morte marcada pela falta de empatia das pessoas que passam por ele.
Morreu sozinho, doente, com fome e com frio.

TEMAS

O conto "Di Lixão" de Conceição Evaristo é uma obra poderosa que aborda diversas questões sociais e
filosóficas profundas. Ele nos leva a refletir sobre a vulnerabilidade social, a violência, a solidão e a falta de
perspectivas enfrentadas por muitas pessoas, especialmente as crianças de rua. Vamos analisar esses temas em
mais detalhes:
• Vulnerabilidade Social: A história de Di Lixão representa uma parcela significativa da população
brasileira que vive à margem da sociedade. Di é um menino de rua, sem acesso a moradia, cuidados
de saúde ou educação. Sua trajetória de vida reflete as desigualdades sociais do Brasil, onde muitas
pessoas enfrentam condições precárias e falta de oportunidades.
• Violência: A narrativa de Di Lixão é permeada pela violência, tanto física quanto psicológica. Ele sofre
com a violência de seu companheiro de rua e lembra da violência que sofreu nas mãos de sua mãe. A
sociedade violenta na qual ele vive é um reflexo das condições adversas em que muitas pessoas
vulneráveis estão inseridas.
• Família e Relações Interpessoais: O relacionamento conturbado de Di Lixão com sua mãe é um ponto
importante no conto. A mãe, apesar de suas falhas, tentou incentivá-lo a ter uma vida melhor, mas as
circunstâncias tornaram isso difícil. A falta de uma figura paterna também é destacada, mostrando a
complexidade das dinâmicas familiares em contextos de vulnerabilidade social.
• Solidão e Isolamento: Di Lixão vive uma vida de extrema solidão. Ele está sozinho na rua e, mesmo
quando doente, não encontra empatia ou assistência de outras pessoas. A solidão é uma característica
comum para muitos que vivem em situações de rua, e o conto destaca o impacto psicológico dessa
solidão.
• Morte e Falta de Empatia: A morte de Di Lixão é marcada pela falta de empatia das pessoas que o
cercam. Ele morre sozinho, doente, com fome e com frio, revelando a indiferença da sociedade em
relação às pessoas em situação de rua. Essa cena final serve como um lembrete doloroso das falhas do
sistema social em proporcionar cuidados adequados e apoio às pessoas mais vulneráveis.
• Desigualdades Sociais e Econômicas: O conto também aborda as desigualdades sociais e econômicas,
mostrando como as condições de vida precárias de Di Lixão são resultado direto de fatores
socioeconômicos, étnicos e de gênero. A falta de acesso à moradia, saúde e educação é uma
consequência das disparidades na sociedade brasileira.
• Maturidade Precoce: Di Lixão é forçado a amadurecer rapidamente devido às circunstâncias adversas.
Ele precisa aprender a sobreviver nas ruas, o que o expõe a situações de violência e criminalidade. Sua
história ressalta como as crianças em situações de vulnerabilidade social são forçadas a crescer antes
do tempo, privadas de sua infância e de oportunidades de desenvolvimento saudável.
Em resumo, "Di Lixão" é um conto que expõe as duras realidades da vida nas ruas do Brasil, destacando
as questões sociais, familiares e emocionais que cercam as pessoas em situação de vulnerabilidade. Conceição
Evaristo utiliza essa história para nos fazer refletir sobre a necessidade de enfrentar as desigualdades e a falta
de apoio social para garantir um futuro mais digno para as crianças que, como Di Lixão, vivem nas margens
da sociedade. O conto "Di Lixão" de Conceição Evaristo está profundamente relacionado a vários desses
temas:
• Abandono de Menor: O conto aborda diretamente o abandono de menor, pois Di Lixão é uma criança
que vive nas ruas sem supervisão ou cuidados de um adulto responsável. Ele é deixado à própria sorte,
o que o expõe a inúmeras ameaças e perigos, incluindo a violência e a falta de acesso a necessidades
básicas.
• Medo de Relacionamentos: Di Lixão experimenta relacionamentos conturbados e, muitas vezes,
violentos, tanto com seu companheiro de rua quanto com sua mãe. Essas experiências tumultuadas
podem alimentar seu medo de relacionamentos e confiança, tornando-o ainda mais vulnerável.
• "Mãe Solteira" (Mãe Sólo): A figura da mãe de Di Lixão, embora presente em sua vida, é uma "mãe
sólo", uma mãe solteira que luta para cuidar do filho em condições difíceis. Ela é forçada a se prostituir
e, apesar de suas falhas, tenta incentivá-lo a ter um futuro melhor. A história de Di Lixão destaca os
desafios enfrentados por mães solteiras em contextos de vulnerabilidade social.
• Apagamento Social: A narrativa de Di Lixão evidencia o apagamento social sofrido pelas pessoas em
situação de rua. Di é uma criança invisível para grande parte da sociedade, negligenciada e ignorada
por muitos que passam por ele. Esse apagamento social é uma dura realidade enfrentada por pessoas
em situação de rua em muitas partes do mundo.
• Saneamento e Saúde Pública: A falta de saneamento e acesso à saúde pública são temas importantes
no conto. Di Lixão sofre de uma infecção O dente latejou espalhando a dor por todo o céu da boca.
Passou lentamente a língua no canto da gengiva. Sentiu que a bola de pus estava inteira. O que o leva
a agonizar de dor. No entanto, ele não tem acesso a cuidados médicos adequados. Isso destaca a
negligência do sistema de saúde pública e as condições insalubres em que muitas pessoas em situação
de rua vivem.

Em suma, o conto "Di Lixão" tece uma narrativa poderosa que aborda temas complexos e
interconectados, incluindo o abandono de menor, a solidão, o relacionamento com uma mãe solteira, o
apagamento social, a falta de saneamento e saúde pública. Através da história de Di Lixão, a autora nos
convida a refletir sobre as deficiências do sistema social e a necessidade de buscar soluções para criar um
ambiente mais seguro e digno para as crianças e famílias em situações de vulnerabilidade.

ANOTAÇÕES
11- LUMBIÁ

“LUMBIÁ”: O DEUS-MENINO
Neste conto, pode-se afirmar que o tema central é o trabalho infantil. Dentro dessa perspectiva, a
personagem principal que tem o mesmo nome do título do conto, traz na sua trajetória de vida uma denúncia
sobre a pobreza e a infância perdida, assim como sua irmã e um amigo, como o qual percorre as ruas da cidade
vendendo amendoim e chicletes. A narrativa se passa no centro da cidade na véspera do Natal, com as
lembranças de Lumbiá do seu trabalho como vendedor de doces, para ajudar a mãe no sustento da família. O
pai, como no conto “Di Lixão”, não se faz presente.
Lumbiá trocou rapidamente a lata de amendoim pela caixa de chicletes com a irmã Beba. Fazia um bom
tempo que estava andando pra lá e pra cá, e não havia conseguido vender nada. Quem sabe teria mais sorte se
oferecesse chicletes? E se não desse certo também, procuraria o colega Gunga. Juntos poderia vender flores
(EVARISTO, 2015, p. 81).
No início do conto, percebe-se que as todas as crianças da narrativa estão na rua para vender
mercadorias. Também não se pode identificar a idade delas. A personagem Lumbiá demonstra conhecimentos
de estratégias de vendas e cálculos e, com o amigo Gunga, também vendia flores. “Lumbiá gostava da florida
mercadoria em seus braços. Tinha um estilo próprio de vender” (EVARISTO, 2015, p. 81). A personagem de
Lumbiá tem preferência pela venda de flores. Ao observar os casais, escolhia os momentos oportunos para
abordá-los e obter lucro nas vendas. O momento propício para empurrar o produto era quando o casal partia
para o beijo na boca. Ele assistia as bocas descolarem para oferecer a flor. Às vezes o casal se desgarrava, mas
na mesma hora, sem respirar, o par se fundia de novo. Lumbiá ficava por perto olhando de soslaio para a
mulher. E, quando notava que ela estava toda mole e o homem derretido, o menino se punha quase entre os
dois, com a flor em riste, impondo a mercadoria (EVARISTO, 2015, p. 81-82).
Lumbiá utilizava-se de estratégias e artifícios para vender suas mercadorias e ganhar alguns trocados
por esperteza ou por malícia. Lumbiá tinha outros truques. Sabia chorar, quando queria. Escolhia uma mesa
qualquer, sentava, abaixava a cabeça e se banhava em lágrimas. Sempre começava chorando por safadeza,
mas em meio às lágrimas ensaiadas, o choro real, profundo, magoado se confundia. Nas histórias, que
inventava nos momentos de choro para comover as pessoas, tinha sempre uma dissimulada verdade. Um dado
real da vida dele ou do amigo Gunga se confundia com a invenção do menino (EVARISTO, p. 83, 2015).
A narrativa ficcional de Conceição Evaristo coloca em evidência personagens vítimas de preconceito,
principalmente negros, pobres e marginalizados. Quanto à cor da personagem, fica-se sabendo que é preta
quando o narrador descreve a fascinação de Lumbiá pela única coisa que ele gostava no Natal: [...] o presépio
com a imagem de Deus-menino. Todos os anos, desde pequeno, em suas andanças pela cidade com a mãe e
mais tarde sozinho, buscava de loja em loja, de igreja em igreja, a cena natalina. Gostava da família, da pobreza
de todos, parecia a sua. Da imagem-mulher que era a mãe, da imagem-homem que era o pai. A casinha simples
e a caminha de palha do Deus-menino, pobre, só faltava ser negro como ele. Lumbiá ficava extasiado olhando
o presépio, buscando e encontrando o Deus- menino (EVARISTO, 2015, p. 83-84, grifos nosso).
No conto verifica-se a desigualdade social, principalmente no contraste da pobreza com a riqueza
das lojas no período de festas natalinas, muito presente na sociedade brasileira: Lumbiá, atento, ouvia
todos os comentários e aguardava a oportunidade de visitar a Belém instalada no interior da loja Casarão
Iluminado. Havia, entretanto, um problema. Estava proibida a entrada de crianças sozinhas e para ele era quase
impossível esperar pelo dia em que a mãe pudesse levá-lo, acompanhá-lo até lá. (EVARISTO, 2015, p. 84).
O menino aguardava com ansiedade o momento de entrar na loja para conhecer e admirar o presépio.
Porém, não poderia entrar sem a companhia de um adulto. As crianças fizeram algumas tentativas frustradas.
“Tinha feito várias tentativas de entrar no Casarão, o vigilante vinha e o enxotava” (EVARISTO, p. 85, 2015).
Lumbiá não desiste, busca uma oportunidade de poder ver o presépio. O conto se passa na véspera do natal e
o menino está à espera desde de cedo na esperança de poder ver seu objeto de adoração. A narrativa reforça o
distanciamento social ao descrever a trajetória do menino, do momento em que sai do subúrbio para o centro
da cidade. Passa o dia na rua, provavelmente sem poder se alimentar direito.
Com flores nas mãos para dar ao Menino Jesus e ao Rei Mago Baltazar, negro, que se parecia com o tio
de Lumbiá, a personagem fica à espreita esperando surgir uma oportunidade para conseguir entrar na loja. A
narrativa também reforça que o menino também estava doente. “Fazia frio, muito frio, era um dia chuvoso.
Tinha a roupa colada sobre o frágil corpo a tremer de febre” (EVARISTO, 2015, p. 85). O menino passa o dia
na rua vendendo suas mercadorias, a fome e o frio não são empecilhos para o esperto Lumbiá.
Assim, quando por um breve momento não havia vigilância nenhuma na porta, Lumbiá entrou
apressado. Na manjedoura, o menino estava a sua espera de braços abertos, nu e com frio, como ele. Para
Lumbiá, o Deus-menino precisa ser libertado. “Erê queria sair dali” (EVARISTO, 2015, p. 85). Tomando a
imagem da criança em seus braços, chora e ri de felicidade, finalmente o Deus-menino era seu. Saiu da loja
levando a imagem, mas não teve oportunidade de aproveitar do seu triunfo, o segurança tentou agarrar Lumbiá
que assustado foi para a rua, sendo atropelado por um carro.
Lumbiá acaba morto de forma violenta nas ruas onde trabalhava. Em 2019 o IBGE demonstrou que cerca de
1,8 milhão de crianças encontravam-se em situação de trabalho infantil, totalizando 4,6% da população dessa faixa
etária. Destes, 21,3% eram crianças entre 5 e 13 anos de idade e 706 mil indivíduos entre 5 e 17 anos de idade
estão em trabalhos perigosos, como operação de máquinas, trabalho em pedreiras, construção civil, seleção e coleta
de lixo e comércio ambulante. Entre as crianças e adolescentes em trabalho infantil, 66,1% eram pretos ou pardos
(IBGE, 2019).
A morte de Lumbiá é o desfecho trágico para ilustrar diversos fatores que culminaram na infância
interrompida da criança. Além da temática da exploração do trabalho infantil em primeiro plano, ainda se percebe
a violência social e familiar, a desigualdade econômica e social. Percebe-se também a falta da mãe, que não está
presente no momento trágico da morte do menino Lumbiá, evidenciando as condições precárias em que vivem as
crianças pobres e negras da periferia obrigadas a deixar a escola para trabalhar nas ruas.

