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AULAS ESPECIAIS
PORTUGUÊS
AS OBRAS DA UNICAMP

OLHOS D’ÁGUA
1. A autora surge de situações reais, que podem ser de sua vivência
ou não, de sua história particular ou da história de uma
coletividade. É uma escrita marcada por sua vivência de
Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte, em
mulher negra na sociedade brasileira.
1946. De origem humilde, teve de conciliar os estudos
com o trabalho como empregada doméstica, até concluir
O livro Olhos d’água
o curso Normal. Migrou para o Rio de Janeiro, onde
trabalhou como professora na capital fluminense. Estudou Olhos d’água é uma coletânea de contos curtos, em
Letras na UFRJ. É mestra em Literatura Brasileira, pela que são abordados temas como violência, fome, desigual-
PUC-Rio, e doutora em Literatura Comparada, pela dade social, exploração do trabalho, exploração sexual,
Universidade Federal Fluminense. preconceito racial, de classe e de gênero, e, em especial,
Suas obras abordam temas como a discriminação aspectos da existência da mulher negra na sociedade
racial, de gênero e de classe. Além disso, Evaristo partici- brasileira.
pa dos movimentos de valorização da cultura negra em
nosso país. Defende o domínio da leitura e da escrita como A linguagem literária de Conceição Evaristo
um direito de todos e como fator essencial para o exercício A escrita de Conceição Evaristo evidencia o
pleno de cidadania. encantamento da autora pelas palavras. Mineira, ainda que
É uma das mais influentes escritoras do movimento marcada pela cultura banto, ela utiliza palavras próprias
pós-modernista no Brasil, escrevendo nos gêneros do vocabulário mineiro. Em seus contos do livro Olhos
romance, conto, ensaio e poesia. d’água destaca-se o uso da palavra-composta, de grande
expressividade.
2. Principais obras
Voz do narrador e estrutura dos contos
Romance Segundo a crítica literária Marisa Lajolo, a
perspectiva adotada nos contos do livro Olhos d’água é
Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza, 2003; 2. ed., expressa numa voz forte, direta, enxuta, envolvente e
2006; 3. ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017. solidária, mas sem sentimentalismo. A maioria das
narrativas é feita em terceira pessoa, com exceção do
Contos primeiro conto, homônimo, que sugere um caráter mais
Insubmissas lágrimas de mulheres. Belo Horizonte: subjetivo, demonstrando de forma mais estreita elementos
Nandyala, 2011; 2. ed. Rio de Janeiro: Malê, 2016. da biografia de Conceição Evaristo, e do último conto,
Olhos d'água. Rio de Janeiro: Pallas: Fundação Biblioteca “Ayoluwa, a alegria do nosso povo”, que remete a um
Nacional, 2014. “nós”, que diz respeito à visualização de um caminho de
esperança para a população afrodescendente.
(Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/29-
Novela critica-de-autoresfeminios/ 200-olhos-d-agua-de-conceicao-evaristo-
Canção para ninar menino grande. São Paulo: Ed. por-marisa-lajolo-critica. Acesso em: 16 dez. 2022.)
Unipalmares, 2018.
Temas e personagens
3. Olhos D’Água Conforme Heloísa Toller Gomes, o livro Olhos
d’água aborda a pobreza e a miséria urbana que atingem
Escrevivência a população afro-brasileira, sem meias-palavras e sem
Com conceito de “escrevivência”, neologismo criado “sentimentalismos facilitadores, mas sempre incorporando
por ela, Conceição Evaristo evidencia que a sua escrita a tessitura poética à ficção”.
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As narrativas recriam “as duras condições enfrentadas A brincadeira predileta da família era aquela em que
pela comunidade afro-brasileira”, no entanto, apresentam a mãe se tornava rainha e as filhas, princesas. A mãe era
“uma vitalidade própria” e, dessa forma, “equilibram-se reverenciada pelas meninas por meio do gesto solene de se
entre a afirmação e a negação, entre a denúncia e a colocarem no chão e baterem cabeça para aquela mulher
celebração da vida, entre o nascimento e a morte”. senhoril. Ao redor dela, as filhas cantavam, dançavam e
(Prefácio de Olhos d’água, de Conceição Evaristo, Rio de Janeiro: sorriam. A mãe ria também, um sorriso triste, molhado
Pallas: Fundação Biblioteca Nacional, 2016, p. 9-10.) pelas lágrimas. A mãe recorria ao lúdico para afastar a
sensação de fome de suas meninas e conseguia amenizar
Em Olhos d’água, as 15 narrativas entrelaçam-se ao a cruel situação com sua imensa ternura.
relatarem a história de mulheres e homens, velhos e A protagonista estava há anos longe de sua terra natal.
crianças, que padeceram e ainda sofrem as mais diversas Saíra de lá em busca de uma melhor condição de vida para
formas de violências e preconceitos da sociedade, mes- ela e sua família. No entanto, ela nunca se esquecera das
clados a aspectos acalentadores e fortalecedores da ances- mulheres de sua família e, desde sua infância, entoava
tralidade e da identidade afro-brasileira. Dessa forma, cantos de louvor para todas suas ancestrais. Ela decidiu
Conceição Evaristo cria um espaço simbólico de valo- voltar à sua terra natal, pois precisava olhar nos olhos de
rização da diversidade étnica e cultural e, como a literatura sua mãe. Ao regressar, enfim, seus olhos contemplaram
pode ter um potencial transformador de quebra de visões os de sua mãe. O que viu extasiada foram lágrimas abun-
estereotipadas, seu livro pode ser um elemento de promo- dantes, embora a mãe estivesse feliz com o reencontro.
ção de inclusão e de convivência social mais igualitária. Ela compreendeu que os olhos de sua mãe eram como
“rios caudalosos sobre a face” (...) e que “a cor dos olhos
de sua mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe
4. Resumo dos contos Oxum!”. Essa orixá é a rainha da água doce, dona dos rios
e das cachoeiras, cultuada no candomblé e também na
4.1. Em nosso resumo, iniciamos com o primeiro e o umbanda, religiões de origem africana. Oxum é a segunda
último conto do livro Olhos d’água. Neles, destacamos a esposa de Xangô e representa a sabedoria e o poder
importância da memória da ancestralidade como elemento feminino. Além disso, é vista como deusa do ouro e do
fundamental para a sensação de pertencimento a uma jogo de búzios.
coletividade. Os dois contos são de denúncia, mas também A narrativa retoma o tempo presente, em que a
de esperança. narradora e sua filha estão envolvidas num doce jogo de
contemplarem os olhos uma da outra, como se fossem
“Olhos d’água” espelhos um do outro. Ao final, a protagonista conta que,
num dia desses, tinha se surpreendido com o questiona-
Primeiro conto. Neste conto, a narradora e protagonista mento de sua menina: “Mãe, qual é a cor tão úmida de
reverencia suas ancestrais, identificando-se com elas a partir seus olhos?”. Assim, ela vivenciou seu elo com sua ances-
da representação simbólica da cor dos olhos. Destacamos o tralidade materna e entendeu que essa união a ultra-
uso do neologismo “boneca-mãe”, que faz referência ao fato passava, persistindo em sua descendência. Essa sabedoria
de a personagem materna recorrer ao lúdico para distrair as foi transmitida em forma de narrativa.
filhas submetidas a uma condição de extrema penúria. A
história começa no meio da ação, assim como nos demais
contos do livro, e as personagens, os cenários e os conflitos “Ayoluwa, a alegria do nosso povo”
são introduzidos por meio de flashback. Décimo quinto conto, último do livro. Narrado em
Numa noite, a protagonista acordou perturbada por primeira pessoa do plural, por um narrador que se assume
um pensamento angustiante: “De que cor eram os olhos de como voz de uma coletividade. Nele, há ênfase na
minha mãe?”. Esse questionamento repetia-se incessan- esperança e na celebração da vida. Destacamos o uso do
temente. Ela recorreu a suas memórias. Tinha sido uma neologismo “milagrou”, que se refere ao nascimento de
filha muito próxima de sua mãe, a primogênita de uma uma criança, símbolo de um recomeço para a coletividade
família composta pela mãe e por outras meninas. Teve que a que pertence.
amadurecer cedo. Sua mãe trabalhava como lavadeira e Narra-se o nascimento de Ayoluwa, nome que
passadeira, mas encontrava momentos para brincar com significa “a alegria do nosso povo”. Antes desse aconteci-
as filhas, tornando-se uma grande boneca negra, de mento feliz, havia escassez de tudo. Houve, portanto, um
cabeleira crespa e bela. Sua mãe nascera no interior de momento marcado pelo sofrimento, em que os mais
Minas Gerais. Teve uma infância muito pobre. A vivência velhos pediam pela própria morte, esquecidos “da
dessa precariedade confunde-se com a da narradora e a de potência que se achava resguardada a partir de suas
outras crianças mineiras, o que denuncia as consequências denominações”. Os moços “puseram-se a matar uns aos
decorrentes da escravização. outros, e a atentar contra a própria vida”. Nenhuma
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criança nascia. “Nenhuma família mais festejava a têm em comum o fato de terem sido punidos com a morte,
esperança que renascia no surgimento da prole”. Os pe- por serem traidores, cada um a seu modo. O nome do
quenos choravam em vão, pois os pais estavam imersos conto se refere a um pacto feito por um grupo de garotos
em suas próprias tristezas. “O nosso povoado infértil mor- numa favela não nomeada. O pacto era o de não morre-
ria à míngua e mais e mais a nossa vida passou a deses- rem, uma vez que tal combinado implicava necessa-
perançar...” Em volta de uma fogueira, todos lamentavam riamente o entendimento de que a vida deles seria regida
o sofrimento atroz. pelo enfrentamento constante da morte. Destacamos que,
À maneira de uma narrativa oral, conta-se o surgi- por meio da personagem Bica, a qual se dedica à escrita de
mento de um novo tempo: Bamidele, a esperança, a suas vivências e de sua coletividade, exemplifica-se o
mulher mais jovem dali, disse que ia ter um filho e todos conceito de escrevivência. O conto inicia-se com o
foram fecundados pela esperança, “dom que Bamidele. narrador onisciente em meio a um tiroteio. Ele conta que
trazia no sentido de seu nome”. “Lá estava mais uma Dorvi lembrou-se de um juramento feito, no passado: “—
nossa descendência sendo lançada à vida pelas mãos de A gente combinamos de não morrer!” (veja a
nossos ancestrais”. Todos ficaram esperançosos, mas informalidade dessa fala). Com o recurso do discurso
cientes das dificuldades, ainda que confiantes no fato de indireto livre, a narração se presentifica (por isso,
que sempre “inventamos a nossa sobrevivência”. decidimos também manter os verbos no presente).
“Omolara, aquela que tinha o dom de fazer vir as pessoas Dorvi – Chora, mas desculpa o motivo de suas
ao mundo”, “acolheu a criança de Bamidele.” No mo- lágrimas para si mesmo: era a fumaça que subia do monte
mento em que Ayoluwa nascia, todos sentiram esperança, de lixo, onde tudo podia ser queimado, até corpos hu-
era um recomeço. manos. Uma mulher morta e incinerada tinha sido notícia
A voz narrativa diz que o mundo ainda não se consertou, televisiva. Ele aspira pó, reclama que não era de boa
mas que Ayoluwa, a alegria de nosso povo, e Bamidele, a qualidade. Diz para sua companheira, Bica, que seu filho
esperança, “continuam fermentando o pão nosso de cada tinha nascido tão pequeno. Tenta cutucá-lo com sua esco-
dia. E quando a dor vem encostar-se a nós, enquanto um peta, mas a mãe da criança leva o filho para longe dele.
olho chora, o outro espia o tempo procurando a solução”. Bica – O medo que sente não a faz recuar. Recorda
Note-se que, no último conto, a voz na narrativa, que que sua mãe, Dona Esterlinda, cantava a seguinte cantiga:
expressa a coletividade que une os afrodescendentes à sua “Um elefante amola a gente, amola! Dois elefantes amola
ancestralidade, está fortemente empenhada em propagar a a gente, amola, amola! Três elefantes amola a gente,
esperança. Essa voz é firme em evidenciar que não se trata amola, amola, amola, quatro elefantes ...”. Ela gostava da
de uma esperança fundamentada em idealizações, em cantiga que dizia sobre sua vida. Seu irmão, Idago, não.
frágeis ilusões, mas no reconhecimento da força de Um dia ele discutiu com a mãe, D. Esterlinda, dizendo
resistência de um povo e na capacidade dele de encontrar para ela se calar. Porém, sua mãe continuou cantando até
caminhos de ações construtivas, em prol da vida. Esse ficar rouca e soluçar. Nesse dia, Idago olhou-a, pediu
recomeço deu-se a partir do nascimento de uma criança, benção e saiu do barraco. Mais tarde, ele foi encontrado
não por acaso de uma menina. Destacamos , nesse conto, morto. Somente Bica e a mãe velaram o corpo de Idago,
o uso de palavras de origem africana, por exemplo que fora rejeitado pelos moradores da favela. Ele era um
“pitimbava” e “sambango”. No último conto do livro, alcaguete (dedo-duro). Enquanto ouve o barulho de
como diz Jurema Werneck no prefácio de Olhos d’água, muitos tiros, Bica sente certo alívio por não terem sido
Conceição Evaristo “propaga o axé” e convida-nos, seus Dorvi, nem seu recém-nascido, nem ela que tinham
leitores, a “fazer existir outro mundo”. tombados mortos. Note-se que imagens sonoras aparecem
reiteradamente. Prevalece a sonoridade barulhenta do
4.2. Segue-se a narrativa de um conto que apresenta tiroteio incessante. Esse recurso está presente em outros
pactos de irmandade para a sobrevivência num espaço contos do livro.
extremamente hostil. Dona Esterlinda – A mãe de Bica e de Idago, ao
ouvir a saraivada de balas que persiste na favela, muda
“A gente combinamos de não morrer” irritada o canal de televisão. Ela gosta de se distrair da
brutal realidade em que vive, para tanto, assiste a novelas.
Décimo quarto conto. Narrador em terceira pessoa, É aniversário do assassinato de Idago. Ele era tão bonito,
onisciente, no entanto, sua voz é entrecortada pelas vozes como “aquele negro que é ator”, ele podia ter sido cantor:
dos personagens, que assumem a narração em primeira “tinha o dom”. Seu filho cresceu e estava sempre irritado
pessoa por meio de discurso indireto livre. O texto divide- com ela e com a irmã. Um dia, Idago cantou assim para
se em oito partes separadas por um espaço entre cada uma ela: “uma mãe amola a gente, uma irmã amola a gente,
delas. Esse recurso provoca um efeito de simultaneidade. um inimigo amola a gente, um policial amola a gente” e
No conto, é narrada a história de Dorvi, Bica, Dona foi acrescentando amolações. Para ele, “o mundo era só
Esterlinda (mãe de Bica), Idago e Neo. Os dois últimos amolação”.
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Bica – Sabe que Idago morreu porque ele delatou para Bica não sabe o que dirá ao filho “à medida que ele for
a polícia o que sabia. Ela pensa que traidor tem que crescendo”.
morrer, conforme o código de honra dali. Recorda que seu Bica escreve. Na época da escola, escrevia na lousa
irmão era traidor desde menino. Um dia, depois de ter palavras sobre a realidade que vivenciava. Escrever para
brigado com a turma, ele contou para a diretora que os ela era como “uma febre incontrolável, que arde, arde,
garotos destelharam a cantina para pegar a merenda arde...”. Ela gosta de escrever palavras “caídas, apa-
guardada. Idago foi punido, dois meninos maiores foram nhadas, surgidas, inventadas na corda bamba da vida”. Ela
ao barraco de Dona Esterlinda e, na frente da mãe e da pensa no companheiro a todo o momento, mas entende
irmã, derramaram um vidro de pimenta na boca dele para que, provavelmente, Dorvi não voltará. Justamente ele
que parasse de ter a língua solta. Na época, ele tinha onze “que tinha um trato de viver fincado nesta fala desejo: —
anos, e Bica, doze. A gente combinamos de não morrer”. Para ela, no entanto,
Dorvi – Ele quer acertar as contas com quem o traiu. deve haver uma maneira de não morrer tão cedo e de viver
Ele nunca falhara com seu fornecedor e, por conta dessa uma vida menos cruel. Bica reconhece que Dona
traição, teria que assumir a dívida do outro, a quem Esterlinda sabe distinguir bem a realidade da ficção das
confiara parte da mercadoria. Ele já esteve no bonito novelas e admira a fortaleza de sua mãe, que “sempre
apartamento do fornecedor, em que se podia avistar o mar costurou a vida com fios de ferro”. Bica escreve e seu
lá embaixo. Em comparação ao seu fornecedor, Dorvi desejo é de “contagiar de esperança outras bocas”, que são
sabe que seu negócio tem menos garantias. Nesse mo- bocas famintas também de esperança. Ela é solidária e
mento, aspira o pó e está “doido”; diz para si mesmo que alimenta com seu leite filhos alheios, de mães que têm o
quer a calmaria do mar, quer “boiar no profundo fundo do leite escasso ou que trabalham o dia inteiro.