TEMAS:
• TRABALHO INFANTIL
• POBREZA
• INFÂNCIA
• DESIGUALDADE
• RELIGIOSIDADE
• REPRESENTATIVIDADE

O conto "Lumbiá" de Conceição Evaristo é uma poderosa narrativa que aborda de maneira profunda e
impactante a questão do trabalho infantil, bem como várias questões sociais e filosóficas subjacentes. Vamos
analisar esses aspectos em detalhes: O conto coloca em destaque a realidade do trabalho infantil, representada
pelo protagonista Lumbiá, sua irmã Beba e o amigo Gunga. Essas crianças são forçadas a vender mercadorias
nas ruas, em vez de estarem na escola ou aproveitando a infância.
A narrativa revela as estratégias que as crianças usam para sobreviver nas duras condições econômicas
em que vivem. Elas demonstram habilidades de vendas, táticas para atrair compradores e até mesmo a
capacidade de usar emoções, como o choro, para alcançar seus objetivos.
• Pobreza e Desigualdade:
• O conto destaca a pobreza que assola a vida de Lumbiá e de outros personagens. A diferença entre as
lojas luxuosas no centro da cidade e a vida precária das crianças é marcante. Isso demonstra a
desigualdade social presente na sociedade brasileira.
• A narrativa também retrata a falta de acesso das crianças à cultura e ao lazer. Lumbiá anseia por ver o
presépio de Natal em uma loja, mas sua situação o impede de fazer isso sem a presença de um adulto.
Isso simboliza a negação do direito das crianças à alegria e à celebração durante a época natalina.
• Violência e Vulnerabilidade:
A morte trágica de Lumbiá é um ponto culminante da narrativa, destacando a vulnerabilidade das
crianças que trabalham nas ruas. A falta de proteção e cuidados adequados torna-as suscetíveis a
perigos. A ausência de uma figura paterna e o trabalho incessante de sua mãe são indícios da
instabilidade familiar e do ambiente hostil em que essas crianças vivem.
• Questões Raciais:
O conto menciona que Lumbiá é negro, o que adiciona uma camada adicional de complexidade ao seu
relacionamento com a sociedade. O fato de que ele gostaria que o Deus-menino também fosse negro
ressalta a importância da representação e da identificação na formação da autoestima de crianças
negras.
• Crítica Social e Filosofia: O conto de Conceição Evaristo serve como um instrumento de crítica social,
apontando para problemas como o trabalho infantil, a desigualdade econômica, a falta de
oportunidades educacionais e as questões raciais. Ele destaca como a sociedade negligencia e explora
as crianças vulneráveis.

Filosoficamente, o conto levanta questões sobre a justiça social, os direitos das crianças, a
violência e a exploração. Ele nos lembra da importância de enfrentar essas questões e trabalhar para um mundo
mais justo e igualitário. "Lumbiá" é uma narrativa impactante que utiliza a história de um menino como
veículo para destacar questões sociais complexas, incluindo o trabalho infantil, a desigualdade social e racial,
a vulnerabilidade das crianças e a necessidade de justiça e mudança. Através da escrita de Conceição Evaristo,
somos convidados a refletir sobre as injustiças da sociedade e a importância de proteger e nutrir a infância. O
conto "Lumbiá" de Conceição Evaristo está intrinsecamente relacionado a vários temas, como trabalho
infantil, pobreza, infância, desigualdade, religiosidade e representatividade. Aqui estão algumas conexões
entre o conto e esses temas:

• Trabalho Infantil: O tema central do conto é o trabalho infantil, que é evidenciado pelas crianças,
incluindo Lumbiá, Beba e Gunga, que são forçadas a vender mercadorias nas ruas para contribuir para
o sustento de suas famílias. A história destaca as táticas e estratégias que essas crianças usam para
vender seus produtos e sobreviver em meio às dificuldades econômicas.
• Pobreza: A pobreza é um tema recorrente no conto. A narrativa revela as condições precárias em que
Lumbiá e outras crianças vivem, a luta para conseguir dinheiro suficiente para sobreviver e as
limitações que enfrentam devido à falta de recursos.
• Infância: O conto chama a atenção para a perda da infância de Lumbiá e de outras crianças que são
forçadas a trabalhar nas ruas em vez de desfrutar de brincadeiras e educação. A narrativa enfatiza a
importância da infância e como ela é roubada pela necessidade de trabalhar para ajudar suas famílias.
• Desigualdade: A desigualdade social é evidente no contraste entre as lojas luxuosas no centro da cidade
e a vida precária das crianças trabalhadoras. Esse contraste ressalta a divisão entre ricos e pobres na
sociedade brasileira.
• Religiosidade: A religiosidade é um tema que surge quando Lumbiá visita lojas e igrejas na véspera de
Natal. Ele é particularmente atraído pelo presépio, que simboliza o nascimento de Jesus. A
representação do Deus-menino no presépio, embora não seja negro como Lumbiá, demonstra a
conexão entre a fé e a esperança em um mundo melhor.
• Representatividade: A história enfatiza a representatividade racial quando Lumbiá expressa o desejo
de que o Deus-menino no presépio fosse negro, como ele. Isso destaca a importância da
representatividade na formação da identidade e da autoestima das crianças negras.

O conto "Lumbiá" utiliza esses temas interconectados para lançar uma luz sobre as experiências das
crianças marginalizadas que enfrentam o trabalho infantil, a pobreza e a desigualdade. Além disso, a narrativa
explora a importância da religiosidade e da representatividade na vida de Lumbiá e na sociedade em geral.
Esses temas convergem para criar uma história profundamente comovente que ressoa com questões sociais e
filosóficas essenciais.