mar”. Sabe que dever para o fornecedor terá consequência Dorvi e os companheiros fizeram o pacto de não
fatal. morrer. Mas, para ela, não morrer nem sempre é viver e
Dona Esterlinda – Ela não gosta do final da novela. ela tem esperança de que haja “outros caminhos, saídas
Para ela, a personagem da babá devia ter casado com o mais amenas”. Enquanto Bica escreve, acumulavam-se
filho do patrão, não ter ficado sozinha. A emoção corpos caídos no chão, sangrando. Ela retoma um verso
provocada pela novela junta-se a que ela sente pela sua lido: “Escrever é uma maneira de sangrar” e acrescenta “e
própria vida tão adversa. Sabe que Dorvi está com de muito sangrar, muito e muito...”. Nesse conto, fica
problemas, que conseguiu um ponto de venda de drogas, evidente que ele abrange a escrita de todos afro-brasi-
estabeleceu-se, mas que ele tinha confiado na pessoa leiros. Assim, embora Bica seja uma criação da escritora
errada, que ficara com parte da mercadoria sem pagar. O mineira, ela representa a ideia de Conceição Evaristo de
fornecedor não irá arcar com o prejuízo. Dorvi não era o que todos, sobretudo os historicamente excluídos, têm o
companheiro que ela queria para Bica, a sua filha que direito de escrever sobre suas vivências.
tinha conseguido chegar até a oitava série na escola.
Dorvi – Está preocupado com os fornecedores, que 4.3. Segue o resumo de três contos que tratam da
virão logo. Decide matar quem o traiu, mas isso não o situação de extrema pobreza vivenciada por crianças e
livrará de ser morto. Lembra que o grupo de garotos havia adolescentes afro-brasileiros.
crescido juntos e combinado de não morrer, mas o “trato
de vida virou às avessas”. Para ele, tinha chegado o “Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos”
momento de matar ou morrer. Ele quer morrer nas
profundezas do mar, ali guardaria para sempre as lem- Nono conto. Narrador onisciente. Discurso indireto
branças de sua pequena criança e de Bica. Recorda que livre e discurso direto. Esse conto aborda a vulnerabilidade
até os treze anos, só havia feito trabalhos pequenos: extrema a que crianças afrodescendentes são expostas por
“Vigiar, passar o bagulho, empunhar armas no beco, viverem em espaços destinados aos despossuídos da
garantindo a proteção dos pontos na calada da noite”. Foi sociedade. Destacamos o neologismo: “figurinha-flor”
naquela época que teve seu primeiro trabalho mortal. que, de forma ambígua, parece se referir a um brinquedo
Participou de um tiroteio e teve prazer com esse trabalho. muito estimado por uma menina, mas também à Zaíta, que
Bica – Sabe que Neo foi morto. Era um dos garotos teve o corpo frágil de criança atingido por balas “que
que fazia parte do grupo formado na meninice deles: Neo, desabrochavam no tiroteio como flores malditas”.
Dorvi, Idago, Crispim, Antônia, Cleuza, Bernadete, A protagonista chama-se Zaíta. A menina brincava
Lidinha, Biunda, Neide, Adão e ela, Bica. As meninas e os com figurinhas no chão de um barraco. Faltava: “a mais
meninos fizeram pactos de irmandade: elas diziam, bonita, a que retratava uma garotinha carregando uma
brincando, que iriam misturar o sangue das regras e os braçada de flores”. Zaíta pensou que sua irmã gêmea,
meninos combinaram de não morrer. Alguns do grupo já Naíta, devia ter pegado a figurinha; contudo, ela não podia
tinham morrido e Dorvi matou Neo com tiros de escopeta, reclamar com a mãe, senão as duas meninas seriam casti-
vingou-se. Ninguém sabia onde Dorvi estava depois disso. gadas e todas as figurinhas seriam destruídas. A mãe de
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Zaíta, chamada Benícia, tinha chegado do supermercado. “Lumbiá”


Estava cansada. 34 anos e quatro filhos. Os dois filhos já Décimo primeiro conto. Narrador onisciente.
estavam crescidos. O primogênito estava no exército e o Presença de discurso indireto livre e de discurso direto.
outro filho, na criminalidade. Neologismos: “imagem-mulher” e “imagem-homem”,
A menina procurou a figurinha numa caixa de que unidos ao termo “Deus-menino”, referem-se à família
brinquedos bastante simples, mas sabia que ela não estaria sagrada, que está presente nos presépios natalinos.
ali. Naíta tinha tentado trocá-la por outro brinquedo no dia No início do conto, Lumbiá trocou sua lata de
anterior, mas Zaíta não o quis, embora a boneca negra, a amendoim pela caixa de chicletes de sua irmã chamada
que só faltava um braço, fosse muito bonita. Ela lembrou Beba. Aquelas crianças não tinham conseguido vender
da recomendação da mãe de guardar os brinquedos. Sua nada. Se não se desse bem na venda de chicletes, o garoto
mãe reclamava da pobreza e dos filhos, em especial, do iria procurar seu colega Gunga e, juntos, venderiam flores,
que estava no mundo do crime. A mãe e as meninas mercadoria de que sua mãe não gostava, por dar prejuízo,
sabiam do envolvimento dele em tiroteios nas proximi- mas que Lumbiá apreciava muito de tê-la em seus braços.
dades do barraco. Zaíta não guardou os brinquedos, não se Vender flores era com ele, tinha até um jeito próprio de
importava com surras, mas sim em encontrar a figurinha- vendê-las: observava os casais e, tão logo o casal acabasse
flor. Saiu do barraco e foi na vizinha à procura de sua de se beijar, ele lhe impunha sua mercadoria.
irmã, porém, não a encontrou. Seus ardis costumavam dar certo e ele ficava feliz.
O segundo irmão de Zaíta não desejava a vida mise- Lumbiá gostava também de se aproximar de casais forma-
rável que tinham. Reclamava de ter que trabalhar muito e dos por semelhantes, dos carinhos trocados com leveza
nunca ter o bolso cheio. Ele iria ficar rico. Desde criança, entre eles. Ele costumava inventar histórias comoventes
já tinha escolhido seu caminho: “Corria ágil pelos becos, para vender suas flores, era ficção, mas tinha uma dose
colhia recados, entregava encomendas, e displicentemente dissimulada de verdade, pois seu coração de menino
assobiava uma música infantil, som indicativo de que os conhecia tristezas e mágoas: surra da mãe, mercadoria
homens estavam chegando”. encalhada, ganho roubado por um menino maior.