12- OS AMORES DE KIMBÁ

No que diz respeito à literatura marginal, os rótulos tendem a causar contradições e discordâncias. Seria
marginal a literatura produzida por autores que habitam as periferias e, consequentemente, não têm lugar no
mercado editorial? Ou seria a literatura que trata de assuntos relacionados aos personagens das cenas
periféricas, suas vivências e desafios?
Acerca do espaço da favela, a voz narrativa expõe no início do conto: “Chuva na favela era um inferno.
O barro e a bosta se confundiam. Os becos que circundavam os barracos se tornavam escorregadios. As
crianças e os cachorros se comprimiam dentro de casa” (EVARISTO, 2016, p. 54). Com base nesse trecho
compreendemos um pouco da dureza da realidade da favela em termos espaciais. É interessante notar como,
na escrita de Conceição Evaristo, ela emprega traços adjetivos líricos na narrativa (ROSENFELD, 2020);
sabemos que não existe algo como gênero puro, posto que os gêneros literários se entrecruzam. Contudo, são
bastante claros os traços líricos no trecho citado, a saber a aliteração da consoante b em “barro”, “bosta”,
“becos” e “barracos”, e da consoante c em “circundavam”, “crianças”, “cachorros”, “comprimiam”, “casa”.
O emprego de recursos próprios da escrita poética nesse trecho em particular confere certo foco à descrição
desse espaço que, em essência, mostra-se insalubre e negativo. Há quase a construção de uma poética do
abjeto, do grotesco. A relação de Kimbá com esse cenário não é necessariamente de pertença. O personagem
tem suas raízes em um contexto de marginalidade e expressa total repúdio à realidade na qual vive.

Observemos o trecho abaixo:


Detestava a pobreza, a falta de conforto, a fossa exalando o cheiro de merda. Detestava o rosto lavado
lá fora no tanque, o café no copo vazio que antes fora geleia de mocotó, o pão comprado ali mesmo na
tendinha. Detestava a voz alta e forte da mãe, as rezas de Vó Lidumira, os cuidados das tias e os olhares
curiosos das irmãs (EVARISTO, 2016, p. 54-55).
A voz narrativa nos permite ter acesso aos sentimentos de Kimbá em relação à sua moradia e denuncia
sua insatisfação, o que seria diferente de apenas apresentar o contexto social. Deste modo, o texto denuncia a
situação de pobreza e, com ela, suas consequências e demais fatores que a cercam. Percebemos, inclusive,
como o abjeto se faz presente nesse espaço, tornando-o um lugar de condições sub-humanas. Kimbá, então,
afirma em determinados momentos da narrativa que deseja sair dessa condição e, consequentemente, mudar
seu status. Isso ocorre após ele conviver com pessoas distintas de sua classe socioeconômica, dois amigos
pelos quais se apaixona. Kimbá, após ser apresentado à Beth por seu amigo Gustavo, apaixona-se por ela e,
passando a viver mais tempo com os dois, vai se distanciando do morro, distanciamento esse que passa a
ocorrer não completamente de modo físico, posto que sempre volta à casa, mas um distanciamento afetivo.
Não nutrindo qualquer sentimento pelo morro, este não significa muito para ele. Tal questão apresenta-se então
como uma problemática, pois a narrativa nos apresenta o conflito subjetivo entre as classes: Kimbá está
associado ao negro pobre da favela, enquanto Gustavo e Beth estão associados aos brancos ricos de classe
média e que estão em posições diametralmente opostas quando comparados a Kimbá. Por outro lado, estar em
ambientes diferentes torna-se para ele um motivo de pensar sobre sua própria construção identitária, pois seria
ele o Zezinho que, outrora criança brincava com os garotos do morro e jogava capoeira ou seria ele Kimbá,
que “abandonando” o morro, assumia uma postura diferente ao querer sair daquela realidade? Ao mesmo
tempo em que o protagonista se afasta da favela, onde se chamava Zezinho, e se aproxima do mundo dos
brancos, ele passa a ser chamado de Kimbá, um nome de origem africana. Esse fato por si só já aponta para
um desfoque identitário ou uma hibridização cultural que não o deixa ser "só ele". Estes espaços antagônicos
em que ele transita só dificultam o seu sentimento de pertença étnica.
Notamos que o que desconcerta Kimbá é o fato de os homens gostarem dele e, depois, a preocupação
em relação ao amigo ser gay ou não, já que se aproxima sexualmente dele. Como afirmamos acima, não
podemos atribuir a Kimbá uma identidade sexual, porém o comportamento dele indica um conflito
intrassubjetivo. Ora, que motivos teria ele para se preocupar se os homens reparam nele se ele não tivesse
qualquer desejo de corresponder-lhes? O mesmo pode-se dizer do relacionamento com o amigo, uma vez que
Kimbá parece se preocupar, de fato, em ser capaz de corresponder à investida afetiva do amigo e, ao fazê-lo,
o que isso pode dizer sobre ele. A atitude do protagonista de querer esconder isso e seu conflito pessoal aponta
para a nocividade das construções de sexualidade e gênero no seio social regido pelo patriarcado, pois
independentemente de estarmos lidando com uma personagem de um contexto marginal, a “família
tradicional” burguesa que, de acordo com Foucault (1999), encerra no seio doméstico o padrão familiar e o
comportamento sexual “adequado” a ser reproduzido por todos, ainda procura ditar as leis. A preocupação de
Kimbá em relação ao triângulo amoroso com os amigos e, mais especificamente, a relação com Gustavo, pode
residir no fato de que ele já está em uma posição distinta da dos amigos que são brancos e ricos. Ele, enquanto
negro, pobre, e morador de uma favela, está socialmente em uma posição vulnerável, inclusive
vulnerável ao preconceito e retaliações. O ser queer, ou o ser diferente implica na ruptura da ordem
pré-estabelecida dentro do grupo social no qual o sujeito está inserido. Ademais, podemos ainda relembrar
a noção de abjeto, para a qual havíamos apontado anteriormente ao falar da descrição do espaço da favela, só
que, neste caso, a abjeção social que “[...] constitui a experiência de ser temido e recusado com repugnância,
pois sua própria existência ameaça uma visão homogênea e estável do que é a comunidade” (MISKOLCI,
2020, p. 24). Além da ameaça da visão estável de comunidade, há o desconforto da própria (re)construção de
aspectos da identidade.
Gustavo e Beth entram em conflito com Kimbá, pois não sabem mais que atitudes tomar diante do
relacionamento entre eles: “Tinham colocado o dedo na ferida. Beth estava apaixonada por ele. Ele estava
apaixonado por Beth. O amigo estava apaixonado por ele”. (EVARISTO, 2016, p.58). Emaranhavam-se
sentimentalmente de tal modo que se criou uma situação difícil de ser contornada, na qual propor uma
separação seria causa de maior sofrimento ou mesmo não estaria em questão. Interessante notarmos que coube
a Kimbá a decisão acerca do que fazer diante da questão, pois não havia o que perder, “Só a vida. Era só ele
querer. Já que não estava dando para viver, por que não procurar a morte? Seria fácil” (EVARISTO, 2016, p.
58).
À pessoa pobre, a quem a vida não favoreceu como aos amigos, é relegada à decisão, posto que ele
não tem nada a perder. Diante disso, podemos nos questionar: Kimbá não tem mesmo nada a perder? Nada
a deixar para trás? E a família, por exemplo, que valor tem para Kimbá? O protagonista, de fato, exprime
certa repulsa diante da família reunida dentro da pequena casa no morro e, especialmente, diante da vó
cujas rezas não suporta. Mais do que repulsa à família, entendemos que Kimbá repudia o que a família
representa, ou seja, sua mãe, avó e tias representam para ele a impossibilidade de mudança de vida, de
ascensão socioeconômica, pois sempre viveram à margem.
Neste momento de escolha entre a vida e a morte, o conto redireciona seu foco para o aspecto dos
sentimentos e como as paixões ou o amor podem ser propulsores de atos extremos, algo verificável desde
sempre na literatura ocidental. Contudo, há nessa escolha pela morte em detrimento da vida algo que continua
a destoar entre Kimbá e seus companheiros, pois para eles a opção pela morte pode, talvez, representar um
gesto romântico, enquanto para Kimbá, um gesto último frente à desesperança diante do próprio contexto
marginal de que faz parte que, em última instância, é um gesto “maquiado” pelo amor que sente pelos amigos.
Como a voz narrativa afirma, estão selando com a morte um pacto de amor. Vale destacar ainda como o
erotismo presente na narrativa aponta para o conflito entre Eros e Thanatos. O amor pulsa tão forte
quanto a morte e são ambos causa de sofrimento ao mesmo tempo que de prazer. O erotismo que permeia o
enredo aponta ele mesmo para a noção de sacrifício desde o momento em que Kimbá tem a primeira
experiência com os amigos e, após a relação sexual, percebe-se nu: “E só então, se viu e sentiu nu”
(EVARISTO, 2016, p. 56). Ora, a nudez, além de evidenciar a fragilidade e a vulnerabilidade, representa
também “[...] nas civilizações onde isso tem um sentido pleno, (...) quando não um simulacro, pelo menos
uma equivalência sem gravidade da imolação” (BATAILLE, 1987, p. 14). Deste modo, compreendemos que
as energias de Eros e Thanatos constituem um conflito que vai conduzindo a narrativa ao seu fim trágico.
Resta-nos agora discutir o desfecho do conto, no qual os três personagens cometem suicídio. É um
desfecho bastante simbólico quanto aos elementos que o compõem. Primeiro, quando Kimbá chega ao
apartamento de Beth, Gustavo e ela já estão esperando por ele e estão nus; logo depois, o protagonista também
tira sua roupa. Tal gesto corrobora o que Bataille (1987) aponta sobre o desnudamento dos corpos, o erotismo
envolto nesse gesto e sua relação com uma certa dimensão sacrificial. Um outro aspecto interessante reside
no seguinte: “Ele, com um ligeiro tremor de mãos, ofereceu o primeiro copo à mulher. O segundo ofertou ao
amigo. Ao pegar o terceiro copo, o dele, teve um breve receio de recuo” (EVARISTO, 2016, p. 58). Essa cena
remete ao evento bíblico narrado no Gênesis em que a serpente oferece o fruto proibido à mulher, que por sua
vez também oferece ao homem e os dois, ao serem expulsos do Éden, descobrem-se nus e sofrem com isso
uma morte simbólica, de um estado superior a um estado inferior. Ainda sobre o final de caráter trágico e de
acordo com a filosofia do trágico, à proporção que Kimbá se envolve com os amigos, ele tece um conflito que
identificamos como um conflito trágico cerrado, isto é, aquele onde “[...] não há saída e ao término encontra-
se a destruição” (LESKY, 1996, p. 38). Não há saída, pois se os companheiros decidirem se separar, haverá
destruição igualmente no sentido do sofrimento, da impossibilidade de estar junto à pessoa amada
(BATAILLE, 1987). Também, considerando que Kimbá ficava com os companheiros igualmente por amor e
interesse, ao separar-se deles, ele estaria afastando de si também uma possibilidade de se afastar do espaço
marginal que ele tanto repudiava, logo perderia uma chance de “libertação”.
Por fim, encontra na morte a única solução possível para o conflito cerrado, solução esta que mais nos
faz questionar a realidade de Kimbá e os conflitos de identidade (HALL, 2006; JAGOSE, 1996) que atravessou
do que nos deixar conformados. São três vidas jovens que se perdem, contudo uma delas é uma vida negra
que, em primeiro plano, está em busca de melhores condições de vida. Não encontrando qualquer motivo de
vida, faz da morte um refúgio seguro para habitar, ainda que permeado pela desesperança.

TEMAS:
• SANEAMENTO BÁSICO
• MARGINALIDADE
• HOMOSSEXUALIDADE
• HOMOFOBIA
• MORADIA
• POBREZA
• CONFLITO DE CLASSES
• HIBRIDIZAÇÃO CULTURAL
• SEXUALIDADE
• CONFLITO DE IDENTIDADE
• PRECONCEITO
• RECONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE

Sua análise crítica do conto "Os Amores de Kimbá" do livro "Olhos d'água" de Conceição Evaristo
aborda questões sociais, filosóficas e literárias de forma profunda e detalhada. O conto de Evaristo, assim
como muita literatura marginal, trata de questões complexas relacionadas à identidade, pertencimento,
pobreza, discriminação, e sexualidade. Vamos analisar alguns pontos específicos de sua crítica:

• Literatura Marginal e Rótulos:A literatura marginal muitas vezes é produzida por escritores que vivem
em áreas marginalizadas das grandes cidades ou enfrentam desafios socioeconômicos significativos.
No entanto, os rótulos atribuídos a essa literatura podem variar. Alguns consideram "marginal" como
um rótulo relacionado à origem dos autores, enfatizando sua posição na periferia da sociedade. Outros
veem a marginalidade relacionada aos temas abordados na literatura, ou seja, como histórias que tratam
da vida nas margens da sociedade.
• Abjeção e Espaço da Favela:A descrição lírica do espaço da favela, empregando elementos poéticos,
ajuda a criar uma atmosfera que revela a dureza da vida nesses locais. Essa técnica literária chama a
atenção do leitor para os aspectos negativos do ambiente, como a falta de higiene, a pobreza e as
condições desafiadoras que os personagens enfrentam.
• Conflito Identitário de Kimbá:O conflito de identidade é um tema fundamental na literatura de diáspora
e em histórias de personagens que transitam entre diferentes contextos culturais. A mudança de nome
de Zezinho para Kimbá simboliza uma transformação profunda na identidade do protagonista,
tornando-se uma fonte de conflito interno. Ele se debate com o desejo de escapar das circunstâncias
de sua origem enquanto lida com o sentimento de pertencimento.
• Relacionamentos e Sexualidade:A discussão sobre sexualidade e relacionamentos nos lembra como as
construções sociais de gênero e sexualidade podem ser opressivas e limitadoras. A preocupação de
Kimbá com a percepção dos outros em relação a sua sexualidade revela como as normas e expectativas
sociais podem afetar as escolhas e os sentimentos das pessoas, mesmo em contextos marginais.
• Eros e Thanatos: A referência à dualidade entre Eros (amor) e Thanatos (morte) destaca como essas
forças podem se entrelaçar nas narrativas literárias. O conflito entre o desejo amoroso e a busca por
uma saída por meio do suicídio reflete uma tensão profunda que permeia a trama.
• Final Trágico: O final trágico, com os personagens optando pelo suicídio, é um momento de desespero
extremo. A interpretação desse ato como uma "libertação" da realidade inescapável ressalta o quão
implacável pode ser a pressão social e as condições adversas nas quais os personagens vivem. Essa
interpretação levanta questões sobre o papel da sociedade em empurrar indivíduos para a beira do
abismo.

A análise do conto de Conceição Evaristo destaca o poder da literatura marginal em explorar questões
complexas e desconfortáveis da sociedade, desafiando estereótipos e revelando as tensões e dilemas
enfrentados pelos personagens que habitam as margens da sociedade. Além disso, sua análise enfatiza como
a literatura pode servir como uma ferramenta valiosa para a reflexão sobre questões sociais e filosóficas
profundas. Sua crítica demonstra uma compreensão profunda do conto de Conceição Evaristo, destacando
camadas significativas de significado e contexto social. Ela também destaca como a literatura marginal lida
com temas complexos e desafia convenções, tornando-a uma ferramenta valiosa para a discussão de questões
sociais e filosóficas.
O conto "Os Amores de Kimbá" de Conceição Evaristo aborda várias das temáticas de forma intrincada
e complexa:

• Saneamento Básico: A descrição da vida na favela revela as condições precárias de saneamento básico
enfrentadas pelos personagens. A falta de higiene e as condições insalubres fazem parte do cenário que
contribui para a representação da marginalidade e da pobreza.
• Marginalidade e Pobreza: A favela em que a história se desenrola é um espaço de marginalidade e
pobreza. Os personagens vivem à margem da sociedade, em condições de extrema necessidade. A
marginalidade é um tema central no conto, destacando as lutas diárias enfrentadas pelos personagens.
• Homossexualidade e Homofobia: O protagonista Kimbá enfrenta conflitos relacionados à sua
homossexualidade e à homofobia internalizada. Sua busca por amor e aceitação é afetada pela rejeição
e preconceito que ele enfrenta. O conto aborda as complexidades da identidade sexual em um contexto
de marginalização.
• Moradia: A questão da moradia é central, uma vez que os personagens vivem em uma favela, um
espaço precário e muitas vezes inadequado para a habitação. A falta de moradia adequada contribui
para o ciclo de pobreza e marginalização.
• Conflito de Classes: O conto ilustra claramente o conflito de classes, com personagens da favela
enfrentando a desigualdade e a falta de oportunidades em contraste com aqueles que vivem fora da
favela, que muitas vezes perpetuam estereótipos e preconceitos sobre os moradores das favelas.
• Hibridização Cultural: A história também aborda a hibridização cultural, especialmente quando Kimbá
tenta escapar de suas raízes culturais e buscar uma identidade mais aceitável pela sociedade dominante.
Essa busca por hibridização reflete o desejo de adequação cultural e a luta pela aceitação.
• Sexualidade e Conflito de Identidade: O conto explora profundamente a sexualidade e o conflito de
identidade. Kimbá lida com a pressão social para se encaixar em normas de gênero e sexualidade
enquanto busca sua própria identidade e autenticidade.
• Preconceito: O preconceito, em suas diversas formas, é um tema recorrente na narrativa. A homofobia,
o preconceito racial e o estigma social são evidentes nas interações dos personagens, ilustrando como
a marginalização resulta em discriminação.

O conto "Os Amores de Kimbá" de Conceição Evaristo é uma obra rica e multifacetada que mergulha
profundamente em questões sociais, culturais e identitárias, explorando as vidas de personagens que vivem à
margem da sociedade. Ele revela como essas temáticas estão interconectadas, e como a marginalização social
pode afetar de maneira profunda a vida dos indivíduos, especialmente aqueles que enfrentam desafios
relacionados à identidade, à sexualidade e à discriminação.

13- EI, ARDOCA

O conto apresenta um narrador em terceira pessoa, o qual possibilita ao leitor entender melhor a história
e o sofrimento do personagem negro. Ardoca representa os afrodescendentes moradores de subúrbio que
diariamente passam por dificuldades, como percebemos no seguinte trecho: Cresceu em meio aos solavancos,
ao empurra-empurra, aos gritos dos camelôs, às rezas dos crentes, às vozes dos bêbados, aos lamentos e
cochilos dos trabalhadores e trabalhadoras cansadas. Assistiu inúmeras vezes, como testemunha cega e muda,
a assaltos, assassinatos, tráfego e uso de droga nos vagões superlotados. Ardoca desde criança utiliza o trem
como único meio de transporte, o que sugere uma situação financeira desfavorecida. O conto também
mostra um conflito do personagem consigo mesmo, pois se sente cansado da vida que leva no subúrbio.
Assim, resolve por fim ao seu "sofrimento" interior e toma uma decisão: Ardoca abandonava o corpo, que
pendia lentamente para um lado.
O passageiro do banco próximo encolheu o pé. Um camelô, que vendia água, pulou por cima dele, para
atender uma pessoa. Ardoca respirava com dificuldade, debaixo do negro de sua pele um tom amarelo
desbotado aparecia. [...] Naquela tarde, ainda no trabalho ele resolvera tudo. Num gesto desesperado e solitário
bebera lentamente um veneno e decidira levantar para morrer no trem.
O narrador descreve o sofrimento de um homem negro e suburbano. Por um momento passamos a
alimentar a esperança de que a vida desse homem está prestes a mudar, pois há uma pessoa tentando ajudá-lo.
“Nesse momento entrou no vagão um passageiro correndo e gritando. Desesperado, saiu empurrando em
direção ao rapaz desfalecido, chamando por ele: - Ei, Ardoca! Ei, Ardoca!" Mas a história é outra, e o homem
que socorre Ardoca, na verdade estava o assaltando. Agora o sofrimento parecia ser maior, porque mesmo
depois de tentar morrer no trem, ele estava perdendo junto com a vida, o que lhe restou nos bolsos. Por fim,
percebemos a intromissão do narrador, em um comentário sentimental: o outro levava os pertences de alguém
que já despertencia à vida e jazia no banco da estação.
O barulho da máquina sobre os trilhos entoava uma música réquiem de descanso eterno para Ardoca.
Amém Este conto pode, legitimamente, ser considerado como pertencente ao corpus literário afro-brasileiro
uma vez que atende aos critérios já citados, como: a autoria, visto que se trata de uma escritora negra que
busca escrever histórias ficcionais, nas quais se percebe o olhar do negro e não o do branco racista e dono de
escravos. Apresenta também o ponto de vista, pois Conceição Evaristo escreve mostrando o olhar da sociedade
a respeito dos afrodescendentes e dos próprios personagens negros a respeito da vida que vivem. E, além disso,
está evidente que essa escritora escreve com a intenção de ser porta-voz de um público desfavorecido
socialmente. Percebe-se, assim, que mesmo sem usar explicitamente a palavra "negro", nem remeter
amplamente à descrição de suas peculiaridades físicas, uma narrativa pode ser considerada como literatura
negra ao exprimir, como se analisou, anseios e vivências de excluídos, pessoas à margem da sociedade, com
os quais os afrodescendentes, por viverem os mesmos problemas, podem se identificar.