Benícia guardou os poucos mantimentos. Tudo estava O advento do Natal, no entanto, era uma ocasião das
muito caro no supermercado. Teria de arranjar mais mais felizes na vida de Lumbiá. Não era o espetáculo das
trabalho para os finais de semana. Precisava pagar o luzes natalinas que o atraía, nem o Papai Noel das vitrinas,
aluguel, a taxa de água e de luz, ajudar a irmã. O que nem as árvores de natal, coloridas, tampouco as caixas
ganhava não era suficiente. Sentiu certo temor, pois há vazias embrulhadas em papéis como se fossem presentes.
algum tempo não ouvia a voz das meninas. Encontrou os O que ele apreciava era o presépio com a imagem do
brinquedos espalhados no chão, destruiu a bela boneca menino Jesus. Ele sempre visitava presépios, quer nas
negra. Naíta, que estava no barraco vizinho, ao ouvir os igrejas, quer nas lojas. A pobreza daquela família era
berros da mãe, voltou para casa. Apanhou quando chegou. parecida com a da sua família. “Só faltava [o Deus-
Saiu para procurar a irmã. Naíta estava triste, porque tinha menino] ser negro como ele”.
perdido a figurinha de Zaíta. Também por ter apanhado e Houve um ano em que a loja Casarão Iluminado,
pela destruição da boneca. especializada em vendas de luminárias, armou o mais
Na favela, tiroteios eram frequentes a qualquer bonito presépio da cidade. Lumbiá aguardava o dia em
momento, pois os grupos rivais se enfrentavam em busca que iria lá, mas havia um obstáculo: era proibida a entrada
de domínio, além do confronto frequente dos grupos de crianças sozinhas e ele não conseguia esperar até o dia
criminosos com a polícia. O segundo irmão de Zaíta era em que a mãe pudesse acompanhá-lo. Ele tinha tentado
líder do grupo mais armado. Ele queria o território em vão entrar no Casarão, mas foi enxotado pelo vigi-
próximo a sua casa apenas para si. Em muitas ocasiões, lante. Ele queria muito ver o presépio feito por um grande
embora tivessem sido alertadas, as crianças brincavam artista como ouvira dizer na televisão.
distraídas. Em meio ao tiroteio, Zaíta procurava sua Era dia vinte e três de dezembro. Quase seis horas da
figurinha-flor. Ela foi atingida: “Balas, balas e balas tarde. Desde às nove horas da manhã, o menino estava
desabrochavam como flores malditas, ervas daninhas aguardando para entrar na loja. Estava sozinho, com flores
suspensas no ar. Algumas fizeram círculo no corpo da nas mãos, rosas amarelas. Eram para enfeitar o Menino
menina. Daí a um minuto, tudo acabou. Homens armados Jesus e o Rei Baltasar, que parecia com o tio de Lumbiá.
sumiram pelos becos silenciosos, cegos e mudos”. Cinco Era um dia muito frio e chuvoso, por isso sua roupa estava
ou seis corpos tombaram mortos. Os moradores do beco colada no seu corpo frágil, que estava a tremer de febre.
recolheram o corpo da menina. Naíta demorou um pouco O Casarão abrira naquele dia não para vendas, mas apenas
para entender o trágico final da irmã, por isso gritou: “ — para a visitação pública do presépio.
Zaíta, você esqueceu de guardar os brinquedos!”. Arriscou-se mais uma vez e entrou, na porta não havia
ninguém. “Lá estava o Deus-menino de braços abertos.
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Nu, pobre, vazio e friorento como ele”. O garoto pensou: retornou. A vontade de urinar, que sentia ali encolhido no
“Erê queria sair dali. Estava nu, sentia frio”. Num im- chão, confundia-se com a dor do chute que acabara de
pulso, pegou a imagem nos braços. Chorava e ria ao mes- levar. Lembrou que sua primeira vez foi na zona onde
mo tempo. Escapou do segurança e saiu dali com morava, com uma menina de sua idade, também nascida
agilidade. Mas, na rua, foi atropelado por um carro. Am- na zona. Recordou que urinou na cama depois do ato.
bos acabaram massacrados e quebrados – Lumbiá e Jesus O garoto, sentindo forte dor, não conseguia mais
Menino. Note-se o sincretismo religioso. Na Umbanda, levantar. Morrer não tinha importância para ele, assim
Erês, Ibejada, Dois-Dois, Crianças, ou Ibejis são entidades como não tivera a morte de sua mãe. Mas ele não queria
de caráter infantil que simbolizam pureza, inocência e morrer tão sozinho como estava. Por isso, teve vontade de
singeleza, entregando-se a brincadeiras e divertimentos. chamar os primeiros trabalhadores que passavam
próximos à marquise. A manhã já prenunciava um dia
“Di Lixão” quente, no entanto, ele tremia de frio. Havia cerca de duas
Décimo conto. Narrador onisciente. Presença de semanas que o pequeno tumor aparecera e ele não
discurso indireto livre. Destaca-se o neologismo: “quarto- conseguia comer quase nada. Fez um esforço, sentou-se,
marquise”, que se refere ao espaço de exclusão ocupado urinou sangue, assustou-se. Apertou a bola de pus da boca
pelo protagonista, espaço transformado em seu leito de com o dedo e, depois, cuspiu pus e sangue... Tudo nele
morte. Esse conto comporta grave denúncia da indiferença doía, a vida nele doía. Deitou-se, de novo, em posição de
em relação aos garotos afro-brasileiros que vivem em feto. Desamparado.
situação de rua. Às sete horas da manhã, um transeunte teve a
No início do conto, ao amanhecer, Di Lixão estava impressão de que um garoto estava morto ali sob a
sentindo uma dor de dente latejante. Havia um pequeno marquise, pois um filete de sangue escorria de sua boca
tumor na sua boca. Ele dividia um espaço sob uma entreaberta. Às nove horas, o rabecão da polícia recolheu
marquise com um garoto semelhante a ele. Era seu quarto. o cadáver do garoto, conhecido na área como Di Lixão. O
Algumas horas mais tarde, será seu leito de morte. motivo de seu apelido era sua mania de chutar latões de
Di Lixão deu uma cusparada no rosto do colega de lixo. Note-se que o modo de contar essa história humaniza
desdita. Por instinto de defesa, este reagiu e Di Lixão o protagonista, cuja trajetória existencial revela o quanto
recebeu um pontapé nas suas partes baixas e deitou-se ele fora brutalmente desumanizado.
encolhido em posição fetal. Essa dor o fez se lembrar de 4.4. Em seguida, analisamos contos que versam sobre
sua mãe. Era a primeira vez que se lembrava dela, depois mulheres afro-brasileiras e suas trajetórias de dores e de
de ela ter sido assassinada na zona de prostituição onde amores.
ambos até então moravam. Ele presenciou o crime, mas
não o contou para a polícia. Naquele momento de dor, ele “Ana Davenga”
dizia para si mesmo, pois estava sozinho, que não gostava
da mãe e dos conselhos dela para que ele frequentasse Segundo conto. Ana e seu companheiro, Davenga,
uma escola e buscasse uma vida melhor. Sofria intensa viveram uma vida de riscos que terminou de um modo
dor, pensava que a morte devia ser o encontro das duas trágico. No conto, há a presença de discurso indireto livre
dores como a que estava sentindo em seu corpo. e de uma fala em discurso direto, marcadamente informal
Di Lixão pensava também no colega com quem tivera “Mulher, tá pancada? Parece que bebe? Esqueceu da vida?
o conflito ao amanhecer. Ele tinha ido embora. Há bastante Esqueceu de você?” Destacamos o neologismo: “gozo-
tempo eles dividiam o espaço para dormir. Durante o dia, pranto”, que mostra a ambiguidade do líder da favela,
cada um deles garantia a própria sobrevivência, peram- homem capaz de atos cruéis, mas também dotado de
bulando pela rua. No meio da noite, encontravam-se ali e sensibilidade em sua relação amorosa.
conversavam sobre tudo, mas silenciavam sobre a mãe de A narrativa é feita por um narrador onisciente. No início
cada um deles, cujas histórias deviam assemelhar-se. Di do conto, Ana estava aflita. Na favela, havia uma senha
Lixão tinha 15 anos, o garoto, 14, apesar de pequeno. composta por batidas de samba, que indicava algum tipo de
Nesse momento, o protagonista sentia muita dor. “As dores festividade, mas Ana sentia o coração apertado pela ausência
tinham se encontrado. de Davenga, seu companheiro. Note-se que as imagens
Doía o dente. Doíam as partes de baixo. “Doía o sonoras têm relevância na construção textual, tanto as
ódio”. Di Lixão sentiu vontade de urinar. Veio-lhe então a batidas de samba, que se referem à festa surpresa de
lembrança de uma vivência por demais dolorosa, que aniversário da protagonista, como o som das balas no
ocorreu na sua infância, época em que apanhava de sua momento do extermínio do casal. O barraco onde vivia era
mãe por urinar nas calças. Lembrou-se do dia em que sua uma espécie de quartel-general. Ana passara a morar ali com
mãe, ao vê-lo ensopado de urina, “puxou a bimbinha dele Davenga, a princípio contra a vontade dos seus comparsas
até quase arrebentar”. A dor que ele sentira naquele dia de crimes, que acabaram por ceder à vontade de Davenga,
que era o chefe ali.