TEMAS:
• SUBÚRBIO
• VIOLÊNCIA URBANA
• EGOÍSMO
• EXCLUSÃO SOCIAL
• RACISMO ESTRUTURAL
• A MORTE COMO ESCAPE

O conto "Ardoca" de Conceição Evaristo, do livro "Olhos d'água," é uma poderosa crítica social que
revela a complexa realidade da vida de afrodescendentes moradores de subúrbios no Brasil. A autora, com sua
escrita sensível e perspicaz, coloca o leitor diante da dura rotina e das lutas enfrentadas por Ardoca, um homem
negro cuja vida é marcada por dificuldades financeiras, violência urbana e um profundo sentimento de
desesperança.
A escolha do narrador em terceira pessoa permite ao leitor ter uma visão mais abrangente da vida de
Ardoca, destacando os obstáculos que ele enfrenta diariamente. A descrição detalhada do ambiente em que ele
cresceu, cercado por gritos, rezas, bêbados e violência, cria uma imagem vívida da dura realidade que muitos
afrodescendentes enfrentam em áreas urbanas desfavorecidas.
A relação de Ardoca com o trem como único meio de transporte destaca sua situação financeira precária,
simbolizando a falta de oportunidades e a dependência de um sistema de transporte muitas vezes inseguro e
desumano. A decisão de Ardoca de acabar com seu sofrimento revela o desespero profundo que ele sente,
refletindo uma triste realidade de muitas pessoas em circunstâncias semelhantes.
O conto também explora o conflito interno de Ardoca, mostrando como ele se sente exausto com sua
vida no subúrbio. No entanto, quando um passageiro entra no trem aparentemente para ajudar, a história toma
um rumo sombrio, ressaltando a desconfiança e a exploração enfrentadas por muitos afrodescendentes em
situações vulneráveis.
A intervenção do narrador ao final do conto, com o comentário sentimental e a referência a uma "música
réquiem de descanso eterno para Ardoca," enfatiza a tragédia da situação e a perda de esperança. É uma
maneira poderosa de destacar o ciclo de sofrimento e desespero que muitos afrodescendentes enfrentam,
perpetuado por um sistema social injusto.
Conceição Evaristo, como escritora negra, é uma voz importante no panorama literário afro-brasileiro.
Seu trabalho dá voz aos marginalizados e expõe as realidades muitas vezes ignoradas pela sociedade. Ela
aborda questões raciais e sociais de maneira sutil, mas profunda, demonstrando a capacidade da literatura em
proporcionar insights profundos sobre as experiências da comunidade afrodescendente no Brasil. "Ardoca" é
um exemplo impressionante de como a literatura pode ser uma ferramenta eficaz para a crítica social e a
promoção da empatia.
O conto "Ardoca" de Conceição Evaristo aborda várias temáticas interligadas, relacionando-se de
maneira profunda com as questões do subúrbio, violência urbana, egoísmo, exclusão social, racismo estrutural
e a morte como uma forma de escape. Aqui está a relação entre o conto e essas temáticas:

• Subúrbio e Exclusão Social: O conto se passa em um ambiente de subúrbio, retratando a vida de


Ardoca, um afrodescendente que vive nesse contexto. A descrição do ambiente e da rotina de Ardoca
destaca a exclusão social enfrentada por muitos moradores de subúrbios, que frequentemente têm
acesso limitado a oportunidades educacionais, emprego e segurança.
• Violência Urbana: A narrativa descreve as dificuldades e perigos que Ardoca encontra em seu
cotidiano, testemunhando assaltos, assassinatos e tráfico de drogas nos vagões de trem superlotados.
Isso destaca a violência urbana presente nos subúrbios, onde a falta de segurança e a exposição a
situações perigosas são uma realidade para muitos.

• Egoísmo: A reviravolta no conto, quando o homem que aparentemente tenta ajudar Ardoca na verdade
o assalta, destaca o egoísmo humano. Isso sugere que, mesmo diante do sofrimento de alguém, há
indivíduos dispostos a explorar e tirar vantagem da vulnerabilidade de outros, o que é um reflexo da
falta de empatia em nossa sociedade.
• Racismo Estrutural: Embora o conto não mencione explicitamente o racismo, a escolha de Conceição
Evaristo de retratar um protagonista afrodescendente que enfrenta desigualdades econômicas e sociais
evidencia a existência do racismo estrutural no Brasil. O acesso limitado a oportunidades e as lutas de
Ardoca são, em grande parte, resultado de um sistema que perpetua o racismo.
• A Morte Como Escape: A decisão de Ardoca de tentar acabar com seu sofrimento bebendo veneno e,
em seguida, escolher o trem como o local para morrer, destaca a morte como uma forma de escape em
face da opressão e do sofrimento. Essa atitude ressalta a falta de esperança que muitos
afrodescendentes em situações semelhantes podem sentir, bem como a necessidade de abordar as
questões que levam a tais desesperos.

Em resumo, "Ardoca" de Conceição Evaristo é uma narrativa que aborda profundamente as complexas
interações entre subúrbio, violência urbana, egoísmo, exclusão social, racismo estrutural e a morte como uma
possível saída para aqueles que enfrentam a marginalização e a adversidade. A história revela as duras
realidades da vida de muitos afrodescendentes no Brasil, destacando a necessidade de reflexão e ação para
enfrentar essas questões sociais complexas.

14- A GENTE COMBINAMOS DE NÃO MORRER

O conto A gente combinamos de não morrer de Conceição Evaristo (2015) é uma complexa narrativa
sobre as histórias de vida das pessoas situadas à margem da sociedade. O texto é composto por situações
cotidianas que se relacionam com a experiência social das pessoas pretas e representa um modo de denunciar
as estratégias de violência coordenadas pelo Estado como mecanismo de controlar e exterminar corpos
periféricos.
A narrativa reflete a situação das pessoas pretas no contexto brasileiro através de cenas e personagens
que deflagram os modos por meio dos quais o racismo institui a sensação de desamparo, a iminência de perigo
e o genocídio seletivo da população. O texto apresenta histórias que evidenciam a qualidade daquilo que é
brutal e a consequência da naturalização das políticas de morte para os grupos minoritários.
Eles combinaram de nos matar, mas A gente combinamos de não morrer é a representação icônica
da herança colonial e das distorções sociais que implementaram desigualdades na sociedade brasileira.
É a síntese do confronto, da transgressão, da desobediência, sobretudo, neste contexto em que vivemos
um movimento de restaurações das estruturas reacionárias no panorama das políticas nacionais e que
assistimos à implementação de estratégias de regulações sociais autoritárias e violentas.
O ato de combinar de não morrer, convocado por Conceição Evaristo (2015), representa um gesto de
resistência em favor da vida, uma política que se dá na própria existência, apesar do recrudescimento das
desigualdades, das injustiças e das opressões sociais, do desmonte de políticas públicas direcionadas para as
populações mais vulneráveis e marginalizadas e dos modos a partir dos quais o avanço da extrema-direita e
do conservadorismo no país se alinham a uma lógica de produção predatória que não considera a importância
e a dignidade da vida, sobretudo, das vidas pretas e periféricas.
O conto varia do narrador em primeira pessoa e terceira pessoa. Apresenta também várias vozes:
Narrador, Dorvir, Bica e Mãe. Cada personagem descreve o que está acontecendo na favela e na vida dos
outros personagens sob sua ótica. A narrativa é fragmentada, pois não há uma linearidade. O espaço é uma
favela em guerra, tiros são ouvidos toda hora. Cada personagem narrador está em um ponto. Bica lembra do
irmão morto porque falou demais. A mãe gostava de novela, as quais ela implicava, mas sabia que a mãe sabia
separar muito bem ficção da realidade. Tinha acabado de dar a luz e tinha muito leite, logo alimentava também
outras crianças. Se preocupava com seu homem, Dorvir. Achava que o irmão deu motivo para morrer. A mãe
fala sobre a televisão e sua programação preferida, novela. Lembra do filho e das brincadeira que fazia com
ele e vice-e-versa. Se preocupava com o destino de Bica, sua filha. Não acreditava que Dorvir seria bom futuro
para ela e o neto. Dorvir está encrencado pois emprestou dinheiro do tráfico, dos homens de Baependi, e a
pessoa não lhe pagou. Sabia que seu fim estava próximo, mas queria acertar contas com o seu devedor
primeiro. Comenta sobre o prazer de viver no perigo que chegou a gozar nas calças quando, pela primeira vez,
atirou. O conto termina com a narração de Bica: Deve haver outros caminhos, saídas mais amenas. Meu filho
dorme. Lá fora a sonata seca continua explodindo balas. Neste momento, corpos caídos no chão, devem estar
esvaindo em sangue. Eu aqui escrevo e relembro um verso que li um dia. " Escrever é uma maneira de sangrar".
Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito...

TEMAS:
• RACISMO ESTRUTURAL
• CONDIÇÃO SOCIAL
• QUESTÕES POLÍTICAS
• DESIGUALDADE
• RESISTÊNCIA EM FAVOR DA VIDA

O conto "A gente combinamos de não morrer" de Conceição Evaristo é uma poderosa obra que traz à
tona uma série de questões sociais e políticas que permeiam a vida das pessoas negras e marginalizadas no
Brasil. Através de uma narrativa fragmentada e multifacetada, Evaristo consegue criar um retrato complexo e
impactante das vidas dos personagens que habitam uma favela em meio à violência e ao racismo estrutural.
Vamos analisar algumas das principais questões abordadas no conto:
• Violência e Racismo Estrutural: O conto desvela a realidade da violência constante que assola a favela,
com tiros sendo uma presença cotidiana. Isso reflete a experiência de muitas comunidades
marginalizadas no Brasil, onde a violência é uma ameaça constante. Além disso, a narrativa expõe o
racismo estrutural que subjaz a essa violência, uma vez que a grande maioria dos personagens são
negros.
• Herança Colonial: A expressão "Eles combinaram de nos matar, mas A gente combinamos de não
morrer" é emblemática na representação da herança colonial do Brasil, que resultou em um sistema
social profundamente desigual. A luta pela sobrevivência é uma resposta à violência histórica e
estrutural imposta sobre a população negra, que é obrigada a se organizar para resistir.
• Resistência e Solidariedade: Os personagens do conto enfrentam situações difíceis, mas também
demonstram uma notável resiliência e solidariedade uns com os outros. A mãe alimenta não apenas
seu próprio filho, mas outras crianças também, e todos eles compartilham o compromisso de "não
morrer". Isso destaca a importância da coletividade como uma estratégia de resistência.
• Ficção vs. Realidade: A mãe na história assiste a novelas na televisão, o que pode ser interpretado
como uma forma de escapismo da dura realidade que a cerca. No entanto, ela mantém a capacidade de
discernir entre a ficção e a realidade, o que é uma crítica sutil à sociedade que muitas vezes confunde
a realidade das pessoas nas periferias com os estereótipos criados na mídia.
• Fragmentação Narrativa: A técnica de narrativa fragmentada adotada por Evaristo é uma representação
hábil da desordem e da falta de continuidade nas vidas dos personagens. Isso reflete a sensação de
desamparo e instabilidade que caracteriza suas existências.
• Política e Violência: A menção a Dorvir e seu envolvimento com o tráfico de drogas destaca como a
política e a violência estão entrelaçadas nas comunidades marginalizadas. A falta de perspectivas
muitas vezes leva os jovens a escolherem caminhos perigosos.

No geral, "A gente combinamos de não morrer" é uma obra que denuncia a dura realidade enfrentada
pelas pessoas negras nas periferias do Brasil. Conceição Evaristo utiliza uma linguagem poética e uma
estrutura narrativa única para transmitir a complexidade dessas vidas e, ao mesmo tempo, destaca a resiliência
e a resistência dessas comunidades diante das adversidades. É uma crítica social contundente que convida os
leitores a refletirem sobre as questões de racismo, violência e desigualdade que persistem na sociedade
brasileira. O conto "A gente combinamos de não morrer" de Conceição Evaristo pode ser relacionado a
diversas temáticas sociais e culturais importantes, que são abordadas ao longo da narrativa. Abaixo, relaciono
o conto com algumas dessas temáticas:
• Racismo e Discriminação Racial: A temática central do racismo é evidente em todo o conto. A narrativa
destaca como a violência e a desigualdade são moldadas pela cor da pele dos personagens. Eles
enfrentam ameaças constantes devido ao racismo estrutural que permeia a sociedade brasileira.
• Violência Urbana: A violência é uma presença constante na vida dos personagens. Os tiros e a guerra
na favela são símbolos da violência urbana que afeta comunidades marginalizadas, muitas vezes
relacionada à disputa do tráfico de drogas e à falta de políticas públicas eficazes.
• Resistência e Sobrevivência: A narrativa retrata a resiliência e a capacidade de resistência dos
personagens diante de um ambiente hostil. A ideia de "combinar de não morrer" é uma expressão da
vontade de sobreviver e da luta contra as adversidades.
• Desigualdade Social: A história revela a dura realidade das comunidades marginalizadas e as profundas
desigualdades sociais que persistem no Brasil. A falta de oportunidades e a pobreza são temas que
permeiam a narrativa.
• Comunidade e Solidariedade: Apesar das adversidades, os personagens demonstram solidariedade e
apoio mútuo. A mãe que alimenta outras crianças, a preocupação com o destino de Bica e o desejo de
acertar contas de Dorvir são exemplos disso. Isso ressalta a importância das redes de apoio nas
comunidades marginalizadas.
• Mídia e Representação: A referência à mãe assistindo novelas na televisão é uma crítica à forma como
a mídia muitas vezes estereotipa e representa de forma inadequada as pessoas das comunidades
periféricas, criando uma desconexão entre a realidade e a ficção.
• Violência Política e Autoritarismo: A menção ao envolvimento de Dorvir com o tráfico de drogas
também pode ser vista como uma crítica à falta de políticas sociais eficazes e à presença de estruturas
violentas em áreas marginalizadas, frequentemente manipuladas politicamente.
• Identidade e Memória: A narrativa fragmentada e as vozes variadas dos personagens destacam a
complexidade da identidade e a importância da memória nas vidas dos personagens. Cada personagem
tem sua perspectiva única, mas todos compartilham uma história comum de luta.

Em suma, "A gente combinamos de não morrer" aborda uma série de temas sociais relevantes e urgentes,
oferecendo uma visão profunda e multifacetada da vida nas favelas brasileiras. Através de uma narrativa
poética e envolvente, Conceição Evaristo convida os leitores a refletirem sobre questões como racismo,
desigualdade, violência e resistência.