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O primeiro encontro de Davenga e Ana tinha ocorrido sempre é enfatizada uma perspectiva estereotipada acerca
numa roda de samba. Ela dançava. Na época, ele estava dos envolvidos, a partir da ideologia dominante, diferen-
sendo perseguido pela polícia, considerado suspeito de um temente do que é narrado nos contos.
assalto a um banco, do qual, aliás, não tinha participado, Na favela, no entanto, os companheiros de Davenga
pois preferia cometer crimes em que podia ver “o pavor choraram a sua morte e a de Ana, que morrera metralhada,
nas feições e modos das pessoas”. Gostava de ver os “protegendo com as mãos um sonho de vida que trazia na
poderosos atemorizados, como um deputado, o qual barriga”. Ana morreu ao completar 27 anos. Sobrou no
Davenga assaltou e humilhou. Ana atraiu Davenga. Ela o quarto de seu fuzilamento um botão de rosa, colocado
fazia recordar as mulheres da família que ele havia numa garrafa de cerveja, recebido de seu homem na
deixado há muitos anos em Minas Gerais. Depois desse primeira festa de aniversário que tivera em sua breve vida.
primeiro encontro, ficaram juntos para sempre. Em muitas O destino de sua criança inocente foi o de ser mais uma
ocasiões, ele ficava foragido. Seus companheiros garan- vítima do contexto de violência em que fora gerada.
tiam o sustento de Ana. Em outras, Ana, a mando dele,
entregava dinheiro ou coisas para as mulheres dos amigos “Maria”
deles. Ana sabia que ele estava envolvido em crimes.
“Mas achava (...) que qualquer vida era um risco e o risco Quarto conto. Narrador onisciente. Presença de
maior era o de não tentar viver”. Ana adotou o nome dele, discurso indireto livre e de discurso direto. Narra a traje-
pois “queria a marca do homem dela no corpo e no seu tória de uma mulher negra e mãe de três filhos que, ao
nome”. voltar para sua casa, depois do trabalho, é linchada pelos
Davenga passou a refletir sobre as mulheres que tivera passageiros do ônibus que ocupava, por ter sido poupada
antes. Entre elas, Maria Agonia, que ele havia mandado do assalto. O conto denuncia a violência do racismo e suas
matar. Ela tinha sido uma jovem bonita, que conhecera na consequências nefastas. Destacamos o neologismo “buraco-
prisão, quando fora visitar um companheiro. Logo, passa- saudade”, relativo ao sentimento do assaltante por sua ex-
ram a ter encontros amorosos intensos, mas, transcorrido companheira e por seu filho.
um tempo, quando ele propôs que ela se unisse a ele, foi A protagonista desse conto é Maria, mulher negra,
rejeitado. Ele entendeu que ela só o queria para o prazer e empregada doméstica, mãe dedicada. Para garantir a
encomendou o assassinato dela. Dias depois, uma man- subsistência de seus filhos pequenos, ela trabalhou até
chete no jornal estampava a notícia do crime: “Filha de num domingo numa festa na casa de sua patroa. Nessa
pastor apareceu nua e toda perfurada de balas. Tinha ao ocasião, sofreu um acidente de trabalho, um corte no meio
lado do corpo uma Bíblia. A moça cultivava o hábito de da mão, enquanto cortava o pernil. No dia seguinte, a
visitar os presídios para levar a palavra de Deus”. Mais palma de sua mão doía e ela pensava: “Que coisa! Faca a
tarde, Davenga contou, cabisbaixo, o crime para Ana; no laser corta até a vida!”. Depois, esperou um ônibus, caro
entanto, ela não teve medo dele. para sua condição econômica, que demorava a chegar.
De volta àquela noite que prenunciava uma festa, Ana Maria era uma mulher cansada dessa rotina árdua. Ela
Davenga alisou a própria barriga, onde se encontrava sua levava numa sacola restos da festa (osso de pernil e
criança, ainda bem pequena. Naquele instante, ela pensou algumas frutas do tipo que seus filhos nunca tiveram a
qual seria o destino dessa criança. Enfim, Davenga oportunidade de experimentar). Embora estivesse cansa-
chegou, armado, e revelou que aquela festa era para come- da, estava feliz pela gorjeta, que usaria para comprar
morar o aniversário de Ana, ela teria a primeira festa de xarope para suas crianças gripadas. No conto, a dedicação
aniversário de sua vida. A festa perdurou até a madrugada. de Maria para com os filhos é evidenciada.
Ana, tão acostumada a sofrer, estava feliz. Maria entrou no ônibus, seu ex-companheiro sentou-
Ana estava com Davenga na cama, quando a porta se ao seu lado num banco da frente. Foi um encontro
abriu com violência e dois policiais entraram. O barraco inesperado, que mexeu com Maria. Com ele, ela tivera seu
estava cercado, um policial estava na janela com uma primeiro filho, depois da separação, teve mais dois me-
metralhadora apontada para Ana que, encolhida, buscava ninos de encontros descompromissados, que criava sozi-
proteger com a mão o filho em seu ventre. Mandaram nha. Esse homem, depois de dizer em voz baixa que ainda
Davenga se vestir, mas ir para a prisão não era para ele, tinha sentimentos por ela, de falar algumas palavras
preferiria morrer. Ele sabia que o gesto de pegar sua arma carinhosas para o filho, levantou-se, sacou uma arma, e
que estava sob sua camisa resultaria em sua morte. Depois seu comparsa gritou que era um assalto.
desse gesto, decorreram muitos tiros. Os noticiários, no Os assaltantes roubaram todos, mas pouparam Maria,
dia seguinte, lamentaram a morte de um dos policiais de e desceram rapidamente. Alguém gritou que Maria era
serviço. Note-se que notícias de crimes violentos veicu- cúmplice do assalto. Outro passageiro a xingou e disse
lados pela mídia jornalística ou televisiva estão presentes que ela estava em conluio com os assaltantes. Os passa-
em outros contos do livro Olhos d’água. Nessas notícias, geiros, pessoas simples como Maria, dando-lhe respon-
deram ao assalto de forma violenta e selvagem. Uma voz
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disse que ela não tinha descido com os assaltantes para perguntaram pelo seu irmão, mas ela não tinha irmão e
disfarçar, que era cúmplice deles. O homem que iniciara havia se afastado dos pais e de suas seis irmãs há tempos.
as acusações se levantou e foi para cima de Maria e deu- Um dos homens desceu do carro, o motorista prosseguiu
lhe um tapa no rosto. Alguém gritou: “Lincha! Lincha”, e e, durante a madrugada, ela foi estuprada. Estava escuro.
alguns passageiros resolveram que iriam fazer isso Natalina não viu o rosto do homem. Obedeceu a tudo que
mesmo, enquanto outros desciam do ônibus. a mandara fazer e, depois que ele sucumbiu ao sono, ela
O motorista tentou defender Maria, dizendo que ele a esbarrou na arma do homem que estava no chão e o
conhecia de vista, que ela tomava o ônibus todos os dias no matou. Manteve em segredo tudo que lhe acontecera.
mesmo horário, que ela devia estar voltando do trabalho, Pouco depois, soube que estava grávida.