15- AYOLUWA, A ALEGRIA DO NOSSO POVO

O conto retrata elementos e características de uma comunidade negra que passa por uma crise. A
primeira parte do conto se refere ao momento em que as personagens se encontram desamparadas. A segunda
que se inicia com a notícia do nascimento de uma criança (Ayoluwa), é o momento em que se devolve à
comunidade a esperança. A narração ocorre em primeira pessoa o que revela na literatura negra a determinação
do narrador em desvencilhar-se do anonimato e da "invisibilidade" a que o relegou sua condição de
descendente de escravos ou de ex-escravos. Na grande maioria dos casos o eu individual funde-se ao nós
coletivo, evidenciando um empenho em delinear uma identidade comunitária.
O narrador deste conto participa e compartilha com a comunidade angústias e anseios, e a utilização da
primeira pessoa do plural corrobora essa afirmação: "À noite, quando nos reuníamos sem volta de uma
fogueira mais de cinzas do que de fogo, a combustão vinha de nossos lamentos" Nesta poética, o eu-
enunciador, ao se declarar negro e evidenciar essa identidade, deixa de ser objeto da escritura para se tornar
sujeito; ele conta as inquietações de sua comunidade, sem tomar de empréstimo a voz de um branco ou ser
referido como "o outro", aquele que é observado e sobre o qual se fala. Partindo do momento presente, o
narrador volta ao passado, às suas memórias, para descrever esta crise que tomou conta de sua comunidade e
que, no momento da narração, já havia sido superada devido ao nascimento de mais um membro: "Quando a
menina Ayoluwa, a alegria do nosso povo, nasceu, foi em boa hora para todos". O narrador pormenoriza as
lembranças dos tempos difíceis, em que os dias "passavam como um café sambango, ralo, frio, sem gosto.
Cada dia sem quê, nem porquê. E nós ali amolecidos, sem substância alguma para nos deixar de pé" 0 conto
se atem a descrever os elementos da comunidade que foram afetados pela crise.
O depois ou o antes disso configura-se como uma incógnita e o que sabemos, ao final da narrativa, é
que o nascimento de Ayoluwa trouxe contribuições para a comunidade, mas este estado pode não ser
permanente. A comunidade de que o conto trata é composta por muitos membros e a autora menciona todos
eles na tentativa de caracterizar de forma totalizadora a organização social do grupo de ascendência africana.
E ela obtém êxito. Através dos nomes selecionados e da explicitação de seus significados, expostos sempre ao
longo do texto, podemos deduzir qual o papel desempenhado por cada personagem. Os nomes têm sempre
origem africana e o narrador não detalha a função de cada um deles ou se atém a descrições do tipo
psicológicas. É a partir do entendimento do significado do nome que podemos reconhecer a função atribuída
a cada indivíduo. No dia do nascimento de Ayoluwa, Omolara foi a responsável pelo parto. Para descrever a
personagem e para tomarmos conhecimento de sua função de parteira, o narrador assim nos descreve o nome
da personagem e seu significado: "E no momento exoto em que a vido milogrou no ventre de Bomidele,
Omolara, aquela que tinha o dom de fazer vir as pessoas ao mundo, a conhecedora de todo ritual do
nascimento, acolheu a criança de Bamidele" Bamidele e Ayoluwa são as duas principais personagens e
representam o momento de restabelecimento da ordem. É a partir do anúncio da gravidez de Bamidele que a
comunidade volta a ter esperança. Ayoluwa, "aquele que veio para trazer alegria para o nosso povo" O ciclo
não estava em harmonia o que encerra as angústias e descrenças das personagens: "agora nenhuma família
mais festejava a esperança que renascia no surgimento de sua prole" Os personagens com maior idade também
carregam consigo a força da resistência negra; estes indivíduos representam a história através de uma outra
versão e nesta o protagonismo do homem negro é ressaltado. Conforme o narrador nos descreve, no momento
da crise: Os mais velhos acumulados de tanto sofrimento olhavam para trás e do passado nada reconheciam
no presente. Suas lutas, seu fazer e saber, tudo parecia ter se perdido no tempo (...). Todos estavam
enfraquecidos e esquecidos da força que traziam em seus próprios nomes. As velhas mulheres também. Elas,
que sempre inventavam formas de enfrentar e vencer a dor, não acreditava mais na eficácia delas próprias.
Deslembravam a potência que se achava resguardada a partir de suas denominações 0 conto "Ayoluwa, a
alegria do nosso povo" e a obra em geral permitem observar a emergência da literatura negra e a revelação de
uma poética que busca corporificar as demandas dos afrodescendentese o processo de afirmação da identidade
destes. A Obra Olhos D'água contribui enquanto literatura que desmantela o discurso centralizador que coloca
o branco em uma posição superior e os negros, índios e asiáticos, inferior; que relaciona a brancura de um
indivíduo ao seu grau civilizatório e à sua capacidade evolutiva.
A primeira parte do conto se refere ao momento em que as personagens se encontram desamparadas e a
segunda, que se inicia com a notícia do nascimento de uma criança (Ayoluwa), é o momento em que se devolve
a esperança à comunidade. A narração ocorre em primeira pessoa, o que revela na literatura negra a
determinação do poeta em desvencilhar-se do anonimato e da “invisibilidade” a que o relegou sua condição
de descendente de escravos ou de ex-escravos. Na grande maioria dos casos o eu individual funde-se ao nós
coletivo, evidenciando um empenho em delinear uma identidade comunitária (BERND, 1988, p. 77-78). O
narrador deste conto compartilha as angústias e anseios da comunidade, e a utilização da primeira pessoa do
plural corrobora essa afirmação: “À noite, quando nos reuníamos em volta de uma fogueira mais de cinzas do
que de fogo, a combustão vinha de nossos lamentos” (EVARISTO, 2005, p. 37).
Nesta poética, o eu-enunciador, ao se declarar negro e evidenciar essa identidade, deixa de ser
objeto da escritura para se tornar sujeito; ele conta as inquietações de sua comunidade, sem tomar de
empréstimo a voz de um branco ou ser referido como “o outro“, aquele que é observado e sobre o qual
se fala.
Partindo do momento presente, o narrador volta ao passado, às suas memórias, para descrever a crise
que, no momento da narrativa, já havia sido superada devido ao nascimento de mais um membro: “Quando a
menina Ayoluwa, a alegria do nosso povo, nasceu, foi em boa hora para todos” Ele pormenoriza as lembranças
dos tempos difíceis, em que os dias “passavam como um café sambango, ralo, frio, sem gosto. Cada dia sem
quê, nem porquê. E nós ali amolecidos, sem substância alguma para nos deixar de pé” (EVARISTO, 2005, p.
35).
O conto se atém a descrever os elementos da comunidade que foram afetados pelos maus tempos. O que
veio depois, ou antes disso configura-se como uma incógnita e o que sabemos, ao final da narrativa, é que o
nascimento de Ayoluwa trouxe esperança, mas este estado pode não ser permanente. A comunidade de que
o conto trata é composta por muitos membros e todos eles são mencionados pela autora, na tentativa de
caracterizar a organização social do grupo de ascendência africana. E ela obtém êxito. Os nomes
selecionados e a explicitação de seus significados, expostos sempre ao longo do texto, permitem deduzir qual
o papel desempenhado por diferentes personagens. Os nomes têm sempre origem africana e o narrador não
detalha suas funções ou se atém a descrições do tipo psicológico. É a partir do entendimento do significado
do nome que podemos reconhecer a atividade de cada indivíduo.
No dia do nascimento de Ayoluwa, Omolara foi a responsável pelo parto. Para descrevê-la e para
tomarmos conhecimento de sua função de parteira, o narrador assim descreve o significado de seu nome: “E
no momento exato em que a vida milagrou no ventre de Bamidele, Omolara, aquela que tinha o dom de fazer
vir as pessoas ao mundo, a conhecedora de todo ritual do nascimento, acolheu a criança de Bamidele”
(EVARISTO, 2005, p. 38).
As referências circunstanciais também são mínimas; não é apontado de forma precisa quando os fatos
ocorreram e nem a sua localização. Podemos inferir que se trata de uma comunidade negra devido às menções
a elementos que nos remetem a cultos, crenças e simbologias de origem africana, tais como a etimologia
dos nomes, a referência à ancestralidade, a simbologia sobre a questão do nascimento e a organização
matrilinear da comunidade. Bamidele e Ayoluwa são as duas principais personagens e representam o
momento de restabelecimento da ordem. É a partir do anúncio da gravidez de Bamidele que a comunidade
volta a ter esperança. Ayoluwa, “aquele que veio para trazer alegria para o nosso povo”, é a criança que está
para nascer e este fato é muito significativo. Bamidele, “a esperança”, é a gestante que, através do seu
anúncio, ajuda a restabelecer a alegria e dá forças para que o ciclo vital continue. É importante verificar a
simbologia sobre a questão do nascimento, originada na referência à afro-descendência do grupo. A
fecundidade de Bamidele interfere na vida de todo a comunidade e é um importante símbolo do ciclo da vida.
De acordo com Claude Lepine, em artigo publicado no Caderno Uniafro sobre os povos do golfo do Benin (o
que inclui Gana, Togo, Benin e Nigéria), os valores mais fortemente enraizados nessas culturas eram a
fecundidade e a fertilidade, a energia vital, o crescimento, a multiplicação, o apego à terra e aos antepassados,
que levaram à elaboração dos aspectos fundamentais de sua religião e de sua concepção do universo, do
homem, da sociedade. (LÉPINE, 2007, p. 61)
A ausência de nascimentos faz parte da crise composta por um conjunto de desavenças dentro do ciclo
vital. Durante a descrição deste momento, o narrador assim nos fala: “o milagre da vida deixou de acontecer
também, nenhuma criança nascia e, sem a chegada dos pequenos, tudo piorou” (EVARISTO, 2005, p. 37). O
ciclo não estava em harmonia, o que encerra as angústias e descrenças das personagens: “agora nenhuma
família mais festejava a esperança que renascia no surgimento de sua prole” (EVARISTO, 2005, p. 37).
A relação com a natureza é outro fator afetado. A terra é a provedora dos meios de subsistência de todos
e seu manejo é de extrema importância. Com a quebra do ciclo, toda a atmosfera de produção é afetada. “E
então deu de faltar tudo: mãos para o trabalho, alimentos, água, matéria para os nossos pensamentos e sonhos,
palavras para as nossas bocas, cantos para as nossas vozes, movimento, dança, desejo para os nossos corpos”
(EVARISTO, 2005, p. 35). A crise ocorre como uma reação em cadeia, em que todos os elementos são afetados
de alguma forma. Bamidele, ao anunciar o nascimento fertiliza a esperança que estava resguardada: “(...) em
uma dessas noites de macambúzia fala, de um estado tal de banzo, como se a dor nunca mais fosse se apartar
de nós, uma mulher, a mais jovem da desfalcada roda, trouxe uma boa fala” (EVARISTO, 2005, p. 37).
O anúncio do nascimento de Ayoluwa simboliza o fortalecimento da comunidade e “todos se
engravidaram da criança nossa”, que representava a continuidade do ciclo. “A partir daquele momento, não
houve quem não fosse fecundado pela esperança, dom que Bamidele já trazia no sentido de seu nome”
(EVARISTO, 2005, p. 38).
Nessa comunidade, os mais velhos desempenham um papel importante. Há uma grande quantidade
deles, o que reflete a simbologia advinda do continente Africano. Ainda sobre sua pesquisa sobre os povos do
Golfo do Benin, Claude Lepine demonstra que após o fim da existência visível o indivíduo ou volta a fazer
parte da comunidade através dos recém-nascidos da mesma família ou insere-se na massa dos antepassados
do grupo (LEPINE, p. 60, 2007). No conto, a vida de Ayoluwa “já estava escrita na linha circular de nosso
tempo. Lá estava mais uma nossa descendência sendo lançada à vida pelas mãos de nossos ancestrais”
(EVARISTO, 2005, p. 38). Os mesmos indivíduos, ou pelo menos um dos seus elementos espirituais,
percorrem um ciclo e vão e voltam do mundo dos vivos para o mundo dos mortos e vice-versa. A existência
individual prolonga-se nas gerações seguintes, fundando suas raízes no passado, transcendendo os seus limites
terrestres (LEPINE, 2007, p. 60). A morte não representa simplesmente um fim da vida humana, mas a vida
terrestre se prolonga em direção à vida além. Vô Moyo, o que trazia boa saúde; Tio Masud, o afortunado;
o Velho Abede, o homem abençoado; Vovó Amina, a pacífica; as velhas parteiras do povoado; Omolara, a
que havia nascido no tempo certo, representam alguns dos personagens mais velhos e, portanto, mais
experientes. Os personagens com maior idade também carregam consigo a força da resistência negra. Ao
contrário do que se encontra na maioria dos livros que mencionam a escravidão negra brasileira, estes
indivíduos representam a história através de uma outra versão e nesta o protagonismo do homem negro é
ressaltado. Conforme o narrador nos descreve, no momento da crise: Os mais velhos, acumulados de tanto
sofrimento, olhavam para trás e do passado nada reconheciam no presente. Suas lutas, seu fazer e saber, tudo
parecia ter se perdido no tempo (...) Todos estavam enfraquecidos e esquecidos da força que traziam em seus
próprios nomes. As velhas mulheres também. Elas, que sempre inventavam formas de enfrentar e vencer a
dor, não acreditavam mais na eficácia delas próprias. Deslembravam a potência que se achava resguardada a
partir de suas denominações. (EVARISTO, 2005, p. 36).
Diferentemente do passado que foi construído no imaginário da nossa sociedade, nesta história
percebe-se a resistência de um povo. A escravidão não foi absorvida pacificamente, houve resistência e
conflito, e os personagens mais velhos representam aqueles que lutaram. As personagens femininas
representam a organização matrilinear da comunidade, ou seja, aquela em que a mulher exerce direitos como
o de herdar e ser proprietária. A antiga civilização africana contava com mulheres soberanas e permitia a
partilha do poder entre os sexos.
As personagens femininas como Tia Sele, a mulher forte como um elefante; mãe Asantewaa, a mulher
de guerra (referência à rainha de Gana Yaa Asantewaa, que liderou a guerra dos Asante contra o domínio
inglês); vovó Amina, a pacífica; as velhas parteiras do povoado; Omolara, a que havia nascido no tempo certo;
Malika, a rainha, e Bamidele, a esperança, encarnam o significado do próprio nome. Também foi uma
personagem feminina, fruto da conspiração dos ancestrais, que trouxe de volta alegria e esperança ao povo
através do seu choro que “acordou todos nós” (EVARISTO, 2005, p. 39).
Esta pode ser uma alegoria para a atual situação dos negros no Brasil. Marginalizados durante séculos,
estes indivíduos precisaram negar a assimilação aos valores do homem branco ocidentalizado, afirmar-se
enquanto negros e tomar para si a negritude, para não desistir de sua autoafirmação. Como no conto, “ficamos
plenos de esperança, mas não cegos diante de todas as nossas dificuldades. Sabíamos que tínhamos várias
questões a enfrentar. A maior era a nossa dificuldade interior de acreditar novamente no valor da vida... Mas
sempre inventamos a nossa sobrevivência” (EVARISTO, 2005, p. 38).
A análise do conto “Ayoluwa, a alegria do nosso povo” nos permite observar a emergência da
literatura negra e a revelação de uma poética que busca corporificar as demandas dos afrodescendentes,
e o processo de afirmação da sua identidade. Podemos pontuar suas contribuições enquanto literatura
que desmantela o discurso centralizador, o qual relega negros, índios e asiáticos a posições inferiores à
posição hegemônica do branco; discurso que relaciona a brancura de um indivíduo ao seu grau
civilizatório e à sua capacidade evolutiva.

TEMAS:
• ANCESTRALIDADE
• RACISMO ESTRUTURAL
• ESPERANÇA
• DESIGUALDADE
• SEGREGAÇÃO
• IDENTIDADE

O conto "Ayoluwa, a Alegria do Nosso Povo" de Conceição Evaristo é uma obra literária que aborda de maneira
profunda e sensível as questões sociais, culturais e identitárias da comunidade negra. A história se desenrola em duas
partes distintas, destacando a crise inicial da comunidade e a subsequente renovação da esperança com o nascimento de
Ayoluwa. Essa narrativa traz à tona diversas críticas sociais e filosóficas importantes.

• Identidade e Resiliência: O conto destaca a importância da identidade negra e a resiliência da comunidade diante
das adversidades. O narrador, ao usar a primeira pessoa do plural, reforça a noção de um "nós" coletivo que
compartilha não apenas as lutas, mas também a herança cultural e a força da ancestralidade. Essa identidade
coletiva se torna uma fonte de resistência e renovação, demonstrando que a história e a cultura afrodescendente
são fundamentais para a construção da autoestima e da superação.
• Ciclo Vital e Fertilidade: O conto faz uso de simbolismo ligado à fertilidade e ao ciclo vital. A ausência de
nascimentos na comunidade representa uma crise que afeta não apenas a reprodução física, mas também a
espiritualidade e a conexão com a ancestralidade. O nascimento de Ayoluwa simboliza a restauração desse ciclo
e a renovação da esperança. Isso pode ser interpretado como uma metáfora da necessidade de preservar e
valorizar a herança cultural e espiritual afrodescendente para manter a vitalidade da comunidade.
• Nomes e Significados: A importância dos nomes na história é significativa. Cada nome tem uma origem africana
e um significado que reflete a função e o papel desempenhado por cada personagem na comunidade. Isso destaca
a relevância das tradições culturais e espirituais da África na construção da identidade da comunidade. Também
enfatiza a necessidade de entender e valorizar a história e os significados por trás dos nomes afrodescendentes
na sociedade contemporânea.
• Resistência e Continuidade: A presença dos personagens mais velhos na história representa a resistência da
comunidade negra ao longo do tempo. Eles são os guardiões da história e da cultura, e sua luta e sabedoria são
fundamentais para a continuidade da identidade afrodescendente. A narrativa desafia estereótipos e destaca o
protagonismo desses personagens mais velhos na preservação da herança negra.
• Invisibilidade e Anonimato: O conto critica a "invisibilidade" a que muitos afrodescendentes foram relegados
na sociedade. O narrador se recusa a ser objeto da escrita de outras vozes e busca sua própria voz e identidade.
Isso reflete a luta por representação e visibilidade na literatura e na sociedade em geral.

O conto de Conceição Evaristo oferece uma crítica social e filosófica profunda, destacando a importância da
identidade, da resistência, da valorização das tradições culturais e da luta pela visibilidade e representação da
comunidade negra. Ao dar voz a essa comunidade e explorar temas tão profundos, a obra contribui para um entendimento
mais amplo das questões raciais e culturais no Brasil e em todo o mundo. O conto "Ayoluwa, a Alegria do Nosso Povo"
de Conceição Evaristo se relaciona com várias temáticas importantes, incluindo:
• Ancestralidade: A ancestralidade é um elemento central no conto. A comunidade valoriza suas raízes e tradições
africanas, como evidenciado pelos nomes dos personagens e pelas referências à sabedoria dos mais velhos. A
conexão com os ancestrais é uma fonte de força e orientação para a comunidade, reforçando a importância da
herança cultural africana.
• Racismo Estrutural: Embora o conto não aborde o racismo estrutural diretamente, a comunidade em crise reflete
as consequências desse sistema. A falta de recursos, oportunidades e visibilidade para os afrodescendentes pode
ser vista como um resultado do racismo estrutural, que perpetua desigualdades com base na raça.
• Esperança: A chegada de Ayoluwa representa a restauração da esperança na comunidade. Após um período de
desânimo e desespero, o nascimento da criança simboliza a possibilidade de um futuro melhor. A esperança é
um elemento poderoso na narrativa, indicando a resiliência da comunidade.
• Desigualdade: A desigualdade social e econômica é uma das razões para a crise na comunidade retratada no
conto. A falta de recursos, alimentos e oportunidades é uma manifestação da desigualdade que muitas
comunidades afrodescendentes enfrentam devido ao racismo sistêmico.
• Segregação: Embora a segregação não seja explicitamente abordada no conto, a comunidade se encontra em
uma situação de isolamento devido às dificuldades que enfrenta. Isso pode ser interpretado como uma forma de
segregação implícita, onde a comunidade se encontra marginalizada devido às circunstâncias sociais e
econômicas.
• Identidade: A busca por uma identidade coletiva e individual é uma parte significativa do conto. O narrador, ao
usar a primeira pessoa do plural e enfatizar a herança cultural afrodescendente, está buscando uma identidade
sólida e resistente, que desafia a marginalização e a invisibilidade imposta pelo sistema.

No geral, o conto de Conceição Evaristo aborda várias temáticas interligadas, todas relacionadas à experiência
afrodescendente no Brasil. Ele ressalta a importância de reconhecer a ancestralidade, a luta contra o racismo estrutural,
a importância da esperança e da identidade, enquanto também expõe as desigualdades e a segregação enfrentadas pela
comunidade. Essas temáticas juntas criam uma narrativa poderosa que ressoa com muitos aspectos da experiência negra
no Brasil e em outras partes do mundo.

ANOTAÇÕES!
REFEÊNCIAS

http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/188-conceicao-evaristo

https://www.portugues.com.br/literatura/conceicao-evaristo.html

http://www.letras.ufmg.br/literafro/artigos/artigos-teorico-criticos/1629-conceicao-evaristo-maria-reflexoes-
sobre-genero-raca-e-classe-no-conto-de-conceicao-evaristo

https://abralic.org.br/anais/arquivos/2016_1491524767.pdf

https://www.editorarealize.com.br/editora/anais/enlacando/2017/TRABALHO_EV072_MD1_SA15_ID140
1_13082017224626.pdf

https://hhmagazine.com.br/de-quantos-tempos-e-feita-uma-mulher/

file:///Users/neliane/Desktop/CURSO%20ONLINE%20REDAC%CC%A7AO/UEMA/PAES%202024/Taiss
e%20Ferreira%20Martins%20-%20Artigo.pdf

https://repositorio.utfpr.edu.br/jspui/bitstream/1/27753/1/PB_COLET_2021_1_07.pdf

https://editorarealize.com.br/editora/anais/gelcco/2022/TRABALHO_COMPLETO_EV183_MD1_ID265_T
B122_19122022224859.pdf

https://letraeluzbydanieleribeiro.blogspot.com/2016/11/analise-literaria-olhos-dagua-de.html

https://www.researchgate.net/publication/286086597_O_Conto_Ayoluwa_a_Alegria_do_Nosso_Povo_enqu
anto_Representacao_de_Uma_Poetica_Negra/fulltext/5665f00c08ae15e74634c266/O-Conto-Ayoluwa-a-
Alegria-do-Nosso-Povo-enquanto-Representacao-de-Uma-Poetica-Negra.pdf

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