“da luta para sustentar os filhos”. Mas não lhe deram Natalina, no final da narrativa, estava fugindo do
atenção. Maria foi violentamente atingida e morreu sem comparsa daquele homem que havia matado. Apesar do
entender o motivo de estarem fazendo aquilo com ela. Tudo perigo, estava feliz, pois iria ter um filho em breve: “Um
aconteceu de modo rápido. Em seus momentos finais, filho que fora concebido nos frágeis limites da vida e da
Maria tentava compreender o que lhe ocorria. Ela morreu morte”. Note-se que o tema da extrema vulnerabilidade
com seus pensamentos voltados a seu filho mais velho, da existência no ambiente hostil, de exclusão, reaparece
querendo transmitir a ele o recado carinhoso que o pai do em outros contos do livro.
menino lhe cochichara no ônibus. Quando a polícia chegou,
o corpo de Maria estava todo pisoteado, todo dilacerado. “Duzu-Querença”
Ela não tinha conseguido chegar a sua casa pois, afinal,
como ela havia intuído, estavam “todos armados com facas Terceiro conto. Narrador onisciente. Presença de
a laser que cortam até a vida”. Há semelhança entre o final discurso indireto livre. A protagonista, Duzu, no final do
de Maria e o de Ana Davenga, ambas mortas em razão de percurso de sua vida repleta de enormes sofrimentos, tem
seu relacionamento com criminosos. uma ligação forte com sua neta Querença, menina que, no
conto, representa a esperança de renovação e de novas
possibilidades de vida. Note-se que o tema da esperança
“Quantos filhos Natalina teve?” renovada nos descendentes está presente também no
Quinto conto. Narrador onisciente. Presença de último conto do livro, chamado “Ayoluwa, a alegria do
discurso indireto livre e de discurso direto. A protagonista, nosso povo”.
Natalina, estava grávida. Era sua quarta gravidez, mas era Na cena inicial, Duzu, caracterizada como uma
o primeiro filho somente seu. Seus outros filhos foram mendiga, ao lado de outros iguais a ela, tentava sobreviver
dados, por diferentes motivos. na escadaria de uma igreja, sofrendo o escárnio daqueles
Natalina era muito jovem quando engravidou pela que por ela passavam e a consideravam um incômodo no
primeira vez. Tinha 14 anos. O pai dessa criança, Bilico, caminho. Duzu alucinava de fome e recorria à sua
também era muito novo. Ela engravidou sem saber e sem imaginação para amenizar esse sofrimento. Já idosa, mal
querer. Com medo de ser levada a uma temida parteira conseguia se manter de pé. No entanto, resistia, apelando
chamada Sá Praxedes, conhecida como devoradora de para a dimensão imaginária: “Ela é que não ia ficar ali
crianças, Natalina fugiu para bem longe de casa. A criança assentada. Se as pernas não andam, é preciso ter asas para
– um menino – nasceu e era parecida com o pai, e foi dada voar”. Note-se o tema da estigmatização social e racial.
para uma enfermeira do hospital. Duzu, ainda criança, foi para a cidade acompanhada
A segunda gravidez também a surpreendeu, embora ela de pai e mãe. O pai era um pescador que sonhava com
já soubesse como evitá-la. O pai da criança chamava-se outros meios de trabalho. Ele tinha esperança de que sua
Tonho. Ele ficou feliz, queria formar família com ela. menina pudesse trabalhar e estudar. Na casa em que ficou,
Natalina, no entanto, não queria família alguma e deixou no entanto, só iria trabalhar e muito. Durante anos,
a criança com Tonho, que chorou bastante e voltou para auxiliou nos serviços gerais da casa de Dona Esmeraldina,
sua terra natal levando o filho. em troca de moradia e alimentação. Mais tarde, a menina
A terceira gravidez também foi indesejada. Natalina negra passaria a ser explorada sexualmente pelos clientes
trabalhava como empregada num apartamento. O casal de da pensão de Dona Esmeraldina, que não perdeu a oportu-
patrões pediu para ela engravidar do patrão, pois a patroa nidade de lucrar cobrando dela pelos serviços sexuais
não podia ter filhos. Grávida, foi bem tratada. A criança prestados.
nasceu bela e fraca, Natalina quase morreu. Não teve leite Duzu tornou-se uma das prostitutas mais conhecidas
para amamentar o filho da outra mulher, era assim que ela da pensão de Dona Esmeraldina. Depois, ela foi para
o concebera. Logo foi esquecida pelos patrões. outros lugares onde teve outras experiências sofridas,
A quarta gravidez dela foi diferente das outras, pois como espancamentos dos cafetões e das cafetinas, presen-
era somente dela. Natalina recordou como tinha engra- ciou muitas mulheres serem assassinadas. O conto “Di
vidado. Ela foi colocada num carro, dois homens lhe Lixão” retoma o tema da violência extrema contra
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mulheres obrigadas à vida de prostituição. Duzu teve nove Ela ia para lá com suas crianças, para não levantar
filhos, que moravam nos espaços marginalizados da suspeitas. Depois de uma dessas viagens, ao retornar para
cidade. Teve também muitos netos, dentre eles, três sua casa, ela recordava os momentos de amor vividos. Em
tornavam sua vida mais amena: Angélico, Tático e sua existência, havia dois tempos: “um tempo em que o
Querença. Tático morreu aos treze anos. Ele tinha se marido estava envolvido e cada vez mais se diluía e o
envolvido cedo com a criminalidade. Com sua morte, a tempo em que o novo amor se solidificava”.
avó ficou muito triste. “Duzu deu de brincar de faz de Enquanto desfazia as malas, ela pensava que seu
conta. E foi aprofundando nas raias do delírio a que ela se marido logo chegaria. Seu comportamento era instável.
agarrou para viver o tempo de seus últimos dias”. Com Poderia chegar amigo, como nos primeiros anos de
seu corpo cada vez mais fragilizado pelo sofrimento e pela casamento, ou agressivo, fazendo perguntas sobre tempos
velhice, ela se agarrava cada vez mais a seus delírios. passados, sobre quem era o pai da primeira filha dela,
Estava chegando a época do carnaval e Duzu gostava sobre o motivo de ela voltar e se casar com ele depois de
muito desse período. Ela já se imaginava fantasiada na ala terem rompido. Ela percebia que nunca deveria ter reco-
das baianas e costurava papéis brilhantes recolhidos em meçado a relação com o marido, mas também reconhecia
seu vestido esmolambado. Um amigo de mendicância lhe que eles tinham tido tempos felizes.
disse que parecia ser vestido de uma fada, pois estava Salinda se distraíra durante toda a tarde, revivendo
repleto de estrelas. Ela respondeu que estrelas não eram lembranças. Já era noite. Seu marido tinha telefonado
apenas para fadas, mas também para ela e para seus três avisando-a que estava na casa da mãe. Ela gostou de ficar
netos amados. O dia do desfile chegou. Duzu voava deli- sozinha, pois a relação entre os dois já estava muito tensa
rante. Reviu a face de seus familiares todos e a imagem da há cinco anos. Tudo começou com perguntas agressivas,
neta cada vez mais ampliada. depois houve uma vigilância severa e constante e, por fim,
Querença soube da passagem da avó ao retornar da ela estava “em uma quase prisão familiar”. Ela buscava
escola. No morro, houve uma reunião de parentes, muitos sobreviver àquilo, à espera de que as crianças crescessem
ela não conhecia. Ao descer o morro, a menina foi recor- um pouco mais.
dando a história de sua família, de seu povo. Lembrou-se Ela tinha viajado há pouco tempo para a casa de sua
da avó que, de forma alucinada, passara seus últimos dias tia e, para não levantar suspeitas, sempre levava suas
de vida brincando de voar. A avó Duzu transformou-se, crianças. Recordou que tinha visitado um circo com as
então, na principal referência para Querença, pois com- crianças. Ela gostava de ver a acrobacia de bailarino na
preendeu que era “preciso reinventar a vida, encontrar corda bamba. Naquela ocasião, uma bailarina se apre-
novos caminhos”. sentou, Salinda sabia que qualquer passo em falso acarre-
taria sua morte. Ela se identificou com a situação da
“Beijo na face” equilibrista, pois também vivia numa situação-limite. A
bailarina foi aplaudida e ela, por identificação, também se
Sexto conto. Narrador onisciente. Presença de sentiu vitoriosa.
discurso indireto livre. Nesse conto, há a denúncia de uma Naquela noite, sozinha em sua casa, desfazia suas
sociedade em que mulheres vivenciam relacionamentos malas, quando seu marido lhe telefonou. Disse-lhe que já
abusivos. Há também a expressão de novas formas amo- era conhecedor de tudo, que não queria vê-la jamais. Ele
rosas. Destacamos o neologismo “borboleta-menina”. não iria matá-la, nem cometer suicídio, mas iria disputar
A protagonista vivencia mais uma vez a sensação de a guarda dos filhos. Salinda não sabia o que fazer, a quem
ter sido beijada no rosto. Foi um carinho tênue, suave. Ela recorrer, mas sabia que não iria desistir das crianças, pois
se lembrou mais uma vez do corpo que estivera ao seu seus “filhos eram uma opção que ela fizera para sempre”.
lado. Ela estava conhecendo uma nova forma de amor. No Mais tarde iria telefonar para sua tia Vandu, as crianças
começo, essa aprendizagem foi difícil para ela, pois esse estavam por lá e costumavam ligar mais tarde para a mãe.
amor tinha de ser vivido de forma secreta. Esse relacio- “Sentiu-se desesperadamente só”, precisava do apoio e do
namento amoroso durava quase um ano. Salinda tinha que afeto de sua tia.
disfarçar sua felicidade, tinha de escondê-la de seu Como uma equilibrista, tentou “se equilibrar sobre a
marido, mas sabia que estava sendo vigiada. O próprio dor e o susto”. Olhou-se no espelho. Em vez de sua face,
marido deixou escapar que tinha contratado um detetive, viu a face da amiga com a qual se relacionava, com um
como se ele próprio “buscasse retardar um encontro com forte “amor entre duas iguais”. As duas eram parecidas,
a verdade”. O marido passou a ameaçá-la cada vez mais: altas “negras e com dezenas de dreads a lhe enfeitar a
“Tomar as crianças, matá-la ou suicidar-se deixando uma cabeça. Aves fêmeas, ousadas mergulhadoras na própria
carta culpando-a”. Por isso, ela ainda não se separara dele. profundeza”. Entre elas, o que parecia pouco, tornava-se
Era na casa de uma tia, chamada Vandu, na cidade de muito, mesmo um tênue beijo na face se eternizava na pele
Chã da Alegria, que os encontros amorosos aconteciam. e na memória.

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“Luamanda” gonista de que, no vertiginoso espaço citadino, ela pre-


Sétimo conto. Narrador onisciente. Presença de cisaria viver o tempo com mais vagar, conforme o tempo
discurso indireto livre. Destaca-se o neologismo: “vida- da natureza.
estrada”. Destacamos a influência do nome próprio na A protagonista Cida, ao amanhecer, costumava
construção da trajetória da personagem. Esse recurso está praticar cooper em Copacabana. No entanto, naquele dia,
presente em outros contos do livro, em especial, no algo no clima e no movimento das ondas do mar fez com
último conto “Ayoluwa, a alegria do nosso povo”. que ela andasse cada vez mais devagar. Ela era uma
Luamanda, a protagonista, observou-se e notou que desportista natural. Sua rotina era corrida: cooper, ida à
parecia muito mais jovem do que era, que “estava intei- padaria, compra de jornal, leitura apressada das notícias,
rinha, apesar de tantos trambolhões e acidentes de percur- pois ela tinha feito um curso de leitura dinâmica. Casa,
so em sua vida-estrada”. Ela sentia a influência da lua e banho ligeiro, desjejum, uniforme, saída ligeira para o
sentia a pulsação de Eros no seu peito de mulher. Ela se trabalho, ia pelas escadas porque era mais rápido. Cida
indagava se “haveria um tempo em que as necessidades do “corria sobre a corda bamba, invisível e opressora, do
amor seriam saciadas”. Recordou a primeira paixão, quan- tempo. Era preciso avançar, avançar e sempre”.
do tinha onze anos. Vivera um amor platônico. Aos treze Ela não se recordava de sua terra natal, exceto que as
anos, teve um relacionamento com um garoto. Mais tarde, pessoas lá eram lentas. Desde a infância, Cida tinha um
quando ela já tinha acumulado diversas vivências, apaixo- sentimento de urgência, como demonstravam suas brinca-
nou-se imensamente à primeira vista e com esse homem deiras preferidas. Aos onze anos, foi pela primeira vez ao
teve cinco filhos. Rio de Janeiro, ficou fascinada pelo turbilhão da cidade,
Luamanda recordou que, tempos depois, vivenciou o enquanto sua mãe reclamava da correria das pessoas e da
amor em braços iguais aos seus. Também se relacionou velocidade dos carros. Identificou-se com aquele espaço
com um jovem e, nesse encontro, encantou-o com sua que evidenciava a urgência da vida. E quis retornar para
maturidade e ele a realimentou de juventude. Ela também viver naquela cidade maravilhosa.
se envolveu com um homem velho. Foram muitos os Aos dezesseis anos, viera à capital para trabalhar num
amores da vida dela, sendo que um amor vivido sempre emprego arranjado por um tio. Trabalhava muito, tinha
chamava mais um. Mas também houve dor no caminho breve amores, fazia cursos que dessem resultado imediato.
trilhado por ela. Foi machucada por um homem que não Tinha em mente que é “preciso correr, para chegar antes,
aceitou a separação. Como resultado, ela não conseguia conseguir (...) o lugar ao sol”. A mãe de Cida fez com que
mais sentir prazer. No entanto, insistiu, exercitando com ela prometesse não perder as missas de domingo e ela
paciência seu próprio corpo até que seu prazer retornasse. cumpria, pela metade, pois o ritual era lento. Ela
Luamanda estava ainda vivendo em franca aprendizagem. “imprimia mais e mais velocidade a sua louca e solitária
A cada amor vivido, percebia que tinha muito a maratona. Corria contra ela própria, não perdendo e não
aprender. Ela era “avó, mãe, amiga, companheira, amante”. ganhando nunca”.
Ela se olhou no espelho e lembrou de um poema em que Naquele dia, no entanto, Cida sentiu um desejo de
uma mulher angustiada se perguntava “onde é que ela parar. Pela primeira vez, viu o mar. Seu coração batia
deixara a sua outra face, a antiga, pois não se reconhecia apressado, mas seus movimentos eram lentos. Deixou o
naquela que lhe estava sendo apresentada naquele calçadão e foi para a areia, ficou descalça e sentiu-se livre.
momento”. Veja-se a intertextualidade com o poema “Retrato”, Viu um nadador e pensou que ele deveria ser rico para
de Cecília Meireles. Todavia, Luamanda não se via como usufruir do mar numa manhã de dia útil. Em seguida,
a mulher do poema citado, pois ela se reconhecia e se pensou nos mendigos que frequentemente cruzavam seu
descobria sempre. Ela estava com quase cinco décadas e caminho. Pensou no fluir do tempo. Estava com 29 anos.
sua maturidade era acolhida de forma positiva por ela Ela desejou entrar no mar, em busca de algo que não
mesma. Luamanda divagava sobre suas vivências, quando encontrava fora. Cida atravessou a rua com calma. Viu
ouviu assobios de alguém que a esperava fora da sua casa mendigos que tomavam café em copos de plástico, pensou
e ela foi ao encontro amoroso, prosseguir sua aprendi- em como o tempo seria vivido por eles.
zagem: “Apressou-se. Podia ser que o amor já não supor- Chegou à porta do prédio onde morava. Pedro sempre
tasse um tempo de longa espera”. Sempre impulsionada a esperava lá, no mesmo horário matinal determinado, em
pela lua, cuja influência estava inscrita em seu nome seu carro. Naquele dia, ele chegou ao prédio e não
próprio. entendeu o que tinha acontecido com ela, porque ela
estava muito atrasada. Ela disse a Pedro que não tinha
acontecido nada, que ela “esquecera das horas”. Ele podia
“O cooper de Cida” ir, pois ela não iria trabalhar naquele dia. “Falou baixinho,
Oitavo conto. Narrador onisciente. Presença de como se fosse um momento único de uma misteriosa e
discurso indireto livre e de discurso direto. O neologismo profunda prece. Ela ia dar um tempo para ela.”
“tempo-espaço” refere-se a uma compreensão da prota-
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4.5. A seguir, analisamos os dois contos protagonizados gostava de Beth, tinha vergonha desse sentimento. Tinha
por homens. Em ambos, o desfecho é trágico. que manter em segredo.
Tanto Beth como Gustavo pertenciam à classe alta.
“Os amores de Kimbá” Beth era diferente das mulheres que ele conhecera no
trabalho e na favela. Nada nela parecia espontâneo, fazia
Décimo segundo conto. Narrador onisciente. pose para tudo. Gustavo tinha certeza de que Kimbá
Presença de discurso indireto livre. estava com ele por amizade, talvez por interesse, sabia que
Kimbá acordou bem cedo. Iria fazer sol. Antes ele era o afeto dele se dirigia a Beth.
Zezinho, Kimbá foi o apelido que um amigo rico, viajado, Kimbá estava indo para a casa de Beth, Gustavo
dera-lhe por ele se parecer com alguém da Nigéria de também estaria lá. Na noite anterior, “tinham colocado o
quem o amigo tinha saudades. Kimbá pensou que “era dedo na ferida”. Ficou decidido que a “morte selaria o
preciso movimentar a vida até a morte” e decidiu com um pacto de amor entre eles”. Foi para o nono andar. “Os
gesto brusco não deitar novamente. Sua movimentação copos já estavam preparados”. Nus, os três ficaram à
abalou um pouco o sono de todos que dormiam nos espera da morte.
quartos vizinhos do barraco: sua Vó Lidumira, as suas
duas irmãs, sua mãe e suas tias. Seu irmão mais velho,
Raimundo, sempre bêbado, no entanto, que dormia no “Ei, Ardoca”
mesmo quarto que ele, nem se mexeu. Décimo terceiro conto. Narrador onisciente.
Ele gostava de ser bem alto, forte e bonito. A desco- Presença de discurso indireto livre e de discurso direto.
berta de ser atraente também para os homens era pertur- Note-se que, assim como nos contos “Di Lixão”, “Lumbiá”
badora para ele. Saiu do barraco. Tinha conseguido deixar e “Os amores de Kimbá”, no conto “Ei, Ardoca”, o
tudo para trás. Sentiu dor, mas também alívio. Detestava protagonista masculino sucumbe de modo violento.
a pobreza dali. Ardoca não conseguiu ser insensível à brutalidade que
Na infância, empinava pipas, vendia picolé, ia para vivenciou ao longo de sua vida.
escola, onde aprendia um pouco o que lhe ensinavam, Como mencionnado, o protagonista desse conto
jogava capoeira, ouvia as rezas da avó, tomava banho no chama-se Ardoca. No início do conto, evidencia-se a
tanque e descia o morro para encontrar os amigos. Ali ele desarmonia vivenciada por ele: não suportava mais ouvir
era o diferente, o que jogava capoeira e contava histórias. o barulho do trem, que o acompanhava e atormentava,
Ele frequentava a casa de alguns deles, “sonhando com o mesmo no seu dia de descanso, mesmo quando estava
dia em que teria tudo como eles”. junto com sua família, no descanso dominical.
Kimbá tomava distância do morro, com passos firmes Sua relação com o trem sempre tinha sido muito
e calmos. Deixava tudo que detestava para trás. O amigo estreita. Ele tinha crescido ouvindo o barulho do trem,
que lhe dera o apelido, Gustavo, tinha-lhe apresentado sua ruído que, durante toda sua vida, irritara-o. O trem repre-
prima Beth. Na ocasião do primeiro encontro, acabaram sentava um espaço de extrema violência: durante as inú-
ficando juntos, os três. Kimbá comparou “o negrume de meras viagens que fizera, ele presenciou “várias vezes,
seu corpo com a alvura dos corpos dos dois. Achou tudo como testemunha cega e muda, a assaltos, assassinatos,
muito bonito”. Chegou ao barraco, não conseguiu dormir tráfico e uso de drogas nos vagões superlotados”.
e, na segunda-feira, não foi trabalhar no supermercado. Ele não se acostumara a essa brutalidade. Pelo
Gustavo, havia muito tempo, tinha uma paixão forte contrário, Ardoca “cada vez mais estranhava e desacos-
por Kimbá. Beth também estava muito apaixonada por tumava à vida do trem”. E seu conflito com esse lugar
aquele negro lindo. Ela e o primo tinham um acordo brutal tinha ocorrido desde o ventre da mãe, pois, ainda
tácito, não poderia haver ciúme nem disputa entre os dois, feto, ele reagira com chutes aos solavancos do trem, du-
caso um se envolvesse com o parceiro do outro. Porém, rante as viagens que sua mãe, moradora do subúrbio,
não estava funcionando, pois ela queria Kimbá somente diariamente, tinha que fazer rumo ao trabalho.
para si. O pior é que ele parecia a cada vez aceitar mais Num sábado à tarde, Ardoca foi para a estação de
naturalmente o relacionamento a três. trem. Comprou a passagem, recusou o troco, subiu no
Kimbá estava cansado da rotina de seu trabalho no trem com dificuldade, encostou seu corpo cansado à
supermercado. Beth havia proposto que ele deixasse tudo, parede do vagão e depois “foi escorregando o corpo até
o amigo também. “Era tentador” deixar a família, pois não chegar ao chão” do vagão superlotado. O trem estava
via nada de bom a acontecer com eles. A avó era descen- parado e continuou assim por algum tempo, porém, o
dente de escravizados, vivera a maior parte do tempo barulho sobre os trilhos feria os ouvidos de Ardoca. O
trabalhando numa fazenda. A mãe e as tias trabalharam a protagonista tinha ficado traumatizado, por tanta violência
vida toda como domésticas nas casas de madames. As e sofrimento que presenciara nos vagões do trem ao longo
irmãs seguiam a mesma trilha de árduo e mal remunerado de sua vida.
trabalho e ele trabalhava na faxina do supermercado. Ele
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Naquele dia, alguns julgaram Ardoca negativamente, De repente, o trem ainda estava parado, um passageiro
outros eram indiferentes a seu padecimento, alguém quis entrou chamando por Ardoca. Em seguida, pegou-o no
socorrê-lo. No vagão, uns disseram que ele estava bêbado, colo, desceu do trem e o colocou num banco da estação.
um grupo de crentes cantava hinos em altos brados. Um Nesse momento, o trem partiu lentamente. O homem
camelô pulou sobre ele para vender água, uma mulher pegou o que Ardoca tinha no bolso, seus sapatos e seu
tentou reanimá-lo, dando-lhe um pouco d’água. Porém, relógio. Ele agora não tinha mais nada, morrera. Tinha
Ardoca respirava cada vez com mais dificuldade e mesmo decidido morrer no trem, para isso tomara veneno.
“debaixo do negro de sua pele, um tom amarelo desbotado O barulho da máquina sobre os trilhos foi o réquiem do
aparecia”. Estava morrendo. descanso eterno de Ardoca.

Exercícios
1. Quais os temas abordados no livro Olhos d’água, 4. Como se caracteriza A linguagem de Conceição
de Conceição Evaristo? Evaristo no livro Olhos d’água?

2. Qual conto de Olhos d’água possui um desfecho 5. O título do conto “A gente combinamos de não
que permite a visualização de um caminho de morrer” faz alusão a um combinado. De que se trata?
esperança para a população afrodescendente?

3. A maioria das narrativas de Olhos d’água é feita


em terceira pessoa. Há, no entanto, um conto que
sugere um caráter mais subjetivo, remetendo de forma
mais estreita a elementos da biografia de Conceição
Evaristo. De que conto se trata?

RESOLUÇÃO
PORTUGUÊS
AS OBRAS DA UNICAMP

OLHOS D’ÁGUA
1) Em Olhos d’água, são abordados temas como 4) Olhos d’água, que aborda a pobreza e a miséria
violência, fome, desigualdade social, exploração do urbana que atingem a população afro-brasileira,
trabalho, exploração sexual, preconceito racial, de evita “sentimentalismos facilitadores” e incorpora
classe e de gênero, e, em especial, aspectos da exis- “tessitura poética à ficção”, conforme afirma
tência da mulher negra na sociedade brasileira. Heloísa Toller Gomes no prefácio do livro.
2) O conto “Ayoluwa, a alegria do nosso povo” ofe- 5) O título do conto se refere a um pacto feito por um
rece a perspectiva de um devir esperançoso. grupo de garotos que cresceram juntos no mesmo
3) O conto “Olhos d’água”, que abre e nomeia o livro, ambiente precário e hostil de uma favela não
apresenta elementos mais diretamente associados nomeada. O pacto era o de não morrerem, tal com-
à história pessoal de Conceição Evaristo. Cabe binado implicava necessariamente o entendimento
evidenciar que, diferentemente dos demais contos que eles tinham de que a vida deles seria regida
do livro, ele é narrado em primeira pessoa por pelo enfrentamento constante da morte.
uma protagonista não nomeada.

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